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Emily French CORAÇAO MASCARADO

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Coração Mascarado 
( Ironheart )
Emily French
O destino pode usar muitos disfarces….
País de Gales, século XII
Lady Brenna, prometida em matrimônio a outro homem, mais por conveniência do que por vontade própria, conheceu o amor verdadeiro quando Caer Llion chegou aos portões de seu castelo.
O valente cavaleiro era, sem dúvida, seu misterioso príncipe encantado, pois pertencia ao seu passado e, por decreto do destino, também ao seu futuro!
A menina doce e singular que brincava nas ameias do castelo, certa vez lhe prestara um favor… e aliviara sua alma sofredora.
Agora, Leon FitzWarren, conhecido como Caer Llion, o Coração de Ferro, retornava ao País de Gales, para aquelas mesmas ameias, e mais uma vez se deparava com a cativante Brenna, a pequena ninfa que se transformara numa mulher fascinante… e dona do seu coração.
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PRÓLOGO
Northern Marches, País de Gales, 1188
A noite estava sombria e ameaçadora. Leon estremeceu e esforçou-se para não adormecer. Era nas horas mortas que tudo podia co​meçar e terminar. Horário nada convidativo para sair da cama. A maioria dos homens morria e os demônios perambulavam sempre no escuro, antes do alvorecer.
— O senhor é um cavaleiro?
A voz fina e esganiçada pareceu vir da direita. No começo, Leon achou que se tratava de imaginação. Construções antigas de pedra acumulavam espaços sem luz e sons estranhos, chiados e suspiros do vento.
— O senhor é um cavaleiro?
O som repetiu-se, fantasmagórico, estranho, desen​carnado, e percorreu a ameia, suave como junco ba​lançando ao sabor do vento.
Leon levantou a ponta da espada.
Só podia ser uma trama. Logo chegaria a aurora, a hora das ações violentas e dos assassinatos. Feliz​mente sua capa e o capuz cinzentos misturavam-se ao cinza das pedras e não chamavam a atenção. A única luz visível era do aço da lâmina nua. Leon es​perou, à escuta.
Por sobre o ombro, não percebeu nenhum movimen​to, mas sentiu forte comichão nas costas. Engoliu em seco e procurou se acalmar.
— Quem é?
Silêncio.
Devia ser alguma brincadeira. Lembrou-se de quan​to estava com nove anos e desafiara um corvo no pa​lheiro, o que nenhum outro menino ousava fazer. A ave não o enfrentara, e saíra com um bater forte de asas e um grande farfalhar do feno.
— Há alguém aí? — Leon perguntou ao nada e con​teve a respiração.
Tudo continuou igual. Não houve resposta e ele não viu sombras à entrada. Certamente não havia perigo nas proximidades. Uma luz tênue veio de baixo, mas não foi suficiente para iluminar os degraus. Se havia espíritos dançando, nenhum deles falava.
Leon expressou-se em francês. Pigarreou e tentou o latim. Nada. Fez a pergunta em anglo-saxão e final​mente, sem esperança, em galês de sua infância.
— Eu estou aqui.
Leon virou-se. A mesma voz viera de trás, como se alguém o rodeasse. Tornou a virar-se, com as mãos estiradas para a frente, ao escutar o barulho de um salto e passos ligeiros vindos do parapeito.
— Eu perguntei se o senhor era um cavaleiro. — Mais de perto, a voz parecia ser de uma criança.
Leon estacou, com o coração disparado. As sombras se mexeram e ganharam substância. Um brilho. Tra​tava-se de uma menina de nobre estirpe, vestida em um traje de dormir branco, os laços desamarrados, as mãos e os lábios enlameados. Ela inclinou a cabeça de lado e observou-o.
— Não… — Ele pensou no que diria, enquanto a avaliava.
O rosto da menina e os brilhantes cabelos negros caídos sobre os ombros lembravam o de um duende. Entretanto ela era real, disso tinha certeza, e nada mais do que uma criança pequena. Não se tratava de magia. Nada haveria para temer. O olhar da garotinha era sereno e sincero.
— Mas serei, quando eu for um homem. — Leon sentiu as orelhas quentes.
— E não é sempre assim que as coisas acontecem? — Ela franziu a testa alva e aproximou-se como se partilhassem de um segredo.
Leon espantou-se pelo discernimento da menina. Os adultos tinham ciúme de seus segredos e só os parti​lhavam com os druidas, nunca com as crianças. Seria ela a filha de um sacerdote?
