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Cara Colter MARIDO POR HERANÇA

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Título: Marido por herança
Autor: Cara Colter
Título original: Husband by Inheritance
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 2002
Publicação original: 2001
Gênero: Romance contemporâneo
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida
O que mais uma mulher poderia desejar?
Uma misteriosa doação deixou Abby Blakely com a casa de seus sonhos. Só que fazia parte do pacote um ex-policial mal-humorado que sua filha pequena decidira que seria o pai perfeito!
Charmoso e atraente, Shane McCall seria também um marido perfeito se a palavra "casamento" não lhe causasse um gosto amargo na boca. As lembranças de uma vida com a qual ele sonhara mas que fora destroçada haviam deixado uma cicatriz onde antes existira um coração. Agora o celibatário convicto estava às voltas com Abby e sua adorável filhinha, lutando contra sentimentos há muito enterrados. Sentimentos cada vez mais difíceis de negar...
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PRÓLOGO
Srta. Blakely, garanto-lhe que a reunião não vai demorar.
Obrigada — Abby murmurou, pouco à vontade no escritório do advogado.
A decoração do recinto demonstrava bom gosto e valor elevado. A mesa de café escura era de nogueira. Os sofás macios eram em couro castanho-claro, os tapetes persas em tons de vinho e a luz difusa acalmava o nervosismo.
Abby nunca fora a um escritório de advocacia e se não houvesse recebido o convite e uma passagem aérea, duvidava que ali esti​vesse naquele momento.
Quem teria feito a doação?
A carta registrada não deixara dúvidas. Fora nomeada benefi​ciária de um legado substancial, mas o doador mantivera-se anó​nimo. O telefonema ao advogado nada esclarecera. Apenas recebera a informação para comparecer aos escritórios da Hamilton, Sweet e Hamilton, em Miracle Harbor, Oregon, naquele dia, 15 de feve​reiro, às dez da manhã.
— Srta. Blakely, não quer mesmo um café?
A recepcionista sorria com bondade e Abby esforçava-se para esconder o constrangimento. Não estava acostumada a frequentar ambientes tão ricos. Seu guarda-roupa era simples e prático, para ser usado em casa ou no playground. Resistente à pequenas man-cnas de mão, grama e saliva. Viera com uma saia azul-marinho, túnica combinando e jaqueta. O conjunto custara menos de cin​quenta dólares.
Abby arrumou os cabelos loiros e curtos, baseando-se na própria imagem refletida na superfície polida da mesa de café.
Longe da filha de dois anos há menos de vinte e quatro horas, sentia um vazio no coração que se aprofundava a cada minuto. Já eram quase dez e trinta.
—	Houve algum problema? — Abby perguntou, ansiosa.
Arrependia-se de ter vindo até ali, de haver aceitado a estranha convocação, imaginando que tudo iria mudar, no momento em que refletia como proporcionar uma existência pacífica e estável para a filha, Belíe.
E fora exatamente por isso que viera. Embora cética. tivera a intuição de que a doação lhe possibilitaria dar a Belle um belo padrão de vida. Uma pequena casa, em vez do apartamento. Uma vizinhança agradável perto de um parque. Uma máquina de cos​tura nova que lhe permitiria aceitar mais trabalho.
Sonhando acordada!, Abby repreendera-se.
Ainda incrédula, recebera uma passagem de avião no valor de várias centenas de dólares. Em Portland, uma limusine a esperava e a deixara no hotel mais luxuoso de Miracle Harbor. Trouxera na bolsa a carta com a garantia de que o legado era considerável.
A esperança a fizera cruzar o continente, de Illinois até aquela pequena cidade do Oregon. Miracle Harbor, construída em forma de meia-lua nas colinas que rodeavam uma baía, parecia um cartão postal. Fileiras de belas casas antigas com telhados de madeira atrás de cercas brancas e rododentrosf o ar quente e o cheiro do mar.
—	Houve algum problema? — ela insistiu.
Não, claro que não! Estamos esperando a chegada dos outros convidados.
Outros? — Abby surpreendeu-se.
Foi a vez da recepcionista ficar sem jeito, como quem deixava escapar um segredo profissional.
A porta foi aberta e ambas ficaram aliviadas.
Uma mulher entrou na sala. Usava óculos escuros e um casaco curto de peles. A saia longa de seda verde serpenteava ao redor das pernas esbeltas, enquanto ela se movia com determinação. Os cabelos, cuidadosamente penteados, ondulavam de maneira atraente ao redor dos ombros.
Abby observou um quê de familiar na recém-chegada, que devia ter peso e altura semelhantes aos seus. Os cabelos também eram loiros.
—	Olá. Sou Brittany Patterson. Sou...
A jovem mulher parou de falar, assim que viu Abby. Devagar, tirou os óculos e Abby pensou que iria desmaiar.
O rosto da outra era o mesmo que a fitava diariamente através
do espelho.
A maquilagem mais ousada e as sobrancelhas melhor delinea​das deixavam aquela mulher mais atraente, embora fossem idên​ticas em muitos aspectos.
A porta tornou a abrir-se e Abby virou-se.
Santo Deus! Precisava controlar a intensidade das emoções que sentia.
Uma quarta mulher entrou, afobada e diferente em tudo da que usava o casaco de peles. Usava um conjunto de jeans desbotado e trazia os cabelos longos presos em um rabo-de-cavalo.
O rosto era idêntico e a cor dos cabelos, também. E os admiráveis olhos azuis, com o mesmo halo marrom ao redor da pupila.
Trémula, Abby ergueu-se do sofá, como se estivesse em transe. Tornou a sentar-se. Em silêncio, as outras duas também se sen​taram, atónitas.
A funcionária trouxe café para as três. Se a situação não fosse tão bizarra, Abby teria achado graça. As duas recém-chegadas também tomaram a bebida com um pouco de creme e três tabletes de açúcar. Exatamente como Abby gostava.
—	Bem, se não se trata de uma ilusão de ótica — a do casaco de peles falou —, suponho que devemos ser parentes.
As três deram uma risada idêntica no tom e na intensidade, e começaram a falar ao mesmo tempo.
Alguém tinha ideia do que nos esperava? — Abby perguntou, com voz hesitante. — Eu sabia que fui adotada, mas...
Eu também tinha conhecimento da minha adoção — a que usava saia longa afirmou —, mas não que tivesse irmãs.
Eu não tive pais adotivos — a que vestia de jeans declarou, hesitante. — Morei com minha tia EUa até os dez anos. Segundo ela, meus, ou melhor, nossos pais morreram em um acidente de carro.
E evidente que, além de irmãs, somos trigêmeas — a mais bem-arrumada deduziu, enquanto elas se entreolhavam, abisma​das. — Sou Brittany.
Abigail. Abby — ela se apresentou, emocionada.
Corrine. Corrie.
O sr. Hamilton irá recebê-las agora — a recepcionista in​terrompeu.
As jovens, admiradas e olhando-se de viés, seguiram a funcio​nária pelo saguão até a outra sala.
O sr. Hamilton era um homem digno tanto na aparência, quanto nas maneiras. Os cabelos brancos e as rugas davam-lhe um aspecto de quem estava próximo da aposentadoria. Ele pareceu assom​brado, ao ver as três mulheres idênticas entrarem em seu escritório e sentarem-se à sua frente.
—	Sinto muito, eu não sabia. As senhoritas têm sobrenomes diferentes. Não podia supor...
O homem fixou-se nos papéis sobre a mesa, pensativo. Depois voltou a fitá-las, circunspecto.
—	Trigêmeas... — ele também concluiu.— Vocês nunca se encontraram?
O sr. Hamilton ficou ainda mais sério, ao ver os gestos de ne​gação simultâneos.
Peço-lhes que me perdoem. Eu jamais teria proposto uma surpresa dessas para vocês, se soubesse da verdade. Não podia imaginar que ela fosse... — ele pigarreou. — Como eu disse na carta que receberam, minha cliente quer fazer uma doação a cada uma de vocês.
Quem é sua cliente? — Brittany perguntou, bem mais à vontade no ambiente refinado do que as outras duas.
Não estou autorizado a revelar, mas devo ler uma carta para as três.
Ele apanhou um papel da escrivaninha e segurou-ò a uma certa distância.
Queridas Abigail, Brittany e Corrine — o advogado leu em voz alta —, há muitos anos fiz um juramento para a mãe de vocês. Ela morreu minutos depois de conseguir que eu lhe fizesse uma promessa. Para meu constrangimento, fui incapaz de cumprir o prometido. Eu as reuni com a esperança de que esse gesto pudesse reparar o que devo à sua mãe e a vocês. Também destinei umadoação que proverá a cada uma aquilo que for mais necessário em suas vidas. Meu advogado, sr. Jordan Hamilton, descreverá a natureza dos legados e as condições a que estão atreladas. Eu lhes desejo muitas felicidades.
Qual foi a promessa que ela fez à nossa mãe? — Abby perguntou, ansiosa por entender aquelas circunstâncias surpreendentes.
Fora os legados e as condições, também não conheço outros detalhes.
 O senhor poderia ser mais claro? — Brittany pediu, desconfiada.
Muito bem. Para receberem seus legados, devem ficar em Miracle Harbor durante um ano. — O sr. Hamilton deu uma tossidela, pouco à vontade. — E devem casar-se nesse período.
Abby fitou-o, assombrada. Certamente tratava-se de uma piada. Tinha de ser. Mas o advogado manteve a seriedade. Ela lançou um olhar de esguelha na direção das irmãs.
Brittany parecia indignada. Corrine fitava a paisagem pela ja​nela, sem demonstrar os sentimentos, mas Abby percebeu o que se passava na mente da outra. Corrie estava apavorada.
	E no que consistem os bens deixados? — Brittany perguntou, estreitando os olhos e cruzando os braços na altura do peito. — Pelo menos são vantajosos?
O advogado fitou-a com seriedade, arrumou documentos espa​lhados e, começando por Abby, disse-lhes o que o estava incumbido de contar.
CAPÍTULO I
Mesmo depois de tantos anos, ele ainda dormia como se houvesse a possibilidade de alguém esgueirar-se para dentro do quarto e encostar-lhe um revólver nas têmporas.
Apesar de encontrar-se em Miracle Harbor, no Oregon, onde tais coisas pareciam inimagináveis.
Naquele momento, desperto e estendido na cama, tenso, ouvido atento, considerou o que teria sido aquele pequeno barulho que o despertara no meio da noite. O relógio marcava três horas da madrugada.
Devia ser a buzina que anunciava o nevoeiro, ele pensou, e não o rangido do portão da frente, que precisava ser lubrificado. Descontraiu-se um pouco, fechou os olhos, disposto a voltar a dor​mir. Odiava as noites insones, quando se mostrava incapaz de exercer a disciplina costumeira sobre sua mente. Por motivos ig​norados, nesses momentos as lembranças ameaçavam sua paz ar​tificialmente construída.
