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Emily Rodda Deltora Quest 8 O RETORNO A DEL

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DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E MAGIA...
As sete pedras preciosas foram recolocadas no Cinturão de Deltora. Agora, Lief, Barda e Jasmine precisam encontrar o herdeiro do trono do reino. Eles sabem que somente o verdadeiro herdeiro pode usar a magia do Cinturão a fim de sobrepujar o maligno Senhor das Sombras.
Entretanto, o herdeiro tem estado bem escondido desde o nascimento e somente o Cinturão poderá revelar onde ele se encontra. As surpresas se sucedem à medida que a busca de Deltora chega ao seu emocionante clímax e a fúria e o poder do próprio Senhor das Sombras ameaça destruir os três heróis e tudo o que amam.
SUMÁRIO
A magia de Tora
Fallow
Suspeita
As sete tribos
Mensagens 
Uma estrada perigosa 
Withick Mire
Chegadas
O herdeiro
A estrada para Del 
A praça 
Desespero 
A ferraria
O Local das Punições
Uma luta mortal
O último segredo
Até agora...
Lief, Barda e Jasmine recuperaram as sete pedras perdidas do mágico Cinturão de Deltora. Agora precisam encontrar o herdeiro do trono de Deltora, pois o perverso Senhor das Sombras somente poderá ser derrotado e o reino libertado quando o Cinturão estiver em poder de seu herdeiro legítimo.
Os pais de Lief, aprisionados em Del, haviam contado ao filho que, para ajudarem o rei Endon e a rainha Sharn a escapar da cidade quando o Senhor das Sombras assumiu o poder do reino há mais de dezesseis anos, planejaram esconder o casal real e seu futuro filho. Contudo, os companheiros de Lief descobriram que esse plano havia fracassado quando o povo mágico de Tora quebrou seu antigo juramento de lealdade e se recusou a oferecer-lhes refúgio. Os toranos foram banidos para o Vale dos Perdidos e o paradeiro da família real é ignorado.
Perdição, o sombrio, misterioso líder da Resistência, partiu irado quando os companheiros se recusaram a seguir o conselho de se manterem afastados do Vale dos Perdidos. Dain, um jovem da mesma idade de Lief, integrante da Resistência, acompanhou-o relutante. Agora, o Vale foi libertado de seu encantamento maligno, mas Lief, Barda e Jasmine não sabem para onde ir. Eles precisam encontrar o herdeiro, mas não sabem como. E os servos do Senhor das Sombras — os Guardas Cinzentos, os terríveis Ols, capazes de mudar a aparência, e imensos pássaros semelhantes a abutres chamados Ak-Baba — estão à procura deles.
E, agora, continue a leitura...
O Cinturão de Deltora estava completo. Sete pedras preciosas brilhavam outra vez nos reluzentes medalhões de aço. Ele era perfeito. No entanto...
Lief olhou para Barda e Jasmine, que caminhavam a seu lado pela maravilhosa planície iluminada pelo sol, que já fora o Vale dos Perdidos. No céu azul que se estendia sobre eles, Kree planava ao lado de companheiros da mesma espécie. Muitos pássaros haviam retornado ao vale desde que a névoa maligna se dissipara, o povo exilado de Tora fora libertado de seus mortos-vivos e o perverso Guardião havia retornado à sua antiga personalidade, o eremita Fardeep.
Os três companheiros haviam triunfado, mas agora tinham de enfrentar o fato de que, a menos que encontrassem o herdeiro do trono de Deltora, todos os seus esforços teriam sido em vão. Eles tinham acreditado que o Cinturão os conduziria ao herdeiro, mas até aquele momento não havia sinal dele.
Com um suspiro, Lief abriu o pequeno livro azul que levava consigo. Aquela cópia era uma das poucas coisas que haviam sobrevivido à destruição do palácio do Guardião. E por quê? Lief se perguntou. Talvez encerrasse a chave do mistério... Mais uma vez, ele olhou para as palavras que lera tantas vezes.
 Cada pedra encerra a própria magia, mas juntas as sete criam um encantamento que é muito mais poderoso do que a soma das partes. Somente o Cinturão de Deltora, completo como quando foi fabricado por Adin e usado por um de seus legítimos herdeiros, tem o poder de derrotar o inimigo.
— Reler as palavras não vai mudá-las, Lief — murmurou Jasmine. — Precisamos encontrar o herdeiro... e depressa!
Ela colheu uma fruta silvestre e a deu a Filli. Muitas outras criaturinhas peludas agora enchiam o vale, mas todas eram maiores do que o pequeno Filli, que timidamente ficava no ombro de Jasmine, espiando ao redor com olhos maravilhados.
— Se ao menos soubéssemos onde procurar! — remexeu-se Barda inquieto. — Não podemos mais ficar aqui, esperando um sinal. A qualquer momento... — ele olhou para o céu e a expressão de seu rosto mudou, exibindo uma repentina preocupação. Lief também olhou para o alto e ficou assustado ao verificar que, onde momentos antes havia um céu azul e límpido, agora se formava uma densa neblina. Os pássaros descreviam círculos, grasnando...
Sem perda de tempo, Jasmine chamou Kree, que se afastou do grupo e desceu como um raio em sua direção. No mesmo momento, Lief viu Fardeep aproximar-se acompanhado por dois toranos: Peel, um homem alto e barbado, e Zeean, a velha senhora de costas eretas que vestia uma túnica escarlate.
— Não temam! — Fardeep avisou. — Os toranos estão tecendo um véu de nuvens para esconder o vale outra vez. O Senhor das Sombras não deve descobrir que estamos livres.
— Mas e os animais? — preocupou-se Jasmine.
— A nossa névoa não irá prejudicá-los, pequena — Zeean a tranqüilizou com um sorriso. — Ela é leve e doce. Agora que a nossa magia retornou, podemos fazer muitas coisas.
— Exceto o que mais desejamos — ajuntou Peel ponderadamente.
— Exceto voltar para Tora.
— É verdade. — O olhar de Zeean voltou-se para Lief, Barda e Jasmine. — E, no entanto, tínhamos esperanças...
Lief olhou rapidamente para o eremita.
— Fardeep nada disse, Lief — Zeean informou. — Mas nos lembramos do que vimos exatamente antes de o vale mudar. Você está carregando um objeto precioso, um objeto que pode nos salvar a todos. No entanto, sentimos que você está preocupado. Podemos ajudar?
Lief hesitou. O hábito de manter segredo continuava forte, mas talvez, de fato, os toranos pudessem ajudar. Barda e Jasmine mostravam-se irrequietos, e Lief soube que eles também tinham o desejo de confiar.
— Fique sabendo que contar algo a um torano é o mesmo que contar a todos — Zeean disse com suavidade. — Não temos segredos entre nós. Mas esse é o nosso ponto forte. Acumulamos muito conhecimento e nossas lembranças remontam a muitos anos.
Lief tocou o Cinturão que pesava sob sua camisa. Mas, antes que pudesse responder, os corpos de Zeean e Peel enrijeceram.
— Há estranhos entrando no vale! — sussurrou Peel. — Estão andando depressa junto do córrego.
— Amigos? — indagou Fardeep ansioso.
— Não sabemos. Geralmente conseguimos pressentir a presença daqueles que mudam a forma, os Ols, e também de outros seres malignos. Mas essas mentes estão fechadas para nós.
A claridade diminuiu quando a neblina ficou mais espessa. Lief tomou uma decisão.
— Vamos encontrá-los. E conversaremos no caminho.
E assim, caminhando sobre a relva verde do vale, os companheiros contaram o segredo que haviam guardado por tanto tempo. Era estranho proferir aquelas palavras em voz alta. Mas Lief não teve receio quando os toranos viram o Cinturão.
— A ametista — Zeean sussurrou, tocando levemente a pedra roxa.
— A pedra de Tora, símbolo da verdade.
— A pedra de Tora? Como assim? — exclamou Jasmine.
— Ora, os toranos faziam parte de uma das sete tribos que ofereceram os seus talismãs a Adin quando o Cinturão de Deltora foi criado — Zeean contou.
— Certamente esse é o motivo pelo qual a ametista se encontrava no Labirinto da Besta, tão próximo a Tora — acrescentou Peel. — Uma vez tirada do Cinturão, a pedra desejou voltar a seu lugar de origem. Até onde pôde, influenciou a vontade do Ak-Baba que a carregava. Talvez...
Duas pessoas viraram a curva próxima ao riacho. Um deles gritou e se pôs a correr. Perplexo, Lief constatou que se tratava de Dain e que o homem que o acompanhava era Perdição.
— Dain! — Perdição chamou. O rapaz olhou para trás com uma expressãode culpa, tropeçou e diminuiu o passo.
— Ora, esse garoto é muito parecido com um de nós — Zeean comentou. — Os cabelos, os olhos...
— A mãe de Dain tinha sangue torano — revelou Lief. — Os pais dele foram levados pelos Guardas Cinzentos há um ano. Agora ele trabalha com Perdição, na Resistência.
Ambos os visitantes estavam agora parados, muito quietos. Perdição observou a nuvem que pairava sobre sua cabeça.
— Está tudo bem, Perdição — avisou Fardeep. — Os seus amigos estão em segurança. A névoa serve apenas para a nossa proteção.
Cautelosamente, Perdição se aproximou. Ele sondou o rosto de Fardeep e sua expressão endureceu.
— Você! — rosnou ele, tocando a espada.
— Não ! — exclamou Lief. — Perdição, este é Fardeep. Ele não é mais o Guardião, nosso inimigo.
Pela primeira vez desde que Lief conhecera Perdição, este pareceu desconcertado.
— Você tem muitas explicações a dar — balbuciou ele.
— E você, também — ajuntou Barda bruscamente. — Por que guardou para si mesmo o que sabia sobre este lugar?
— Eu os alertei sobre o Vale dos Perdidos com todos os meus argumentos! — Perdição vociferou, recobrando um pouco da velha atitude. — Teria adiantado contar que eu tinha estado aqui? Não acredito! Vocês teriam concluído que, se eu tinha conseguido escapar, vocês também conseguiriam.
— Talvez — disparou Jasmine. — Mas você leva esse sua fixação pelo segredo longe demais, Perdição! Por que não disse que achava que o Guardião era o rei Endon?
Ignorando o sufocado grito de horror de Dain, Perdição sorriu tristemente.
— Até mesmo eu alimento alguns bons sentimentos. Quando deixei este vale amaldiçoado, jurei que por meus lábios o meu povo nunca saberia em que o seu rei tinha se transformado. Eles já sofreram bastante. Era muito melhor, pensei, deixá-los acreditar que ele estava morto.
— E assim você fez o jogo do Senhor das Sombras — afirmou Lief com calma. — Ele quer que o rei seja esquecido para que o controle sobre Deltora nunca possa ser tomado de suas mãos.