Teria ele sofrido um encanto?, Leon refletiu e tocou as pedras rústicas. Também existiam de fato e eram ásperas como um almofariz velho.
Não estava disposto a demonstrar o próprio constran​gimento e nem se deixaria apanhar em uma armadilha.
— A menina é alguma feiticeira? — Leon perguntou, com voz firme.
— Eu me pareço com elas?
— Até hoje só vi uma. Pelo menos, penso que era. Na verdade não se parece. Mas quem é que pode saber?
— Bem, agora que o vejo de perto, também não me parece um cavaleiro. Apesar de sua altura, tem mais jeito de garoto.
A afirmação era verdadeira, mas não impediu que seu bom senso o avisasse da insegurança de crianci​nhas perambularem pela madrugada sozinhas. Havia muitos perigos rondando a noite e a garota destemida certamente não era um deles.
Leon embainhou a espada.
— A menina está me distraindo de meus deveres. O que está fazendo aqui?
— Eu vim espiar.
— O quê?
Ela sacudiu os ombros.
— Vim ver meu pai. Disseram-me que ele vai embora com o príncipe — ela afirmou, determinada, com o queixo erguido e os olhos brilhantes. — Tive de levan​tar-me bem cedo para fugir de minha ama e agora estou aqui.
Leon começou a andar e ela o acompanhou.
— Não se pode chegar livremente às ameias e ainda mais a estas horas. Como conseguiu? — ele perguntou, com rudeza. — E, principalmente, por quê?
— Eu não podia descer por causa dos guardas. Não quis escalar as latrinas por que elas cheiram mal. Por isso escondi-me nas sombras e corri até aqui. Bem que tentei subir no merlão — ela apontou um dos intervalos dentados da ameia —, mas sou muito pequena. O se​nhor poderia…
Leon estremeceu.
— Esqueça — Leon avisou, por entre os dentes e parou perto de um arco reforçado com contraforte.
Diante dele, um vale enorme. Daquele ângulo, não se distinguia nenhuma luz. A escuridão era total. So​mente a imensidão do firmamento era palpável e traía a presença do abismo.
O medo apertou o coração de Leon. Como resolver a situação? Agarrou o merlão com uma das mãos, para evitar o tremor. Sentiu o arenito entre os dedos. Afas​tou-se, por instinto.
— Porcaria de pedras podres — ele praguejou.
A menina o fitou e sorriu, desconfiada e travessa.
— Está com medo?
— Claro que não! Tenho uma arma de aço e um coração de ferro!
— Ah, ha! Que maravilha! Os heróis são sempre tão fortes?
— Com certeza.
Leon suava. Os verdadeiros heróis eram corajosos e nunca fugiam. E o presente era uma angústia. Ele estava apavorado e sem ar.
— Dá para ver alguma coisa aí de cima, já que é maior do que eu? — Ela sorriu e o olhar refletia a luz das estrelas.
Leon anuiu com um gesto de cabeça e a criança riu. Ele concluiu que nunca ouvira som mais agradável.
— Ah, sim…
— Então?
Leon estava bem mais do que aflito. Arfava, sob os efeitos de um pânico vergonhoso. O coração pulou até a garganta e ali parou. Será que ela desconfiava? Olhou-a de relance. Os olhos negros estavam arrega​lados, cheios de fé e inocência. Uma covinha marca​va-lhe a face: A fraqueza devia ser urna quimera, mas não a menina que estava à sua frente.
— Não vai adiantar. — Leon tornou a estremecer e sentiu o rosto corar. Talvez falasse mais consigo mes​mo do que com ela — A aurora ainda não despontou. Não dá para ver nada.
— Ah… — A garota mostrou-se tristonha, frustrada em suas expectativas. Porém não desistiu e mirou-o com olhos que mais pareciam amoras pretas. — Seria preferível ficar na expectativa a… Bem, nesses grandes acontecimentos há sempre espanto e ansiedade. Tenho de descobrir algumas aventuras, pois é tão monótono no quarto das crianças… — a menina falava depressa, sem deixar que ele interferisse — …se eu fosse um me​nino, não haveria necessidade de imaginar como seria quando estivesse crescido. Todos contam como é.
— Eu também tenho sonhos. Mas o futuro é nublado e não há meios de predizer nada e nem de mudá-lo.
— Bobagem! Fecheos olhos. Forte. Pense no que acontecerá quando se tornar um cavaleiro.
