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Ann Gilmour EM CADA CORAÇAO UM DESEJO

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Em cada coração um desejo (Challenger for doctor Lesley) Ann Gilmour
Bianca no. 26
 
As mulheres não sabem jogar de acordo
com as regras, foi o comentário geral de todos os médicos, quando Lesley, recém-formada, chegou para fazer estágio no hospital. Ela estava disposta a vencer e, principalmente, a mostrar a seu chefe, sir Charles, que tinha tanto valor quanto qualquer homem. Mas, alguns meses depois, não tinha conseguido seus objetivos e se tornara uma mulher oprimida, apaixonada por sir Charles, envolvida emocional- mente com um médico e odiada por outro. Com a carreira ameaçada e o coração ferido, como sair daquela terrível situação?
Em cada coração um desejo
“Challenger for doctor Lesley”
Ann Gilmour
 Este Livro faz parte do LivrosFlorzinha,
sem fins lucrativos e de fãs para fãs. A
comercialização deste produto é
estritamente proibida.
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 CAPÍTULO I
— O senhor é um dos melhores médicos da Escócia. Nunca pensei que pudesse ser tão injusto!
De pé, na frente da enorme escrivaninha de pau-rosa, a Dra. Lesley Leigh desafiou sir Charles Hope-Moncrieff. Fazia apenas dez minutos que estava naquela sala, e parecia que já não tinha mais nada a perder.
— Obrigado pelo elogio, mas isso não altera a minha decisão — ele disse, secamente. — E ainda é muito inocente, srta. Leigh, se espera que tudo na vida seja justo.
O fato de não a chamar de "doutora" atingiu Lesley tanto quanto suas palavras duras.
— Mas o senhor sempre admitiu em sua clínica o melhor aluno de cada turma — insistiu.
— É, mas desta vez resolvi mudar. — A figura alta, usando um elegante terno azul-marinho, recostou-se na cadeira giratória. De um modo desconcertante, ele a examinou, desde a ponta dos sapatos caros até os cabelos loiros brilhantes. — E não me pergunte por quê. Todos sabem que não vou ter outra médica na minha clínica. Elas não fazem outra coisa, além de criar problemas. As enfermeiras não as apreciam e elas acabam brigando com a enfermeira-chefe.
— Pensei que o senhor escolhesse o pessoal médico, mas vejo que quem o faz é a equipe de enfermagem — Lesley não conseguiu disfarçar o despeito.
Está sendo atrevida, srta. Leigh. Não consigo entender por que as mulheres querem ser médicas. Isso só diminui suas chances no mercado do casamento. Seria muito melhor a senhorita ser aeromoça; poderia agarrar um milionário ou coisa assim. 
O absurdo da sugestão deu a Lesley coragem para continuar.
— Mas não estou procurando casamento. Tudo que quero é uma chance de mostrar o meu valor.
— Minha querida srta. Leigh — ele levantou as sobrancelhas — não estou nem um pouco interessado em saber o seu valor. Tenho uma clínica e um grupo de médicos estagiários para dirigir. Não posso perder tempo com caprichos femininos. Na minha opinião, já estão desperdiçando muito dinheiro, formando mulheres médicas. Na minha clínica, os estagiários se preparam para fazer uma especialidade. Muitos deles continuam a estudar depois e acabam sendo professores de medicina. Essas oportunidades são um verdadeiro prêmio, e é meu dever fazer com que só os alunos que possam aproveitá-las ao máximo consigam as vagas.
— Mas é isso que eu quero fazer. Todos os alunos que conseguiram o prêmio Fleming se especializaram. Por que não posso fazer o mesmo?
— Como todas as mulheres, a senhorita está querendo pegar o braço inteiro, agora que conseguiu um dedinho. — Ele impediu que ela protestasse, com um gesto elegante da mão bem feita. — Não estou fazendo pouco de sua capacidade, nem de suas ambições, que são louváveis. Mas capacidade e ambição não bastam. Como professor de medicina, tenho que ser realista. E uma especialização como essa não é para uma mulher que, dentro de dois anos, estará casada.
— Mas não pretendo me casar dentro de dois anos!
— Isso é o que vocês todas dizem. Infelizmente, as estatísticas provam o contrário. — A voz dele mostrava todo o desprezo que os solteirões inveterados sentem pelos "fracos", que deixam o casamento interferir em suas carreiras.
— No entanto, o senhor acabou de me dizer que, como médica, minhas chances são poucas, no mercado do casamento. — Lesley tinha certeza de que seu rosto devia estar tão vermelho quanto um pimentão.
Ele riu, então, e o riso alegre transformou seu rosto. Apesar do amargo desapontamento Lesley não pôde deixar de notar seu encanto.
Sir Charles se levantou da cadeira e caminhou até a janela. Quando falou, estava sério de novo, mas não havia mais hostilidade em sua voz.
— De acordo com a minha experiência, doutora, as mulheres não servem para essa carreira. Poucas, mesmo sendo muito inteligentes, chegam ao topo. — A voz dele estava cheia de compreensão, simpatia e até mesmo piedade pelas mulheres brilhantes como ela, cujo único defeito era ser mulher. — Existem muitas forças contra vocês, e seus inimigos mais poderosos estão em seu íntimo.
Lesley ouviu o zumbido de uma abelha do lado de fora da janela, rodeando uma flor vermelha, naquela tarde ensolarada de junho. De onde estava, podia ver a cachoeira. As vozes das crianças, que cor​riam no parque lá embaixo, chegavam até eles. Olhou de novo para o homem que tinha seu futuro nas mãos. Com apenas quarenta anos, já era diretor de uma escola de medicina. Para a maioria dos estudantes era um verdadeiro deus. Tentavam imitá-lo em tudo, desde seu modo de tratar os doentes, até seu gosto impecável para se vestir. Ele não aceitava erros e não se cansava de lhes dizer que era fácil satisfazê-lo... fazendo tudo de acordo com o melhor padrão, é claro. E, agora, sir Charles lhe dizia que, apesar de ter sido a melhor aluna de sua turma, não era bastante boa para trabalhar em sua clínica.
— É preciso ter um certo grau de insensibilidade nesta carreira - ele estava dizendo. — As mulheres não são assim.
— Como é que o senhor descreve essa insensibilidade? — A voz de Lesley era pouco mais do que um sussurro.
Ele se virou para ela, devagar.
— é procurar sempre o melhor para a gente, mesmo prejudicando outra pessoa. — Por um momento, seus perturbadores olhos acinzentados prenderam os dela. — As mulheres não são capazes de fazer isso. Sempre deixam que muitas coisas ou pessoas as atrapalhem. Não estou fazendo uma crítica; só estou mostrando uma verdade. Sei que vocês podem ser muito decididas, quando querem mesmo uma coisa, mas cheguei à conclusão de que, nesta carreira, vocês deixam de querer muito cedo.
— Mas eu quero muito me especializar.
— Sinto muito, doutora. — Ele se aproximou, mancando ligeira​mente, o que lhe dava mais dignidade. — Sei que estou fazendo a senhorita engolir uma pílula amarga, mas já tomei minha decisão. Não costumo explicar minhas decisões, e só estou fazendo isso porque respeito suas qualidades de boa estudante. A senhorita foi uma das melhores alunas desta faculdade, e acho uma pena que não seja homem.
Sir Charles estendeu-lhe a mão, mostrando que a entrevista tinha acabado, Lesley precisou de toda sua força de vontade para se controlar.
— O senhor pode ter tanta certeza de mim, quanto dos homens que escolhe. Quatro dos seis estagiários que teve nos últimos três anos emigraram, tão logo conseguiram o título de especialistas. O país perdeu o dinheiro que investiu neles, do mesmo modo que perde, quando uma mulher se casa.
— Srta. Leigh — ele abaixou a mão. Sua voz estava um pouco áspera. — Não finja ser menos inteligente do que é. Um país não perde o que investiu em um homem, se ele vai trabalhar em outra parte do mundo.
Ela corou, sentindo que merecia a reprimenda. Mas ainda tinha uma última carta para jogar.
— As vagas que o senhor tem em Fenham ainda não estão preenchidas. Era uma afirmação, mas ela fez com que soasse como uma pergunta.
Sir Charles já estava com a mão na maçaneta e se virou, abrupta​mente.
— Seria capaz de aceitar uma coisa que não fosse a melhor?
— Depende do que o senhor quer dizer com isso. Metade dosestudantes desta faculdade dariam um braço para poder trabalhar lá.
Lesley notou o brilho de divertimento nos olhos de sir Charles, mas não se importou com isso. Ele hesitou por um momento, depois estalou os dedos, tomando uma decisão súbita.
— Está certo. Pode escrever para lá e dizer que concordo com a sua admissão. Esteja lá no dia 26 de julho, às nove horas da manhã. Espero que seja pontual.
— Quer dizer que posso ficar com uma vaga?
Foi apanhada de surpresa. Não era exatamente o que queria, mas pelo menos em Fenham também poderia trabalhar com ele,
— Foi o que eu disse, não foi? Agora, com licença. Não tenho o costume de ser importunado por mulheres, em minha sala, a esta hora do dia. 
Abriu a porta para Lesley passar.
— Obrigada. Prometo não desapontá-lo.
— Também é arrogante, srta. Leigh? — Levantou a sobrancelha, daquele modo já familiar. — Não sabe o que eu espero da senhorita, por isso não pode me prometer nada. — Olhou para o rosto desanimado dela. Era quase como se tivesse batido num cachorrinho indefeso. Arrependido, ele colocou a mão no ombro da moça. — Não deve nunca prometer isso para alguém. Ainda tem muito que aprender, não? Espero que Fenham não tire todo o seu entusiasmo. — Sorriu. — De qualquer modo, não creio que ainda me agradeça, daqui a seis meses. Na certa, vai estar pensando que devia ter escolhido um estágio mais fácil. Mas vai ser interessante ver como a senhorita se sairá.
Já estava do lado de fora do edifício, quando percebeu o que ele tinha feito. Devia começar duas semanas antes dos outros. Mas estava tão feliz, que nem parou para pensar por que ele ainda tinha um lugar vago, apenas quatro semanas antes do início do estágio.
Apesar de tudo que tinham dito dele, havia conseguido uma vaga, e sem ter que apelar para a lei que dizia que todas as pessoas são iguais, sem distinção de sexo.
 CAPÍTULO II
— Onde diabos está a nova estagiária? — O dr. Harry Dayborough entrou de repente na sala da enfermeira encarregada da Enfermaria Dois, fazendo com que Jane Duncan, uma estudante de enfermagem, quase derrubasse a xícara que estava colocando sobre a escrivaninha.