Tornou a ouvir o som.
Um ruído abafado dè passos no jardim. Depois, o raspar da tábua solta no segundo degrau da varanda. Quando escutou o girar da maçaneta da porta da frente, levantou-se rapidamente. Sem fazer o menor barulho, foi até a janela.
Um carro velho estava parado na rua, com um trailer a reboque. Ladrões? Planejando limpar a casa?
Ficariam desapontados. Nada ali havia de valor. Seu lar era espartano. Nada de televisão, ou aparelhagem sofisticada de som. Apenas um computador.
Será que alguma vez se interessara por coisas materiais? Teve dificuldade de lembrar-se desse detalhe, mas ocorreu-lhe uma visão. Stacey, sua esposa, apontava o preço extravagante exibido na etiqueta da vitrina de uma loja, fitava-o e ria, com uma certa tristeza no olhar.
Seu coração confrangeu-se ao lembrar-se do que procuravam naquele dia.
Um berço de vime.
A escuridão, providencial para o intruso, abateu-se sobre ele. Vestido apenas de cueca folgada, como costumava dormir, desceu a escada e atravessou a casa escura. Cauteloso e furtivo, movia-se sem emoções, como era a sua segunda e bem treinada natureza.
Foi até a porta dos fundos e abriu-a sem fazer ruído, já com o plano formado. Contornaria a casa e surpreenderia o gatuno na va​randa estreita da frente. Ele o pegaria em flagrante. Com certeza.
O meliante havia escolhido a casa errada.
A do agente Shane McCall, da Divisão de Narcóticos, Aposentado.
O nevoeiro denso contorcia-se em espirais e o cimento da calçada mostrava-se gelado sob seus pés descalços. Sua pele nua raspou de um lado nos sarrafos rústicos de sua casa e de outro, molhou-se nas folhas flexíveis dos rododentros cerrados.
Havia uma silhueta curvada diante da porta. A noite muito escura e a névoa não permitiram uma visão adequada. Shane apenas distinguiu um boné de beisebol e uma figura pequena de​mais para ser ameaçadora.
Uma criança? A raiva abandonou-o e ele* fitou o intruso girar a maçaneta novamente. Estaria tentando forçar a fechadura? Shane imaginou se deveria chamar a polícia. Talvez Morgan estivesse tra​balhando naquela noite. Depois de concluída a tarefa, ambos poderiam passar o resto da madrugada contando histórias de veteranos.
O que seria preferível a voltar para a cama, onde as lembranças o esperavam.
Mesmo sabendo que avisar o posto policial seria uma boa opção, continuou andando pé ante pé até os degraus da varanda.
Ocorreu-lhe que talvez devesse ter trazido o revólver. Um me​liante pequeno a ponto de evitar um confronto poderia estar pre​venido. Uma faca ou até uma arma de fogo. O que seria perfei​tamente possível para o tipo de criança que pretendia invadir uma casa às três da manhã.
Shane, acostumado a um raciocínio rápido, decidiu fingir que estava armado.
Uma tarefa não muito fácil, já que estava praticamente sem roupa, mas não impossível. Aproximou-se da pequena escada e ordenou, com o autoritarismo costumeiro em tais eventos.
Levante as mãos para que eu possa vê-las e não se vire.
A figura estacou.
Você me ouviu. Mãos para cima!
Não posso — a voz parecia amedrontada e infantil.
Não pode? — Shane perguntou, com dureza. — É melhor que o faça logo!
Se eu fizer isso, posso derrubar o bebé — a voz apavorada tremia.
"O bebé?"
Shane subiu os degraus de dois em dois, pôs a mão nos ombros do intruso e virou-o.
Mas era "ela"! Ou melhor, duas "elas"!
Uma bem crescida e a outra, uma menina de cerca de dois anos. Ambas o olhavam com olhos azuis arregalados e cintilantes. Com halos castanhos ao redor das pupilas.
Shane afastou a mão do ombro da jovem, passou-a nos próprios cabelos molhados e praguejou.
Quando sentiu o pontapé na canela, a dor lembrou-o da regra principal. Jamais subestimar o inimigo.
—	Fogo! — ela começou a gritar. — Fogo!
Imediatamente, Shane tapou-lhe a boca, antes de que os vizi​nhos acordassem e o vissem em trajes menores.
Ela era muito bonita. Cabelos loiros, curtos e lisos sob o boné, e um rosto adorável. Pele macia e nariz bem-feito. Os olhos, con​tudo, eram o que mais chamavam a atenção naquela fisionomia. Enormes e azuis como o mar de Kailua-Kona, no Havaí, com traços marrom. A combinação era de pasmar. E brilhavam, com lágrimas mal contidas.
Shane tornou a praguejar. A jovem tremia e o bebé, fitando a mãe com ansiedade, contorceu o rosto e começou a chorar.
O barulho pareceu ecoar no fog e Shane relanceou um olhar pelas casas vizinhas.
—	Prometa que não vai gritar ou chamar os bombeiros — ele pediu, observando-lhe a beleza, mas também a perturbação.
Ela concordou e afastou-se de costas, até encontrar a porta da frente da casa de Shane. Os olhos continuavam arregalados e abra​çava a menina, como a protegê-la contra ele.
—	Afaste-se de nós, seu degenerado.
Degenerado? Eu?
Isso mesmo! Escondendo-se na noite, de cueca, à espera de uma mulher indefesa que volta para casa. Isso é ser um pervertido!
Para casa? — Ele fitou-a, espantado.
Apesar da voz trémula, os olhos cintilavam de indignação. Shane teve certeza de que ela o enfrentaria sem receio e independente de sua constituição frágil, caso ele ousasse aproximar-se.
Ela confirmou com um gesto de cabeça e passou a língua nos lábios, nervosa. Também era evidente que a jovem procurava fugir.
Shane cruzou os braços sobre o peito.
—	Acontece que esta casa é "minha". E pensei que "a senhora"
fosse um gatuno.
Boquiaberta, ela estreitou os olhos, com suspeita.
Shane imaginou o que ela estaria pensando, observando-lhe a confusão evidente. Que pervertidos deviam ser extremamente inteligentes.
A jovem procurou o número moldado em ferro batido na parede da varanda.
Shane não tinha certeza se já havia sido tão insultado. Dege​nerado! Naquele momento, notou que a jovem estava com olheiras. Exausta?
Ela o olhou por mais alguns instantes e Shane notou que a tensão cedia.
—	Oh, Deus! Cometi um engano. Estou muito cansada e...
Espantado,acompanhou o trajeto das lágrimas que desciam pelo rosto formoso. Ela não usava qualquer tipo de maquiagem, o que o agradou de maneira irracional. E também tremia sob o agasalho leve que não a protegia do frio da noite.
A criança intensificou o choro, ao ver as lágrimas da mãe.
A mulher endireitou-se e levantou o queixo. Aquele gesto atingiu um coração que, até momentos atrás, estava totalmente endurecido.
O senhor poderia indicar-me um motel?
Poderia, mas está sem sorte. Por que "fogo"?
Como disse?
—	A senhora gritou "fogo" por achar que pervertidos têm medo das chamas? Como os vampiros da cruz?
Abby riu, nervosa.
—	Li, uma vez, que ninguém socorre uma mulher que chama por socorro, mas que todos correm quando grita "fogo".
Shane percebeu logo que não se tratava de uma moradora da região. Ela falava em táticas de sobrevivência de uma mulher de cidade grande. A voz intrigou-o. Não acompanhava a suavidade da fisionomia. Era um tanto dura.
—	Pode dizer-me por que nos últimos oitenta quilómetros, só encontrei placas de "Lotado" nos motéis. — Impaciente, ela limpou os olhos com a manga do casaco, passou a mão no rosto da criança e beijou-a na ponta do nariz.
Foi um efeito mágico.
A menina, uma cópia fiel da mãe, exceto pelos cabelos loiros que eram cacheados, parou de chorar. Depois virou a cabeça e fitou Shane solenemente. Por certo, a aparência dele não a agradou, pois começou a soluçar de novo, dessa vez com maior intensidade.
—	Há um resort em construção nos limites da cidade e a região está lotada de empreiteiros, fornecedores, carpinteiros e encana​dores... Não havia sequer um quarto vago naquela altura.
Exceto, é claro, a sua casa vazia, ele falou para si mesmo. Três quartos. Um em cima, dois embaixo. Até há poucos meses, o lugar podia ser usado por dois locatários. Com a permissão do locador, Shane transformara a cozinha superior em um sala de trabalho.
"Não faça isso", ele advertiu-se.
Não adiantou. Shane slntiu-se culpado por tê-la assustado. Além disso aborrecia-o pensar que a criança acabaria por acordar toda a vizinhança.
—	Talvez seja melhor entrar um pouco.
Shane alcançou a porta que, é claro, estava trancada. O choro da menina o afetava tanto que ele teve vontade de arrombar a madeira velha. Mas teve de conter-se.
—	Não se preocupe — ela não aceitou, com firmeza e desconfiança. — Irei embora. Tudo bem. De verdade. Estou cansada de tanto dirigir. Devo ter-me enganado de endereço.
Ela tentou passar por ele e parou. A escada era estreita demais para os dois. Foi então que Shane deu-se conta de que ela não desceria por ali sem tocá-lo e que vestia apenas roupas de baixo.
Mas, afinal, era um policial acostumado com a obediência, mes​mo estando de cueca. Folgadas, graças a Deus, e que poderiam ser confundidas com short de ginástica sob o efeito de um nevoeiro. Pelo menos, era o que esperava.
—	Não saia daqui — ele comandou.
Abby continuava apavorada. Estava impresso em seu rosto lindo.
Mesmo não sendo ele o degenerado que se escondia no matagal, ela talvez pensasse haver batido na porta do único assassino de Miracle Harbor.
—Sou um policial — ele explicou, relutante. — Aposentado. Ela não pôde deixar de ver que ele falava a verdade. Pela pos​tura, pelo olhar e corte de cabelos.
A jovem anuiu, mas assim que Shane desceu os degraus, ela passou correndo por ele e foi para a rua. Ele não a deteve. Dali a instantes, escutou o barulho das traves das portas do carro, depois de ela estar instalada dentro, em segurança.
A seguir, o barulho desagradável da chave virando na ignição.
Paciência, não era problema dele.
Shane deu a volta por trás da casa. Entrou e ordenou a si mesmo que fosse para a cama. Mas a sua mente, sempre indis​ciplinada àquela hora da noite, ficou à escuta do carro partindo. Nada.
Abriu a janela, olhou para fora e ouviu novamente o ranger da partida.
—	Mas que diabo! — Apanhou o jeans que estava nos pés da cama. — Não acredito que isso está acontecendo comigo.