Leon espantou-se com a precocidade da garota. Seria uma mensageira disfarçada e que o enfeitiçara? Apreensivo com as possíveis conseqüências, descansou a mão de leve sobre o punho da espada.
Um lampejo queimou-lhe os olhos. O estalido forte de um relâmpago, ou de uma magia mortal, ecoou além dos muros do castelo. As cornetas soaram e ouviu-se o som tonitruante de cascos pesados no solo.
Era uma cilada.
Não, tratava-se de uma bruxaria.
Ninguém ignorava que feitiçaria era uma maldade empregada por idólatras contumazes. E, no seu caso, era um estratagema para distraí-lo de sua vigília. Não seria a primeira vez em que uma criança era usada como isca.
O que poderia fazer?, ele se perguntou. Sentiu re​pugnância pela idéia de estar sendo vítima de uma agressão. Ou pior, por estar falhando em seu dever…
— Não! — Leon protestou com determinação maior do que sentia.
Porém o encantamento o manteve cativo. Não havia outra alternativa, a não ser deixar-se levar.
O combate estava por todos os lados. O fogo, a fumaça e o clamor da batalha desabrochavam em inúmeras direções, tão longe quanto lhe era permi​tido enxergar e ouvir O elmo se perdera e já podia sentir as cutiladas na cota de malha de aço. Os ferimentos cobriam-lhe a pele e o corpo estava en​sangüentado. As chamas subiam das carroças do cerco e muitas tendas haviam se incendiado.
A chuva evitava que o inferno tomasse conta dos veículos, mas os lonas ainda não queimadas impediam que a precipitação de água apagasse o fogo.
Naquele momento, ele viu a bandeira de guerra. Os leões exuberantes desenhados em ouro contra o fundo vermelho jaziam esmagados no chão, di​lacerados pela espada e tintos pelo sangue dos jovens soldados que acompanhavam o pavilhão. Ele não saberia dizer se a sua visão toldou-se pela chuva ou pelo sangue que lhe escorria nos olhos.
— Onde está o senhor, Caer Llion?
Ele se sobressaltou com o toque da mão esguia e virou-se. Uma silhueta esguia estava diante dele. Não usava armadura de cavaleiro, não era alta e nem forte o suficiente para ser um soldado. Nem ao menos era um lutador Tratava-se de uma mulher!
— O senhor está ferido — ela avaliou o óbvio.
Um capuz grande ensombreava-lhe a face. A fisionomia de elfo brilhou e depois perdeu a cor no reflexo das chamas.
— A batalha está perdida — ele sussurrou com vigor, lutando para controlar sua dúvida e inspi​rou fundo.
— O senhor e seus homens lutaram muito bem.
— E também morreram bem. Preciso vingar-me.
— O senhor não conseguirá vingar-se, rumando solitário ao ninho. — A jovem pegou-o pelo braço e conduziu-o, sem revelar-lhe a direção. — Meu cavaleiro dourado, o senhor tem um destino a cum​prir. Segure-se em mim e tornará a viver para lutar. Eu o protegerei.
Ele anuiu, confuso. Como ela faria uma coisa daquelas? Ele espiou-lhe o rosto não totalmente coberto pelo capuz. Os olhos eram negros, profun​dos e suaves, e ele sentiu-se perdido neles, dentro do que não vira.
A questão perdeu a importância ante as formas obscurecidas que apareciam, voavam em todas as direções, seguidas por nuvens enormes de cava​leiros. Não eram indivíduos. Eram apenas corpos, armados e sem armas, a por matar e conti​nuar matando.
Ele estreitou os olhos, mas não lhes viu os rostos. Os cavaleiros passavam pelos dois, sem vê-los. Ou​viu os gritos dos homens atingidos pelas clavas, lanças e patas dos cavalos. Mas sentiu a suave proteção da invisibilidade mágica criada pela me​nina-mulher que o cobriu com o manto.
Um vento úmido envolveu-o e ele sentiu um calafrio. O ar tinha cheiro de construção de pedra. A razão disse-lhe que ele se encontrava nas ameias, mas a sua parte irracional avisava-o de que tivera um lapso de um minuto, onde pulara uma década ou mais.
— O que foi? O que estava vendo?
Leon abriu os olhos. Piscou. A visão desaparecera.
A escuridão da noite cedia lugar a uma cor cinzenta e suave. A visão teria sido a imagem de um futuro real?