Angela Bishop despediu a estudante com um gesto de cabeça.
— Já lhe disse antes, dr. Dayborough, que não admito que fale nesse tom de voz na minha sala.
— Já lhe disse antes, dr. Dayborough... — ele a imitou. — Eu falo do jeito que quiser, aqui ou em qualquer outra sala. — Jogou o estetoscópio, que se prendeu no gancho que havia atrás da porta.
— Sente-se e comporte-se. — Ela se levantou e foi até um armário, onde pegou mais uma xícara e o açucareiro. — Não está fazendo nenhum bem à sua pressão. Se pensasse um pouco, antes de sair por aí como fez, teria se lembrado de que a nova estagiária só deve começar amanhã, e que sir Charles mandou Morrison para a enfermaria de cirurgia, hoje.
— Sir Charles o quê?
— E pode parar com isso também. — Ela continuou a servir o chá, sem olhar para ele. — Ninguém aqui se impressiona com suas grosserias, muito menos com o seu ciúme. — Empurrou a xícara para o médico.
— Ciúme é uma palavra muito fraca para expressar o que eu sinto. —- Ele se deixou cair numa cadeira e pegou uma bolacha da bandeja. — Não contente com tudo que tem, sir Charles precisava ficar também com as únicas enfermarias que já tive chance de con​seguir?
— Vamos, Harry. Você nunca teve chance de pegar aquelas enfermarias. Todo mundo sabia disso.
— Sua fé em mim é tocante!
— Hoje em dia, não é suficiente ter feito muitos cursos. É preciso estar interessado em pesquisas. E você não fez nada, desde que de​fendeu sua tese de doutorado. . . E isso foi há dez anos.
— Não precisa ser tão dura. Já sei que não vou conseguir nada - falou, com amargura — Quando a gente é jovem, acha que tem todo tempo do mundo. Então, um dia, acordamos e vemos que nosso tempo está acabando e que, se não fizermos o que queremos logo, não vamos fazer nunca. A gente não consegue se enganar por muito tempo, não. 
Dayborough estava deprimido e Angela Bishop quase sentiu pena dele.
— Então, hoje é dia de ter pena do Harry — disse, despreocupa​da. — Se fosse qualquer outra pessoa, você seria o primeiro a lhe dizer para se mexer e fazer alguma coisa, em vez de ficar morrendo de pena de si mesmo.
— A gente se cansa de se esforçar sempre. Acho que um dos meus maiores erros foi passar quatro anos nos trópicos. Um clima horrível, e a gente não pára de ter decepções. Não pode imaginar a quantidade de pessoas doentes que existe por !á! E então, quando parece que você vai conseguir alguma coisa, o maldito país declara independência e nos expulsa. — Ele dobrava e desdobrava o guardanapo. — Tanto tempo da vida da gente... Tudo desperdiçado.
Não era a primeira vez que ela o via assim, com os olhos injetados de sangue e as feições abatidas.
— Depende do que "desperdício'" signifique para você — falou, com calma. — Estava fazendo um trabalho útil e aprendendo bastante, e o novo governo o indenizou. E já faz tanto tempo que isso aconteceu...
— E daí? Ainda não consigo dormir direito. No começo, eram os pesadelos e, agora... — Encolheu os ombros. — Agora é ter que encarar a verdade sobre a gente mesmo. É muito duro.
— Podia não ter sido assim. — Ela se esforçou para falar despreocupadamente. — Pelo menos, não foi assim para todos... Veja sir Charles, por exemplo. — Mordeu o lábio. — Vocês dois começaram do nada. Na verdade, você começou artes dele.
— Os dois garotos de talento. — Ele riu, com tristeza. — Só que eu enterrei o meu numa selva tropical, durante um ataque terrorista. Nós instalamos um pronto-socorro, para tratar dos feridos da aldeia que estávamos visitando. Às vezes, acho que devia ter mandado exa​minar minha cabeça. Imagine, voltar para pegá-lo, quando foi ferido na perna! — Sua mão tremia, quando segurou a xícara. — Houve um tempo em que eu era capaz de fazer trinta transfusões de sangue em trinta minutos. Agora, nenhum dos seus preciosos estagiários acreditaria nisso.
Ficaram em silêncio por um momento. Fazia muito tempo que não tinham cerimônia um com o outro. Angela se lembrou de uma antiga intimidade, mas estava decidida a não abrir a porta do passado. 
__ A verdade é que você escolheu o caminho mais fácil. Nunca pensou que um dia encontraria o homem que já tinha sido seu aluno, numa posição melhor que a sua. — As palavras eram duras, e ela não as disse de coração. Sabia que o sofrimento dele era tão real quanto à perna aleijada de sir Charles Hope-Moncrieff.
__ Ah, mas as coisas não foram assim para Charles — ele continuou, como se ela não tivesse dito nada. — A vida o tratou melhor. Já publicou seis livros, é professor-catedrático de uma faculdade de medicina, foi condecorado... e está mais ambicioso do que nunca, se é que isso é possível.
— Segundo os boatos, ele quer um cargo no governo; e, talvez, um título de nobreza.
— E é bem capaz de conseguir. Tudo corre de acordo com os planos dele, sempre. E agora só lhe falta uma esposa. — Olhou para Angela, com uma amargura que não tinha nada a ver com o assunto de sua conversa.
— Isso é uma coisa que sir Charles parece não querer.
— Pelo menos até agora, não. Uma vez ele me disse que "'tudo tem sua hora certa".
— Espero que a candidata ainda esteja livre, quando ele a encontrar.
— Vai estar, sim. Charles nasceu com sorte. — Mexeu o chá, fazendo barulho com a colher. — Até mesmo as malditas faxineiras das enfermarias adoram o chão que ele pisa! Ontem Charles se des​culpou ... se desculpou mesmo.. . quando teve que pisar no chão que elas tinham acabado de limpar.
— Talvez elas gostassem um pouco mais de você, se mostrasse de vez em quando que também é humano e não as tratasse como se fizessem parte da mobília.
— Você está sempre contra mim. — Ele jogou uma bola de papel no cestinho de lixo. — É uma pena que Charles também não se lembre de que seu pessoal é humano. Acho que você já está sabendo da novidade: ele não vai mais operar no período noturno,neste hospital. Não devemos mais chamá-lo.
— Não há nada de estranho nisso. Você não pode culpá-lo por querer que as coisas aqui sejam como no Kentigern. Os estagiários de lá têm seus próprios plantões noturnos e chamam um dos assistentes de sua enfermaria para ajudá-los, quando precisam.
— Aí é que está... Chamam um dos assistentes de sua enferma​ria. — Bateu com o punho na escrivaninha. — Já é tempo dele perceber que isso aqui não é o Kentigern. Eles têm seis enfermarias e dois assistentes para cada uma delas, de modo que cada um fica de plantão uma vez por semana. E há tanta gente trabalhando lá, que praticamente têm que fazer fila para colocar o estetoscópio no peito de um doente. Aqui até parece que estamos no coração da África: só temos duas enfermarias e quatro assistentes! Além de atender às consultas, vamos ter que ficar de plantão dia sim, dia não. O seu querido sir Charles está muito enganado, se pensa que vou concordar com isso. Não há nada de errado com o sistema que está​vamos usando. Cada um ficava de plantão uma vez a cada quatro dias e cuidava das duas enfermarias ao mesmo tempo. Todo mundo estava contente. Não vejo por que o manda-chuva precisava se intrometer.
— Mas as coisas vão ficar mais fáceis, quando contratarem mais dois assistentes. E sir Charles já pediu isso à administração do hospital.
— Falando de contratação, o que achou da novidade? Não é próprio de Charles admitir uma mulher como estagiária. Dizem que ela está de olho num lugar de assistente, quando terminar o estágio. Quando menos esperarmos, ele vai estar colocando mulheres em cargos melhores do que os nossos.
— Você me deixa doente! Ele sempre foi mais do que generoso com você, embora só Deus saiba a razão. Acho que ele deve se sentir grato, apesar de não ter de quê.
— Ele acabou de promover um novato de Cambridge, passando por cima de todo mundo, em Kentigern, Três meses atrás, você diria que isso era impossível.
— Às vezes, acho que você está louco. — Ela balançou a cabeça e começou a recolher as xícaras. — Está ficando com mania de perseguição. Mas vou lhe dar um conselho, Harry: é melhor parar com isso. Só sorrisos e gentilezas na frente de sir Charles; mas, assim que ele vira as costas, começa a falar mal do homem. Qual​quer dia desses, ainda vai se meter em encrenca. Não é de admirar que tenha admitido uma mulher. Ninguém mais agüenta trabalhar com você. Desde que ele conseguiu aquelas enfermarias, você está impossível!
— Ah, você sabe tudo sobre os meus sentimentos — disse, irônico. Angela ficou vermelha, mas não mudou o tom de voz, quando respondeu:
— Você não muda... parece uma criança. No fundo, está magoado e quer ferir todo mundo a sua volta. Só não entendo por que eu agüento isso.
— Angela, você não presta. Se me amasse, teria se casado comigo.
— Se eu o amasse... — Mordeu o lábio. Ele não ia mudar nunca! — Você não ia precisar de uma esposa. O que ia querer era alguém que agüentasse seu mau humor.
— Deus, como odeio mulheres inteligentes! Sempre achando que podem modificar um homem. — Ele descruzou as pernas e se inclinou para frente, irritado.
— Já vi muitas mulheres cometerem esse erro. Harry. Não faria isso.
Dayborough tentou pegar a mão dela, mas Angela a afastou.
— Pare com isso. Não vou deixar que me envolva de novo.
— Pode me impedir?
Ela reconheceu o tom implorante em sua voz, que em outra época tinha achado irresistível.
— É a coisa mais fácil do mundo — disse, com aspereza. — A gente acaba aprendendo a se livrar das emoções.
— Quem diria que esse rostinho meigo esconde um coração duro como pedra! Eu me admiro muito de você não ter conseguido tudo que queria da vida, sendo do jeito que é.
— Acho que sabe muito bem por que não consegui.
— Todos reconheceram logo sua capacidade fora de série e não gostaram de você por isso mesmo.
Angela olhou para ele, séria.
— Isso é típico de você. Precisa sempre estar fazendo pouco de alguém.
— Está gostando de bancar a psicanalista hoje, hein?
Ela se levantou e, inconscientemente, endireitou os ombros, ajeitando o uniforme amarrotado.
— Isso, endireite o corpo e levante a cabeça. Você não está mal, para quem tem quarenta anos. Mas não vai conseguir evitar as rugas para sempre.
— Não adianta, Harry. Não pode mais me magoar.