Apesar da tíbia dolorida que deveria servir-lhe de aviso, en​tendeu que uma certa vulnerabilidade naquela mulher o atingira. Gostaria de deixá-la entregue à própria sorte, mas não conseguia. Nem ela e nem a criança estavam com roupas grossas o suficiente para enfrentar o frio da noite, mesmo dentro de um carro.
Apressado, vestiu a calça, desceu, acendeu a luz da varanda e abriu a porta da frente.
Ela poderia ter entrado, se quisesse, ele refletiu, irritado. Mas ela não o fez.
Teimosa. Estava escrito em sua fisionomia. Linda, mas obsti​nada. Shane olhou pelo vão.
O vento afastara um pouco a névoa e podia distinguir-se o que acontecia. A jovem estava com a testa encostada no volante. Pro​vavelmente chorava. Mas certamente não pediria a ajuda de um depravado.
Shane suspirou e vestiu uma jaqueta sobre o peito desnudo.
Há vários anos, fizera um juramento. Proteger e prestar ser​viços. Na ativa ou não, aqueles votos faziam parte de sua exis​tência, como o sangue que corria em suas veias. Ficou quase aliviado ao descobrir que sua tragédia pessoal não lhe roubara aquela parte de sua natureza.
Seria incapaz de deixá-la do lado de fora naquele frio.
Ela não percebeu a aproximação e assustou-se, quando Shane bateu no vidro. De novo, ele acabou por amedrontá-la, o que o preveniu para não aceitar nenhum cargo no departamento de don​zelas em apuros.
Abby abriu apenas uma fresta no vidro.
—	Sim?
Velhos hábitos dificilmente morriam. A placa era de Illinois. Havia uma etiqueta adesiva de um estacionamento de Chicago no pára-brisa. Ela estava muito longe de casa.
Quer que eu chame alguém? O serviço de socorro da estrada?
Estou bem — ela afirmou, orgulhosa. — Em Chicago, essa é uma temperatura ideal para fazer piquenique.
Imagino. — Shane viu que ela continuava a tremer. — Dá para notar. A criança também está gelada?
Abby fitou a filha com desânimo.
O senhor é mesmo um policial?
Fui, sim.
O senhor tem um distintivo?
Não tenho mais.
A irritação de Shane cresceu. Ocorreu-lhe que era um senti​mento que não experimentava há bastante tempo e que o lembrou estar vivo. Irritado, porém com vida.
—	Minha senhora, será que terei de implorar para que entre?
Ela hesitou, pensou por alguns momentos, suspirou resignada, destravou as portas e segurou a filha.
Acompanhou-o pela calçada e Shane abriu a porta para ambos.
A menina, aninhada no colo da mãe, chupava o polegar. Ao fitá-lo, fez uma careta e abriu a boca a tal ponto, que ele pôde ver-lhe as amígdalas. Mas não chorou. Ela vestia um suéter cor-de-rosa de tricô, com capuz e pompons.
As lembranças o atingiram com tanta força, que Shane chegou a bater a porta.
O bebé deles seria uma menina. O exame de ultra-som o con​firmara. Stacey começara a comprar coisas rosas. Vestidos peque​nos e sapatinhos.
—	O senhor está bem? — a jovem perguntou.
Não, não estava. Dois anos haviam se passado e continuava péssimo. Teria de aceitar que jamais iria recuperar-se. O tempo não fora o melhor remédio.
—	Claro, e por que não? — ele mentiu. — Entre.
Hesitante, ela cruzou a soleira. A filha agarrou-se em seu pes​coço e espiou ao redor, curiosa.
—	Abby Blakely — ela apresentou-se, liberou um braço e estendeu a mão.
Ela era do tipo mignon e sob a luz, parecia mais velha. Vinte e cinco ou talvez vinte e oito anos. Não era a adolescente que o boné sugeria. Uma mulher encantadora. Esguia e com curvas nos lugares certos.
Ele cumprimentou-a e notou que a mão, embora pequena era forte.
Shane McCall.
O senhor foi mesmo um policial?
Por que acha tão difícil de acreditar?
O que me parece estranha é a sua aposentadoria.
Ah...
O senhor não parece tão velho.
O espelho também lhe pregava a mesma peça. Olhava-se nele e via um homem muito mais jovem do que na verdade se sentia.
Trinta anos.
Não é um pouco jovem para aposentar-se, sr. McCall?
Shane, por favor. Ah, sim, suponho. Atualmente sou consultor em treinamentos policiais. Por que não entra e vem sentar-se?
Ela fitou-lhe o dedo onde brilhava uma aliança.
Será que não acordaremossua esposa?
Não, sou viúvo.
Sinto muito... O senhor também parece muito jovem para um viúvo.
Diga isso a Deus. — Ele não pôde evitar a amargura na voz. — Como é, vai entrar ou não?
Abby hesitou, como se fosse chorar de novo. Em seguida olhou atentamente e falou:
—	Nem o sei o que quero fazer. Estão tão cansada... Já sei. Vou ligar para uma de minhas irmãs.
Shane gostou do amor que ela imprimia à palavra "irmãs". Certamente elas não se incomodariam de serem acordadas no meio da noite. Mas porque ela não pensara nisso antes?
Abby entregou-lhe a filha e curvou-se para tirar os sapatos.
Ele se sentira melhor, enquanto não lhe merecera a confiança. Não tinha muito jeito com crianças pequenas. Desajeitado, segurou o corpo rechonchudo a uma certa distância.
Ah, pode deixar os sapatos.
Está louco? Vai sujar o chão.
Ele fitou os tacos, sem ter muita certeza se já os vira antes. Madeira. Precisando de cuidados.
A menina, tal como a mãe, fitava-o com desconfiança.
Eu, Belle — ela finalmente falou.
Muito bem. Olá. — Ele continuava a segurá-la afastada.
A pequerrucha sacudiu-se e Shane sentiu a energia e a força infantis.
Abby endireitou-se e Shane tentou devolver-lhe a filha.
—	Será que o senhor poderia segurá-la mais um minuto? Só até eu usar o telefone?
Seria uma tolice recusar.
—	Por aqui.
Shane precedeu Abby pelo hall, passou pela porta fechada da suíte principal vazia e chegou à cozinha. A criança balançou-se de novo em seus braços esticados.
Ela não morde.
Ah... — Shane nãoimudou de posição e Belle agitou-se, desconfortável.
Ela está com mau cheiro? — Abby perguntou
Belle não cheira mal — a menina gritou, indignada.
Hum... — Shane tratou de afrouxar um pouco os braços e segurou-a mais perto de si. Sentiu-lhe o aroma delicioso e um aperto no coração.
Belle percebeu a emoção, fitou-o com os olhos redondos, tocou-lhe o rosto com os dedinhos macios, agarrou-lhe a gola da jaqueta e encostou-se nele.
A menina aconchegou os cachos loiros sob o queixo dele, o rosto na clavícula e começou a chupar o polegar com ruído. A baba escorreu pela gola da jaqueta que ele não havia tirado para não tornar a ofender a sensibilidade da sra. Blakely com a visão de seu peito nu.
—	O telefone está aqui.
A intrusa fitou rapidamente a cozinha, tão espartana quanto o quarto e tirou o fone do gancho. Ele ouviu-a pedir informações. Como é que ela não sabia o número do telefone das irmãs?
Abby desligou, desanimada.
Elas ainda não chegaram aqui. Minhas irmãs.
Não chegaram?
Nós todas estamos nos mudando para cá. É uma longa his​tória. — Abby parecia exausta.
Todas? De quantas dúzias está falando?
Abby deu uma pequena risada.
Apenas três. Somos trigêmeas.
Três Abbys. Era um pensamento um tanto assustador que ele não queria enfrentar. A menina adormecera em seu colo e resso​nava suavemente. Shane observou o calar do corpo pequenino, o brilho dos cachos dourados e retesou-se, com medo de que algum novo sofrimento o atingisse.
—	Eu chamarei um socorro mecânico da estrada. Mas não pense que virá logo. Não estamos em Chicago.
Ela fitou-o, espantada.
Placas de licenciamento — ele explicou. — Etiqueta adesiva de um estacionamento, no lado esquerdo do pára-brisa.
Não dá para duvidar que é mesmo um policial.
Fui — ele a corrigiu.
Sem pegar a filha, Abby procurou qualquer coisa na bolsa quase tão grande como ela. Afinal, triunfante, tirou de dentro um pedaço amassado de papel e estendeu-lhe.
Shane ajeitou Belle na curva do braço e pegou a folha escrita. Espantou-se e piscou. Tornou a ler. Seu próprio endereço estava ali grafado com uma letra feminina e firme.
Deve haver algum engano — ele disse, após alguns momentos.
Por quê?
"Esta" casa é a de número vinte e dois da Harbor Way.
Ela pareceu desconcertada.
Devo ter escrito alguma coisa errada.
Na certa.
Abby deixou-se cair em uma cadeira, tirou o boné e passou a mão nos cabelos lisos e espetados, de maneira graciosa.
—	E agora? Tenho de ir. É óbvio.
Quanto a isso, tudo certo. Seus cabelos estavam embaraçados e úmidos, o rosto pálido mostrava fadiga. Ainda assim, tudo o que Shane podia pensar era que Abby era muito sexy. Usava jeans folgado, o que acentuava o fato de ser esbelta como um salgueiro. Ela não deveria ficar ali. Era evidente.
Escute, estamos no meio da noite e, se quiser, a senhora pode ficar aqui — ele ouviu-se dizer. — Na verdade, a casa foi construída com duas unidades independentes. Costumava ser alugada para as férias de verão e está mobiliada. Há roupa de cama e mesa nos armários. Eu nem mesmo cheguei a usar os quartos aqui de baixo. Eles têm saída para o hall e...
O senhor é um completo estranho para mim!
—	Admito isso, mas sou confiável.
Abby ensaiou um sorriso cansado.
—	Também há uma chave na porta, embora eu não tenha por hábito atacar pessoas.
Shane poderia jurar que atingira o alvo. Pela chave. Não pelo que dissera. Trancar a porta e o fato de Abby estar cansada além da conta e provavelmente à beira de um colapso.
Obrigada — ela disse com suavidade.
Não por isso. De manhã, eu a ajudarei a consertar seu carro e a encontrar sua casa.
Shane?
Ele preferia que ela não o chamasse pelo nome. Não queria ser seu amigo e nem seu salvador. Mas não tinha outra escolha.
Sim?
Sinto muito por tep-lhe acertado a canela com tanta força.
Trancada dentro do quarto, Abby escutou Shane subir a escada e perguntou-se se perdera o juízo. Não somente atravessara o país com a filha e todos os seus pertences, como naquele momento encontrava-se sob o mesmo teto com um homem do qual não co​nhecia o menor detalhe.
Bem, não era assim exatamente.
Sabia que ele fora um policial.