— Pouca coisa e incerta. — Leon sentiu as pernas trêmulas, apesar de seus esforços em contrário. — Ex​ceto que o príncipe está chegando e que o tempo é péssimo.
— Isso é importante!
— Se não estou enganado, uma menina de sua idade deveria estar dormindo e não perambulando pelas ameias, lugares sabidamente inseguros — Leon retor​quiu, áspero.
— Não tente me intimidar — ela o desafiou, com voz musical. — Não tenho medo.
— Por acaso duvida de minha coragem? — Ele se irritou.
— De maneira nenhuma. Nem de sua capacidade de terminar qualquer tarefa.
Ela o encarou enquanto falava. Leon procurou al​guma mensagem implícita, mas os olhos negros reve​laram uma ansiedade tão intensa quanto a dele. Na​quela altura, as imagens pareceram absurdas e ridí​culas, e Leon tentou acalmar-se.
Por algum tempo, Leon escutou o silêncio que se in​terpusera entre ambos. Era quase um duelo de vontades.
Um sussurro interrompeu a quietude, acompanhado por um puxão. de sua capa e um sorriso esperançoso, inocente, tímido e tranqüilo.
— Eu só queria ver papai e os outros.
Leon não conteve um sorriso.
— Tem certeza?
— Tenho — a menina afirmou com doçura.
— Eu não poderia recusar-me a fazer uma boa ação. — Leon esperava não demonstrar o tremor da voz.
— Será que faria isso por mim? — ela perguntou, com uma expressão angelical.
Era mesmo um tolo em ceder à vontade de uma criança! Entretanto ela não lhe deixava outra opção.
Não poderia negar-lhe um pedido. Era como se o corpo não atendesse ao comando da mente. Era seu destino.
E se fosse magia?
O único jeito era enfrentar o que se temia, ele ad​vertiu-se. Contraiu o estômago e segurou-se em um intervalo dentado das ameias com as duas mãos. In​clinou-se para o lado de um contraforte da parede.
A lateral do castelo descia perpendicularmente até onde apareciam as bases de granito sólido. Mais abai​xo… a terra, o rio e, muito além, a floresta escura.
Sem querer, Leon gemeu. O suor cobriu-lhe as mãos trêmulas. Uma bola gelada de medo na garganta o fez vacilar, mas ele não cedeu à vontade de recuar.
Um galo cantou ao longe, prenunciando a aurora. Leon olhou para baixo. O ar úmido e frio bateu no seu rosto, e raspou-lhe a garganta.
A sensação desagradável fez com que rangesse os dentes. A vista escureceu. As pernas tremeram com tanta violência que as rótulas colidiram com o muro de pedra. Se ficasse ali mais um pouco, tinha certeza de que cairia sobre o parapeito. Devagar, arrastou para trás os pés calçados com botas e afastou-se do espaço aberto.
— O que está vendo? Levante-me para que eu possa ver também!
Com a boca aberta e a fisionomia deliciada, ela dan​çava na subida das ameias a oeste, no final do parapeito.
Assombrado, Leon assustou-se com o pedido da me​nina. Afastou-se na direção da parte interna do muro e desejou que o coração parasse de bater. Se conti​nuasse naquele ritmo, estouraria. Piscou e convenceu-se de que estava clareando. Inspirou golfadas do ar frio e límpido do amanhecer.
— É perigoso… Você pode cair. — Foi tudo o que ele conseguiu dizer.
A menina o fitou, solene. Sem medo. E balançou a cabeça com energia.
— Não vou cair. E, de mais a mais, o senhor está aqui para me proteger.
Leon abriu a boca para recusar, mas não o fez. En​xugou a testa com a manga da camisa. Odiava ficar ali em cima, nas ameias. Ainda se lembrava da queda da torre em Whittington. Sempre gritava nos sonhos, quando se lembrava daquele dia. Na época, estava com sete anos. Envergonhara-se de gritar nos braços do pai adotivo. Mas o pai o consolara e o abraçara como fazia com Fulk Riven, chamara-o de filho e assegura​ra-lhe que mesmo homens crescidos cometiam erros e choravam.
— Na outra extremidade há uma visão melhor.
Leon caminhou a passos largos, indignado e com medo de que ela resolvesse pular sobre a ameia. Mas ela apenas riu e seguiu-o.
— A vertigem das alturas não a incomoda? — ele perguntou, de modo casual.
— Nas vezes emque tentei subir, não — a garota respondeu, saltitante.