Naquela mesma manhã, Angela tinha percebido a enorme quantidade de ruguinhas em seu rosto. Sem nem mesmo um olhar para o espelho, ela ajeitou a touca.
— Nem um fiozinho de cabelo branco à vista! — Harry levantou uma sobrancelha. — Com certeza você os tinge.
Ela gostaria de saber por que continuava lá, ouvindo o que ele dizia.
— Acabou, Harry. Não me afeta mais, mesmo.
Angela tocou a sineta que ficava em cima de sua escrivaninha, para chamar a estudante de enfermagem.
Dayborough se levantou e saiu, mas voltou da porta, para pegar o estetoscópio.
— Não tente se enganar, Angela. As coisas nunca vão se acabar entre nós.
Aquilo soou como uma ameaça.
Depois que ele saiu, ela continuou sentada, olhando para o lugar onde ele estivera. Ainda não conseguia acreditar que, depois de todos aqueles anos, tinha conseguido se libertar. Está tudo morto e enterrado agora, pensou. Toda dor e angústia. Era quase como se fosse outra mulher. As pessoas tinham razão, quando diziam que o tempo cura tudo.
Angela começou a pensar nas violentas mudanças de humor de Dayborough. Logo ele ia arrumar outra pessoa, para ser seu saco de pancadas. E apesar de ter dito que ele não conseguia mais atingi-la, tinha o estranho pressentimento de que, mesmo arranjando outro bode expiatório, Harry ainda ia magoá-la.
Destrancou o armário de remédios controlados e começou a con​feri-los. Quando a estudante entrou, não conseguiu se lembrar do motivo por quê a tinha chamado.
 CAPÍTULO III
O ônibus no qual ela veio de Glasgow desapareceu vagarosamente atrás da colina, na direção do litoral. Lesley colocou as malas no chão, endireitou o corpo e encheu os pulmões de ar, contemplando o Hospital Geral de Fenham.
Era igual a muitos outros hospitais da Escócia e tinha sido construído na época da guerra. O edifício principal ainda era o mesmo, mas outras construções tinham sido adicionadas, com o passar dos anos. Na encosta da colina, ficava a Casa das Enfermeiras, feita de pedras acinzentadas. Do lado esquerdo, o Pronto-Socorro e os consultórios. Lesley estranhou que estivessem vazios àquela hora, mas depois se lembrou de que estava havendo uma feira na cidade. Além desses edifícios, ficavam os pântanos, que ela amava tanto.
Lesley pegou as malas e seguiu pelo caminho que levava à Casa dos Médicos, separada das enfermarias onde ia trabalhar por um enorme espaço vazio e batido pelo vento. Ao norte de onde estava, ficavam os laboratórios e a ala administrativa, com os bangalôs da chefe das enfermeiras e do superintendente. Vários jardineiros aparavam a grama na frente deles.
Alguns homens estavam carregando um caminhão, com coisas que tiravam da antiga Casa das Enfermeiras. Dois motoristas uniformizados e várias moças de avental branco riam e brincavam, colocando caixas e quebra-luzes em uma ambulância. Parecia que estavam fazendo uma mudança.
Depois de um mês de férias, era bom estar em um hospital de novo. Começou a se sentir um pouco mais animada. Apesar do que sir Charles tinha dito, ia tirar o máximo proveito do estágio de seis meses. Quando terminasse seu curso, nunca mais ele ia pensar em não ter mulheres como estagiárias. Sua imaginação começou a funcionar. Talvez pudesse fazer um curso de doutoramento depois. Se trabalhasse bastante e mostrasse boa vontade, podia ser que ele a deixasse fazer uma pesquisa em sua nova clínica de diabéticos. De repente. Lesley ouviu uma buzina atrás dela.
— Hei duquesa! Sonhando acordada de novo?
— Jim! Pensei que só fosse chegar daqui a uns dois dias — Percorreu com os olhos o velho carro esporte vermelho. — De onde você desenterrou este calhambeque?
— Ei, está falando do amor da minha vida. — O dr. James Grahamdesceu do velho MG e abriu a porta do outro lado para ela. — Entre, por favor. — E o gigante de rosto sardento começou a jogar suas malas no banco de trás.
— Pelo amor de Deus, Jim! Você veio fazer estágio ou montar uma agência de fotografia? — Ela riu, quando uma das malas caiu sobre um tripé, uma caixa de lentes e um projetor de slides. Varas de pesca, máquinas fotográficas, tacos de golfe e muitas outras coisas se amontoavam, numa desordem incrível, no banco de trás do calhambeque. Era impossível deixar de rir, quando Jim estava por perto. Os dois tinham vinte e três anos e eram muito parecidos. Várias vezes já haviam sido tomados por gêmeos. Seus colegas de classe achavam que existia mais do que uma simples amizade entre eles, mas Lesley preferia não pensar nisso. Naquela época de suas vidas, nenhum dos dois podia se dar ao luxo de ter complicações sentimentais. Às vezes, Lesley achava que, além de tia Margaret e Fairlie, Jim era a única família que tinha.
— Como foram suas férias?
Ela se acomodou ao lado dele e começaram a conversar sobre o que tinham feito, desde o dia da formatura.
— Oi, beleza! — Jim brecou o carro na frente da Casa dos Médicos e se dirigiu à mulher de meia-idade, que abriu a porta, quando os viu chegar. — Como vai minha garota favorita? — Ele saiu do carro e começou a rodar com ela nos braços, antes que pudesse protestar.
— Pare já com isso, Jim Graham! Devia ter um pouco de vergonha. Afinal, agora é um médico formado! — Mas a mulher grisalha não estava nem um pouco zangada. Ela se voltou para Lesley. — Ele não muda nunca, não é? Esta sempre fazendo a gente rir. Mas entrem. Seus quartos já estão prontos.
A sra. Frazer era a governanta dos médicos e nunca deixava de ficar excitada, no dia em que um novo bando deles chegava.
— Eu o coloquei no quarto número nove, para que fique perto de sua amiga — disse para Jim. — E praticamente tive que subornar o pessoal da marcenaria para que fizesse uma mesa bem grande, onde coubesse todas as suas coisas. — Fez um gesto na direção do material fotográfico. — Falei com a srta. Baillie, que trabalha na radiologia. Acho que você vai poder usar o quarto escuro deles.
— Deus a abençoe, sra. Frazer. — Jim deu-lhe um beijo na bochecha e ela retribuiu com um tapinha na cabeça dele.
— Acho que sou muito mole com você. - Virou-se para Lesley. — Venha comigo, querida. Seu quarto é o número oito. — Ela abriu a porta de vidro do hall de entrada e deixou que a moça passasse na frente.
Lesley se viu num enorme corredor, com três portas. A sra. Frazer fez com que entrasse na primeira, que dava num pequeno hall.
__ Ele é um bom menino — comentou, depois que Jim as deixou. - Sempre foi tão prestativo! Sabe que os eletricistas quase fizeram uma greve quando descobriram que era ele que trocava os fusíveis para mim? — Riu, e Lesley teve a impressão de que a governanta não devia ter tido dificuldade nenhuma em acalmá-los. — Sempre reservo estes quartos para as médicas. São mais afastados e vocês têm mais liberdade aqui.
Havia mais três portas. Lesley empurrou com o ombro a que tinha seu nome e entrou.
— Consegui dois guarda-roupas para você. As mulheres geral​mente precisam de mais espaço do que os homens.
Lesley percorreu com os olhos a mesinha de cabeceira simples e a cama de ferro, coberta com uma colcha de algodão, que combinava com as cortinas verde escuro.
— Acho que está tudo em ordem. Precisa de mais alguma coisa, doutora?
É mesmo uma delícia a gente ser chamada de "doutora", Lesley pensou.
— Será que pode arrumar uma mesinha para mim?
— Vou tentar, mas não prometo nada. Os marceneiros estão quase loucos, com tantas pessoas pedindo mesas. Parece que todos os médicos resolveram escrever novelas ou mexer com fotografia. Sabe que tem um que pediu uma mesa para colocar a máquina de costura? Imagine, um homem costurando! — A sra. Frazer estava horrorizada. — O jantar vai das seis e meia às sete. O café da manhã, das oito às nove. Das oito da noite em diante, a cozinha deixa leite quente e café em cima do fogão, para quem quiser. Mas já notei que os estagiários de sir Charles dificilmente vão até lá.
A sra. Frazer saiu em seguida. Lesley colocou uma de suas malas em cima da cama e começou a arrumar as roupas nos armários. Olhando em torno, com mais calma, viu que ia precisar de um tapete.
Meia hora mais tarde, ouviu uma barulheira no corredor. Coisas pesadas sendo arrastadas, passos apressados e risos. Depois, alguém bateu na sua porta.
— Alô! — Era uma garota esbelta, de cabelo escuro. — Sou Nan Baillie, da radiologia. Você deve ser Lesley Leigh. Eu e Kate Ritchie, da hematologia, já estamos aqui há uma semana. Ontem à noite, chegaram mais algumas; agora, estão chegando as últimas. Elas é que estão fazendo esse barulhão. Jogou a cabeça para trás e riu.
— Aquela ambulância lá fora estava trazendo as coisas delas?
— Você viu? Eles estavam dando uma mão. Meu Deus, desta vez nós ganhamos das enfermeiras. Elas estão verdes de inveja, por termos nos mudado para a Casa dos Médicos. — Riu de novo, de um modo contagiante. Arrastou uma cadeira até a porta do banheiro e subiu em cima. — Seja boazinha e pegue aquele martelo.
Lesley estendeu-lhe o martelo e ela começou a pregar um pedaço de papel na porta. "Para uso exclusivo de Nan Baillie e Lesley Leigh", estava escrito nele.
— A gente tem que fazer isso logo no início, antes que elas tomem muita liberdade. Ontem, à noite, tive que esperar quase duas horas, para poder tomar um banho.
— Você pode fazer isso? — Lesley perguntou.
— Claro que sim. Se estivermos de plantão, não podemos ficar dependendo de uma nutricionista ou fisioterapeuta, que resolveu to​mar um banho demorado. — Deu mais uma martelada. — Pronto, isso deve resolver o assunto. — Desceu da cadeira e examinou seu trabalho. — Afinal, este banheiro pertence aos nossos quartos. Há muitos outros no fim do corredor.
— Notei que estes quartos são diferentes. Os outros dão direto para o corredor — Lesley comentou.
— É que estes eram ocupados por um oficial, durante a guerra. O seu quarto era a sala-de-estar dele e o meu, o quarto de dormir. Geralmente, a sra. Frazer os reserva para as médicas estagiárias. Ela não aprova a idéia de colocar homens e mulheres muito perto uns dos outros. - Nan Baillie levantou os olhos para o céu e riu.