E também nunca vira olhos como aqueles. Não somente pela cor de chocolate, muito atraente. Mas pela maneira de olhar. In​tensa, forte e resoluta. Capaz de decifrar a alma.
Aqueles olhos impediram que ela fosse inteiramente tomada pelo pânico, no momento em que Shane surgira por trás e a flagrara na tentativa de abrir a porta da casa "dele".
Enquanto uma parte de si mesma horrorizara-se em ver um homem seminu sair de detrás da moita de rododendro às três da manhã, seu coração disparava não por medo, mas sim pela per​cepção de um olhar insinuante.
Era evidente que não cederia mais a uma fraqueza desse género. Já se resignara ao fato de não ser uma boa conhecedora do caráter masculino. O pai de Belle era um exemplo. Entretanto, mesmo sem querer impressionar-se com o homem admirável que a sur​preendera na pequena varanda, não podia negar que ele lhe cau​sara arrepios.
Incrível como, em meio a uma situação aflitiva daquele porte, pudera registrar cada pormenor. A altura e a largura dos ombros, a pele lisa e sem manchas, o físico musculoso que nem o nevoeiro intenso conseguia esconder.
Pela tensão engrenada para agir, o então desconhecido lhe pa​recera ainda mais atraente em sua rigidez masculina. Músculos peitorais bem definidos e salientes, abdome comprimido e reto, tendões e músculos ondulados nos braços e pernas.
Abby achou que não deveria ter-se surpreendido com a decla​ração de que ele era um policial. Afinal, o corte dos cabelos cas​tanhos, curto e conservador, já fazia prever o fato. E também a expressão autoritária. O ar de presteza nos lábios sedutores e no olhar ligeiramente semicerrado. Tratava-se de um homem prepa​rado para uma batalha.
Era provável que esse conjunto a tivesse convencido a dar-lhe uma chance e a confiar nele. Os instintos lhe diziam que, de todos os lugares, bastante limitados na verdade, em que poderia ficar durante a noite, aquele mostrava-se o mais seguro.
Por certo, sua mãe adotiva ficaria horrorizada. A pobre Judy desejava tanto uma vida simples e organizada. Trabalhara duro para dar a Abby um lar decente, mesmo depois que a filha se tornara mãe solteira.
Judy considerara uma insanidade ir ao escritório de um advo​gado desconhecido e aceitar uma doação. O que a bondosa senhora pensaria do último acontecimento?
Abby admitiu que a situação daquela noite tinhasido deses-peradora. O que mais poderia fazer? Dormir no carro? Se fosse só ela, até seria viável. Mas com Belle? A noite estava fria e úmida. Até mesmo Judy entenderia por que escolhera aceitar o convite do policial. Ou não?
Abby andou às cegas pelo apartamento mobiliado. No primeiro quarto, deitou a filha adormecida no centro da cama de casal. Foi até a janela e abriu a cortina.
Miracle Harbor parecia diferente da cidade que conhecera há um mês. A primeira impressão fora a de um cartão postal. Uma linda cidade, com casas antigas, graciosas, contornando as colinas, ruas estreitas que terminavam na praia. A avenida principal tinha lojas de tijolos aparentes e toldos coloridos, grandes vitrinas de frente para o oceano.
Naquela noite, com o intenso nevoeiro, parecia mais um cenário de um filme de terror.
Como pudera escrever de modo incorreto o endereço da casa que havia herdado?
E como uma cidade, que lhe parecera tão acolhedora e alegre à luz do dia, podia mudar radicalmente à noite?
E também por que seu carro traiçoeiro lhe pregara uma peça justamente àquela hora? Não podia negar que era um automóvel velho e que exigira muito dele. Afinal, ela o fizera atravessar o país, arrastando todos os seus bens materiais. Talvez fosse um milagre terem chegado ao destino, sem que uma pane interrom​pesse o trajeto.
Milagres...
Abby saiu da janela. Concentrou-se em inspecionar embaixo da cama e os cantos, em busca de aranhas ou teias. Nada encontrando, deitou-se ao lado da filha, cansada demais para procurar os lençóis.
E não seria por um milagre que tinha vindo parar ali?
Gostaria de acreditar que o mundo ainda lhe reservaria uma ou duas ocorrências extraordinárias.
Refletiu nas condições de sua herança que lhe permitiria dar à sua filha tudo o que imaginara poder conceder-lhe. Um lar e um lugar seguro para crescer.
Isso, esquecendo os pervertidos que saíam de detrás das moitas de rododendros.
Abby sorriu, apesar do cansaço.
Não poderia, é claro, esquecer-se das condições. Primeira: Morar em Miracle Harbor por no mínimo um ano. Nenhum problema. Mas e a segunda?
Absurda! Como poderia alguém casar-se visando proveito pes​soal? Que tipo de casamento resultaria de uma situação como essa? E, pelo envolvimento com Ty, o pai de Belle, Abby sabia que não podia confiar em si mesma como uma boa avaliadora de caracteres masculinos.
Sendo assim, por que viera, abandonando sua vida e sabendo que não tinha intenção de cumprir a segunda condição?
Durante o breve encontro com suas irmãs, ficara sabendo que elas haviam sido separadas quando estavam com três anos. Não se lembrava delas, mas Corrine afirmou que tinha uma vaga ideia do que acontecera. Os pais de Brit também lhe disseram que a adotaram quando estava com três anos.
Abby viera porque estava disposta a conhecer melhor suas ir​mãs. Ao encontrá-las, tivera a sensação de haver encontrado a si mesma.
Talvez, no recôndito da alma, ela ainda acreditasse em contos de fadas. E em um lugar como Miracle Harbor, poderia acontecer uma história com final feliz.
Quem sabe se o endereço incorreto e o carro enguiçado não faziam parte do começo de um projeto maior?
Para ela.
E Shane McCall? Como encaixá-lo nesse esquema?
Não sabia.
Ele se portara de maneira decente, mas só por que se tratava de uma atitude intrínseca à sua natureza. Não por Abby Blakely. A partir do dia seguinte, ele só entraria na história, quando se encontrassem casualmente na rua.
Havia barreiras altas e gélidas no olhar do ex-policial. E Abby não se sentia disposta a penetrar naquele mistério.
Mesmo se decidisse tentar preencher a condição ridícula atre​lada à sua herança, jamais escolheria um homem como aquele. Idealizava uma pessoa doce, bondosa e quê fosse um bom pai para sua filha.
Um camarada rechonchudo, de óculos, que levasse o almoço para o escritório em uma sacola de papel.
Ouviu o ranger de um colchão de molas vindo do andar de cima e sentiu uma estranha agitação tomar conta de si.
O que era muito inconveniente. Aquele tipo de alvoroço só trazia problemas.
CAPÍTULO II
Os raios de luz que penetravam pela fresta da cortina acabou por acordá-la. Abby espreguiçou-se e relanceou um olhar pelo quarto. Mesmo na claridade, não distinguiu nenhuma teia de aranha.
A mobília era despretensiosa, bem de acordo com o que Shane dissera sobre aquela ser uma casa alugada para veraneio e o quar​to, agradável. Forro alto de estuque, piso de tábuas, esquadrias de carvalho nas janelas.
Seria a casa que lhe fora destinada tão bonita quanto essa?
Estremeceu ao pensar na noite anterior e em Shane McCall.
—	Abby — ela falou em voz alta. — Agora você está descansada e imune àquele homem. Nunca se esqueça da verdade sobre um outro rosto bonito, minha querida.
Esticou o braço com intenção de puxar a filha para perto de si, passou a mão no colchão e o vazio a fez sentar-se, transtornada. Apenas um ligeiro afundamento denunciava o lugar onde a filha estivera deitada durante a noite.
—	Belle — ela chamou, pulando da cama —, onde está você?
Abby abotoou rapidamente a blusa feita por ela mesma e tentou
evitar o pânico, mesmo não sendo aquele o apartamento modesto à prova de fugas de crianças de Chicago.
—	Belle?
Abby correu até o quarto contíguo. Uma cadeira, certamente para servir de escada para alcançar o trinco, estava encostada na porta aberta. Por ali, viu o corredor, a porta da rua e a cozinha. Lembrou-se da fechadura de segurança onde tentara encaixar a chave na noite anterior. Nem mesmo uma criança precoce como Belle a abriria com facilidade.
Porém, ao adiantar-se no hall, estacou, horrorizada. A porta da frente não estava trancada e nem mesmo fechada. Uma brisa com cheiro de mar penetrava através da tela.
Belle!
Aqui. — A voz não era da filha. Era "dele" e soava carregada de irritação.
Abby entrou na cozinha e hesitou.
"Imune", ela repetiu para si mesma.
Mas o fato da filha estar ali, sã e salva, e não perambulando pelas ruas de Miracle Harbor ou aproximando-se do oceano, no​vamente deixou Abby mais vulnerável.
O cansaço e a aflição da noite anterior deixaram-na mais sen​sível. Afobada, sentiu calor, como se levasse uma inscrição na testa: "Precisa-se de um marido, urgente".
Pelo jeito, Shane não apreciava excesso de roupas. Naquela manhã, ele usava um short azul-marinho de corrida que deixava à mostra pernas musculosas e fazia pressupor nádegas firmes. A camiseta cinza com emblema da polícia não escondia a largura do peito e nem os bíceps de atleta.
Seria possível uma mulher ver tudo aquilo e não imaginar ser abraçada por ele? Só se não fosse humana!
Shane trazia uma toalha branca em volta do pescoço e os cabelos estavam molhados.
Era um homem bonito, que na certa chamava atenção. Maçãs do rosto altas, nariz reto e forte, queixo ligeiramente pronunciado. Ele ainda não se barbeara, o que lhe dava um certo ar travesso e indomável.
Abby conhecia muito bem esse tipo de homens. Conseguiam tudo o que desejavam e depois deixavam as vítimas para trás, com um rastro de dor e sofrimento.
Somente uma coisa impediu-a de odiá-lo totalmente. O olhar apavorado com que ele fitava Belle.
—	O que esta criança come? Não temos muitas opções por aqui — Shane declarou, como um militar em uma missão na qual estava prestes a falhar.
Belle estava sentada em cima de uma pilha de livros arrumados sobre uma cadeira, junto à mesa da cozinha, rodeada de caixas de cereais e tigelas.
—	Quer dizer que a deixou experimentar tudo isso? — Abby perguntou, horrorizada.
Belle abocanhou uma colherada generosa, do que parecia ser um punhado de uvas-passas cobertas com chocolate e embebidas no leite, da cumbuca à sua frente. Engoliu, franziu a testa e apon​tou a próxima escolha.
Ao que ele, homem de grandes atrativos físicos e personalidade glamourosa, tratou de obedecer.
—	O que está fazendo? — Abby perguntou, cruzando os braços na altura do peito para proteger-se. Do quê?