Leon se retesou, com suspeita de que fosse zombaria. Arrependeu-se de ter tocado no assunto, mas não se importou com o que a pequena feiticeira pensava. Ela parecia muito nova para tanta coragem e destemor. Percebeu arranhados no braço da menina e rasgões no vestido na altura dos joelhos. Sentiu pena da ama-seca que devia estar enlouquecida, à procura da ga​rotinha. Seria castigada, se a mãe visse o que a filha fazia.
— Levante-me — ela ergueu os braços delgados — para eu poder ver.
A brisa matinal desmanchou os cabelos de Leon e esfriou-lhe o rosto quente. Mais calmo, tomou uma resolução. Não abandonaria a primeira donzela aflita e em perigo que encontrava. Ergueu-a e apoiou-lhe os pés descalços em um espaço destinado às flechas cons​truído em um contraforte do parapeito.
Ela ficou na ponta dos pés e inclinou-se para a frente. Leon, na certeza de que ela era estabanada, segu​rou-a pela cintura com firmeza.
— Se ficar tonta, pode apoiar-se em meu ombro. Eu a sustentarei.
— Eu sei, seu bobo! — Firme em seu poleiro como uma rocha, ela tocou de leve nos cabelos de Leon e descansou a mão pequena no seu ombro. — O senhor tem um modo engraçado de falar, mas seus cabelos são bonitos e brilhantes.
As palavras dela foram acompanhadas de risinhos. A menina cheirava a sabão e talco de mel.
— Obrigado — ele piscou e trocou os pés de posição.
Depois ficou quieto e espiou o próprio braço esticado. Já amanhecera. O ar estava frio. A névoa obscurecia as torres, cortava a parte superior dos portões, movia-se em redemoinho pelo pátio externo das muralhas e atingia a floresta no formato de lençóis fuliginosos.
Tropas passavam pela guarita ao lado dos portões do castelo. Apesar dos trechos de bruma espessa, Leon viu as armaduras brilhantes e as flâmulas estalando de encontro aos mastros, ouviu o tinir das fivelas e dos equipamentos a cada passo, em uma melodia que se perdia no nevoeiro extenso.
— Dá para ver o príncipe à frente?
A menina sacudiu a cabeça para tirar uma madeixa de cabelos negros dos olhos.
— Lá está ele! — ela gritou, excitada, e bateu palmas.
— Não me admira — Leon retrucou depressa. — Ele é o comandante.
Agitado, o jovem espiou pela abertura a companhia que marchava. Keith, que faria dezesseis anos no pró​ximo verão, fora escolhido para acompanhar o príncipe.
O rapaz, a despeito de ser mais alto e encorpado de que Leon, não ganhava dele em batalhas simuladas e em disputas de luta corporal.
— Não são mesmo admiráveis? Para onde estão indo?
— Os homens se reuniram aqui para acompanhar Richard rumo à Palestina. Lutarão contra os sarracenos.
Leon arrependeu-se do que dissera, ao ver o olhar amedrontado da menina. Ela franziu a testa e aper​tou-lhe o ombro. Seu aspecto não lembrava uma bruxa, mas sim uma criança apavorada.
— Ah, homens maus — ela murmurou, com o rosto contraído.
— Não se inquiete, criança — Leon procurou con​sertar o erro. — Seu pai voltará logo.
— O que acontecerá se os homens maus nos ataca​rem, enquanto papai estiver fora? — ela perguntou, com voz débil. — Teremos de sair correndo?
Leon fitou o rosto pálido e tratou de tranqüilizá-la com um de seus sorrisos raros e esplêndidos, que o mestre de armas afirmava que no futuro derreteria os corações femininos.
— Não. Milorde os deteria antes de chegarem aqui.
Embora fosse corajosa, não passava de uma criança e o sorriso teve um efeito mágico. Ela descansou a mão no braço de Leon e estreitou os olhos.
— Posso atirar pedras neles! E das grandes.
— Ah… — Leon conteve o riso e afastou os cabelos negros que atrapalhavam a visão da fisionomia infan​til. — Isso seria uma ótima ajuda.
Os homens desapareceram em meio à nebulosidade. A atmosfera tornou-se quieta e pesada. Um presságio fez Leon estremecer. Aliás o dia parecia perigoso e cheio de maus agouros, embora nada pudesse fazer a respeito. A não ser que crescesse logo. Estava com doze verões e, com a partida de Keith, seria promovido a escudeiro. Mesmo sendo alto para a idade, musculoso, perito no arco e com a espada, ainda não alcançara o desenvolvimento necessário.