Naquela ala havia ainda uma pequena cozinha, uma sala de jantar e a suíte da sra. Frazer.
A sala de jantar fez com que Lesley se lembrasse do refeitório da faculdade. As mesas eram arranjadas em forma de E. Os estagiários ocupavam as duas mesas perto das portas e os assistentes, a maior. O pessoal mais graduado usava as mesas menores, que ficavam no meio.
Naquela hora, só o clínico e o cirurgião de plantão estavam jantando, nas mesas reservadas para os mais graduados. Ela reconheceu o dr. Ian McLaughlan, sub-chefe da enfermaria masculina, sentado na mesa do fundo. Um homem moreno, de sobrancelhas espessas e ar desleixado, jantava na mesma mesa. Mas os dois não tomavam conhecimento um do outro.
Independente da idade, Lesley reconheceu logo os outros estagiários. Falavam todos ao mesmo tempo e pareciam muito interessados na conversa.
__ Um bando de extrovertidos, se é que já vi um. — Jim juntou-se a Lesley, que estava parada na porta.
Sandy Williams levantou os olhos e os viu.
— Aí vêm as duas novas vítimas. — Sandy falou, com a segurança de quem já estava ali há seis meses, e começou a fazer as apresentações. — Estes são os gênios de olhos azuis do professor. Hugh Campbell é de Edimburgo e está fazendo estágio com o velho Brown.
Um rapaz alto, de cabelo claro, cumprimentou Lesley alegremente e afastou a cadeira, para ela passar.
— Este é Peter Morrison. — Está pronto para ir embora, depois de seis meses de trabalho duro.
— E acho que estou deixando tudo numa tremenda confusão — ele sorriu.
Sandy continuou as apresentações. Os outros ou estavam indo embora ou mudando de enfermaria. Lesley e Jim eram os únicos novatos.— Acho que posso me considerar uma pessoa de sorte, por estar aqui — Lesley comentou. — Cheguei a pensar que não ia conseguir.
— Está brincando? — Janet Blair, a única outra mulher à mesa. entrou na conversa. — Todo mundo sabe por que ele lhe deu o lugar. Não conseguiu mais ninguém para trabalhar lá. Se quer saber por que, aquela enfermaria tem muitos chefes.
Os outros riram.
— Mas isso é ridículo — Lesley protestou. — Todo mundo quer trabalhar nas enfermarias de sir Charles.
— Queridinha, com a simpatia que ele tem por mulheres, como acha que conseguiu a vaga? Tenho certeza de que não foi por causa do seu cabelo loiro. . . e muito menos pelos seus lindos olhos azuis.
— Coitadinha! — Sandy virou-se para os outros. —- O coração de Janet está sangrando por ela. Bem que a mamãe avisou para ter cuidado com o Lobo Mau. — Torceu as mãos, fingindo desespero. - Vamos lhe dizer como são as coisas na verdade?
— Em primeiro lugar, ele vai recitar as regras dele, sobre os exames de sangue. ..
— Você não pode pedir ao laboratório que os faça — Morrison interrompeu.
- Vai ter que ir uma vez por semana até a clínica de anemia e diabetes, que ele tem em Snykes.
__ Vai ter que preparar seus testes alimentares e as lâminas para exame de sangue. — Sandy estava contando nos dedos. — E também vai ter que escrever todos seus relatórios a mão. E antes que o BMW dele saia do pátio, Harry D. cairá em cima de você, como se fosse uma jamanta. — Ele abaixou a voz e olhou na direção do homem moreno, com ar desleixado. — Vai ter sorte, se lhe sobrar tempo para ir até a porta da frente uma vez em cada seis semanas.
— Ninguém vai me fazer trabalhar como se eu fosse um escravo — Jim disse.
Lesley sentiu-se contente por ele também estar ali. Estava um pouco preocupada.
— E é claro que vão ter que dar plantões noturnos. De amanhã em diante, estarão sozinhos em suas enfermarias — Sandy continuou.
— Mas isso é ridículo! — Jim protestou. — Pensei que déssemos plantão dia sim, dia não.
— Conosco é assim, mas vocês tem que atender a todas as eventuais emergências.
— Mas então, quer dizer...
— Exatamente. Vocês podem passar três, até quatro noites sem dormir, enquanto nós temos sempre uma noite de folga, depois de um plantão. — Sandy recostou-se na cadeira, para ver o efeito que suas palavras causavam.
— Na verdade, mais do que isso — Hugh Campbell disse. — Nós dois vamos trabalhar em equipe, Sandy. Isso significa que teremos três noites livres, em cada quatro.
— Não pode ser. — Jim não estava querendo acreditar. — Todo mundo tem um limite de resistência. Ninguém agüentaria uma coisa dessas.
— O superintendente não deve estar sabendo disso. Por que alguém não lhe conta? — Lesley perguntou.
— é disso que eu gosto nas mulheres. . . entre outras coisas. — Sandy sorriu de uma orelha à outra. — Elas não têm a mínima idéia de como jogar. Não sabem nada sobre as leis da selva. Mas seis meses numa escola de homens vão abrir os seus olhos. Você não pode ir até o superintendente e dizer: "Por favor, senhor. . .". Simplesmente, não dá.
— é a famosa lealdade de grupo — Morrison continuou, com ar superior.
—- Está querendo dizer que seria capaz de trabalhar até cair de cansaço, seguindo um esquema completamente sem lógica, em vez de mostrar o que há de errado com ele?
— Claro, boneca. E se quer sobreviver e ficar por aqui, é bom se conformar com isso.
- É fácil para você, falar. Não vai ter que levantar todas as noites.
__ Vocês não podem culpar sir Charles por não querer ninguém dessa turma nas enfermarias dele. — Morrison desviou-se do pedaço de pão com o qual Sandy o ameaçava. — Afinal, nunca ninguém viu o chefe deles com um estetoscópio nas mãos.
Os outros riram. O velho Brown era a piada número um do hospital.
__ Apesar disso, ele é um ótimo clínico. — Hugh Campbell pulou em defesa do chefe. — Muito melhor do que sir Charles. . .
A vaia dos médicos formados em Kentigern o interrompeu.
__ E tem mais uma coisa — Campbell insistiu. — Ele encara os pacientes como seres humanos, o que é mais do que podemos dizer de muitas gente. — Deu uma olhada rápida na direção de Harry Dayborough.
— Desde que Dayborough receitou um miligrama daquele digital para uma paciente do departamento de Brown, os dois não se falam mais. Dizem as más línguas que houve uma discussão e tanto.
— Bem, você tem que admitir que ele foi um pouco exagerado. . . um miligrama!
— Não precisa insistir nisso. Fui eu que apliquei a injeção. — Hugh Campbell recusou-se a levar a coisa na brincadeira. — A pa​ciente morreu meia hora depois. Foi a coisa mais horrível que já aconteceu comigo. Lá estava eu, às três horas da madrugada, dizendo para um homem de trinta anos, com quatro filhos, que a mulher dele estava morta. Eu já sabia, antes de aplicar a injeção, que a dose era muito alta. Por isso é que estava me sentindo tão mal. Durante todo o tempo que levei injetando o remédio, eu me lembrava daquela aula do velho Clegs, quando ele disse para a gente não dar mais de um quarto de miligrama, se o paciente nunca tivesse tomado digital antes. Mas quando falei com Dayborough, ele insistiu que era um miligrama mesmo. E sabe o que ele disse, quando lhe contei que ela estava morta? "Não leve isso tão a sério, doutor. Ela ia morrer de qualquer jeito".
— Podia ser que fosse mesmo. Mas o senhor não pensou nisso, do alto de toda sua sabedoria, não?
A voz de Dayborough era hostil. Nenhum deles tinha percebido que ele se levantara de sua cadeira.
Sandy Williams engasgou e Morrison concentrou-se em bater com força nas costas dele. Dayborough caminhou até eles. Era para Lesley que olhava.
- Acho que vamos ter que nos comportar direitinho, agora que a sabe-tudo da cidade grande chegou. — Tentou segurar o queixo de Lesley, mas ela se afastou. — Orgulhosa, é? — Seu tom de voz era cheio de desprezo. Então, passou pela mesa deles e saiu da sala de jantar.
Todos ficaram em silêncio, evitando encontrar os olhos de Lesley.
— Existe uma coisa estranha naquela briga — Morrison falou, finalmente. — Nunca achei que a causa dela fosse mesmo o digital. Afinal, não existe uma dose-padrão e, de acordo com todos os rela​tórios, a mulher estava morrendo, quando chegou. Provavelmente, nada iria salvá-la. Acho que, até aquela data, sir Charles não sabia que nem sempre os assistentes ficavam de plantão em suas enferma​rias. A briga deve ter sido por causa disso, e não devido ao remédio. E uma coisa é verdade... ele não se importa de ser chamado no meio da noite, apesar de não ter que dar plantão.
— Acho que ele ainda não sabe que o departamento do dr. Brown vai continuar funcionando de acordo com o velho esquema. — Sandy estava sério. — Na certa, pensou que só precisava estalar o chicote para todo mundo pular, como fazem em Kentigern.
— Se quer saber a minha opinião — Janet Blair disse —, esse hospital vai muito bem na teoria. Na prática, o negócio é outro. Um chefe, que fica a maior parte do dia fora, não pode ver tudo que devia. Pessoalmente, vou ficar contente quando sair daqui. E não iria para o departamento de Harry, nem por todo o dinheiro do mundo.
— Um chefe que está sempre fora e um assistente que está sempre de mau humor — Peter Morrison tentou brincar.
— Acho que isso é um modo de encarar a coisa. — Sandy Williams se levantou e saiu. Já estava na porta, quando voltou e escreveu alguma coisa no quadro de avisos.
"Não se esqueçam de colocar seus nomes na lista, companheiros. Amanhã, à noite, é dia do baile das enfermeiras."
 CAPÍTULO IV
Lesley ouviu a chefe das enfermeiras daquela enfermaria, Angela Bishop, chamando a atenção de uma servente, antes mesmo de vê-la.
— O que você faz na sua casa não me interessa. Enquanto estiver na minha enfermaria, vai fazer como eu mandar. — E depois: — Enfermeira, diga àquela senhora que ela ainda não pode ler.
A moça ouviu o barulho de passos de alguém que se aproximava rapidamente, e virou as costas para a janela. Estava esperando nasalinha da enfermagem e já sabia que, na sua preocupação em começar bem, tinha chegado muito cedo. O modo como a enfermeira Bell a recebeu lhe mostrou claramente que os médicos, principal​mente as médicas, não eram bem-vindos, antes das nove horas. Já fazia mais de dez minutos que Lesley estava ali, sentindo-se cada vez menos à vontade.