Certamente do desejo de rir. Por ver um ex-policial de noventa quilos e olhar ameaçador sendo comandado por uma criança.Dando de comer a uma menina, é óbvio.
E por quê?
Quando cheguei da corrida matinal, ela estava escapando da suíte. Tentei fazê-la voltar, sem sucesso. Belle proclamou que estava com fome e certamente esperava que eu fizesse algo a respeito.
Com essas palavras? — Abby não resistiu à provocação.
Ela não precisa de palavras! Basta contorcer o rosto e mostrar as amígdalas! Quando eu lhe disse para voltar para o quarto da mamãe, ela gritou comigo. Alto.
Belle!
Belle não é má — a menina antecipou-se ao que viria. — Belle é má? — perguntou a Shane e piscou com timidez afetada. 
É! — ele disse, mas reconsiderou, quando Belle tornou a piscar. — Bem, talvez não muito. Apenas teimosa, decidida, vee​mente e exagerada.
Ela não é exagerada — Abby não concordou com a última assertiva. — Está apenas se aproveitando da ocasião.
Com dois anos de idade? — Shane parou de despejar outra amostra em uma tigela vazia, endireitou o físico de mais um metro e oitenta e fitou Abby com desdém. — Não acredito.
Na verdade, o senhor não deveria ter-se preocupado com isso. Poderia ter-me acordado.
Pensei nisso — ele admitiu, hesitou e finalmente decidiu-se por adicionar uma pitada de açúcar mascavo.
E... — Abby observou-o refletir e depois adoçar mais um pouco o cereal.
A senhora parecia muito cansada ontem à noite. Achei que talvez precisasse de mais sono. Além do que, eu lhe prometi um quarto inviolável. Não iria gostar de ser acordada por um homem.
Aquela ideia deixou-a com a boca seca. Por que ele tinha de ser tão atraente? O que a lembrou a própria aparência. Passou a mão nos cabelos. Sentiu que havia fios eriçados que costumava domar com um tubo de gel e uma boa dose de paciência. Analisou as roupas amassadas com as quais dormira e a blusa abotoada de modo incorreto.
Shane, por sua vez, parecia pronto para uma sessão de fotos, apesar do rosto não barbeado e das manchas de suor na camiseta.
—	Uma canela roxa já é o suficiente — ele declarou, com olhar sombrio.
Abby mirou o lugar que golpeara na noite passada. Uma mancha roxa brilhava no meio da perna de Shane. Por algum motivo, duvidou que tivesse vontade de dar-lhe um pontapé, se visse Shane McCall naquela manhã.
Assim mesmo, tentou aparentar a maior imparcialidade possí​vel, Afinal, pretendia deixar bem claro que não se abalaria por sua presença, por mais" atraente que ele pudesse ser.
Espero que não o tenha machucado muito.
Pode apostar que o fez — ele suspirou —, mesmo conside​ rando-se a rigidez de um velho guerreiro.
Mamãe beija e sara — Belle sugeriu, sábia.
Para mim está ótimo. O que mamãe tem a dizer quanto a isso? — Shane, conhecedor dos limites, fez a pergunta de modo casual, sem nenhuma emoção, nem mesmo com ar de provocação amigável.
Os beijos de mamãe... — Abby procurou manter o mesmo tom — são reservados para Belle. Somente.
O que me faz ter muita pena do pai de Belle.
O senhor nunca conhecerá um homem menos merecedor de sua piedade. —Abby arrependeu-se imediatamente do que acabava de dizer. Não pretendia revelar nada sobre si mesma. — Belle e eu somos sozinhas.
Uma afirmação daquelas, depois da palavra "beijo", perante um homem semivestido, remetia a uma situação no mínimo bizarra.
"Procura-se um marido."
Brittany, depois de ter ouvido as condições impostas, decidira pôr um anúncio no jornal com o mesmo propósito. E rira a valer, quando Jordan Hamilton a ameaçara com uma expressão desaprovativa.
Mas Abby não era Brittany. Apesar de parecerem idênticas.
—	Acredito que nós já atrapalhamos demais — ela declarou, reservada. — Agora é melhor seguirmos nosso caminho.
"Antes de que eu me comporte como uma idiota, o que não seria a primeira vez."
Na verdade, ela não só cedera a Ty, como se atirara sobre ele, arrebatada por sua boa aparência e seu charme natural, achando que esses atributos eram significativos. Antes de Ty, nenhum homem a perturbara tanto e suas atenções tinham sido cativantes.
Conseguido o que desejava, Ty mudara radicalmente. Mesmo assim, grávida e com medo de ficar sozinha, Abby ficara com ele tempo demais para qualquer mulher com um mínimo de amor-próprio. Ele havia jurado, quase até o fim, que a amava perdida​mente, mas jamais lhe propusera casamento.
—	Vou dar uma espiada no seu carro — Shane interrompeu-lhe os pensamentos.
Qualquer um podia ser sedutor, ela disse a si mesma. Qualquer um podia dar a impressão do que não era.
—	Não — Abby respondeu, observando a atenção dele para com Belle em relação à oferta dos diferentes cereais. — Não é preciso.
Brit não aprovaria a recusa. Afinal, não lhe mandara o livro ridículo "Como encontrar o companheiro ideal"? Abby, mesmo sem pretender ler uma ió linha, acabara devorando as páginas com uma espécie de fascinação horrorizada.
Teria Brit enviado um exemplar para Corrine, que parecia tão inábil quanto Abby em relação ao sexo oposto? Ou talvez Corrine fosse mais arredia. Circunspecta?
Ou melhor, amedrontada, Abby refletiu. Somente uma irmã, mesmo sem nunca a ter conhecido, poderia desvendar o que se escondia atrás das defesas do olhar de Corrine. E quem poderia culpá-la? Elas haviam sido levadas a deixar para trás tudo o que conheciam e a começar de novo. Sozinhas.
Abby continuava chocada com as atitudes de Brit, semelhante às irmãs apenas fisicamente.
Confiante e expansiva a ponto de parecer sempre em estado de ebulição. Brit agia, falava e se movia, como se fosse uma mulher estonteante.
Sem negar o fato, Abby não conseguia olhar-se no espelho e achar o mesmo. Talvez devesse deixar os cabelos crescerem e usá-los elegantemente despenteados? Ou um pouco mais de elegância e maquilagem. Mas para quê?
Para atrair o homem perfeito?, Abby perguntou-se, com desdém.
Apostava que a irmã mandara para Corrine uma cópia daquele livro horrível que trazia um capítulo inteiro dedicado às técnicas de vestuário destinadas a prender os homens em armadilhas.
E nenhuma linha a respeito de como domar cabelos finos e rebeldes, e uma aparência matinal que lembrava a noite anterior. Que utilidade tinha um livro que não ensinava a resolver situações de emergência?
A menos que ela ainda não houvesse chegado a esse capítulo.
"Abby, você odeia aquele livro e tudo a que ele se refere!"
O importante não era atrair o homem à sua frente, mesmo em se tratando do mais perfeito espécime masculino que já vira, mas sim afastar-se dele o mais depressa possível e esquecê-lo.
Poderia permitir-se chamar um mecânico, Abby admoestou-se. Sua poupança reduzida em breve seria suplementada, porque re​cebera de presente uma casa igual àquela, com duas suítes.
Com um adendo. Na superior morava um inquilino confiável que estava no local há quase um ano e não pensava em mudar-se, de acordo com as informações obtidas através da administradora.
O aluguel e mais o que poderia ganhar com um pouco de costura, permitiria que ela e Belle vivessem com muito mais conforto a que estavam habituadas.
Ricas o suficiente para poder chamar um mecânico.
Chamarei uma oficina. Já o incomodamos demais.
Agora aquela — Belle exultou, depois de ter rejeitado o con​teúdo da vasilha à sua frente.
Para ser honesto — ele arriscou um murmúrio —, acho que é preferível cuidar do carro do que dela.
Não se preocupe com nenhuma das duas coisas. Eu a levarei para tomar o breakfast em qualquer lugar. Não queremos pertur​bá-lo mais...
Não! — Belle gritou. — "Mim gosta aqui".
Vamos ver, sua espertinha. Não ouse recusar estes flocos de milho. Você os adora!
Não quero! — Belle declarou, rebelde.
Enquanto Abby tentava fazer o impossível, chamar à razão alguém que ainda não desenvolvera o raciocínio, Shane apanhou as chaves que ela deixara sobre a mesa na noite anterior e saiu assobiando.
Um homem irritante que assumia o controle da situação, Abby aborreceu-se e seu coração feminista ficou consternado. Mas o ser humano admitiu adorar que cuidassem dela.
Ao chegar à rua, Shane sentiu como se houvesse sido atingido por um saco cheio de pedras.
Primeiro, fora dominado poruma menininha que agitava o dedo róseo com desenvoltura. Depois a mãe terminara a tarefa.
Como uma mulher podia ter aquela aparência atraente logo pela manhã?
Os cabelos revoltos, a blusa torta, o jeans amassado e tão largo que dava a impressão de que iria cair a qualquer momento.
Assim mesmo, ela parecia uma rainha de concurso de beleza.
Com um estalar de dedos, ela poderia tê-lo levado a servir-lhe quantos cereais tivesse vontade de comer.
Reconheceu aquele sentimento que não apreciava e nem pen​sava em tolerar.
Shane McCall não seria vulnerável. Não era por isso que estava ali? Em uma cidade pequena onde não conhecia viva alma e assim pretendia continuar?
Para ser mais exato, não queria nem ter noção de almas infantis.
Conhecia Morgan hálinos, desde que haviam trabalhado juntos em um caso de contrabando de drogas em Portland. Morgan se mudara para Miracle Harbor, sua cidade natal, casara-se e cons​tituíra família. Morgan o convidara para jantar. Conhecer a esposa e os filhos.
Quanto à esposa, tudo bem. Mas as crianças?
Ele não queria ficar perto de meninos pequenos.
Garotos falavam sobre basquete e futebol. Meninas... bem, não tinha a menor ideia.
Drew Duarte, velho companheiro da Divisão de Entorpecentes, preocupava-se com ele. Afastara-o de uma vida de desespero e solidão, e conseguira interessá-lo em um programa de treinamen​tos. Assim, Shane realizara alguns cursos de especialização du​rante aquele ano, e ainda aproveitara o tempo livre para correr e fazer levantamento de peso. Não estava disposto a permitir que nenhum garoto de dez anos, como o filho de Morgan o derrubasse.
Naquela altura, Drew o levara a dar um passo à frente. Estava elaborando um capítulo sobre processos de investigação de drogas para um manual de treino de uma repartição federal.
Uma vida onde a maior emoção era o verificador ortográfico do computador talvez fosse monótona demais, até mesmo para ele.
Será que desejava algo mais? Nem que fosse por um momento?