Perdição recuou como se tivesse recebido uma bofetada. Lentamente, ele esfregava a testa com as costas da mão, ocultando os olhos. Dain tinha os olhos parados, o rosto totalmente inexpressivo. Mas a Lief pareceu que por trás da aparente máscara de tranqüilidade havia sentimentos conflitantes.
Após um longo momento, Perdição baixou a mão e olhou diretamente para Lief, Barda e Jasmine.
— Acho que sei por que vieram até aqui. Devo concluir que vocês obtiveram êxito em sua busca?
Os companheiros permaneceram em silêncio.
— Talvez vocês sejam sensatos em não confiar em mim — disse ele com amargura, e uma sombra cruzou-lhe a face. — Talvez, em seu lugar, eu fizesse o mesmo — ele deu meia-volta. — Venha, Dain — ordenou ao rapaz que permanecia imóvel ao lado dele. — Não somos necessários aqui. Ou queridos, pelo que parece.
— Espere! — gritou Zeean, dando um passo à frente. Perdição voltou-se, a expressão séria.
— Não podemos nos dar ao luxo de alimentar suspeitas e rivalidades neste momento — disse a mulher, o corpo muito ereto. — Unidos, na época de Adin, expulsamos o Senhor das Sombras e suas abomináveis hordas de nossas terras. Unidos, podemos fazê-lo agora.
Ela se voltou para Lief, Barda e Jasmine.
— A época de segredos entre amigos ficou no passado — disse com firmeza. — Vocês estão sendo caçados e não sabem qual deve ser o seu próximo passo. Precisamos dos talentos e da experiência de todos que estão envolvidos com nossa causa. Agora, finalmente, é momento de confiarmos uns nos outros.
O grupo retornou à clareira ao lado da cabana de Fardeep. Ali, enquanto abelhas zumbiam entre as flores e o sol mergulhava no céu, a história foi contada mais uma vez. Quando, finalmente, Lief mostrou o Cinturão, Dain abafou uma exclamação e recuou trêmulo.
— Eu sabia que vocês tinham um objetivo poderoso — sussurrou. — Eu sabia!
Lief, porém, observava Perdição. A expressão do homem não mudara. O que ele estaria pensado?
— Parte do que vocês me contaram, eu já imaginava — disse ele por fim. — Ninguém que viajou por essas terras, como eu, poderia ter deixado de ouvir a lenda do Cinturão de Deltora. Cheguei a acreditar que vocês o estavam procurando, mas não tinha idéia se seus motivos eram bons ou maus.
O rosto de Perdição endureceu.
— Lamento ter suspeitado de que vocês estivessem trabalhando contra a nossa causa. Mas... — ele correu as mãos magras e morenas pelos cabelos emaranhados. — Será verdade que essa... essa lenda que se transformou em realidade... pode ajudar Deltora? Talvez, há muito tempo, nos anos que estão ocultos nas sombras de minha memória, eu tivesse aceitado tal história. Mas agora...
— Você deve acreditar! — explodiu Jasmine. — O próprio Senhor das Sombras teme o Cinturão. É por esse motivo que as pedras foram roubadas e escondidas, para começar.
— Quantas pedras o Senhor das Sombras sabe que vocês têm? — indagou Perdição pensativo.
— Temos grandes esperanças de que ele acredite que ainda estamos para chegar à Montanha do Medo, ao Labirinto da Besta e a este vale — respondeu Lief.
— Esperanças não servem como base para um planejamento — Perdição retrucou áspero.
Lief sentiu uma onda de irritação. E não apenas ele.
— Sabemos disso tão bem quanto você, Perdição! — Jasmine exclamou zangada. — Ninguém teria mais prazer em receber certas informações do que nós.
Zeean olhou de um para outro, suspirando, e ergueu-se.
— Vamos descansar, agora — recomendou ela. — Nossas mentes estarão mais aguçadas pela manhã.
Quando ela e Peel deixaram a clareira lentamente, Perdição ergueu os ombros e foi até onde se encontravam os seus pertences. Dain correu atrás dele. Fardeep retornou à cabana para começar a preparar a refeição da noite.
— Perdição é um aliado desagradável — murmurou Barda. — Mas ele está certo em querer fatos em vez de esperanças.
— Então, nós vamos lhe dar fatos! — respondeu Jasmine irritada.
— Lief precisa usar o restante da água da Fonte dos Sonhos.
Lief assentiu devagar. Eles vinham guardando a água para quando fosse realmente necessária, e era evidente que esse momento havia chegado. Se ele visitasse o pai aprisionado novamente, o perverso Fallow poderia ir até a cela e, então, Lief poderia descobrir o que o Senhor das Sombras sabia. Mas e se Fallow não aparecesse?
Lief sentiu o coração confrangido ao constatar o que deveria ser feito. Ele não podia se arriscar a visitar o pai ou a mãe. Em vez disse, deveria usar a água mágica a fim de espiar o próprio Fallow.
Muito mais tarde, Lief achava-se imóvel na escuridão. Suas pálpebras estavam pesadas, mas a mente lutava contra o sono. Ele tinha medo do que poderia ver. Quem era Fallow? O que era ele? Lief pensava que sabia. As palavras que o ouvira dizer ao pai ecoavam em sua mente:
...quando uma pessoa morre, há sempre alguém para tomar o seu lugar. O Mestre gosta deste rosto e forma. Ele decidiu repeti-los em mim...
Quando as ouviu pela primeira vez, Lief não soube o que queriam dizer. Agora ele as entendia bem demais.
Fallow era um Ol e talvez, com quase toda a certeza, um dos Ols de Grau Três, dos quais Perdição ouvira falar nas Terras das Sombras. O triunfo da arte perversa do Senhor das Sombras, um Ol de tal modo perfeito, tão controlado, que ninguém poderia dizer que não era humano. Um Ol capaz de imitar objetos inanimados e seres vivos. Um Ol cuja maldade e poder superava tudo o que Lief podia imaginar.
Prandine, o conselheiro-chefe do rei Endon, tinha sido um deles, disso Lief tinha certeza. Fallow, feito à sua imagem, assumira o trabalho do Senhor das Sombras de onde Prandine o havia deixado.
Lief virou-se inquieto. A rainha Sharn havia matado Prandine, jogara-o da janela da torre do palácio para a morte. Isso significava que Ols de Grau Três pagavam um preço por sua perfeição. Eles morriam como seres humanos.
Ele fechou os olhos e obrigou a mente a se esvaziar. Chegara o momento de ceder à Água dos Sonhos, de visitar o mundo de Fallow.
Paredesbrancas, duras e reluzentes. Um som gorgolejante e borbulhante. A um canto, um vulto alto e magro, Fallow, trêmulo sob uma chuva de luz esverdeada e nauseante, os braços ossudos estendidos para o alto. A boca abria-se como os maxilares de uma caveira, os cantos cobertos de espuma. Os olhos haviam rolado para trás de modo que somente o branco podia ser visto reluzente, horrível...
Lief abafou um grito de pavor, embora soubesse que não poderia ser ouvido. Ele sentia o estômago revirar, mas não conseguiu desviar o olhar.
Tump! Tump!
Lief teve um violento sobressalto quando ouviu o som, como se o forte pulsar de um coração reverberasse pelo aposento.
A luz verde desapareceu. Os longos braços de Fallow penderam e a cabeça tombou para a frente.
Tump! Tump!
Lief cobriu os ouvidos com as mãos, mas o som ainda vibrava por todo o seu corpo, enchendo-lhe a mente, fazendo seus dentes bater. Contudo, o ruído parecia atraí-lo, chamá-lo. Ansioso, ele examinou o aposento, tentando descobrir de onde vinha.
E então ele a viu. Havia uma pequena mesa no centro do aposento. Uma mesa parecida com tantas outras, exceto pelo fato de que a superfície de vidro era grossa, curva e se movimentava como água agitada. Lief sentiu-se atraído para ela. A necessidade de olhar para a superfície em movimento, de responder ao chamado era irresistível.
Fallow ofegante estava saindo do canto aos tropeços e apanhou um pano de dentro da manga. Enxugou o rosto depressa, cambaleou até a mesa e inclinou-se sobre ela, fitando a sua superfície encrespada.
O som vibrante diminuiu aos poucos. As ondulações ficaram enfumaçadas e foram cercadas por uma borda vermelha. No centro do cinza e do vermelho, havia uma escuridão vazia.
Fallow inclinou-se mais ainda. Uma voz sussurrou da escuridão mortalmente calma.
— Fallow.
— Sim, Mestre. — Fallow tremia, a boca ainda manchada de espuma seca.
— Você está abusando de minha confiança?
— Não, Mestre.
— Você recebeu o Lumin para o seu prazer no exílio. Mas, se negligenciar os seus deveres por causa dele, ele lhe será tirado.
Os olhos de Fallow dispararam para o canto em que a luz verde caíra há pouco e então virou-se novamente para a superfície da mesa.
— Não estou negligenciando meus deveres, Mestre — choramingou.
— Então, que novidades tem para mim? O ferreiro confessou, finalmente?
Com o coração confrangido, Lief juntou as mãos e pressionou-as sobre o peito aterrorizado.
— Não, Mestre — respondeu Fallow. — Acho...
— Há alguém com você, escravo? — a voz sussurrou de repente. Aturdido, Fallow virou-se e examinou o aposento. Seus olhos opacos passaram por Lief, em pé atrás dele, imóvel, sem pestanejar.
— Não, Mestre — ele murmurou. — Como poderia haver? Conforme ordenou, ninguém entra neste quarto além de mim.
— Eu senti... algo. — A escuridão no centro das sombras em movimento se intensificou, como a pupila de um olho gigante.
Lief ficou imóvel como uma estátua, tentando manter a mente livre de pensamentos, prendendo a respiração. O Senhor das Sombras podia sentir a sua presença. Aquela mente perversa estava esquadrinhando a sala, tentando encontrá-lo. Lief podia sentir-lhe a hostilidade.
— Não... não há ninguém aqui. — Era estranho ver Fallow encolhendo-se de medo, os lábios cruéis tremendo.
— Muito bem. Continue.
— Começo a acreditar que o ferreiro realmente não sabe de nada — Fallow balbuciou. — Fome e tortura não o atingiram. Nem mesmo a ameaça de matar ou cegar a mulher o fizeram falar.
— E ela?
— Ela, com certeza, é mais forte do que o marido. Ela profere insultos aos torturadores, mas não diz nada de útil.
Sua mãe. Lief sentiu as lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto. Não ousou se mover para secá-las. Ele continuou parado, rígido, tentando conservar mente e coração dissociados.
— Então eles o fizeram de bobo, Fallow — sussurrou a voz vinda da escuridão. — Pois eles são os culpados... culpados de tudo que suspeitávamos. Não há dúvidas de que o filho deles é um dos três.