— Então a senhorita é a nova estagiária. — A enfermeira Bishop parou na frente dela e a examinou de alto a baixo. — Espero que sejamos boas amigas, embora deva ficar sabendo que tenho um gênio um pouco exaltado.
Estendeu a mão para Lesley e seu cumprimento foi tão vivo e firme quanto sua aparência. O avental engomado estalou, quando ela se sentou atrás de sua escrivaninha.
— Sir Charles só vai chegar daqui a uma hora, mais ou menos. Ele gosta que tirem a pressão dos pacientes antes dele chegar. O dr. Dayborough vai lhe dizer como são as coisas aqui, com toda certeza. Agora, se me dá licença, vou fazer uns relatórios. — Sem oferecer uma cadeira para Lesley, ela abriu um livro e colocou os óculos de aro dourado na ponta do nariz.
Lesley achou difícil adivinhar a idade de Angela. Devia estar entre os trinta e os quarenta anos. Dava a impressão de que podia ser uma aliada ótima. se fosse sua amiga.. . e uma inimiga mortal, quando zangada. Afastou esses pensamentos e deu um passo na direção na janela. O arquivo com as fichas dos pacientes internados estava ali.
Como não queria fazer perguntas a respeito, ia descobrir sozinha o que eles tinham. Não viu, mas sentiu os olhos brilhantes que a observavam por cima dos óculos de aro dourado.
— Mais tarde, uma enfermeira vai lhe mostrar os arquivos. — Angela Bishop tocou uma sineta a seu lado. — Mas agora acho melhor a senhorita ir fazer seu exame médico. O dr. Dayborough não gosta de esperar.
— Exame médico?
— Há um aviso no quadro da sala de jantar. Todos os estagiários têm que passar por um exame médico, antes de começar a trabalhar nas enfermarias.
— Oh! — Lesley sentiu que estava sendo censurada. — Desculpe, mas eu não sabia. — Hesitou. — Onde é?
— No prédio da administração. Você não pode errar, é aquele prédio, ali perto. — A enfermeira Bishop parecia estar analisando Lesley.
— Obrigada, enfermeira. Vou até lá, então.
Quando chegou ao corredor, Lesley percebeu que estava prendendo a respiração. Com um suspiro de alívio, soltou o ar dos pulmões e fechou com cuidado a porta da salinha de enfermagem.
— Já teve alguma doença séria? Alguma coisa que a deixasse acamada algum tempo?
Lesley olhou para o homem que não fazia nenhum esforço para disfarçar sua hostilidade.
—- Acho que não, dr. Dayborough — respondeu, insegura.
— Teve ou não teve? — ele falou, com grosseria. A simples presença dela parecia ofendê-lo.
— Acho que só tive sarampo e caxumba, quando criança.
O que tinha feito, para ser tratada daquele modo? Afinal, ela o viu pela primeira vez na noite anterior.
— Está bem. Tire suas roupas. — Indicou com a cabeça um biombo num canto.
Lesley ficou um pouco embaraçada. Não esperava que fosse ser examinada por alguém de seu próprio departamento, e estava surpresa por não ter nenhuma enfermeira ali. Mas isso era tolice. Afinal, não era mais uma menininha de escola e ambos eram médicos. Começou a desabotoar a blusa.
— Muito bem, vamos acabar com isso. Ele a assustou, com sua chegada súbita.
— Está bem assim? — virou-se para ele.
Dayborough estava tão perto, que podia sentir sua respiração pesada. Seus. olhos não disfarçavam a antipatia que tinha por Lesley. A moça sentiu uma pontada de medo.
Ridículo! O que ele podia lhe fazer ali, à luz do dia, tão perto do escritório da chefe das enfermeiras? Mas ele estava sendo muito íntimo, mesmo. 
Ele está se fiando no fato de eu ser medica, também. Sabe que não vou dizer nada, ela pensou, surpresa.
Dayborough pegou o oftalmoscópio e se inclinou para examinar o olho esquerdo de Lesley. De repente, sem que ela esperasse, passou um braço em torno de seu corpo e apertou-a contra o peito, dolorosamente. Seus olhos caçoavam dela e a desafiavam a reagir. Lesley surpreendeu-se com a força dele; por mais que empurrasse, não con​seguiu se libertar.
— Solte-me — sussurrou, aflita.
Dayborough riu e apertou-a ainda mais. Lesley agarrou a mesa com uma das mãos, para se equilibrar, fechou a outra e, com toda a força que lhe restava, deu um murro no peito dele.
O médico praguejou e caiu para trás, jogando a mesa, com estrépito, contra a parede. Tremendo e tropeçando, ela caminhou até suas coisas, agarrou-as e saiu, sem notar que tinha deixado o estetoscópio cair. Já estava em frente ao escritório da chefe das enfermeiras, quando percebeu a blusa desabotoada. Mais tarde, ficou imaginando por que ninguém apareceu, quando tinham feito tanto barulho.
Lesley não viu a enfermeira Staines, a supervisora da noite, entrando no escritório da chefe.
— Já vi que o Casanova está usando seus velhos truques de novo.
— Fazia tempo que ele não se manifestava. — Joan Todd continuou calmamente a fazer seu relatório.
— Vou lhe dizer uma coisa, Joan. Estou de olho em Dayborough. Se ele der um passo em falso com uma de nossas enfermeiras, acabo com ele.
— Ele não vai deixar que o pegue. — Joan seguiu com os olhos a fumaça de seu cigarro. — Só faz isso com as pessoas que não podem se defender. Se bem que parece que, desta vez, Harry recebeu um troco que não esperava. E ele nem faz isso a sério. É só uma brincadeira de mau gosto. . . para ver como elas reagem.
— E para deixá-las embaraçadas também. Esse homem é um tremendo cafajeste. Não consigo imaginar o que Angela viu nele! Não acha que já era tempo de alguém ter uma conversinha sobre ele, com o supervisor?
— A minha opinião é que não devemos interferir. Enquanto ele estiver longe das nossas enfermeiras, não vou dizer nada. Não vou contra as minhas chances de ser promovida, por causa de uma estagiária. Se elas querem entrar num mundo de homens, que entrem... mas agüentem as conseqüências. — Joan Todd estava com cinqüenta e oito anos e já não ligava para nada, a não ser seu salário.
— Sei muito bem, dra. Leigh. que os departamentos de hematologia e bioquímica deste hospital são ótimos e vai precisar da ajuda deles em muitas ocasiões. As outras enfermarias costumam pedir-lhes para fazerem seus exames de sangue de rotina também... — Sir Charles estava a todo vapor. A visita à enfermaria havia terminado e ele estava lhe dizendo o que queria que ela fizesse, exatamente como os rapazes falaram que seria. — No entanto, prefiro que a medida da hemoglobina e as contagens de glóbulos brancos e vermelhos sejam feitas pelo método capilar. Isso quer dizer que a senhorita vai ter que fazer seus cálculos com sangue fresco. Entendeu?
— Sim, senhor. — Lesley estava um pouquinho desanimada. Não precisava tratá-la como se ela nunca tivesse pisado em uma enfermaria antes.
— Já tirou sangue de uma veia, doutora?
— Uma vez, no laboratório de fisiologia.
— Então, já sabe que não é uma coisa muito agradável. — A voz dele era bondosa. — Os pacientes internados geralmente estão bem doentes. Isso é óbvio, mas creio que nos esquecemos muitas vezes. Eles já têm que suportar coisas desagradáveis, para a gente lhes impor mais uma, só para poupar o tempo de um estagiário. — Sir Charles levantou uma sobrancelha. — Há uma diferença enorme entre levar uma picada num dedo, com uma agulhinha, e levar uma picada numa veia do braço, com uma seringa bastante grande. Tem alguma dúvida?
— Não, senhor — Lesley se mexeu, pouco à vontade.
— Além disso, vai aprender mais, fazendo os testes, do que mandando-os para o laboratório. Os pacientes cardíacos e os anêmicos precisam fazer um exame de sangue completo, uma vez por semana. Vai encontrar todas as informações de que precisa nas fichas deles. Quero as fichas dos doentes que forem internados durante o dia, prontas, antes da minha chegada, na manhã seguinte. — Virou-se. — Tem uma ficha aí, enfermeira?Angela Bishop destrancou uma gaveta de sua escrivaninha e re​tirou uma folha de papel.
— Com uma olhada rápida nisso, fico sabendo os principais sinais e sintomas do paciente. E também é um modo da gente não deixar passar nada, mesmo estando cansado.
Ele estendeu a ficha para Lesley, que reconheceu imediatamente a letra grande e firme.
__ Senhorita, deve anotar o que eu falar durante as visitas e depois passar tudo para as fichas. Hoje eu fiz as anotações. Pode dar uma olhada depois, para ver como quero que as faça. Quando acabar devolva tudo para a enfermeira.
Sir Charles sorriu e Lesley sentiu vergonha de sua irritação. Afinal sabia que ele era difícil de agradar. Sabia que era exigente com sua equipe, mas que exigia muito mais dele mesmo também. E teve uma paciência extraordinária aquela manhã, contando-lhe com de​talhes a história de cada paciente e explicando por que vários exames precisavam ser feitos. No início, ela estava alerta, esperando a chegada de Dayborough, sem saber como ele ia agir. Mas com o tempo, ficou tão entretida com o trabalho, que se esqueceu completamente dele.
Sir Charles levantou-se e a enfermeira correu para pegar seu belo paletó de lã.
— Ainda vai levar alguns dias para entrar na rotina, doutora. Com o tempo, vou lhe dando mais detalhes. — Tirou o cachecol do cabide. — É melhor fazer uma paracentese na sra. Brown, esta tarde. Ela já está se sentindo mal, e não creio que isso possa ser adiado.
O coração de Lesley deu um pulo. Uma paracentese! Depois de tratá-la a manhã inteira como se não soubesse nada, ele falava como se tivesse certeza de que ela sabia o que devia fazer. Mas Lesley nunca tinha visto uma paracentese, quanto mais feito uma.
Tentou se controlar. Ainda tinha tempo, e não devia colocar o carro na frente dos bois. Mais tarde, ela se preocuparia com aquilo.
Sir Charles segurou a porta para a enfermeira passar. Observando Angela, com seu vestido branco e touca de rendas, Lesley pensou mais uma vez, que em matéria de feminilidade, as médicas, com seus aventais brancos e curtos, não eram páreo para as enfermeiras.