Não!
Mudar-se para um lugar como Miracle Harbor poderia repre​sentar problemas, Shane cismou. Mas aquilo não era um pensa​mento racional!
Devia ser o ponto de vista de um homem que vira interrompida sua vida calma e ordenada.
Viera para Miracle Harbor, pois tinha de sair de onde estava. Deixar tudo para trás. Morgan mandara um cartão de pêsames, quando ficara sabendo do ocorrido. Junto, viera uma nota dizendo que possuía um chalé na praia, caso Shane desejasse um lugar tranquilo para descansar.
Concordara em ficar uma semana e estava ali até aquele momento.
Deixara a cabana, cheia de correntes de ar, de Morgan após o inverno e alugara as duas suítes da casa antiga em estilo colonial holandês localizada a uma quadra do centro e do oceano. Era muito grande para um homem solteiro, mas Shane não queria ninguém morando com ele. Alugar casas em Miracle Harbor era tarefa difícil. A situação tornara-se ainda pior com o projeto do resort em andamento nas cercanias da cidade. A casa era velha e precisava de reparos constantes. A fornalha era melindrosa. As luzes piscavam e ele parecia antecipar cada catástrofe com o prazer de uma pessoa que não tinha nada mais com que se preocupar na vida. A casa lhe servia perfeitamente.
Assim, teria de resolver o pequeno problema que viera interferir em sua vida metódica com a mesma determinação calma com a qual solucionava os percalços surgidos com a velha construção. Em algum tempo, ficaria livre das duas intrusas. Da grande e da pequena. Na verdade, estava matando dois coelhos com uma só cajadada. Faria o trabalho de escoteiro, uma tarefa esquecida desde que se afastara da ativa, e elas iriam embora.
— Ganhar ou ganhar — murmurou, para si mesmo.
Shane abriu a porta do carro de Abby, para puxar a trava do capo. Havia um livro aparecendo do bolso externo de uma sacola de viagem no banco da frente. Ao ler- o título, sentiu o suor brotar na sua fronte.
"Como encontrar o companheiro ideal".
E não era o que ela estava tentando fazer, desde o primeiro momento em que o encarara com aqueles olhos azuis e grandes?
Aquela mulher estava à procura de um homem.
Por Deus, não haveria de ser Shane McCall!
O que o incentivou a consertar o carro o mais rapidamente possível.
Assobiando e limpando a graxa das mãos, Shane voltou para dentro de casa.
Abby estava ao telefone. A menina, no chão, brincava com as vasilhas de plástico. Fora isso, a cozinha estava imaculada. Não havia caixas de cereais à vista e as tigelas lavadas tinham sido guardadas. Belle veio direto para ele, sorrindo de orelha a orelha.
Por que era tão fácil fazer amizade com uma criança pequena?
"Cuidado com sentimentos calorosos, Shane MpCall", ele se advertiu.
Passou longe de Belle, que o seguiu, sem se incomodar com a desfeita.
Já estava na terceira volta ao redor da mesa, quando Abby desligou e fitou-o, preocupada.
O escritório de advocacia não parece abrir aos sábados. Tentei achar Jordan Hamilton, nosso advogado, em casa, mas não houve resposta.
Um dos filhos trabalha com ele. Mitch... — Mitch Hamilton era amigo de Morgan. — Tentarei localizá-lo.
Shane procurou o número na agenda e não encontrou. Ligou para Morgan.
A pequena Belle estava agarrada em seu joelho e ele sacudiu um pouco a perna. Ela segurou-se com mais força. Do outro lado da linha, na casa de Morgan, ouviu uma criança rindo.
Eu trouxe um cachorro para as crianças o amigo contou-lhe, depois de Shane havê-lo cumprimentado e ter pedido o número de Mitch.
Pelo barulho, o presente deve ter sido um sucesso.
Foi uma estupidez — Morgan confidenciou, em voz baixa.
— Faz seis dias que não faço outra coisa a não ser limpar sujeira de cachorro.
Shane escutou os risos da meninada e foi tomado por um sen​timento estranho. De pesar por brincadeiras que não iria conhecer.
Tratou de afastar aquela ideia e os dedos rechonchudos de seu joelho.
A mãe viu a cena e aproximou-se para tirar Belle de perto.
Mitch Hamilton atendeu no segundo toque e escutou o proble​ma. Felizmente, do outro lado da linha não havia vozes de crianças.
—	Papai ausentou-se a negócios neste final de semana — Mitch explicou. — Eu mesmo irei até o escritório.
Homem sensato, Shane pensou. Trabalhar no sábado. Em vez de ficar limpando sujeira de cachorro em uma casa cheia de risos até os caibros do telhado.
Obrigado.
Verificarei o endereço da casa em questão e ligarei de volta.
Como é mesmo o que ela disse? Harbor, vinte e dois? E qual das trigêmeas ela é?
Abby.
Tem cabelos compridos?
Qual a importância daquilo?
Não.
Ótimo. — Parecia aliviado? — Eu ligarei daqui a uma hora.
Quinze minutos teria sido melhor, mas Shane não estava em posição de queixar-se.
Os botões da blusa de Abby estavam corretamente fechados e os cabelos, penteados. Shane preferia-os desgrenhados
Ele vai dar a resposta em uma hora. A senhorita já comeu?
Não.
Vacilante, Belle andava pela cozinha com os braços estendidos para a frente e ria sem motivo. Os risinhos suaves encheram a casa que, até então, havia sido abençoada pelo silêncio.
Sirva-se à vontade — Shane ofereceu, secamente. — Há uma montanha de cereais no armário. E eu tenho muito o que fazer. Ficarei no escritório até Mitch telefonar.
Claro. Muito obrigada.
Mais uma coisa.
Sim?
"Eu não sou o companheiro ideal", era o que ele gostaria de dizer.
—	A cafeteira está ali. Sinta-se em casa. — Shane sentiu um calafrio.
Ele subiu a escada e foi para o chuveiro. Quando saiu, o aroma do café recendia até no andar superior. Adoraria tomar uma xícara da bebida quente, mas tinha de evitar muita amizade com o exér​cito inimigo. Forçou-se a sentar em frente ao computador e tra​balhar. Durante a hora seguinte, escreveu apenas duas linhas, ambas sem o menor sentido.
O telefone tocou e ele atendeu, desesperado como um náufrago.
Mas a tábua de salvação apresentou-se de forma totalmente diversa.
Desligou, desceu a escada e foi até a porta da cozinha.
Abby estava sentada no chão e soprava bolhas de sabão, en​quanto Belle batia palmas, entusiasmada.
-—Era o advogado? — Abby perguntou, por sobre o ombro.
Shane anuiu, em estado de choque.
Abby levantou-se e limpou as mãos no jeans.
Ele encontrou a minha casa?
Estas são as boas novas.
Shane aspirou o cheiro do café, evitou-lhe o olhar e, de costas, apanhou uma caneca para servir-se.
—	Isso quer dizer que temos más notícias, não é?
Ele percebeu-lhe a ansiedade e tratou de adoçar o café. Por que aquela vontade de acalmá-la? Quando se virou, era um homem com problemas a resolver.
A ideia de que ela iri^ embora, "muito prazer em conhecê-la e boa sorte", fora deixada em frangalhos pelo advogado.
Não havia engano. Mitch fizera uma dupla verificação.
Com o canto dos olhos, Shane viu-lhe o desalento da fisionomia. Tomou um gole de café e pigarreou.
Diga-me — ela pediu, corajosa, com as mãos nos bolsos da calça. — Eu já deveria ter imaginado. É uma pocilga, não é mesmo? Impossível de se viver nela.
Essa não é exatamente a questão.
O inquilino é pavoroso? Algum velho imundo? Está morando na "minha" casa com três cabras e dezesseis gatos, é isso?
Não.
Diga-me — Abby implorou. — Por favor.
Srta. Blakely, parece que "esta" é a sua casa.
CAPÍTULO III
Esta casa é minha?
Shane percebeu o novo tipo de inte​resse com que ela olhava ao redor. Talvez analisando a possibili​dade de pregar alguns quadros, fazer uma pintura ou mesmo es​colhendo o lugar para uma cadeira de balanço.
—	Sim, senhora.
Ele já vira a mesma expressão de "construir o ninho" em Stacey, quando haviam comprado uma casa velha e ela vira um castelo, em vez de uma catástrofe. Shane estava bem certo de que não suportaria passar por aquilo mais uma vez.
Afinal, não era casado com Abby e nem ela iria morrer. Esperava que a jovem aceitasse, com a graça de Deus, a noção de que houvera um terrível engano e que a casa "dela" já estava habitada por um inquilino de confiança.
O que, de acordo com o advogado, não teria nenhum valor legal depois do término do contrato, em dois meses.
Shane fitou-a e não teve muitas esperanças.
Mas é tão linda... Veja só o piso.
Precisa ser lixado e polido. Sua filha poderá ficar com lascas de madeira nos pés. A fornalha não funciona muito bem. As portas e janelas não fecham direito. Correntes de ar não são muito sau​dáveis para crianças.
Ele mesmo achou que estava agindo como um homem desesperado.
O senhor não me parece exatamente um perito em crianças — ela declarou, sem preocupar-se com a situação do locatário e passando a mão carinhosamente sobre a esquadria e o peitoril manchado da janela.
Eu posso dar um jeito nelas.
Em um momento de insanidade, Shane desejou dizer-lhe que, há muito tempo, quase se tornara um perito em bebés. Havia um traço de compreensão no olhar de Abby que o fez pensar que ela entenderia seu drama. Aquele pensamento renegado resvalou pelo muro do autocontrole cuidadosamente construído. E isso o apavorou.
—	Talvez o sistema elétrico tenha de ser trocado — ele insistiu. —	Isso sem mencionar a escada externa. Entre outras coisas.
O senhor tem visto muitas aranhas?
Aranhas?
Sim.
Acho que nunca vi nenhuma.
Ah, bom. Então tudo o mais não é problema — ela declarou, com tranquilidade e um gesto de pouco-caso.
Ótimo! Era uma mulher que não dava importância a problemas estruturais. Mas se lhe dissesse que a casa estava infestada de aracnídeos, ela iria embora sem pestanejar. Porém Shane não era desonesto. Esperava ver-se livre dela sem recorrer a mentiras.
—	A senhorita parece ter-se esquecido de um grande problema... —	ele avisou, severo e com esforço para manter o equilíbrio.
—	Vou empapelar o hall com um padrão que tenha rosas-chá —	Abby interrompeu-o, sonhadora. — Também farei um tapete tecido à mão para a entrada. Cortina xadrez em vermelho para esta janela. O que acha?
Estávamos discutindo um problema. — Shane achou horrível a ideia do xadrez vermelho. A cozinha não era nenhuma cantina italiana.
Desculpe, qual é o problema?