— O filho está com o rei? — indagou Fallow boquiaberto. — Mas o ferreiro riu quando sugeri isso. Riu! E eu poderia jurar que aquele riso foi real.
— E foi. O homem que está viajando com o rapaz não é Endon, mas um guarda do palácio chamado Barda. Certamente, Jarred divertiu-se com seu erro.
— Ele pagará por isso! — vociferou Fallow, o rosto retorcido pela ira.
— E a mulher também. Eles desejarão nunca ter nascido. Eu vou...
— Você não vai fazer nada! — O sussurro foi gélido, e Fallow ficou rigidamente imóvel.
— Talvez você tenha vivido tempo demais entre os camponeses, Fallow, e começa a pensar como eles. Ou talvez o uso excessivo de Lumin que recebeu de minhas próprias mãos tenha enfraquecido o seu cérebro.
— Não, Mestre, não!
— Então, ouça. Você é minha criação, cujo objetivo é cumprir a minha vontade. Faça exatamente o que lhe digo. Mantenha o ferreiro e a mulher em segurança. Eu preciso deles. Enquanto estiverem vivos, eles podem ser usados contra o rapaz. Se estiverem mortos, não teremos nenhuma influência sobre ele.
— Seres com sua aparência...
— Ele está com o grande topázio. Os espíritos de seus desventurados mortos irão aparecer para ele no momento em que deixarem o mundo. Ols iguais a eles não enganarão o rapaz.
Seguiu-se um silêncio. E então Fallow tornou a falar.
— Posso perguntar onde os três estão agora, Mestre?
— Nós os perdemos de vista. Por ora.
— Mas pensei que o seu...
— Não pense no que não é da sua conta, Fallow! Curiosidade é para humanos, não para seres iguais a você. Está entendido?
— Sim, Mestre. Mas eu não estava perguntando por mim, mas só por causa da preocupação com os seus planos. Os três podem, por algum milagre, restaurar o Cinturão. E isso vai... desagradá-lo.
As palavras foram proferidas com humildade, porém Lief acreditou ter visto uma pequena faísca de rebeldia nos olhos baixos.
É possível que o Senhor das Sombras também a tenha notado, pois a borda vermelha que circundava a massa cinzenta que não parava de girar pareceu alargar-se, e um tom astuto se fez sentir em sua voz.
— Eu tenho muitos planos, Fallow. Se um deles falhar, outro terá êxito. Se você cumprir minhas ordens à risca, cedo ou tarde ficará livre para se divertir à vontade com os pais do rapaz. E, quanto a Endon, se ele ao menos parasse de tremer de medo e rastejasse para fora de seu esconderijo...
Um calafrio percorreu o corpo de Lief.
— E os três? — Fallow perguntou ávido.
Ouviu-se uma gargalhada longa e baixa. As espirais vermelhas escureceram até atingir um tom escarlate.
— Ah, não. Os três, Fallow, serão meus.
Lief despertou, o coração aos saltos, o estômago dolorido. Tinha um gosto amargo na boca, o gosto do medo e do sofrimento.
Ele não sabia ao certo quanto tempo havia dormido. A luz da Lua ainda se insinuava palidamente por entre a nuvem torana, inundando a clareira com seu brilho suave e misterioso. Lief obrigou-se a ficar deitado, quieto até que o martelar de seu coração tivesse se acalmado. Então, em silêncio, a fim de não acordar os demais, ele acordou Barda e Jasmine.
Com a facilidade causada pela longa prática, eles despertaram de imediato, vigilantes e atentos, as mãos nas armas.
— Não! Não há perigo — sussurrou Lief. — Sinto perturbar seu descanso, mas tinha de falar com vocês.
— Descobriu alguma coisa! — Jasmine falou em voz baixa, sentando-se.
Lief assentiu. Olhou para onde Perdição e Dain estavam deitados e, baixando ainda mais a voz, contou o que tinha visto e ouvido. Ele se obrigou a contar tudo, mordendo o lábio para evitar o tremor da voz.
Os seus companheiros ouviram em silêncio até o final.
— Então, ele espera que caiamos em suas mãos — murmurou Barda. — Vamos cuidar disso!
Lief olhou para ele. Os punhos do homenzarrão estavam fechados e a expressão estava tomada pelo sofrimento e pela raiva. Jasmine pousou a mão no braço de Lief.
— Pelo menos, sabemos que, por enquanto, os seus pais estão em segurança — confortou ela comsuavidade. — E Perdição pode parar com suas zombarias. Nós estávamos certos. O Senhor das Sombras não tem certeza de onde estamos.
— E é evidente que também não sabe do paradeiro de Endon, Sharn e o filho — completou Barda. — Ele acha que nós o levaremos ao esconderijo do herdeiro.
— E talvez façamos isso mesmo — falou Lief baixinho, sentindo um frio no estômago. — Vocês não percebem o que mais descobrimos?
Os dois amigos o fitaram sem entender. Ele engoliu o mal-estar e prosseguiu.
— O Senhor das Sombras descobriu quem você realmente é, Barda. E ele também sabe o meu nome. Como pode ser? A menos...
— A menos que alguém na fortaleza da Resistência seja um espião! — sussurrou Jasmine de repente se dando conta da verdade. — Pois foi na fortaleza que o nome de Barda foi revelado a todos por aquele acrobata, Jinks. E, com certeza, Dain contou o nome de Lief e o meu enquanto estávamos presos. Ele não deve ter visto nenhum mal nisso.
— E alguém... — continuou Lief, mordendo o lábio — alguém na fortaleza fez contato com o Senhor das Sombras. Dain nos contou que Perdição suspeitava da presença de um espião na Resistência. Eis aí a prova.
— Glock! — Jasmine sussurrou com ódio.
— Ou o próprio Jinks — tornou Barda. — Pode ser qualquer um.
— Sim — Lief concordou, olhando novamente para as figuras adormecidas de Dain e Perdição. — Pode mesmo ser qualquer um.
Sem fazer ruído, os companheiros reuniram os seus pertences e esgueiraram-se para fora da clareira. Momentos depois já estavam caminhando ao longo do riacho em direção à saída do vale. Eles sabiam que seria tolice tentar fugir escalando o penhasco. As encostas cobertas de pedras soltas eram íngremes e escorregadias demais.
Estava frio e escuro sob as árvores. Havia toranos adormecidos por todo lado, em abrigos improvisados.
"O que eles pensarão quando acordarem e descobrirem que partimos?", pensou Lief. Contudo, ele e os companheiros não tinham outra escolha senão fugir. Ao seguirem o conselho bem-intencionado de Zeean, eles haviam revelado seu precioso segredo a duas pessoas cuja amizade agora estava longe de ser digna de confiança.
Lief lamentou amargamente não ter sido mais prudente.
"Não sabemos", Zeean havia sussurrado quando Fardeep havia perguntado se os visitantes do vale eram amigos ou inimigos.
Por que os toranos não podiam afirmar se Dain e Perdição eram pessoas de boas ou más intenções? Certamente porque um ou ambos tinham experiência em ocultar o que lhes passava na mente. Esse poderia ser um hábito totalmente inocente ou...
"Eu tenho muitos planos..."
O sussurro maligno girava na mente de Lief como uma névoa nociva.
Ele olhou para a frente e se deu conta de que chegavam à saída do vale. O espaço que os separava dos penhascos rochosos diminuía rapidamente. Eles se aproximavam da passagem estreita pela qual Perdição e Dain tinham chegado.
— Há algo atravessado na entrada do vale — sussurrou Jasmine. — Alguma coisa está bloqueando a passagem.
E, de fato, Lief também pôde ver um objeto enorme caído sobre o riacho. Quando se aproximou devagar, ele viu que se tratava de uma carroça. No banco do condutor, enrolado em um cobertor, estava um homem, roncando suavemente.
— Steven — Barda sussurrou. — Ele deve ter vindo com Dain e Perdição. Sem dúvida, ele vai segui-los até o vale se não retornarem dentro de um determinado prazo.
A carroça agigantava-se diante deles. As portas traseiras estavam pressionadas fortemente contra a parede rochosa. Eles teriam de passar pela outra extremidade, bem diante do nariz de Steven. Mas ele ainda roncava suavemente debaixo do cobertor e dificilmente despertaria.
Eles começaram a avançar. Um passo, dois...
Três passos, quatro...
O ronco cessou. Lief olhou para o vulto deitado sobre o banco. Ele estava em silêncio e absolutamente imóvel. Imóvel demais.
O coração de Lief pareceu congelar. Então, de repente, ouviu-se um terrível rugido, e o cobertor começou a se erguer como se o corpo em seu interior estivesse inchando e dobrando de tamanho.
— Aqui! — Uma voz vinda das árvores cortou o ar. Lief virou-se e viu Perdição acenando para eles.
No banco da carroça, algo rosnou como se fosse um imenso animal. A respiração quente e pesada ficou cada vez mais alta...
— Nevets, volte! — Perdição ordenou. — Sou eu, Perdição! Não há perigo! — Ele empurrou Lief, Barda e Jasmine bruscamente para trás das árvores e ficou em frente deles.
— Não há perigo! — gritou ele novamente.
Lentamente, os rugidos diminuíram. E, quando Lief conseguiu fixar os olhos na carroça outra vez, o vulto sob o cobertor havia retomado o tamanho normal. Enquanto ele olhava, o homem se virou para o lado como se estivesse se ajeitando para dormir novamente.
Perdição começou a empurrar os companheiros de volta pelo caminho por onde tinham vindo.
— Que tipo de jogo vocês acham que estão jogando? — sussurrou ele furioso. — Vocês querem morrer? Se eu não tivesse acordado e descoberto que tinham partido...
— Como iríamos saber que você tinha colocado o seu monstro de estimação para vigiar o vale? — devolveu Jasmine furiosa.
— E não somos livres para fazer o que queremos? — Lief fervia de raiva e medo.
Os olhos de Perdição se apertaram, então, ele se virou e começou a caminhar de volta ao riacho.
— Sugiro que vocês fiquem no vale por enquanto — disse ele sobre o ombro. — Nem mesmo eu me arriscaria a perturbar Steven outra vez durante uma hora ou duas. E Zeean e Peel estão muito ansiosos para vê-los. Parece que eles têm algo a lhes dizer.
O dia estava amanhecendo quando os companheiros voltaram à clareira. Zeean, Peel, Fardeep e Dain estavam reunidos ao redor de uma pequena fogueira e saboreavam um café da manhã composto de bolinhos quentes cobertos com mel das colméias de Fardeep. Todos ergueram o olhar quando os companheiros se aproximaram com Perdição, mas não fizeram perguntas.