A menina fez sombra nos olhos e sacudiu a cabeça.
— Não os vejo mais.
Leon suspirou e afastou-a da beirada da ameia.
— Não acha que poderia acompanhar o príncipe? — ela fitou-o com seriedade.
— Eu gostaria de estar com ele, muito mais do que se possa imaginar — ele respondeu, irritado pela per​gunta, e ouviu o eco de suas palavras.
— Ainda dá tempo. Se correr, poderá alcançá-los.
Leon sabia disso e não estava acostumado a ser desconsiderado.
— Milorde não está contente com as coisas na fron​teira. Ele quis que eu ficasse, para ser um irmão-es​cudo para seu herdeiro.
— Como fará para receber as esporas?
Leon não engoliu a isca. Era um escudeiro, já ul​trapassara a infância e tinha visto os fidalgotes irem e virem. Pensou em Keith, ferido e ensangüentado, gritando, e em sua própria honra. Depois refletiu sobre o futuro. Teve uma visão da menina, então mulher, prisioneira em um local onde os corvos se amontoavam, onde as florestas pareciam estranhas e retorcidas. Ele mesmo, montado, com elmo e espada em riste, enfren​tando um dragão.
Não, aquilo era exótico demais.
Reconstruiu as imagens e procurou aproximá-las da realidade. A menina nas ameias, os cabelos negros es​voaçantes, rindo e estendendo os braços. Ele caminha​va naquela direção e não notava o precipício.
Não, aquilo era inacreditável.
O quadro tornou a modificar-se. Caer Llion vinha sendo acrescentado ao nome de poucos que eram assim apelidados por amigos e inimigos, a quem os homens seguiriam até a morte. Com um elmo de ferro, ele cavalgava um corcel enorme nas areias do deserto, a espada desembainhada e brilhante sob o sol da manhã, liderando um grupo de cavaleiros, uma avalanche de destruição envolta em metal.
— Ainda não cumpri todas as obrigações, mas um dia serei um cavaleiro. Devo e preciso fazê-lo — ele enfatizou, por se tratar de um dever absoluto.
— Também se pode fugir e tornar-se um homem do povo. Papai diz que as mulheres comuns têm uma vida mais divertida que as de alta classe.
— Ele exagera. Os cavaleiros representam uma pro​teção contra o mal. Constituem a única esperança dos criadores de porcos e das meninas pequenas, que os santos conservem seus pescoços teimosos. Ninguém mais deverá sentir pena deles.
— Que emocionante. Eles cantarão em sua honra. — A menina segurou-lhe a mão e acariciou-lhe o queixo.
— Para mim parece bom o bastante.
Ela passou os dedos nos cabelos de Leon.
— E por que não? O senhor é corajoso, forte e tem caráter nobre. Será um grande cavaleiro.
Leon corou, confuso. O fato daquela criança diferente pensar que ele era corajoso o deixava mais perplexo de que deliciado. Mas não decepcionaria quem acre​ditava nisso de verdade e não encontrou nada coerente para dizer.
Ela deu um sorriso encantador. Sua fisionomia era cálida como um raio de sol de verão.
— O senhor casará comigo quando eu crescer?
A menina era uma tolinha. Leon sentiu-se constran​gido e não soube o que responder, pois não pretendia ofendê-la.
— A menina deverá casar-se com um homem que tenha propriedades e títulos.
— Nunca me casarei com um homem que não possa amar — ela afirmou, com a confiança jubilosa de uma criança de quatro anos.
— Algum dia um cavaleiro virá roubar seu coração — Leon tirou-a do parapeito.
— Não quer ser esse meu cavaleiro especial?
— É claro que sim. — Ele fez uma mesura.
Ela piscou e olhou para cima, ansiosa.
— Para todo o sempre?
— Doravante, serei seu eterno cavaleiro. — Leon curvou-se e beijou-lhe a mão.
Ela tirou um dos laços de fita da camisola e entregou-lhe.
— Então eu esperarei. Prometo. Quando crescer, vol​tará e se casará comigo.
— É mesmo?
Ela anuiu, decidida.
Leon aceitou a lembrança e desmanchou-lhe os ca​belos. Se ela não tomasse cuidado, essa flor rara se transformaria um arbusto espinhoso.Fitou o céu e fingiu desinteresse.