Ele cruzou os braços na altura do peito.
—	Eu.
Como ex-policial, Shane sabia muito bem como impor sua pre​sença, tornando-a mais imponente e intimidativa.
Mas Abby não pareceu incomodar-se nem um pouco. Continuou a olhar para as molduras das janelas e a alisá-las.
Carvalho verdadeiro.
Quem, eu?
Abby levantou-se, pensativa, fitou-o e sorriu. O brilho de seu olhar poderia cegar.
—	Quanto ao senhor, pareceu-me que é um inquilino excelente. Acho que podemos chegar a um bom termo.
Alguma coisa lhe dizia que a solução de Abby Blakely passava simplesmente pelo aluguel mensal, como toda boa locadora.
Verdade?
Por que não podemos morar juntos? — ela perguntou. — Isso lhe pouparia o trabalho de procurar um novo lugar para viver e evitaria que eu tivesse de encontrar um novo locatário.
Será que não poderia ser um pouco mais razoável?
E não é o que estou tentando ser?
Shane teve de admitir que a sugestão dela era racional. Mas ficar sob o mesmo teto com ela e a filha, era completamente inaceitável.
—	Entenda... — Abby falou com voz suave e os olhos arrega​ lados. — Eu não tenho outro lugar para onde ir.
Será que ela pretendia fingir-se de mulher em apuros outra vez?
A noite passada — ele relembrou-a com frieza — a senhorita nem mesmo queria entrar. Agora pretende morar aqui?
Depois que fiquei sabendo que a casa é minha.
A lógica feminina sempre me surpreendeu.
Ele a conhecia há menos de um dia e sua vida já estava em de pernas para o ar. A rígida rotina, ameaçada.
—	O senhor tem algum lugar para onde ir?
Shane gostaria de poder dizer que tinha dezenas de lugares à sua espera. O que não corresponderia à verdade.
—	Não, mas posso comprar.
Ele não lhe diria qual a parte da equação que tornava isso impraticável. Comprar uma casa envolvia um pequeno item cha​mado compromisso, uma palavra cuidadosa e totalmente erradi​cada do seu vocabulário.
Porém eu já investi uma boa quantia nesta aqui — ele continuou teimando.
Eu sei que poderemos encontrar uma solução.
Shane não queria solucionar nada. A única alternativa possível seria ela sair de sua casa e de sua cabeça.
Mas o local pertencia a Abby e não a ele.
Ela apanhou a cafeteira e tornou a encher a caneca que ele esvaziara.
O balcão também precisa de um conserto — Abby comentou.
A casa inteira precisa de um pouco de atenção, para ser mais exato. Dez carpinteiros trabalhando em tempo integral du​rante um mês, e com muito boa sorte se encontrará um disponível nesta cidade pelos próximos dois anos, não fariam muitos pro​gressos, tantas as reformas que têm de ser feitas.
—	Eu poderia contratá-lo. Reduzir o aluguel, em troca de trabalho.
Abby serviu-se de café e sentou-se à mesa, lançando ao redor um olhar cheio de planos. O balcão, a porta do armário.
A vida de Shane sendo planejada minuciosamente à sua revelia.
Poque o advogado não tomava conta do assunto? Ele devia ter experiência em tratar de problemas delicados que surgiam quando homens e mulheres resolviam compartilhar vidas. Se houvesse concordância de ambas as partes, é claro.
Shane puxou uma cadeira e sentou-se em frente a Abby. Dali a instantes, sentiu uma pequena mão agarrar-se em seu joelho. Belle abandonara as vasilhas plásticas e o olhava, esperançosa.
Colo? — a menina perguntou.
Não.
Belle parecia uma boneca. Usava um vestido curto vermelho e a mãe prendera os cachos dourados em um pequeno rabo-de-cavalo no alto da cabeça. E como agravante, tinha uma qualidade inerente às mulheres...
—	Por favor?	.
...à qual não se podia resistir. De jeito nenhum. Shane fitou a menina, depois Abby de relance e cedeu. Como dizer "não" a uma criança? Ele se curvou e ergueu a menina sobre os joelhos. Belle suspirou feliz, sem incomodar-se com o mau humor aparente do adulto, encostou a cabeça no peito largo e pôs o polegar na boca.
Shane, movido pelo espírito de policial, considerou a tarefa finda e concentrou-se no mais importante.
—	Bem, como é que a senhorita tornou-se dona desta casa?
Abby contou que era órfã e há pouco tempo ficara sabendo que era uma dastrigêmeas. Ela e as irmãs receberam, de um anónimo, um dote cada uma. O estranho as reuniu em Miracle Harbor e aquela casa lhe coubera.
Apesar da resposta esclarecedora, Shane sentiu-se confuso. Por hábito profissional, não gostou de saber que um desconhecido dei​xara uma casa para ela.
Por outro lado, conhecer a história o fez pensar nela não como um problema irritante, mas sim como um ser de carne e osso, com alma e sentimentos. Não mais um inimigo. Se não tomasse cuidado, essa nova situação poderia voltar-se contra ele. E a me​nina pequena sentada em seu colo fazia parte da trama.
Shane tentou endurecer o coração. A vida trágica de Abby Blakely não era de sua conta.
—	Como é que as irmãs foram separadas?
Abby deu de ombros, mas não escondeu uma ponta de sofri​mento no olhar.
—	Brittany disse que foi adotada quando estava com três anos. Corrine afirma que os pais morreram em um acidente de carro. Então posso deduzir que eu estava com três anos quando eles morreram e que fomos separadas por um motivo que ignoro. Mesmo assim, minha vida é um quebra-cabeça onde faltam várias peças. A medida que eu puder conhecer melhor minhas irmãs, acho que muitos fatos poderão ser esclarecidos. Talvez quem me deu esta casa saiba de alguma coisa.
Abby hesitou um pouco, com um tremor na voz.
A única maneira de descobrir isso é eu ficar aqui.
As suítes desta casa nem mesmo têm cozinhas separadas! — Shane tentou ser prático, apesar da emoção.
Uma manobra inútil. Abby era uma pessoa que tentava fazer o melhor possível com as cartas que tinha em mãos. Apesar do que acabara de ouvir, Shane não sentiu autopiedade em Abby e sim muita coragem. O que talvez não fosse conveniente para ele.
Eu tenho um contrato — Shane acrescentou.
Por quanto tempo ainda?
Não muito, infelizmente.
Shane forçou-se a reconhecer que, para ele, a casa não passava de um lugar para morar. Abby, por sua vez, já começava a sonhar com um futuro.
Belle pôs o dedo no nariz dele, talvez para lembrá-lo que os problemas de Abby eram mais urgentes e Shane sentiu sua postura rígida evaporar-se.
Haveria de encontrar outra moradia, ele ponderou. Sob todos os aspectos, seria uma insensatez ficar sob o mesmo teto com Abby.
—	A senhorita não poderia morar com suas irmãs? — Shane fez uma última tentativa angustiada.
Afastou ò dedo de Belle, fitou-a com seriedade e suspirou. Claro que Abby não aceitaria a sugestão.
—	Por favor, escute — ela enfatizou. — Eu "preciso" permanecer aqui. Talvez pelo significado de que alguém, mesmo sendo um estranho, importou-se comigo o suficiente para deixar-me a casa como herança. Nunca tive nada que fosse meu de verdade. Ela é a primeira coisa que me pertence. Fora Belle, é claro. Será que dá para entender?
—	Não muito bem.
As palavras dela mostravam a diferença entre as percepções feminina e masculina. Ou talvez fosse o seu ponto de vista de policial que via algo suspeito em uma oferta daquele tipo por parte de um desconhecido. Mas para Abby era como se o universo se iluminasse à sua frente.
Eu irei embora, assim que achar um canto para viver.
Não há necessidade de fazer isso.
Há sim, e muita.
Shane achou agradável estar com Belle no colo e refletiu onde Abby iria encontrar um inquilino tão bom quanto ele.
Mas isso também não era de sua conta, ele se repreendeu.
Belle balançou o corpo gorducho e cantarolou uma melodia com apenas quatro palavras: "não-vai-embora-hoje".
Não precisa sair daqui — Abby insistiu. — O senhor disse que nem mesmo usou a suíte de baixo. Dois quartos são mais que suficientes para mim e para Belle. E podemos muito bem partilhar a cozinha.
Para mim não dá.
O senhor me faz sentir culpada.
Aquilo o fez ficar com remorso. A vida ficava muito complicada, quando envolvia uma mulher. Se se empenhasse, em uma semana encontraria outro lugar para morar.
E se ela alugasse o andar de cima para um velho com três cabras e dezesseis gatos?
Azar o dela.
Mesmo que tivesse de dividir a cozinha com o ancião.
—	Eu trarei suas coisas para dentro. A senhorita pode muito bem ficar aqui por enquanto. Até eu ir embora, poderemos fazer uso comum da cozinha.
Ele é que estava sendo despejado e ainda por cima sentia remorso!
É o que Abby Blakely acabava de fazer. Uma revolução em sua vida. Sem ele nem ao menos perceber como acontecera.
O melhor seria fugir dali o quanto antes.
Belle — Abby sussurrou no ouvido da filha, enquanto dançava pela cozinha vazia, com a menina nos braços. — Esta é a nossa casa! Nossa! Sua e minha!
E o "moço"? — Belle perguntou, sorrindo pela felicidade da mãe e tocando-lhe a face.
Aquele? Eu sei lá! — A verdade a fez sentir remorso. E por quê? O teimoso era Shane!
"Mim" gosta dele — Belle anunciou.
Só por que ele lhe deu tudo aquilo no café da manhã? Minha filha, você não deve deixar-se comprar com tanta facilidade. Apren​da essa lição de vida.
Belle sorriu, sem entender nada.
Abby sentou-a no chão e fez uma inspeção no recinto. Quando pudesse, instalaria balcões, gabinetes e piso novos.
De imediato, cortinas e uma demão de tinta já imprimiriam a personalidade da dona. Além do que, fazer cortinas era uma de suas especialidades. Talvez fosse melhor não se apegar demais à casa. Se não se casasse em um ano, acabaria por perdê-la.
Bem, mas não queria pensar no fato. No momento, só pensaria nas bênçãos. Nem precisaria preocupar-se com o carro velho. Ela o deixaria parado. O centro da cidade era próximo. E a praia também.
—	Abby! — Shane chamou-a de fora, aborrecido.
Pela limpeza meticulosa e pela precisão com que os utensílios estavam arrumados nos armários da cozinha, Abby concluíra que ele era um homem que gostava, ou melhor, amava a ordem. E que a desorganização inesperada não o agradava nem um pouco, embora ele procurasse disfarçar o fato.
Talvez quando aquele mal-humorado visse como ela e Belle eram tranquilas, poderia até pensar em não se mudar. Não lhe agradava procurar um inquilino em uma cidade cheia de traba​lhadores temporários.