"Talvez eles saibam que não receberão nenhuma resposta", pensou
Lief, sentando-se perto do fogo com Barda e Jasmine. Ele sentiu um misto de emoções: ressentimento por ter sido obrigado a voltar, curiosidade por aquilo que os toranos tinham a dizer, frustração diante do pensamento de que tudo o que fosse dito seria ouvido por Perdição e também por Dain. No entanto, Perdição os salvara de Nevets. Isso não significava que...
— Que bom que vocês voltaram — Zeean disse, empurrando o prato de bolinhos na direção dos recém-chegados. — Tivemos uma idéia que queremos discutir com vocês.
Ela fez uma pausa e franziu o cenho ao notar que Barda, Lief e Jasmine olharam para Perdição e Dain.
Lief agarrou o Cinturão que lhe rodeava a cintura. A calma da ametista e a força do diamante o invadiram. E, de repente, ele soube o que tinha de ser feito. Ele e os companheiros deveriam agir como se não alimentassem dúvidas a respeito dos aliados. Porém as informações que haviam obtido por meio do sonho deveriam ser mantidas em segredo a todo custo, pois elas eram o que de mais poderoso possuíam.
Ele sorriu para Zeean e apanhou um bolinho, aparentando despreocupação.
— O seu pai lhe contou que o Cinturão o conduziria até o herdeiro, Lief. Mas o seu pai sabe apenas o que leu. E talvez isso não seja tudo o que vocês precisem saber.
— O que quer dizer com isso? — Lief indagou sério. Ele deu uma mordida no bolinho, que estava quente e doce e se desfez em sua boca.
— O livro 0 Cinturão de Deltora é uma obra de ficção, não de aconselhamento — Peel afirmou ansioso. — O escritor não podia prever que um dia as pedras seriam arrancadas do Cinturão e não poderia saber o que fazer nessa situação.
— O Cinturão é um objeto dotado de grande mistério e magia — Zeean acrescentou. — As pedras foram recuperadas, mas talvez isso não seja o bastante.
Eles ouviram um som abafado vindo da extremidade do grupo. Dain inclinava-se para a frente como se quisesse falar.
— Dain? — Zeean chamou.
O rapaz corou como sempre ocorria quando a atenção se voltavapara ele.
— Eu estava pensando... na história de como o Cinturão foi feito — balbuciou. — E no que aconteceu depois.
Ele ficou em silêncio, olhando nervosamente para Perdição, que nada disse.
— E...? — Zeean encorajou. Os olhos dela denotavam o seu interesse. A pele de Lief começou a formigar, pois, de alguma forma, ele sabia que estavam prestes a descobrir algo muito importante.
Lief apanhou sua cópia de O Cinturão de Deltora e folheou-o. Não demorou a encontrar o que procurava... as palavras que contavam como o ferreiro Adin convencera cada uma das sete tribos a permitir que a sua pedra fosse adicionada ao Cinturão.
 No início, as tribos se mostraram desconfiadas e cautelosas, mas, uma a uma, desesperadas para salvar suas terras, concordaram. Assim que cada pedra era colocada no Cinturão, a tribo ficava mais forte. Mas as pessoas mantiveram essa força em segredo e esperaram pelo momento certo.
 Quando, finalmente, o Cinturão ficou completo, Adin o prendeu ao redor da cintura, e ele brilhou como o sol. Então, todas as tribos se uniram a Adin para formar um grande exército, e juntos expulsaram o inimigo de suas terras.
Lief leu o trecho devagar, em voz alta.
— A vitória dependeu não só do Cinturão, mas da união das sete tribos e da lealdade para com Adin — Peel disse devagar, quando a leitura terminou. — É nisso que você está pensando, Dain?
O rapaz assentiu. Perdição o fitou com curiosidade.
— Ora, você é um estudioso e tanto, Dain — ele comentou zombeteiro. — Como o filho de um fazendeiro aprendeu tanto sobre a história de Deltora?
Dain hesitou, mas não se deixaria intimidar.
— Os meus pais me ensinaram — disse com tranqüilidade. — Eles nunca perderam a esperança de que algum dia Deltora seria libertada. Eles disseram que essa história não deveria ser esquecida.
Perdição deu de ombros e se virou, mas Lief imaginou ter visto um brilho diferente nos olhos escuros. Seria raiva? Arrependimento? Ou alguma outra coisa?
— Seus pais eram pessoas sábias, Dain — Zeean disse. — Sua mãe tinha sangue torano, não é mesmo? Como ela se chamava?
Dain pareceu estremecer.
— Ela se chama Rhans — ele disse tão baixo que Lief mal pôde escutar. — No presente, não no passado. Por que fala como se ela tivesse morrido?
— Eu sinto muito — Zeean se desculpou perturbada. — Não quis...
— Então as sete tribos se uniram a Adin e o Cinturão — rosnou Barda. — Que importância tem isso para nós?
— Quem sabe? — Perdição murmurou. Ele se ergueu e afastou-se um pouco do grupo, voltando-me as costas. Dain olhou para Lief desesperado.
— Você certamente recebeu ajuda em sua jornada, Lief — disse ele em voz baixa. — Em toda Deltora, você conheceu pessoas dispostas a desafiar o Senhor das Sombras. Tenho certeza de que elas o ajudarão novamente. Eles o ajudarão a... — ele olhou de relance para Perdição e, novamente, sua voz pareceu falhar.
— Acho que Dain acredita que a união de Deltora faz parte da magia do Cinturão — comentou Lief, respirando fundo. — Dain acha que devemos reunir as sete tribos mais uma vez.
Jasmine foi a primeira a romper o silêncio.
— Mas as sete tribos existiram antigamente, pelo menos, foi isso que me contaram. É provável que elas tenham desaparecido há muito.
— Não, elas não desapareceram — Zeean contou. — Certamente, muitos em Deltora não saberiam dizer de que tribo descendem. A tribo de Del, cuja pedra era o topázio, espalhou-se por todo o reino. O mesmo aconteceu com outras tribos.
— Mas algumas permaneceram unidas — ajuntou Peel. — Os toranos, por exemplo. E os Gnomos do Medo.
— Os Gnomos do Medo eram uma das sete? — O coração de Lief começou a bater forte.
— Isso mesmo — Zeean assentiu. — A grande esmeralda era o talismã dos gnomos.
Lief sacudiu a cabeça atônito. Fa-Glin e Gla-Thon nada disseram a esse respeito. Será que desconheciam o fato? Ou eles simplesmente decidiram manter segredo até que chegasse o momento adequado?
Lief procurou o presente de despedida dos gnomos em seu bolso, apanhou a pequena caixa feita com madeira Boolong e a abriu.
— Se mandarmos este sinal, os gnomos virão — disse ele em voz baixa, enquanto todos fitavam admirados a ponta da flecha dourada.
— Vocês realmente têm amigos poderosos — sussurrou Peel.
— Já temos três tribos — ajuntou Fardeep com satisfação. — E as outras?
— Os Ralads são uma raça antiga! — Barda exclamou. — Será que eles, talvez...
— Sim — Zeean concordou. — Vocês os conhecem?
— Um deles, Manus, nos ajudou a encontrar o rubi no Lago das Lágrimas — contou Barda. — O rubi deve ter sido a pedra dos Ralads.
Lief remexeu o bolso mais uma vez, desta vez à procura de lápis e papel.
— E o povo de D'Or? — Jasmine indagou.
— Seus ancestrais chegaram a Deltora vindos do outro lado do oceano — disse Perdição por sobre o ombro. — Isso foi há muito tempo, mas depois da época de Adin e das sete tribos.
"Então ele está ouvindo, afinal", pensou Lief acrescentando a informação à lista que começara a fazer. "Ele finge mostrar que isso é tolice, mas não consegue se afastar."
— O povo das Planícies fazia parte de outra tribo — contou Zeean. — A pedra deles é a opala. E havia a tribo dos Meres na parte superior do Rio Largo, e além...
— Cujo talismã era o lápis-lazúli! — interrompeu Lief ainda escrevendo.
— A última das sete tribos, os Jalis — Zeean prosseguiu assentindo -vivia nessa região. Eles eram a mais selvagem de todas e eram grandes guerreiros. A pedra deles era o diamante.
Lief mostrou a lista.
	Tribo
	Pedra
	
	Onde foi encontrada
	1. Del
	Topázio (lealdade)
	
	Florestas do Silêncio
	2. Ralads
	Rubi (felicidade)
	
	Lago das Lágrimas
	3. Planícies
	Opala (esperança)
	
	Cidade dos Ratos
	4. Mere
	Lápis-lazúli (pedra celestial)
	
	Dunas
	5. Gnomos do Medo
	Esmeralda (honra)
	
	Montanha do Medo
	6. Tora
	Ametista (verdade)
	
	Labirinto da Besta
	7. Jalis
	Diamante (pureza e força)
	
	Vale dos Perdidos
— Eu senti que estávamos sendo guiados em toda nossa busca — contou Lief. — Agora tenho certeza disso. Nós conhecemos membros de todas as tribos.
— Exceto da última: os Jalis — ajuntou Jasmine. — Não vimos ninguém em nossa vinda para cá.
— Não havia ninguém para ser visto -respondeu Perdição, virando-se para eles. — Quando o Senhor das Sombras chegou, os Jalis defenderam as suas terras ferozmente. Mas mesmo eles não tiveram a menor chance contra os Guardas Cinzentos. Eles foram massacrados, nem as crianças foram poupadas. Somente algumas escaparam.
— Então você também sabe um pouco de história, Perdição — comentou Jasmine atrevida.
— O bastante para afirmar que, se vocês pretendem formar um exército com os Jalis, ficarão extremamente desapontados — Perdição retrucou, a expressão sombria.
— Não queremos exércitos — Zeean disse. — Exércitos seriam vistos e destruídos de imediato. Nós só precisamos que sete almas, descendentes genuínas das tribos que permitiram que os seus talismãs fossem reunidos para o bem de todos, coloquem as mãos no Cinturão e renovem o juramento de lealdade para com Deltora.
— Isso! — exclamou Lief, sentindo uma grande onda de esperança.
Dain nada disse, mas os seus olhos brilhavam.
— Temos toranos em abundância — disse Barda. — Lief e eu somos de Del. Conhecemos Ralads e Gnomos do Medo. Mas e quanto ao povo das Planícies? Os Meres? Isso sem falar...
— Eu pertenço à tribo dos Meres — Fardeep anunciou tranqüilo. Ele ergueu o queixo e todos os olhares se voltaram para ele. — Rithmere tem sido o lar de minha família desde antes dos tempos de Adin.
— E o povo das Planícies? — Peel perguntou.
— O povo de Noradz deve descender da tribo das Planícies — Jasmine murmurou. — Temos uma amiga entre eles... Tira.
— Tira certamente seria morta se tentasse escapar de Noradz — afirmou Barda com franqueza. — Dain? É possível que o seu pai descenda do povo das Planícies?