Na porta do departamento, ele parou e se despediu de Angela, de modo bastante formal. Apesar do defeito na perna, sir Charles andava com rapidez, e Lesley teve que se apressar para acompanhá-lo. As regras do hospital mandavam que os estagiários acompanhassem seus chefes até os carros.
Quando chegaram à porta que dava para o pátio, ele se adiantou e abriu-a.
 - Não precisa ir até lá fora, doutora. Está frio. Até amanhã, então.
Ela se viu obrigada a aceitar a gentileza que lhe foi feita por ser mulher. Estranhamente, isso fez com que se sentisse um pouco insegura como médica.
Pelo canto dos olhos, viu Jim acompanhando o dr. McLaughlan até o carro. Os dois conversavam animadamente, sem dúvida sobre a visita que tinham acabado de fazer à enfermaria masculina. Da janela do corredor, viu o sub-chefe entregar as chaves para Jim, que abriu a porta, colocou-as na ignição e afastou-se um pouco para deixá-lo entrar no carro. Depois o estagiário fechou a porta e acenou, quando o possante Mercedes Benz partiu.
Observando sir Charles Hope-Moncrieff sair, Lesley percebeu que estava com inveja do amigo. Vagarosamente, voltou para a sala dos médicos, que ficava ao lado da enfermaria. A tensão que sentiu, durante a visita aos pacientes, acabou; estava cansada, mas contente. Que tolice ter ficado deprimida aquela manhã! Afinal, foi por essa oportunidade que lutou tanto, e já devia saber que teria que começar de baixo. Não podia se esquecer de que era uma simples estagiária, apesar de ter sido a melhor aluna de sua classe. Mas estava decidida a mostrar, que tinha valor, nem que isso lhe custasse todo seu tempo, esforço e paciência.
Foi horrível ter brigado com Dayborough, mas agora já estava feito. Aquilo mostrou que os rapazes tinham razão no que diziam dele. Mas quando visse que estava trabalhando com seriedade, aprenderia a respeitá-la como médica. Enquanto isso, ia tomar cuidado e tratá-lo como se nada tivesse acontecido.
Logo depois, Jim chegou. Estavam tomando o último café que havia no bule, quando a porta se abriu e Dayborough entrou.
 - Onde estão meus favoritos? — foi o que disse.
 CAPÍTULO V
Era hora do almoço, mas Lesley estava completamente sem apetite. Jim surpreendeu-a procurando "paracentese" nos livros de medicina.
— Não posso dizer a ele que nunca fiz uma — ela explicou.
— Não sei porquê. Afinal, faz parte do trabalho de um assistente ensinar o estagiário.
— Você viu o que ele fez hoje de manhã, na sala dos médicos. "Acho que essa coisinha bonita é sua." Quase morri, quando o vi balançando meu estetoscópio na mão.
— Foi uma cena e tanto! — Jim jogou-se numa poltrona e pegou um livro. — Por que ele fez aquilo? Você estendeu a mão para pegar o estetoscópio e de repente ele estava no chão. Precisava ver seu rosto! Se não fosse um absurdo, eu seria capaz de jurar que ele deixou cair de propósito.
— Acho que Dayborough não simpatiza mesmo comigo — Lesley disse, cautelosa.
— Isso é ridículo!
— Por que será que ele não fez nenhum gesto para pegá-lo?
— Acho que foi porque você não afastou os olhos do rosto dele, nem por um segundo. Só estendeu o pé e puxou o estetoscópio, de​vagar, em vez de se abaixar e pegá-lo, como qualquer um faria. — Jim ainda não conseguia acreditar. — Em primeiro lugar, como foi que ele conseguiu seu esteto?
— Caiu do meu bolso, quando ele me examinou esta manhã. Jim levantou a cabeça, com rapidez.
— O que foi que aconteceu lá? Ele se portou mal ou qualquer coisa assim?
— Não, de jeito nenhum — Lesley respondeu na hora. Não sabia por que, mas não queria contar-lhe a verdade. — Acho que Dayborough só estava tentando me colocar em meu lugar.
 - Tem certeza que foi só isso? — Ele se acomodou melhor na poltrona. Parecia contente com a resposta dela.
— Mas ficou difícil pedir a ajuda dele, agora.
— Será que a "duquesa" não está sendo muito orgulhosa, e não quer admitir que não sabe tudo? — Olhou-a de lado.
— Está sendo injusto, Jim Graham, e sabe disso. — Ameaçou-o com o travesseiro.
— Paz, paz! — ele gritou, protegendo a cabeça com os braços.
— Não é nada disso. — Lesley franziu a testa. — O problema é que não posso perder a confiança da paciente. Além disso, tem a 1 enfermeira Bishop — fez um esforço para afastar Dayborough da conversa. — Se ela ficar me olhando, sei .que não vou fazer nada certo.
— Aquela eficiência toda me deixa nervoso — Jim comentou,! mordendo uma maçã que estava em cima da mesinha <Je cabeceira.
— Ainda não formei uma opinião a respeito da enfermeira Bishop, mas ela também me deixa nervosa. Gosto mais quando não está por perto. — Sorriu para ele. — Ela sai do serviço às duas horas e só volta às quatro. Espero terminar tudo, nesse meio tempo.
— Para uma moça tão inteligente, você é muito inibida. — Tirou a perna do braço da cadeira e se levantou.
— Está certo, sou uma covarde. — Afastou os olhos do livro que estava em seu colo e sorriu para a imagem dele, refletida no i espelho. — Bom, não posso fazer mais nada, a não ser encarar o problema. Afinal, foi para ganhar experiência que vim para cá.
Ele olhou o que ela estava estudando, por cima de seu ombro.
— Acho que não vai ter problema. Parece bem simples.
— De acordo com esse livro, é. Com todo aquele líquido, se eu ficar bem afastada do fígado, não posso errar.
Jim deu-lhe um tapinha animador nas costas.
— Certo. Vá em frente, menina. E incrível o que você é capaz de fazer, quando a necessidade aperta.
— Acho que vou fazer isso logo. Quanto mais o tempo passa, pior fica.
— Ótimo. Agora, que tal irmos almoçar?
— Se não se importa, Jim, vou ficar por aqui. Agora que me decidi, não vou descansar, enquanto não liquidar o assunto.
— Você leva tudo muito a sério, "duquesa". Desse jeito, vai ter úlceras antes do tempo. Eu levo as coisas com calma e garanto que elas têm uma aparência melhor, quando a gente está deestômago cheio.
Ele saiu, assobiando, e Lesley pegou a capa de chuva, jogando-a nos ombros. Agora que tinha tomado uma decisão, estava melhor. Não havia sentido em contar tudo sobre Dayborough para Jim. Era mais seguro guardar segredo, mesmo que isso a fizesse parecer uma tola. Abaixou a cabeça e apertou a capa em torno do corpo, quando saiu para o pátio varrido pela chuva.
Carol Bell ainda estava aborrecida com o que tinha ouvido, na noite anterior. Acabara de chegar, e a Casa das Enfermeiras estava numa tremenda confusão de preparativos para o baile do dia seguinte. Estavam todas reunidas, quando lhe deram a notícia.
Carol olhou-as, sem acreditar.
— Por que acham que estou perdendo meu tempo?
O riso das outras aumentou.
Afinal, ela era uma enfermeira de sir Charles, e nunca esperou que o novo estagiário pudesse ser uma mulher. Com vinte e três anos, era um pouco mais velha que as companheiras e escondia, sob uma aparência pouco atraente, um coração incrivelmente romântico. Mui​tas enfermeiras se casavam com estagiários. Mulheres estagiárias significavam não só competição, como também um homem a menos no lugar.
Carol tinha visto Lesley Leigh naquela manhã e percebeu que, com aquele rosto e aquele corpo, ela seria uma rival mais forte do que o normal. Garotas como aquela sempre tinham homens correndo atrás e encaravam isso como se fosse seu direito natural.
Ainda estava ressentida por ter perdido os últimos seis meses cor​rendo atrás de Peter Morrison, só para descobrir, no fim, que ele namorava uma moça em Glasgow. Morria de raiva, quando pensava nas toalhinhas de chá bordadas e nos biscoitos que arrumava com os pacientes, para o chá dele.
Quando Lesley a encontrou, na sala que ficava no fundo da enfermaria, Carol não estava nem um pouco disposta a cooperar.
— Estou ocupada demais — respondeu, com grosseria, quando Lesley lhe pediu que a ajudasse. — Se quiser esperar, a enfermeira Duncan pode pegar a bandeja. — Chamou a estudante de enfermagem, que estava do outro lado. Depois, continuou, fria​mente: — Retirei seu nome da lista para o baile desta noite. Ninguém nos disse que era mulher. Pensei que uma formanda de Kentigern já soubesse que médicas não são convidadas para nossas festas.
Depois da enfermeira Bell, Jane Duncan foi uma surpresa muito agradável.
Já peguei a lista de material doutora. Em dez minutos, arrumo tudo.
— Obrigada. Enquanto isso vou explicar a Sra. Brown o que vamos fazer.
Encontrou a paciente sentada na cama, apoiada em vários travesseiros, respirando com dificuldade. As veias do pescoço estavam di​latadas e as mãos apertavam o abdômen.
— É a senhorita, doutora? A que devo o prazer dessa visita? Está precisando de mais sangue? — A sra. Brown tentava levar a coisa na brincadeira.
— Temos bastante sangue no momento. Estamos à procura de um pouco de líquido peritoneal.
O rosto da mulher entristeceu, e Lesley segurou a mão dela.
— A senhora não está se sentindo bem, esta?
— Para dizer a verdade, doutora, minha barriga até parece um tambor. Meu Tom disse que está maior do que quando eu estava esperando os gêmeos... — Começou a rir, mas teve um acesso de tosse.
— Sir Charles quer que eu tire um pouco do líquido de seu abdômen, para que se sinta melhor. Para que possa respirar e dormir com mais facilidade, hoje à noite.
A mulher olhou para Lesley, aflita.
— A senhora não vai sentir nada. Vou aplicar um pouco de anestésico na sua pele, Prometo que não vai sentir nada.
— Um anestésico local? Como aquele do dentista, geladinho?
— Isso mesmo — Lesley respondeu, tentando parecer confiante. A paciente acomodou-se melhor nos travesseiros, mais tranqüila.
— Prefiro que faça isso hoje — disse, confidencialmente. — A enfermeira Bishop é muito boa... eu não seria capaz de dizer uma palavra contra ela... mas, cá entre nós, doutora, ela me assusta um pouco,
Lesley não pôde deixar de rir.
— Cá entre nós, ela me assusta também. — Seu tom de voz des​mentia suas palavras, mas conseguiu aliviar a tensão da sra. Brown.