—	Abby!
Mas não podia afirmar se conseguiria morar junto com ele. Bem, talvez devesse deixar que o tempo se encarregasse de mos​trar-lhe isso.
Com Belle no colo, Abby saiu da cozinha.
Shane estava em pé na entrada. De short. A camiseta jazia sobre um rododentro do jardim. Ele carregava uma caixa pesada e os músculos dos braços mostravam-se ainda mais salientes. Abby arregalou os olhos e reparou no fio de suor que escorria por trás da orelha e perdia-se no pescoço.
—	Onde é que eu deixo isto?
Abby sabia que, por vontade dele, seria de volta ao trailer e fora de sua vida.
Embaixo da janela ficará ótimo.
O que tem aí dentro? Tijolos?
Minha máquina de costura.
Nisso, a alça soltou-se da caixa. Shane conseguiu evitar que a embalagem atingisse o chão, e não seu pé.
Abby teve certeza que nunca ouvira as três palavras ditas por ele. Deixou Belle no chão e recomendou-lhe que fosse brincar com as vasilhas de plástico.
—	Francamente! Não quero que minha filha aprenda esse tipo de linguajar.
Emburrado e pesaroso, ele a encarou.
É bom que a senhorita não tenha essas ideias.
Quais?
Não tente educar-me.
Eu? Educá-lo?
Eu não sou um companheiro ideal. Mas não se preocupe, vou sair daqui logo.
Abby fitou-o, intrigada. Onde ele teria visto aquela frase? Teria o advogado revelado ao telefone as condições para se ter direito à herança? Que ela e as irmãs teriam de encontrar um marido?
—	Acredito que não há perigo do senhor ser confundido com um homem perfeito.
Shane mostrou-se insultado.
—	Ou talvez — ela apressou-se em acrescentar —, a minha experiência me diga que ele não existe.
Shane riu com desdém.
Esta tarde mesmo vou começar a procurar outro imóvel.
Fique à vontade.
Obrigado — ele murmurou.
Eu tenho de confessar que me sentiria mais segura à noite, se o senhor ficasse — Abby declarou e imediatamente reconheceu o erro de suas palavras.
O calor nos olhos dele sugeriu que ela não se sentiria muito segura sob o mesmo teto com Shane McCall...
—	Mas eu lhe desejoboa sorte. Tomara que encontre logo — ela disse, com alegria forçada. — Sabe de uma coisa? Adorei esta casa. Veja que luminosidade. Poderei ter minhas plantas ali e ainda terei espaço para o meu manequim.
Manequim... — Shane repetiu e empurrou o sofá de encontro à parede.
Sou costureira. Pretendo pendurar minha placa lá fora.
Quando?
Assim que for possível.
Eu não posso trabalhar em meio ao barulho e à agitação — ele declarou de braços cruzados e pernas abertas.
O que o deixava ainda mais alto e sobranceiro. Talvez o hou​vessem ensinado aquele truque na escola de policiais. Porém Abby não o deixaria pensar que a intimidava. Jamais.
O senhor entende de costura?
Não muito.
Não se trata de um serviço barulhento. Faço muitas coisas à mão, como por exemplo as bainhas e os bordados. A máquina em si é muito silenciosa. Eu a escolhi, para poder trabalhar en​quanto Belle dormia.
E as pessoas que virão bater à porta a qualquer hora do dia ou da noite?
Não pretendo fazer produção em massa. Acho que não irei perturbá-lo até a sua partida. O senhor nem perceberá que estamos aqui.
A senhorita assinaria um documento?
Antes de ela poder responder, ouviram uma barulheira na co​zinha e o grito de Belle. Abby saiu correndo, não sem antes per​cebê-lo revirar os olhos.
—	É, nem perceberei que estão aqui... — Shane murmurou.
CAPITULO IV
Não estou ouvindo direito — Shane dis​se, ao telefone. — Quarto e comida? Não foi o que li no jornal... Aluguel reduzido porquê? A senhora não pode diminuir o barulho? Mal posso ouvi-la. Não dá para tapar a boca das crianças? Aluguel reduzido para tomar conta delas?
Ele bateu o telefone sem se despedir e passou a caneta no segundo anúncio de "Aluga-se" da edição de domingo do Miracle Harbor Beacon.
Lá embaixo, Abby cantava. De novo. Ficava evidente que na construção daquela casa não se dera a menor atenção ao isolamento acústico. Aliás, ela vinha cantando com a maior alegria, desde que ele trouxera para dentro o último pacote, por volta das sete da noite passada. Os primeiros trinados tiveram lugar enquanto ela desempacotava os mantimentos na cozinha.
Se fosse rock, ele a teria feito calar a boca. Mas tratava-se baladas suaves e românticas.
Pior foi o que ouvira depois do apartamento dela mergulhar no silêncio e Belle na certa estar adormecida no berço que dera mais trabalho para armar de que um enigma chinês. No instante em que ele pensara que sua vida iria retornar na quietude aben​çoada, ouviu a água corrente enchendo a banheira. Da suíte de Abby.
Ressentia-se pelo fato de que, em pouco mais de vinte e quatro horas, perdera o controle de sua vida. Para ser honesto, estava can​sado de testemunhar o destino atirando pedras em sua existência.
O barulho de Abby afundando na água, suspirando e cantaro​lando o fez sair para uma caminhada vigorosa. Teria de tirá-la do pensamento. Um ótimo método seria esquematizar mentalmen​te uns seis ou sete parágrafos de técnicas de vigilância.
Foi então que Shane cometera o erro de vir pela alameda. Vira a luz tremeluzente pelos vidros embaçados da janela do banheiro.
Uma imagem perturbadora se formara em sua mente. Abby dentro da banheira. Coberta por bolhas. Com sombras eróticas lançadas pela lamparina na parede.
A reação física de Shane fora instantânea e constrangedora para um homem de sua idade. Subira a escada de dois em dois degraus e, em seu quarto, refletira se a vida monástica que vinha levando não o transformara no pervertido que ela o acusara de ser.
O que havia de errado com ele? Meninos adolescentes espiavam mulheres nuas. Ele não. Para provar a teoria, trabalhara furio​samente. À meia-noite, quando o silêncio no quarto de Abby já se prolongava por mais de uma hora, Shane percebeu que passara três horas digitando sem parar.
Escrevera dezesseis parágrafos de bobagens em jargão policial. Desligou o comutador sem salvar, foi para a cama, onde ficou acordado.
Uma hora mais tarde, desceu a escada à procura de um pacote de hambúrgueres que comprara há mais de duas semanas e que não foi encontrado. Pensou em abrir uma lata de sardinhas.
A geladeira estava lotada de vegetais. Alface, brócoli, aspargos. Atrás de duas caixas de leite e uma embalagem de queijo ainda sem abrir, Shane encontrou uma lata de refrigerante que sabia ser sua.
Resistiu à vontade de experimentar o queijo. Para sobreviver nos próximos dias, teria de impor-se alguns regulamentos.
Não mexer no alimento dos outros. Mesmo que fosse um pacote de hambúrgueres, seria o primeiro.
Sem sono, voltou a seu quarto e começou a elaborar uma lista de regras e um horário para o uso da cozinha. Quando raiou a aurora, Shane saiu para uma corrida. Na volta, comprou o jornal.
Já não rezava há muito tempo, mas ensaiou uma prece, ao discar o último número no item "Aluga-se", na sessão de classificados.
Tratava-se de uma casa. Pequena e limpa, perfeita para um homem solteiro.
A suspeita começou a avolumar-se. Ninguém gostava de alugar nada para um homem solitário. A não ser que o conhecessem.
Qual o endereço?, ele perguntou.
Ficava no meio das fileiras de chalés em Cannery Street.
Shane desligou, sem dizer até-logo. Na Cannery Street só havia choupanas. Lugar depressivo com rottweilers acorrentados na fren​te e carros quebrados atrás. De todas as casas se avistava a fábrica de enlatados dos irmãos Jones, fechada há cerca de quinze anos e atualmente deteriorada até o último tijolo. Era uma parte de Miracle Harbor que ninguém queria admitir que existia.
Desgostoso com os resultados de sua busca, permitiu-se rever os horários da cozinha com uma ponta de satisfação. Ele faria uso do recinto bem cedo, quando Abby ainda estivesse dormindo. De​pois o espaço tornaria a ser seu, às doze e trinta. Precisava de poucos minutos para almoçar. Jantaria entre sete e oito horas. Uma chaleira elétrica no quarto resolveria o problema de uma vontade inadiável de tomar café.
Estabelecer normas rígidas poderia ser proveitoso, Shane re-fletiu. Se tudo corresse como o planejado, seria possível que mal a visse. Nada mais de sessões com crianças no colo. Uma circuns​tância que poderia confundir o pensamento de um homem.
Como dispunha do próprio banheiro, eles só teriam de compar​tilhar a cozinha e o vestíbulo. Talvez isso não fosse tão inconve​niente como se mostrara ajjrincípio.
A voz alegre de Abby penetrava nas rachaduras do piso, nos encanamentos e nos buracos das paredes.
— Somos três ursinhos carinhosos... — ela cantava para a filha, que ria sem parar.
Furioso, Shane rasgou o último anúncio e pegou a lista telefó​nica. Na quarta capa havia uma lista de apartamentos. Embora houvesse jurado nunca mais morar nesse tipo de construção, co​meçou a tarefa tediosa de ligar à procura de vagas.
Depois de mais uma hora, as esperanças se desvaneceram. Ra​biscou na folha de horários "Não mexer nos pertences alheios na geladeira" e "Não cantar". Reconheceu então que, em prol da pró​pria sobrevivência, estava se tornando um idiota e apagou o se​gundo item. A sua permanência ali seria temporária. Qual o pro​blema se Abby gostava de cantar?
A campainha da porta soou.
Shane franziu a testa. Não se lembrava de tê-la ouvido antes. Esperou que Abby atendesse. Nada. Tocaram a campainha de novo. E mais uma vez.
Afinal, não poderia ser mesmo para quem morava ali há menos de vinte e quatro horas.
Ele, que morava em Miracle Harbor há dois anos, também não esperava ninguém. Havia removido qualquer vestígio de sociabilidade.
A campainha soou novamente.
Seria melhor mandar o vendedor embora, antes de que ela fosse abrir a porta e o convidasse para entrar.
Apanhou a folha de horários, os regulamentos e desceu. No último momento e tarde demais, percebeu o obstáculo. No degrau inferior, ^nde antes não havia nada, fora colocado uma portinhola de madeira de uns setenta centímetros de altura.
Shane tentou pular por cima, mas prendeu o dedo do pé e estatelou-se no chão. Teve a impressão que quebrara a rótula. Praguejou ao mexer-se, mas ao passar a mão pelo local da contusão

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