— Não — Dain respondeu com voz rouca. — A nossa fazenda ficava a leste,não muito longe daqui. Os parentes de meu pai eram de Del. Mas... — Ele lançou um olhar suplicante para Perdição. Este suspirou, retornou ao grupo e sentou-se com um gemido cansado.
— Você falou que o destino o guiou — ele disse a Lief. — Acho difícil acreditar nesse tipo de coisa. Mas, por acaso, há um descendente do povo das Planícies aqui perto. A família dele é... incomum, mas faz parte da tribo, com certeza. Sei que ele estaria disposto a ajudar. Ele... e o seu irmão.
— Steven? — perguntou Lief, o desânimo tomando conta dele.
— E Nevets. — O rosto de Perdição se iluminou com um sorriso zombeteiro. — Pois você não pode ter um sem o outro.
— Melhor ainda! — Fardeep exclamou animado.
Barda, Lief e Jasmine se entreolharam, pois não tinham muita certeza disso.
Contudo, Fardeep já falava novamente.
— Agora, só falta encontrarmos um descendente dos Jalis.
— Acho que você pode nos ajudar aqui — Zeean falou, voltando-se para Perdição. — Acho que a história dos Jalis lhe foi contada por alguém que você conhece. Um dos Jalis que escapou. Não é verdade?
— De fato, é, sim. — O sorriso de Perdição se alargou. — E, se vocês o querem, vocês o terão. Não tenho dúvidas de que ele vai animar os acontecimentos, quase tanto quanto Steven.
— É mesmo? — Fardeep indagou radiante.
— Ah, sim. Ele é um camarada simpático — Perdição brincou. — Um cara simpático chamado Glock.
Barda, Lief e Jasmine deixaram escapar um grito de horror.
— Não podemos chamar Glock! — Jasmine disparou.
— Então, receio que não possamos ter um membro da tribo dos Jalis
— Perdição retrucou. — Glock é o único que conheci. Acho que os outros que escaparam já morreram. E essa também é a opinião de Glock.
— Então, seja qual for a atitude desse Glock, precisamos pedir-lhe que se junte a nós — Zeean concluiu com calma. — Onde ele está agora?
— Em Withick Mire, uma fortaleza da Resistência perto de Del
— Perdição informou, suspirando. Ele estava causando problemas onde estava antes. Withick Mire é menos... isolado.
— Então, temos sete pessoas — Zeean disse. — Agora, até mesmo você, Perdição, deve admitir que estamos sendo guiados.
As linhas no rosto duro de Perdição se aprofundaram. E ele pareceu chegar a uma decisão.
— Certa vez você falou que nós nos uniríamos para lutar por Deltora quando o momento certo chegasse — ele disse a Barda. — Parece que esse momento é agora. Talvez não da maneira que eu teria escolhido, mas...
— Talvez a gente nem queira a sua ajuda! — Jasmine disparou.
— Você já pensou nisso?
— Não posso dizer que pensei — murmurou Perdição. — Eu não acharia que vocês seriam tão tolos.
— De fato, não seríamos — replicou Barda, lançando a Jasmine um olhar carrancudo que a mandava calar-se.
A boca de Perdição torceu-se num sorriso estranho.
— Então, vamos fazer os nossos planos — disse ele. — Primeiro, precisamos enviar mensagens secretas para Raladin e a Montanha do Medo.
— Como? — Jasmine quis saber.
— Deixe isso comigo — ofereceu Perdição. — A Resistência também tem amigos úteis. Eu sugiro que o local da reunião seja Withick Mire.
Lief sentiu-se invadido pela inquietação. Por que Perdição os queria tão próximos de Del e de seu maior perigo?
"Porque Withick Mire é uma fortaleza da Resistência", a voz da suspeita sussurrou em sua mente. Porque ali, a palavra de Perdição é lei.
— Parece que todos esses esforços serão em vão se não conseguirmos encontrar o herdeiro — Perdição ajuntou, suspirando. — Portanto, quanto mais perto estivermos de seu possível esconderijo, melhor. Endon e Sharn viajaram de Del a Tora, mas eles não poderiam ter se afastado muito antes de receber a mensagem dos toranos recusando refúgio. Imagino que ela tenha sido mandada imediatamente.
Zeean e Peel assentiram, os rostos obscurecidos pela terrível lembrança do juramento quebrado de Tora. Contudo, Perdição não tinha tempo para emoções.
— O reino estava tomado pelo perigo — continuou ele. — A rainha esperava um filho. É muito provável, então, que o casal tivesse procurado refúgio nas redondezas, em algum lugar entre Del e o Vale dos Perdidos.
Um calafrio percorreu o corpo de Lief. A busca os tinha levado a descrever um enorme círculo e os trouxera de volta à área onde provavelmente se encontrava o herdeiro, em algum lugar a oeste de Del. Um local calmo, em que Endon e Sharn pudessem ter criado o filho sem ser notados.
Algo lhe remoía o fundo da memória. A recordação de algo que tinha ouvido, não muito tempo atrás. Mas ele não conseguia se lembrar...
— Certamente é melhor ficarmos aqui — Fardeep argumentava. — Se Lief, Barda e Jasmine saírem do esconderijo, eles chamarão a atenção do Senhor das Sombras.
— Podemos viajar escondidos na carroça de Steven — Jasmine sugeriu ansiosa para entrar em ação. — Além disso, apesar das dúvidas de Perdição, temos certeza de que as buscas do Senhor das Sombras estão concentradas no oeste.
— Talvez possamos nos garantir ainda mais. — Perdição foi até Peel. — Você tem quase a mesma altura e cor de pele de Barda. E entre o seu povo deve haver alguém que se pareça com esses dois jovens — ele disse, apontando para Lief e Jasmine.
Peel assentiu em silêncio, as sobrancelhas erguidas.
— Precisamos de iscas — Perdição explicou. — Que se exibam perto do rio Tor. Uma garota, um rapaz e um homem com um pássaro que voe ao lado deles. Steven pode fornecer roupas que...
— Não! É perigoso demais! — Jasmine exclamou.
— Será que somente vocês devem encarar o perigo? — Peel perguntou com delicadeza. — O plano é inteligente. E cabe aos toranos executá-lo. Se fomos obrigados a viver no exílio, podemos ao menos tentar reparar o grande erro que provocou essa situação.
— Um dia vocês poderão voltar a Tora — Lief gritou, o coração aos pedaços. — O perdão do herdeiro certamente derrubará a maldição.
— Talvez — Zeean disse séria, erguendo a cabeça. — Mas primeiro o herdeiro deve ser encontrado. E nós faremos nossa parte. — Ela olhou para Lief e Jasmine com cautela. — O seu amigo Steven não terá uma capa igual a essa — ela disse a Lief. — Esse tecido é muito raro, digno dos teares de Tora. Como a conseguiu?
— Minha mãe a teceu para mim — Lief tocou o tecido áspero do casaco.
Zeean ergueu as sobrancelhas surpresa, e Lief sentiu um misto de prazer e dor. Orgulho pelo trabalho da mãe. Medo por ela.
O resto do dia passou em meio a uma névoa. Quando Lief pensou nele depois, lembrou-se somente de algumas imagens:
Dain correndo para buscar Steven. Fardeep embalando comida. As faces ansiosas de Kris e Lauran, os jovens toranos escolhidos como iscas. Lauran com os sedosos cabelos sendo cacheados e emaranhados para ficarem parecidos com os de Jasmine. Os longos cabelos negros de Kris cortados do mesmo comprimento dos de Lief. A ponta da flecha dourada na palma da própria mão. Pássaros pretos esperando silenciosamente nas árvores.
E, então, a carroça de Steven rodando pelo vale. Steven assentindo, analisando a mensagem escrita por Barda. Steven sentado sozinho perto das colméias de Fardeep, murmurando e desenhando na terra. As abelhas deslocando-se pela névoa que cobria o topo das árvores e voando rapidamente na direção do Rio Largo...
Fim da tarde. Três pessoas movendo-se na clareira. Um homem grande barbado, um rapaz usando uma longa capa e uma garota de aspecto selvagem com um pássaro preto pousado no braço. Era como olhar no espelho. Perdição assentiu satisfeito. Zeean, muito orgulhosa e ereta, tinha os olhos escurecidos pelo medo. Peel, Kris e Lauran abraçavam os familiares antes de partir e iniciar a perigosa jornada...
Noite. O ar pesado, dificultando a respiração. O adormecer difícil e os sonhos. Sonhos sobre uma busca desesperada. Sobre pernas que não conseguiam correr. Sobre mãos atadas e olhos vendados. Sobre faces veladas e máscaras sorridentes que deslizavam para o lado e revelavam rostos horrivelmente desfigurados. E, estendendo-se sobre tudo, uma massa rastejante escarlate e cinzenta, o centro escuro pulsandoperversamente.
Chamando-o.
A carroça sacolejava na estrada irregular. O seu interior estava escuro e abafado. Lief, Barda e Jasmine ficaram sentados, horas a fio, ouvindo o tilintar dos arreios, o ranger das rodas e o som de duas vozes que cantavam.
Estou espiando um
Ol-io Ol-io, Ol-io? 
Olá, Ol-io cambaleante! 
Você não me incomoda!
O grupo havia decidido que atrairiam muita atenção se viajassem todos juntos. Dain, Perdição, Fardeep e Zeean viajariam pelo interior.
— Steven e Nevets são mais do que capazes de defender vocês, se necessário — Perdição havia dito.
Lief tinha certeza de que era verdade. Ainda assim, sua pele se arrepiava ao pensar nos dois estranhos irmãos cantando juntos no banco do condutor na frente da carroça.
Barda, como soldado treinado que era, aproveitou a oportunidade para dormir. Encostado a uma pilha de tapetes, ele cochilou tão tranqüilamente quanto se estivesse numa cama confortável. Mas Jasmine estava bem desperta. Kree furioso encontrava-se pousado ao seu lado, as penas eriçadas. Filli dormia dentro de seu casaco. Ela fechou a cara quando as vozes se ergueram mais uma vez.
— Não há nada de errado em estar contente — ela murmurou. — Mas eles precisam cantar essas bobagens?
Lief assentiu, concordando. Apesar disso, ele se flagrou cantarolando os versos bobos.
Tempo de parar e tomar ar. 
Ol-io, Ol-io
Árvores adiante, o céu está claro 
Não há mais nenhum Ol-io!
Lief sentou-se ereto e arregalou os olhos. De repente, ele se deu conta de que a canção estava longe de não ter sentido. Steven estivera enviando-lhes mensagens o tempo todo!
— Logo poderemos sair e esticar as pernas — ele disse a Jasmine alegremente. — Há árvores adiante e nenhum sinal de Ols ou Ak-Babas.