— A senhorita se importa se a enfermeira Obanyke também ficar aqui, doutora? — Jane Duncan entrou no quarto com o carrinho, acompanhada por sua amiga da Enfermaria Três. — Nós nunca vimos uma paracentese antes.
— Claro que não. Entrem. — Lesley controlou-se para não dizer que estavam as três no mesmo barco. — é sempre bom ter mais alguém para ajudar.
Depois que começou, suas mãos ficaram bem firmes. Fez tudo vagarosamente, com cuidado, delimitando bem a área com líquido. Em seguida, escovou as mãos com um sabão anti-séptico. Escolheu um local bem longe de qualquer órgão importante e injetou o anestésico sob a pele. Estendeu a seringa em silêncio para a enfermeira e endireitou o corpo.
— Vamos esperar um pouquinho, para o anestésico fazer efeito.__ Sorriu para a paciente. — É nessa hora que o dentista faz comentários a respeito do tempo e pergunta onde foi que a senhora passou as férias de verão?
— A senhorita não imagina como estou contente por ter uma médica — a Sra.Brown disse. — Meu Tom diz que isso é tolice. Afinal, tenho quatro filhos. Mas, não sei por que, é diferente quando a gente vai dar à luz. Você não se importa que um homem a veja, na verdade, a gente não se importa com nada. Eu fico sempre tão cansada, que nem olho para eles. Mas vir para um hospital como esse é diferente. 
Lesley deixou-a tagarelar. Era bom que pensasse em outra coisa.
— Sir Charles tem sido muito bom. Sempre tão compreensivo! Ele nunca descobre a gente mais do que é preciso. . . e sempre usa biombos. Alguns, como o dr. Dayborough, arrancam as roupas de cama, como se a gente não tivesse sentimentos, como se a gente fosse um pedaço de madeira. Tom diz que eles nunca pensam sobre isso. Que, para eles, é um trabalho de rotina. Mas, graças a Deus, hoje é a senhorita.
— Não pode imaginar como fico feliz, ouvindo a senhora dizer isso. — Lesley picou a pele com uma agulha. — Valeu o dia, ouvir isso. Está sentindo alguma coisa aqui?
— Nada, doutora.
— E agora? — Apertou-a com uma pinça.
— Não sinto nada.
— Enfermeira, fique ali com o vidro e o tubo de borracha. A enfermeira Obanyke ajudou-a a virar a paciente de lado.
— Não vai sentir mais nada agora, a não ser alívio.
Devagar e com firmeza, ela introduziu a agulha na pele anestesiada. Foi como se alguém estivesse guiando sua mão. O líquido cor de palha começou a jorrar. As duas enfermeiras trocaram olhares de júbilo.
Lesley encheu o vidro duas vezes, com cuidado para não soltar o líquido depressa demais.
— Não foi tão mau, foi? — Ela desconectou o tubo e retirou a agulha.
— Já acabou, doutora? — A sra. Brown estava surpresa. — estou me sentindo melhor agora. Tom vai ficar surpreso quando me ver, hoje à noite. Vou colocar um pouco da velha pintura de guerra: um pouco de batom e pó. Logo vou estar como nova, hein, dou​tora?
- Com toda certeza. — Lesley se esforçava para esconder a própria alegria.
— Doutora... 
Lesley virou-se da porta.
—- Obrigada por tudo. Eu estava mais preocupada do que parecia.
— Eu sei — respondeu, com gentileza. Éramos duas, pensou. — Agora, deite-se e tire uma boa soneca. Talvez a enfermeira possa arranjar uma xícara de chá para nós.
Ia ser duro agüentar a enfermeira Bishop, quando ela descobrisse que Lesley tinha feito a paracentese, sem avisá-la. Mas estava certa. Pelo seu próprio bem e da paciente, precisava evitar tudo que diminuísse sua autoconfiança. Naquele momento, estava completamente feliz, e entrou na sala da enfermagem caminhando numa nuvem cor de rosa.
Tinha sido um dia bem duro, até ali. Lesley esperava que não fossem todos assim. Deixou-se cair numa cadeira e suspirou. Até agora, tudo bem. Tinha encontrado sua primeira dificuldade e se saído bem. 
Vinte minutos depois, começou a percorrer a enfermaria, tirando sangue de alguns pacientes. Ia fazer o primeiro exame, quando a enfermeira Duncan a chamou, para atender ao telefone.— De que, diabos, a senhorita pensa que está brincando? — A voz grosseira de Harry Dayborough chegou até ela. — Vai me fazer esperar o dia todo?
— Não estou entendendo. Tem alguma coisa errada?
— Alguma coisa? Eu diria que tudo está errado. A senhorita não está mais em Kentigern e não pode andar por aí, brincando de médica. Esperamos que trabalhe, de vez em quando.
— Mas eu estou trabalhando — Lesley protestou.
— Devia estar no consultório, para atender os pacientes externos, desde as treze e trinta. E já são quase três horas —- ele rugiu.
— Consultório? — Estava confusa. -—- Mas então, quando. .. Sir Charles disse claramente que queria que eu fizesse os exames de sangue hoje à tarde.
— Não me interessa a que horas a senhorita faz o que o professor Moncrieff manda. Enquanto estiver nesse hospital, vai obedecer nossas regras. Os estagiários atendem os pacientes externos com os assistentes de suas enfermarias.
— Mas se eu trabalhar até a hora de dormir, mal vou ter tempo de fazer tudo que preciso, até amanhã — Lesley gaguejou.
— Quando eu mandar a senhorita vir até aqui, é bom vir correndo. — Ele mal conseguia falar, de tanta raiva. — Dou-lhe cinco minutos para isso. — E Dayborough bateu o telefone.
Lesley continuou sentada, sem ação, por alguns minutos. Vagarosamente, colocou o fone no gancho. Toda sua alegria tinha acabado, nesta primeira vez sentiu-se em dúvida. De que valia se esforçar, aquele homem já tinha decidido que ela ia fracassar?
__ Acho que você está dando muita importância a isso tudo. - Jim recusava-se a admitir a má vontade de Harry Dayborough.
__ Depois da cena de hoje cedo, não podia querer que ele a tratasse muito bem esta tarde.
__ Quem lhe contou isso?
Eles tinham acabado de jantar e estavam tomando café na sala de estar dos estagiários.
__Aqui não se guarda segredo de nada. Os boatos correm com uma rapidez incrível.
— Então já deve saber do que aconteceu esta tarde. Ele tentou me diminuir na frente dos pacientes e das enfermeiras, o tempo lodo. "Mostre-nos a sua vasta experiência, doutora." Até as pessoas que estavam sentadas no corredor devem ler ouvido.
— Se ouviram, devem ter ficado tristes por sua causa. . . principalmente, se estava com esse rostinho triste.
— Oh, Jim, pare de me amolar!
— Quem está amolando? O problema é que você está cansada. Não está sendo objetiva. Não há nada de estranho no fato de um assistente caçoar um pouco de um estagiário. É o passatempo favo​rito deles. Precisa de um pouco de animação. Ainda bem que temos uma festa para ir, hoje à noite.
Lesley fez uma careta.
— Também me dei mal com a enfermeira da minha enfermaria. Ela me disse, delicadamente, que eu não estava convidada.
— Não entendo como uma pessoa pode brigar com tanta gente, em um dia só — Sandy Williams entrou na conversa. — Bem que eu a avisei. Eu lhe disse que aqui vigoram as leis da selva. Os estagiários fazem parte da reserva especial das enfermeiras.
— Certo. — Peter Morrison juntou-se a eles. -— Meu lema é deixá-las no escuro. Assim, você garante seu chá na cama todas as manhãs e nunca vai ter que levantar uma seringa.
— De qualquer modo, eu não poderia ir — Lesley disse. — Vou levar a noite toda fazendo os exames de sangue.
— Está precisando é de um descanso. — Jim levantou-se preguiçosamente da poltrona. — Vamos dar uma volta no calhambeque. Olhe, se quiser, pode sair sozinha nele.
 - Mas quanto sacrifício! — Lesley conseguiu sorrir com esforço. - Ele é a menina dos seus olhos!
- Fique com a outra chave. — Ele a tirou do chaveiro que trazia na cintura. — Quando as coisas ficarem muito ruins, pegue o carro e saia um pouco. — Estendeu-lhe a chave. — De qualquer modo, tudo que é meu é seu.
Saíram de braços dados e Sandy Williams suspirou.
__ Acho que ele não vai ter chá na cama, não. Nenhuma enfermeira vai enfrentar aquele pátio de madrugada, por um sujeito que já está tão apaixonado.
 CAPÍTULO VI
Na manhã seguinte, Carol Bell já estava de melhor humor. O baile da noite anterior tinha ajudado muito e ela começou a superar o desapontamento da chegada da dra. Lesley Leigh.
Jim Graham era o estagiário mais atraente. Ele chegou bem tarde, corado e um pouco descabelado, mas todos notaram que dançou mais de uma vez com ela. Dançou duas vezes com Murphy, mas isso era uma coisa que todos esperavam. Murphy era da enfermaria dele, e nenhum estagiário podia se esquecer disso, sem sofrer as conseqüências. Mas não havia dúvida, ele tinha lhe dado uma atenção especial. Afinal, talvez nem tudo estivesse perdido, nos próximos seis meses. Jim era o estagiário da outra enfermaria do departamento e teria que ir muitas vezes até a enfermaria feminina, quando Lesley estivesse de folga. As coisas não pareciam tão ruins, naquela manhã.
Carol Bell ajeitou o cabelo na frente do espelho do armário de roupas de cama. Uma coisa Lesley Leigh tinha de bom: não era tão cheia de pose quanto muitos rapazes, que vinham fazer estágio ali. Pensando bem, talvez fosse melhor tentar agradá-la. Nunca se sabe o que pode acontecer. Se Lesley resolvesse reclamar dela para a enfermeira Bishop, Carol podia se dar mal.
Mandou a estudante de enfermagem tirar a temperatura das pa​cientes e começou a prender as fichas em cada cama, enquanto esperava pela chegada da nova médica.
Mal entrou na enfermaria. Lesley percebeu a diferença. Depois da recepção gelada do dia anterior, só a ansiedade que sentiu de ver como a sra. Brown estava passando é que a levou a chegar lá às oito e meia de novo.
— Ela passou muito bem à noite. doutora. E já está perguntando quando vai poder ir para casa. — A enfermeira Bell tentava cooperar. — Já coloquei as fichas nas camas. Deseja alguma coisa, doutora?
Sem dúvida, o clima tinha mudado muito, de um dia para o outro. Carol Bell era só delicadezas naquela manhã.