— Está bem — ele concordou.
A menina pôs as mãos na cintura, com malícia no olhar.
— Jura?
Menina irritante!, Leon rangeu os dentes. Ela estava disposta a tirar-lhe a paciência!
— Juro pelo sol e pela lua, pelo ar e fogo, pela água e pela terra. Está satisfeita?
Leon estacou, ao ouvir um arrastar de sapatilhas atrás de si.
— Babá! — Ela disfarçou com graça e estendeu as mãos sujas para a frente.
A mulher abraçou a criança.
— Sabe muito bem que não deve subir aqui desa​companhada.
— Mas eu não estava sozinha. Meu cavaleiro estava comigo.
— Minha menina, essa correria de um lado ao outro tem de acabar.
— E por quê?
— Por que não é natural aventurar-se para fora do castelo.
— Mas, ama, eu encontrei meu cavaleiro, só que ele ainda não é cavaleiro e tem cabelos cor de ouro.
— Um dia, um belo homem com cabelos dourados a pedirá em casamento, ambos se casarão e terão meia dúzia de filhos saudáveis. Mas até lá, minha pequena senhora, é melhor aprender a comportar-se como uma dama.
A menina voltou-se, quando alcançaram a entrada.
— Até nos encontrarmos novamente, desejo que te​nha apenas caminhos suaves para atravessar — ela pronunciou a tradicional despedida celta, com voz harmoniosa.
— E que os perigos se mantenham afastados da senhorinha.
Mais ansioso do que na verdade deveria estar, Leon esquecera-se de perguntar quem era o pai da menina. Não a veria de novo para indagar.
A comitiva FitzWarren retornaria a Whittington no dia seguinte.
A ama-seca dispensou-o com um gesto, quando ele tentou aproximar-se para perguntar-lhe o nome.
Leon fechou os olhos e, ao abri-los, elas já haviam sumido na escuridão.
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CAPÍTULO 1
Northern Marches, País de Gales, 1204
— O sacerdote já chegou. Só falta o noivo.
Brenna teve a impressão de que as palavras vinham de muito longe e pairavam no ar como flechas incan​descentes prontas a atingi-la.
— Ele virá.
— Temo pelo pior. — Era uma voz doce, mais pró​xima. Era a tia-avó Alice, sempre alvoroçada. — Ele já teria chegado, se não houvesse sido atingido por alguma maldade.
Brenna sentiu um calafrio. O vento açoitou seus cabelos e seu vestido. Mas ela continuou impassível, sem piscar, embora o coração batesse forte. Sem dizer nada, continuou espiando pelo merlão, ao sul das ameias.
Os muros desciam perpendicularmente, pedra sobre pedra. O castelo e o penhasco ficavam bem no alto do vale verde, dos campos e da floresta que ia em direção aos baluartes montanhosos a distância. Em baixo, ouviam-se gritos de crianças, relinchos de um garanhão e uma melodia dissonante cantada talvez por um bêbado.
O ventou uivava sobre as pedras.
Casamento. Esposa. Marido. Cama.
Crianças.
O terror invadiu-lhe o coração. Brenna não conhecia nada além do vale e de seus habitantes. Sua expe​riência era pequena e limitada aos conhecimentos que adquirira como curandeira. As histórias secretas con​tadas pelas aldeãs eram desconcertantes e acenavam com promessas mais provocativas e sombrias do que as contadas minuciosamente por suas tias como sendo os deveres de uma esposa. Por isso não tinha muita certeza se a agradava a idéia de casamento.
Mas um marido seria a melhor maneira de preservar a paz na fronteira, Brenna refletiu, conformada. Ele teria de vir!
Ansiosa, fitou o vale. O padre alcançara Dinas Bran, queixando-se da chuva e confessara que se enganara no cruzamento. Por isso, rodara por mais de uma hora em outra estrada, antes de descobrir o erro. Preocu​pada, Brenna tinha esperança de que o atraso do noivo também fosse por um motivo banal. Não por ele ter sido vítima de criminosos e nem por ter-se arrependido.
E por que a aflição?, perguntou-se, conhecendo a resposta. Ela se casaria no sábado e não conhecia o noivo! As dúvidas sobre a chegada iminente do futuro marido eram mescladas de pavor que não a abando​nava e que era formado a partir do receio de que ele fosse muito experiente e por não saber quais as expectativas dele.
Bobagem!, ela se recriminou. Não valia a pena se inquietar.