Jasmine olhou-o fixamente, a expressão carrancuda se acentuando. Evidentemente, ela achou que ele estava endoidecendo.
Longe dali, uma mulher velha e rechonchuda, o rosto tão vermelho e enrugado quanto uma maçã murcha, estava inclinada sobre a água límpida. Ao redor de sua cabeça, fervilhava uma nuvem escura de abelhas.
A mulher ouvia atentamente. Enormes peixes prateados flutuavam na água debaixo dela. Bolhas saíam de suas bocas, formando estranhos desenhos na superfície.
Finalmente, a mulher endireitou o corpo e se virou, ajeitando os muitos xales nos ombros. As abelhas giravam diante dela. Os desenhos que elas formavam no ar imitavam os das bolhas que marcavam a água.
— Então, vocês aprenderam bem a lição — a mulher disse a elas — passada adiante por suas irmãs abelhas do sul aos peixes e agora para vocês. Podem ir, então!
E as abelhas partiram, uma flecha negra zunidora, levando a mensagem adiante.
Jinks saiu da fortaleza da Resistência no oeste e estremeceu sob o vento gelado. O céu estava límpido, exceto por um bando de aves negras, manchas pretas pintando o azul. Jinks protegeu os olhos com as mãos e os observou.
Pássaros? Ou Ols? Normalmente, Ols não voavam tão alto. Mas, por outro lado, o bando se dirigia para a Montanha do Medo. Que pássaro de verdade iria para lá?
De repente, Jinks viu uma pequena faísca no centro do bando, como se o sol tivesse atingido algum objeto de metal. Mas por que um Ol, ou um pássaro, principalmente, estaria carregando tal coisa?
Meus olhos estão me enganando. "Devo estar cansado", Jinks pensou. Bocejando, ele voltou para a caverna.
Tom, o comerciante, servia cerveja a Guardas Cinzentos na pequena taverna que mantinha ao lado da loja.
— Há muitos de vocês por aqui hoje — disse ele como quem não queria nada. — Alguns de seus colegas também passaram por aqui ontem.
Um dos guardas resmungou, apanhando a caneca cheia até a borda.
— Eles têm ordens de ir para o oeste — ele informou. — E muitos outros também. Nós devemos ficar no noroeste, o que é muito pior. Vamos perder toda a ação.
— Ação? — O rosto magro de Tom abriu-se num largo sorriso enquanto ele distribuía as canecas aos demais.
— Você fala demais, Teep 4 — grunhiu um segundo guarda.
— O velho Tom não é uma ameaça! — o comerciante se defendeu, erguendo as sobrancelhas. — Ele não passa de um pobre comerciante.
— E um pobre taverneiro também! — resmungou Teep 4. — Esta cerveja tem gosto de água suja.
Em meio às altas gargalhadas, a campainha da loja soou. Tom se desculpou, atravessou uma porta e fechou-a atrás de si. Um homem e uma mulher aguardavam no interior da loja, bem agasalhados contra o frio.
— Olá! O que posso fazer por vocês?
Sem dizer palavra, a mulher desenhou uma marca na poeira do balcão.
Tom apagou a marca casualmente ao apanhar um pacote debaixo do balcão.
— Acho que esta é a sua encomenda — disse ele. Entregou o pacote à mulher e, então, lançou um olhar rápido para a porta da taverna.
— Tenho novidades — ele murmurou. Os clientes inclinaram-se para a frente e ele começou a falar rapidamente.
No alto da Montanha do Medo, Gla-Thon viu um bando de pássaros pretos se aproximando e ajustou uma flecha em seu arco.
Os gnomos ainda colocavam garrafas de vidro cheias na base da montanha para serem levadas às Terras das Sombras pelos Guardas
Cinzentos. O fato de que o líquido das garrafas agora era água misturada à seiva de árvores Boolong, em vez do veneno mortal, era algo que os guardas só descobririam quando tentassem usar as bolhas fabricadas com ele.
Talvez, esse momento tivesse finalmente chegado. Talvez, os pássaros pretos fossem o primeiro sinal de que o Senhor das Sombras tinha descoberto a traição dos Gnomos do Medo.
"Nesse caso, estamos preparados", Gla-Thon pensou séria. Ela escutou um farfalhar às suas costas e virou-se bruscamente. Mas era somente Prin, a mais jovem dos Kin.
— Pássaros! — Prin se espantou. — Pássaros pretos...
— Eu os vi — Gla-Thon resmungou.
O bando estava se aproximando. A flecha de Gla-Thon retesou a corda do arco. Então um dos pássaros separou-se do grupo e mergulhou em sua direção, levando no bico um objeto que, ao sol, emitia um brilho dourado.
E, mesmo antes de o pássaro aterrissar, Gla-Thon estava gritando. Gritando que o sinal tinha chegado.
Manus ergueu a cabeça da tarefa que realizava nos canteiros de verduras de Raladin para espantar as moscas que se aglomeravam ao seu redor. E, então, algo lhe chamou a atenção.
Os insetos não eram realmente moscas, mas abelhas. O ar parecia tomado por elas. Enquanto Manus observava, estirando as costas doloridas, franziu a testa.
As abelhas estavam agindo de modo estranho. Elas não estavam adejando ao redor das flores, mas zunindo no ar. Elas estavam se agrupando e formando desenhos. E os desenhos...
Manus ficou boquiaberto, e a pá caiu-lhe das mãos. Com seu longo dedo cinza-azulado, ele começou a repetir no chão os desenhos que as abelhas formavam.
Manus sentou-se sobre os calcanhares e leu o que tinha escrito. A mensagem era clara: Uma pessoa — viajar para — amigos — depressa. Pela liberdade!
Muitos dias se passaram. Dias lentos para Lief, Barda e Jasmine amontoados na carroça. Eles sabiam, a partir das canções de Steven, que Ak-Babas os haviam sobrevoado e que Ols de todas as formas os haviam observado enquanto a carroça passava. O veículo, porém, era uma visão conhecida para os Ak-Babas, e os Ols não se mostraram interessados. Eles tinham recebido ordens de ficar atentos, mas não àquilo.
A estrada se bifurca adiante 
Ol-io, Ol-iol
A noite chega, e estamos livres 
De Ol-io, Ol-ios!
Steven cantava novamente, informando as novidades.
Alguns minutos mais tarde, a carroça parou, as portas traseiras foram abertas e os companheiros saíram com dificuldade. O sol acabara de se pôr. Uma colina rochosa assomava diante deles e a estrada principal a rodeava e seguia para a direita. Outra trilha se abria para a esquerda. Um sinal havia sido colocado na bifurcação, e os dizeres deixaram o coração de Lief apertado.
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— Precisamos tomar a estrada para Del, mas será uma jornada para o desconhecido — Steven contou.— Não sei nada sobre ela, e Perdição também não. Ele sempre viaja pelo interior nestas paragens. Ele diz que as colinas que escondem a costa são traiçoeiras, mas ele as prefere.
— Eu também as preferiria — murmurou Jasmine.
— E eu também — Barda ajuntou. — Mas precisamos continuar escondidos. Se formos vistos aqui, as iscas que estão no oeste terão arriscado suas vidas por nada.
Lief olhava para a estrada de Del. Endon e Sharn, sem dúvida, a tinham percorrido ao sair da cidade na noite em que escaparam. Eles não teriam tentado ir pelo interior com Sharn tão perto de ter o bebê.
Ele tentou imaginar como teria sido. A estrada devia estar apinhada de gente, pois muitas pessoas fugiram de Del naquela noite. Ele se lembrou da voz triste do pai contando-lhe o que aconteceu.
— Sua mãe e eu ficamos fechados na ferraria durante todo o tumulto. Quando finalmente abrimos nossas portas, vimos que estávamos sozinhos. Amigos, vizinhos, antigos clientes, todos haviam desaparecido. Haviam sido mortos, capturados ou tinham escapado.
— Esperávamos algo desse tipo — a mãe acrescentou. — Mas a confusão foi pior do que imaginamos. Levou muito tempo para que a vida em Del recomeçasse. E, quando isso aconteceu, estávamos preparados. E muito gratos por estarmos a salvo com você, meu filho, pois você nasceu nessa época e foi uma luz em nossas vidas. Mas... — A sua voz forte tremeu. — Mas temíamos por aqueles que tinham fugido.
Os que tinham fugido.
Não reconhecidos em suas humildes roupas de trabalho, Endon e Sharn devem ter se perdido em meio à multidão em pânico. Eles certamente correram com os demais em direção ao oeste, sofrendo sabe-se lá que horrores. E, quando o pássaro preto que levava a mensagem de Tora os alcançou, eles devem ter percebido que não havia sentido em continuar.
O que teriam feito então? Saído da estrada. Encontrado um esconderijo. Endon sabia que o Cinturão nunca mais brilharia para ele. A única esperança de Deltora estava nas mãos do filho. Ele e Sharn tinham de achar um lugar em que o bebê pudesse nascer em segurança. Onde?
Lief foi despertado pela voz aguda de Jasmine.
— Lief! Precisamos encontrar um lugar para passar a noite.
O rapaz virou-se para a carroça. Entretanto, os seus pensamentos continuaram presos na época que precedeu o seu nascimento e nas duas pessoas desesperadas que procuravam refúgio e que ele nunca conhecera.
Ameaçava chover quando o grupo partiu no dia seguinte. O fato não incomodou os companheiros animados pela convicção de Steven de que chegariam a Withick Mire antes do pôr-do-sol. Contudo, ainda não tinham ido muito longe quando a voz dele lhes trouxe más notícias.
Estejam preparados para fugir ou lutar.
Ol-io, Ol-io!
Campo de carnívoras à direita,
À frente, Guardas-ios.
— O que é um campo de carnívoras? — Jasmine sussurrou, quando a carroça parou com um solavanco.
— Sei lá, mas não pode ser pior do que os Guardas Cinzentos — Barda resmungou. — E parece que eles estão logo adiante.
As portas da carroça foram abertas e Steven olhou para dentro.
— A estrada está bloqueada — ele sussurrou. — Os Guardas devem estar inspecionando todos os veículos que passam. — Steven ergueu um barril do canto enquanto Lief, Barda e Jasmine esgueiraram-se para fora. Eles não podiam ser vistos pelos Guardas porque a carroça parara em meio a uma curva. Mas assim que prosseguisse...
Lief procurou rapidamente um meio de escapar. De um lado, havia uma rocha alta e escarpada. Do outro, um campo cercado de colinas cobertas por densos bosques.
— Vão para as colinas — Steven murmurou. — Se tiverem sorte, os Guardas não vão perceber. Nós nos encontraremos mais adiante. Cuidado. As pedras são difíceis de...
Ele foi interrompido por um grito rouco que veio da estrada à frente. Steven bateu as portas e foi na direção deles, carregando o barril.