— A sra. Brown está bem mais elegante hoje. — Sorriu de modo estranho, como se soubesse por que Lesley escolhera aquela hora para fazer a paracentese. — E passou a noite muito melhor, mesmo.
Bem mais aliviada, Lesley pegou o aparelho de pressão e começou a trabalhar. Não estava se sentindo muito bem, pois tinha dormido pouco. Só trabalhando até à meia-noite pôde terminar de fazer todos os exames de sangue. E as fichas também estavam em dia. Faltava o teste alimentar da sra. Maconachie, mas sir Charles não precisava dele com urgência.
Estava com o pescoço duro e os ombros doendo, quando terminou, mas satisfeita por ter dado conta do recado. A não ser peio passeio de vinte minutos com Jim, não saiu para nada. Trabalhou quinze horas seguidas. Nada mal, para o primeiro dia de ser​viço.
Perdida em seus pensamentos, Lesley não viu o Dr. Ian McLaughlan entrar. Foi a srta. Robertson, uma asmática que ficava na última cama, que a avisou que o sub-chefe estava esperando, para começar a visita.
Como fui tola! pensou, enquanto caminhava até onde ele estava. Devia ter imaginado que hoje era dia de McLaughlan passar a visita. Ele e o chefe deviam se alternar. Mas, apesar de saber que com McLaughlan ia trabalhar menos, ficou desapontada.
A manhã passou de um modo muito agradável. O sub-chefe estava sempre pronto a ajudar e não era tão exigente. E a enfermeira Bishop era bem mais descontraída com ele. Os pacientes e o resto da equipe percebiam isso e ficavam bem menos nervosos. Depois da maratona do dia anterior, aquilo parecia um passeio.
Quando a servente avisou que o café estava servido na sala dos médicos, Lesley viu, com surpresa, que já era meio-dia. Sir Charles não estava mais lá, quando ela acompanhou o sub-chefe até o carro. Inexplicavelmente, o dia ficou completamente sem graça.
Na volta, estava passando em frente da cozinha da enfermaria, quando Carol Bell a chamou.
— Se eu fosse a senhorita, doutora, tirava esta tarde de folga. A visita aos pacientes hoje vai das três as quatro e temos quefechar a enfermaria pelo menos meia hora antes disso, para colocar as pacientes nas comadres. — Começou a entregar os pratos prontos para as serventes, que iam e vinham da enfermaria. Se ficar por aqui, os parentes das doentes não vão lhe dar sossego. Não vai poder trabalhar. Geralmente, a maioria dos estagiários sai.
— Obrigada pela informação. Estou precisando mesmo de um pouco de ar fresco, depois do trabalho de ontem à noite. 
Lesley voltou à enfermaria, para fazer o teste alimentar da sra. Maconachie. Depois do almoço, pegaria o carro e iria até os pântanos Jim ia passar a tarde atendendo os pacientes externos e com certeza não ia se importar.
Lesley parou o carro onde as estradas que vinham da vila de Fenham e Snykes se cruzavam. Um fazendeiro gentil parou seu trator para responder à pergunta dela.
— A estrada velha? Mas lá não passa carro, moça. Pelo menos, não estavam passando. Desde que eu era garoto, que não vou lá. Por este lado, ela vai até Big Dam. Por aquele. .. Nunca parei para pensar para onde ela vai. Acho que termina na fazenda do Willson. — Coçou a cabeça. — Mas a senhorita não passa da primeira curva com isso aí. — Examinou o MG de Jim.
Lesley agradeceu e dirigiu para o lado da fazenda de Wilson.
— Chame a gente, se ficar atolada —- o fazendeiro gritou, atrás dela.
A estrada velha mais parecia uma trilha de carroças. Quando chegou ao alto da primeira colina, viu que era exatamente como o homem tinha dito. Só barro e pântano. Era melhor deixar o MG ali. Não tinha nenhuma vontade de enterrar o tesouro de Jim na lama. Ia caminhar um pouco.
Mais adiante, havia um riozinho e vários pescadores de truta estavam sentados nas margens. Um deles a cumprimentou, quando passou.
A estradinha continuava, passando pelo meio de um lago. Lesley o atravessou e caminhou, decidida, para o bosque que havia do outro lado.
Ali foi fácil esquecer Dayborough e as tensões de sua nova vida e voltar à felicidade do passado. Em torno dela as cotovias cantavam. Nunca tinha visto tantas juntas. Aquele era o lugar perfeito para sonhar acordada. Lesley fechou os olhos e deixou a imaginação criar asas.
— Desculpe se a assustei, srta. Leigh.
Lesley deu um pulo. Não tinha ouvido sir Charles Hope-Moncrieff se aproximar.
— Acho que eu estava sonhando acordada. — Corou, confusa com a presença dele ali.
— A senhorita descobriu meu lugar favorito. —. O sorriso dele era educado.
— A colina das cotovias — ela disse, rapidamente, para esconder o embaraço. Lesley tinha se identificado com aquele lugar, e um sentimento estranho a invadiu, quando descobriu que ele também o conhecia.
Ele se abaixou para pegar uma das florzinhas vermelhas que cobriam toda a encosta da colina.
— Elas variam de um ano para o outro. Nem sempre dão tanto, — Estendeu-a para ela. — Nem parece que estamos tão perto de uma auto-estrada, não? — Jogou a capa no chão e sentou-se em cima. — Vou precisar da sua ajuda, para me levantar daqui.
Sir Charles acomodou o joelho, que quase não dobrava mais, e passou os braços em torno do outro. Era um gesto tão infantil, que deixou Lesley completamente desarmada.
— O senhor mora aqui perto, não?
— Daqui dá para ver a minha casa, por entre as árvores, na beira do rio. A estrada velha passa bem em frente. É bem pertinho.
Lesley conhecia a mansão de pedras de cor cinza, com um jardim maravilhoso em volta.
— Quando eu era estudante, costumava dar umas voltas a pé por aqui.
— Graham não está com a senhorita hoje? — Ele estava fazendo sombra para os olhos com uma das mãos e admirando o vale lá embaixo.
— Jim? Não, está atendendo os pacientes externos. — Ficou surpresa com a mudança rápida de assunto. — Ele me emprestou o carro, mas tive que deixá-lo lá atrás. — Sorriu.
— É bem mais fácil vir pela auto-estrada.
— Eu não imaginava que a estradinha fosse tão cheia de curvas. Parece uma serpente.
— De acordo com os velhos arquivos, o pessoal que a construiu ia até o topo de uma colina, depois olhava na direção que que​ria continuar e ia em frente. — Apontou para a colina do outro lado, onde a estradinha continuava.
— Não me parece um grande feito de engenharia. — Lesley estava achando a conversa superestranha. Nunca pensou que pudesse ouvi-lo falar de outra coisa que não fosse o trabalho,
— Acho que esse era o melhor método, naquela época. Só viajavam a cavalo por aqui e, mesmo assim, nunca quando chovia. Os cavalos podiam tropeçar e afundar na lama. Muitas vezes, os fazendeiros por aqui tinham que esperar meses, para levar seus pro​dutos ao mercado. E levavam três dias para ir até Glasgow. — Seus olhos tinham uma expressão nostálgica. Ele percebeu que ela o observava e riu. — Quando está seca, consigo passar por ela com o BMW. Mas quando está molhada, vou pela auto-estrada. Bem diferente dos contrabandistas que passavam por ela a cavalo, com dois barris de brandy amarrados na sela, ou com um tonel de gim francês, desembarcados em Troon. — Ele disse a última frase como se estivesse recitando. Sua risada tinha um som triste. — Meu irmão e eu a chamávamos de "estrada dos contrabandistas". .. mas duvido de que algum tenha passado por ela.
Uma garça voou preguiçosamente sobre o vale. Lesley imaginou um garotinho atravessando o pântano com o irmão, bem antes que o terrorismo e uma bomba tirassem sua agilidade.
— Preciso voltar — ela disse, com relutância. — A hora de vi​sita vai acabar logo e preciso continuar o teste da sra. Maconachie.
— Eu também preciso ir.
Ele se moveu de repente, e ela ia estender a mão para ajudá-lo, quando sir Charles se virou de lado e se levantou de um salto. Lesley percebeu que ele devia ter praticado muito aquele movimento, para poder se erguer sozinho.
— Vou acompanhá-la até o carro.
Os dois voltaram as costas para o sol e começaram a descer a colina, devagar. Suas sombras aumentavam e se misturavam, separando-se depois. Os pescadores já tinham ido embora. Alguns pássaros levantaram vôo na frente deles e um garoto, que provavelmente nunca tinha ouvido falar em contrabando, continuou a tocar seus carneiros pela estrada. No alto da colina, sir Charles despediu-se.
Antes de entrar na auto-estrada, Lesley parou o carro e olhou para trás. Ele estava em pé, acenando. Depois se foi.
Lesley abaixou a mão para engatar a marcha e a florzinha vermelha, que estava em sua lapela, flutuou até o chão. Ela a levantou, com delicadeza, e a examinou, na palma da mão. Depois, pegou o diário que estava em sua bolsa, abriu-o na página marcada 27 de julho e colocou a flor dentro.
Dez minutos depois, estacionou atrás da Casa dos Médicos e entrou pela porta dos fundos. Estava procurando a chave de seu quarto na bolsa, quando a porta em frente a ela se abriu.
— Doutora Leigh! — Kate Ritchie, a técnica do laboratório de hematologia, barrou seu caminho. — Eu só queria lhe dizer o que penso da senhorita. Não teria acreditado, se não tivesse visto com meus próprios olhos.
— Que foi que eu fiz? — Lesley voltou rapidamente ao presente, ouvindo a voz indignada da outra.
— Aquele aviso na porta do banheiro. Já vi gente esnobe na minha vida, mas a senhorita ganhou de todos.
— Mas do que você está falando?
— Não precisa se fingir de inocente, não. Já encontrei gente do seu tipo antes. Quanto mais estudam, pior ficam. — Continuou, sem dar chance a Lesley de se defender. — Na certa, vai me dizer que foi Nan Baillie. . . como se eu não tivesse vivido com ela por quase um ano. Nunca tivemos esse tipo de problema, até a senhorita chegar. Mas eu já devia esperar que tentasse colocar a culpa em outra pessoa, 
— Mas não fui eu que coloquei o aviso na porta do banheiro.
— Não quero mais falar nisso. Pode ficar com o seu banheiro. Eu não pisaria nele, nem por todo o dinheiro do mundo. E as outras também pensam a mesma coisa. — Ela ficou de lado, para Lesley poder passar. — Estava achando que os boatos sobre a senhorita eram exagerados, mas agora

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