— Estou indo, senhores — ele avisou. — Tenho cerveja para vocês. Os companheiros ouviram-no subir ao banco do condutor, e a carroça começou a se mover.
Kree voejou na direção das colinas. Lief, Barda e Jasmine rolaram para a vala que margeava a estrada.
— Não vejo sinais de carnívoras, seja lá o que forem — Barda sussurrou, sondando o campo.
De fato, o campo parecia totalmente vazio. O único fato incomum era o tom verde vivo de uma grande quantidade de ervas daninhas grandes e achatadas. Como esteiras redondas feitas de círculos de folhas largas, elas cresciam muito juntas, quase sufocando a grama.
Lief observou a estrada. A carroça já estava muito perto dos Guardas. Havia dez deles, um grupo considerável. A estrada estava bloqueada por árvores caídas. Pilhas de lixo, barris vazios e caixas espalhavam-se por toda parte. Era evidente que os Guardas estavam de serviço ali há meses.
"Eles devem estar entediados, ansiosos por divertimento", Lief pensou desanimado.
— E o que temos aqui? — um dos Guardas gritou. — Um carrapato grande e feio e um cavalo que combina com ele! — Ouviram-se gargalhadas quando os seus colegas se reuniram ao redor da carroça, os olhares fixos em Steven.
— Agora! — Barda sussurrou.
Juntos, sob a proteção da capa de Lief, os amigos começaram a esgueirar-se em direção às colinas. Mas quase imediatamente Barda parou com um grito abafado de dor. No mesmo instante, Jasmine sufocou uma exclamação e caiu de joelhos.
Lief se virou, agachando-se para ajudá-los, mas ao apoiar a mão esquerda no chão, este cedeu e a mão foi puxada para baixo por algo que mordia e queimava.
A mão de Lief afundou no centro de uma das ervas achatadas que se alargava, sugando o seu braço, puxando-o para baixo...
Desesperado, Lief puxou o braço e se libertou. A mão estava coberta de sangue. O centro da planta abria-se como uma enorme boca de lábios flácidos e com manchas vermelhas. Horrorizado, Lief olhou para as fileiras de dentes cruéis que cobriam a garganta verde que mergulhava fundo na terra.
As plantas! Carnívoras! Steven pensou que sabíamos...
Ao seu lado, Jasmine lutava para livrar a perna presa enquanto Filli guinchava aterrorizado, tentando em vão ajudá-la, e Kree voava para junto dela. Barda se debatia em agonia e afundava atrás deles, ambas as pernas presas.
Lief segurou os braços de Jasmine e a puxou. A perna foi libertada, pingando sangue e, ao seu redor, outras carnívoras abriam suas bocas horrendas e enormes. Gritos animados vieram da estrada e, por um momento, Lief pensou que tinham sido vistos. Mas, quando olhou, viu que os Guardas estavam de costas para o campo reunidos em volta do barril, enchendo suas canecas.
— Barda! — Jasmine gritou com a voz sufocada. Barda estava preso ao chão. Seus braços e pernas estavam aprisionados. Ele esticava o pescoço enquanto lutava para manter o rosto afastado da boca verde, pulsante e ávida aberta bem abaixo dele. E a cada instante ele afundava mais...
"Por que não estou afundando?", Lief se perguntou. Ele olhou para baixo e constatou estar parado sobre um monte de grama clara que cobria uma pedra achatada. Steven começara a dizer algo sobre pedras...
As pedras são difíceis de... de ver!
Com um gemido de frustração, Lief viu manchas claras formando uma linha através do campo, como uma passadeira. Um caminho que seria sempre seguro porque, embora a grama pudesse crescer sobre as pedras, as carnívoras podiam somente crescer para o fundo da terra.
Ele e Jasmine estavam parados sobre pedras naquele momento. Barda, porém, encontrava-se em meio a uma agitada massa de um verde vivo, e a trilha de pedras serpenteava ao lado dele.
— Jasmine! Ande sobre as manchas claras. Elas são seguras! — Lief sussurrou. — Depois que Jasmine obedeceu a ordem de Lief, ele apanhou a corda do cinto e a seguiu.
Quando a alcançou, Jasmine golpeava ferozmente as plantas que prendiam Barda, mas elas apenas estremeciam e recuavam um pouco. Lief ajeitou a ponta da corda sob o peito do amigo e, então, inclinando-se perigosamente, puxou-a do outro lado e fez um nó, amarrando-a com força sob os braços do homenzarrão.— Barda, me ajude! — disse ele com dificuldade, puxando-o com todas as forças. E Barda, com um esforço final e angustiado, gemeu e arqueou o corpo.
Os braços dele foram libertados. As mangas do casaco estavam rasgadas em tiras e ensopadas de sangue. As bocas ávidas se abriam imensas, debaixo dele.
Com os dentes à mostra, repugnada, Jasmine começou a atacar as folhas ao redor das pernas aprisionadas de Barda. Novamente, Lief puxou a corda, mas desta vez o amigo pouco pôde ajudar. O sangue fluía livremente da carne ferida, e ele estava perto de perder a consciência. Mas, finalmente, com uma lentidão torturante, as suas pernas começaram a se soltar do solo, até finalmente ficarem livres.
Jasmine e Lief rolaram-no sobre as pedras e começaram a levá-lo em direção das colinas, carregando-o em alguns trechos, arrastando-o em outros.
O barulho vindo da estrada transformou-se num rugido animado. Os Guardas pensaram num novo tipo de diversão. Cinco deles mantinham Steven imóvel sob a ponta das adagas, e os outros cinco arrastavam o cavalo na direção do campo das carnívoras. O animal, percebendo o perigo, empinava-se e corcoveava, relinchando apavorado.
Os Guardas estavam animados. Steven gritava para que parassem. O enorme corpo moreno coroado de cabelos louros quase desaparecia em meio à multidão de uniformes cinzentos que não parava de se acotovelar.
— Jasmine! Mais depressa! — Lief pediu, o sangue gelando nas veias. As árvores não estavam longe. Alguns passos mais...
Então, ouviram-se urros assustadores. Lief olhou para trás e viu os Guardas caindo ao chão, as mãos apertando os olhos. Steven cambaleava para trás, enquanto uma luz amarela e ofuscante se desprendia de seu corpo como fumaça. E logo depois outro vulto assomou a sua frente, tomando forma no clarão. Um gigante dourado com uma crina selvagem feita de cabelos castanho-escuros.
— Nevets — Lief sussurrou.
O corpo do gigante estava coberto de pêlos dourados. Os seus olhos amarelos cintilavam com fúria impiedosa. Os dedos enormes exibiam garras marrons cruelmente curvas nas extremidades. Ele investiu na direção do cavalo apavorado e puxou-o para a segurança. E então, rugindo como um animal, ele começou a agarrar os Guardas que gritavam e se retorciam, sacudiu-os como se fossem bonecos e rasgou-os em pedaços.
Lief e Jasmine observavam paralisados de terror. Steven ergueu-se e os viu.
— Corram! — ele vociferou. — Depois que ele começa, não consigo fazê-lo parar. Sumam das vistas dele.
Seguros sob as árvores, Lief e Jasmine envolveram os graves ferimentos de Barda em ataduras, cobriram-no com cobertores e deram-lhe um pouco de mel Abelha Rainha. Mas a hemorragia não cessava e Barda não se movia. A chuva começou a cair intensa, gelada.
Desesperado, Lief procurou um abrigo. E então ele deixou escapar um grito de surpresa. Não muito longe, como uma resposta às suas preces, havia uma velha cabana de pedra, quase escondida pelos arbustos. Claro! Uma trilha de pedras que antes conduzia à casa de alguém.
Enquanto Kree voejava ansioso sobre eles, Lief e Jasmine levaram Barda até a cabana. O interior dela estava envolto na penumbra, pois as pequenas janelas estavam cobertas de sujeira. Do ambiente desprendia-se um desagradável cheiro de mofo, mas era seco, e a lareira estava repleta de gravetos e capim seco.
Eles arrastaram Barda para dentro, e Jasmine correu até a lareira. Momentos depois, o fogo ardia em seu interior. A madeira seca e altamente inflamável crepitava enquanto as chamas subiam e começavam a encher o pequeno aposento com uma luz bruxuleante.
E então Lief viu o que se encontrava a um canto.
Dois esqueletos estavam encostados à parede. Tiras de roupas ainda estavam presas aos ossos e cabelos aos crânios, de modo que Lief pôde constatar que se tratava de um homem e uma mulher que haviam rastejado até ali para morrer. Ele notou que aninhado nos braços da mulher, entre os farrapos de um xale, estava outro pequeno monte de ossos, os ossos de um bebezinho.
A testa de Lief ficou porejada de suor. Ele se obrigou a se aproximar. Havia algo caído aos pés do homem. Uma caixa de estanho achatada.
— Não! — gritou Jasmine, a voz cheia de medo. Mas Lief não parou. Ele apanhou a caixa e a abriu. Dentro dela, havia um pedaço de pergaminho com dizeres em preto. Ele se esforçou para ler, as palavras terríveis dançando-lhe diante dos olhos. Lief inspirou profunda e dolorosamente.
— O que é? — Jasmine sussurrou.
Lief leu o bilhete em voz alta. Sua voz soou fraca, irreconhecível.
Tudo está perdido. 
Tora me abandonou. Está muito frio. A comida que trouxemos de Del acabou e não há amigos que nos ofereçam mais. Sharn, minha amada esposa, está morta e nosso filho recém-nascido viveu apenas alguns dias a mais. Devo juntar-me a eles em breve, com prazer. A grandiosa linhagem de Adin termina comigo. Deltora deve submeter-se à sua sorte, assim como eu devo me submeter à minha. Endon
O último rei de Deltora
O bilhete amassado nas mãos, Lief olhou fixamente para os ossos. Ele não conseguia aceitar o que via.
O herdeiro de Deltora não estava seguro em seu esconderijo, esperando por eles. O herdeiro tinha morrido há muito tempo.
— Esse Endon não merecia ter sido rei — Jasmine disse com amargura. — Um homem fraco e teimoso, cheio de autopiedade. Isso é o que eu sempre temi.
— Você está sendo cruel, Jasmine! — Lief sussurrou com esforço. — Ele tinha perdido tudo que amava quando escreveu este bilhete. Ele estava desesperado.
— Ele foi o responsável por essa perda! — acusou Jasmine. — Se ele tivesse sido corajoso o bastante para depender de si mesmo pelo menos uma vez, eles teriam sobrevivido, como os meus pais fizeram. Há madeira aqui. Ouvi o som de um riacho. Há frutas silvestres e outros alimentos nos arredores.
Zangada, ela sacudiu a cabeça.
— Ah, mas não! Sempre esperando que os outros lhe segurassem a mão e facilitassem a sua vida. Ele nem mesmo tentou ajudar a si mesmo e à família. Assim, acabou nesse lugar ermo, morrendo de fome e frio, provocando a morte da mulher e do pequenino. — Os olhos dela brilharam com as lágrimas que caíam ao olhar o pequeno embrulho esfarrapado que repousava junto do seio da mulher.
— Nunca saberemos o que realmente aconteceu — disse Lief pesaroso. — Mas de uma coisa nós sabemos. Sem o herdeiro para usá-lo, o Cinturão não pode salvar Deltora.
O seu peito estava apertado, o estômago queimava. "Barda está morrendo", ele pensou. "Morrendo por uma causa que estava perdida antes mesmo de começar. E meus pais! Quanto eles não sofreram! E tudo por nada! O plano de meu pai para ajudar o amigo e esconder o herdeiro levou somente à morte e ao sofrimento. Quem lhe contara a mentira de que o Cinturão ficaria intacto somente enquanto o herdeiro vivesse?"
"Estava escrito no livro 0 Cinturão de Deltora?" Lief sondou a memória. Não! Ele tinha certeza absoluta de que o livro nunca mencionara nada parecido. Por que ele pensara nisso, então?
"Simplesmente porque acreditei no que meu pai me disse", pensou Lief desanimado. Como, sem dúvida alguma, o pai acreditara em outra pessoa. Prandine, talvez. Ou no próprio Endon. Ele baixou a cabeça desesperado.
A carroça balançava, os sinos nos arreios tilintavam. Mas Steven não cantava. No interior da carroça, Barda encontrava-se deitado entre Lief e Jasmine, que tentavam proteger o amigo ferido dos solavancos mais violentos.
Eles passaram uma hora terrível perto do fogo da cabana antes que Steven viesse procurá-los. Lief tremia, lembrando-se do que acontecera quando o homem vira os esqueletos e lera o bilhete.
A expressão de Steven ficou sombria. O peito dele começou a crescer e, de repente, ele fechou os olhos e pressionou os lábios.
— Não! Não! — Lief ouviu-o balbuciar enquanto se virava, batendo na parede de pedra com os punhos. E Lief sabia que ele estava lutando com Nevets, tentando manter o irmão selvagem sob controle.
Depois de alguns instantes, ele venceu a batalha. Steven voltou-separa eles, o rosto cansado, mas calmo.
— O que não tem remédio remediado está — ele disse sério. — Nosso dever agora é para com os vivos.
— Ah, isto é minha culpa — ele se censurou, inclinando-se sobre Barda. — Eu pensei que vocês soubessem do campo de carnívoras.
— Barda vai sobreviver? -perguntou Lief com dificuldade. Hesitante, Steven mordeu o lábio.
— Em Withick Mire, ele vai ficar aquecido e confortável — disse ele finalmente.
Ele se curvou e ergueu Barda tão facilmente como se o homenzarrão fosse uma criança e saiu da cabana sem olhar para trás. Lief e Jasmine o seguiram, ambos cientes de que ele não respondera a pergunta.
Eles caminharam em silêncio entre as árvores até onde começava a trilha de pedras e iniciaram a travessia entre o campo de carnívoras. A carroça encontrava-se parada mais adiante, o cavalo esperando ao lado. Árvores que haviam bloqueado a estrada haviam sido jogadas para o lado. As fogueiras, os mantimentos e o lixo, tudo tinha sido varrido para longe como que atingido por uma forte ventania.
Dos Guardas não havia sinal, exceto por algumas tiras de tecido cinza manchadas de sangue espalhadas aqui e ali. Com um calafrio, Lief se deu conta de que Nevets escolhera o caminho mais fácil para se livrar dos restos de suas vítimas. As plantas carnívoras mais próximas à estrada tinham sido bem alimentadas.
Horas mais tarde, um odor repulsivo se fez sentir no ar. O cheiro de podridão e deterioração se infiltrou na carroça até que o ar parado e empoeirado ficou dominado por ele. Jasmine franziu o nariz enojada.
— O que é isso? — ela sussurrou.
Lief deu de ombros e então endireitou o corpo enquanto a carroça sacolejava violentamente como se estivesse percorrendo terreno acidentado.
Ele olhou para Barda. As ataduras rudimentares que lhe envolviam as pernas e os braços estavam ensopadas de sangue. Ele tomara um pouco de água e, quando lhe deram um pouco de mel Abelha Rainha, ele o lambeu dos lábios. Mas não abriu os olhos, tampouco falou.
"O mel é tudo o que o está mantendo vivo", pensou Lief. "Mas por quanto tempo? Quanto tempo? Ah, espero que cheguemos logo a Withick Mire."
"Para que Barda possa ser tratado adequadamente. Para que os seus ferimentos possam ser lavados e ser cobertos por ataduras limpas. Para que", Lief se obrigou a pensar no assunto, "se Barda tiver de morrer, que o faça em paz e com conforto, numa cama quente, e não naquela carroça fria, sacolejante e malcheirosa."
Para sua surpresa, naquele exato momento a carroça parou. As portas traseiras foram abertas, e Lief e Jasmine saíram.
A chuva havia parado. O sol se punha, inundando o céu com uma luz opaca e alaranjada que iluminava uma cena estranha e horrível. A carroça se encontrava no alto de um grande monte de lixo. Montes gigantescos e malcheirosos de farrapos, ossos, móveis quebrados e utensílios domésticos, pedaços de metal torcidos e restos de comida em decomposição erguiam-se de todos os lados. Entre os montes, pessoas andrajosas e desafortunadas se curvavam e remexiam, procurando algo aproveitável entre os restos.
Lief virou-se zangado para Steven.
— Por que você nos trouxe para cá? — ele quis saber. — Precisamos levar Barda a Withick Mire!
Sem dizer palavra, Steven apontou para uma placa colocada exatamente ao lado de onde a carroça parara.
Bem-vindo à Cidade Fedorenta!
Withick Mire
Antes que Lief pudesse dizer qualquer coisa, um dos andrajosos catadores de lixo aproximou-se deles arrastando os pés e apoiando-se numa bengala. Um remendo preto cobria-lhe um dos olhos e um lenço protegia-lhe o nariz e a boca do mau cheiro. Ele se inclinou para eles, olhando de soslaio os recém-chegados com o olho saudável.
— O que vocês procuram, se é que posso perguntar? — ele indagou com uma voz que mais parecia um grasnido. — Aqui, no meio dos restos de Del?
Lief e Jasmine hesitaram sem saber o que dizer.
— Talvez vocês estejam procurando abrigo? — o homem continuou. — Então, venham comigo. Todos são bem-vindos em Withick Mire.
Ele se afastou mancando, abrindo caminho entre os montes de lixo com a facilidade proporcionada pela longa prática. Sem saber o que mais fazer, os companheiros o seguiram, Lief e Jasmine a pé, Steven conduzindo o cavalo com cuidado em meio àquele labirinto.
À medida que caminhavam, eles passaram por vários barracos deploráveis, feitos de pedaços de madeira, lata e tecido. Pessoas agachavam-se do lado de fora dessas moradias, separando as sobras recolhidas no dia ou acendendo fogueiras para cozinhar. Alguns sorriram para os estranhos, outros não se deram ao trabalho de sequer erguer os olhos.
Nos fundos de um dos montes maiores, fora construído um abrigo mais espaçoso. O catador de lixo acenou, e Lief e Jasmine o seguiram para dentro, dando uma olhada para Steven que vinha logo atrás.
Ao entrarem no abrigo, uma surpresa os aguardava. Sob a fina camada de lata e madeira, havia um edifício sólido, muito maior do que aparentava do exterior porque, exceto pela entrada, ele fora construído no interior do monte de lixo. O espaço era não somente grande, mas limpo e bem organizado com muitas maças arranjadas caprichosamente ao longo das paredes, cada qual com seu cobertor dobrado e os pertences do usuário empilhados na parte inferior.
O catador de lixo virou-se para eles, endireitou o corpo e tirou o lenço e o remendo do olho.
— Perdição! — exclamou Jasmine surpresa.
— Vocês não me reconheceram? — Perdição perguntou, sorrindo. — Isso é excelente! É claro que vocês não esperavam que a fortaleza da Resistência ficasse num depósito de lixo. Mas que lugar melhor existe para se esconder? Ninguém vem aqui de boa vontade, nem mesmo os Guardas Cinzentos. E quem se importa com pobres catadores de lixo? Algumas das pessoas que vocês viram aí fora são verdadeiros catadores de lixo, almas sofridas de Del de quem a vida foi roubada. Outros, e são muitos, são gente nossa. Glock, Fardeep e até Zeean estão lá fora, em algum lugar, com todos os demais. Dain saiu para buscar água.
Lief assentiu devagar, assimilando o que via. "Então, nada era o que parecia, nem mesmo ali", pensou.
— Perdição — chamou Jasmine aflita. — Barda está ferido. Ele precisa de cuidados. E... — ela olhou para Lief. — Há outra notícia. Muito desagradável.
Lief remexeu no bolso e tirou o bilhete amassado de Endon.
Os olhos negros de Perdição ficaram ainda mais escuros como se, de alguma forma, ele soubesse o que leria. Mas ele não apanhou o bilhete. Em vez disso, voltou-se rapidamente para a porta.
— Vou ter bastante tempo para isso depois que cuidarmos de Barda — disse ele bruscamente. — Traga-o para dentro. Vamos fazer o possível por ele.
Mais tarde, Lief e Jasmine estavam sentados perto do leito do amigo. As feridas deles também tinham sido lavadas e envolvidas em ataduras e o grande homem finalmente se encontrava deitado tranqüilamente. O sangramento havia parado, graças a um estranho aliado: Glock.
— Isso não vai sarar com ataduras — ele resmungara, agarrando e inspecionando o punho de Lief. — As plantas carnívoras injetam algo que mantém o sangue fluindo.
Ele foi até a própria cama, procurou algo debaixo dela e retornou carregando um jarro sujo cheio de uma pasta cinzenta.
— Passe isso nas mordidas — ordenou.
— O que é isto? — indagou Jasmine, cheirando a pomada, desconfiada.
— Como vou saber? — Glock rosnou. — Quem a fez já morreu há muito tempo. Mas a minha tribo sempre a usou, nos bobos e crianças que caíam nos campos de carnívoras.
Jasmine reprimiu a resposta irada que lhe dançava nos lábios e virou-se para Barda.
— Não a desperdice nele — Glock resmungou. — Ele está acabado. Jasmine não se preocupou em responder. Ela já estava passando a pasta nos ferimentos limpos de Barda. Glock cuspiu enojado e se afastou arrastando os pés. Depois disso, desapareceu.
Lief ergueu os olhos exausto. Zeean, Fardeep e Perdição estavam reunidos não muito longe dele, acompanhados de Steven. As cabeças curvadas, as expressões

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