Ele viria. Brenna tinha certeza.
A sombra dos muros cinzentos de pedra já se uma à sombra da torre e crescia pelo pátio. Em mais uma hora, a luz do sol estaria finda.
Sentiu que a puxavam pela manga.
— Brenna! E como vai ser com o casamento? O ban​quete já está sendo preparado.
Brenna engoliu em seco.
— Ainda não perdi as esperanças.
— Será que é melhor suspender os preparativos?
— Não! — Brenna, sem perceber, agarrou-se na pe​dra com firmeza. — Vovô é o mais indulgente dos guar​diões, mas receio que sua paciência esteja no fim. Parar tudo significaria mutilar suas finanças.
— O que pretende fazer, filha?
Brenna franziu o nariz. Desde pequena sonhava com um cavaleiro perfeito. Ao ficar mais velha, construíra o próprio romance sobre ele.
O conhecimento da anatomia masculina conseguido com a prática de curar permitira que visualizasse em detalhes os ombros largos, os braços musculosos, a on​dulação dos tendões no peito másculo, o abdômen reto e os pêlos que rodeavam as partes íntimas. E a partir daquele ponto, sua mente tornava-se incapaz de dis​cernir o que a esperava. Quando pensava no futuro, aparecia sempre um encontro romântico com o herói.
Mas isso não se concretizara…
Era ridículo perder tempo com tais pensamentos. Seu cavaleiro não passava de um sonho, de uma me​mória. Não havia sentido perder-se em fantasias ro​mânticas, pois o casamento não era nada daquilo. O matrimônio não passava de um grilhão sem nenhum prazer.
O romantismo pertencia aos trovadores e era um conceito elaborado em função de linguagem floreada, da poesia e da música do alaúde.
— Estou prometida de modo irrevogável. Estou noi​va de Aubrey de Leeds.
— Que ainda não veio!
— A senhora já se perguntou por que concordei em casar-me com um homem que não conheço?
— Não espera que eu responda, não é?
Brenna sacudiu a cabeça.
— Quando eu tinha a sua idade, já estava casada há dois anos e era mãe.
— E isso não a incomodava?
— Claro, mas eu não tinha um pai senil e nenhum avô tolerante. Com a chegada de meus fluxos mens​truais, fui forçada a usar vestimentas de mulher adul​ta, amarrar os cabelos para cima e aceitar o marido que minha família havia escolhido. Pelo que sabemos, Aubrey é uma pessoa excelente e… de acordo com seu avô, meu irmão e seu tutor, esse casamento impedirá que pretendentes teimosos façam ataques de surpresa nas fronteiras para ganhar vantagem sobre os outros.
Pelas palavras de lady Alice, sua tia-avó, o casa​mento era uma insignificância. Brenna estremeceu. Passara a vida inteira seguindo os ditames da auto​ridade. Não passava de uma mulher e por isso não participava das decisões. O que era uma injustiça.
E um sofrimento.
Tudo se desenrolava de forma terrivelmente banal. Deixar de ser escrava de um homem para ser de outro. Sem alternativas. Sem argumentos. Os homens deci​diam e ordenavam. Ela, como mulher, nada significava para eles. Seu avô desejava um bisneto. Sir Edmund também queria uma pessoa decidida e capaz de manter afastados os barões da fronteira. Assim poderia passar mais tempo fazendo mapas celestes.
Aubrey queria casar-se com ela por causa da van​tagem política que uma fortaleza como Dinas Bran poderia oferecer. As tias queriam segurança para a velhice e os aldeões estavam felizes por que a curan​deira não os deixaria.
Já sem muitas esperanças, Brenna relanceou um olhar pelo vale. Apesar da obscuridade, a estrada era bem visível. Nada.
Ela suspirou. Desperdiçara o tempo e o dia já estava no fim. Uma tempestade se aproximava. As nuvens ficavam mais densas e escuras. Teria de agir rápido. Havia muito o que fazer antes do jantar. Controlou-se da melhor maneira que pôde e virou-se para fitar a tia-avó.
— De que adianta reclamar? Estou sendo coagida e não posso evitar as ordens de vovo.
— Quanto tempo teremos de esperar?
— Nada, pelo previsto. Vovô teme queseus domínios sejam ameaçados nas fronteiras do norte. Se o cava​leiro não aparecer até amanhã, vovô encontrará outro que queira casar-se comigo.
— Brenna, posso entender como a liberdade é doce, mas teria de casar-se algum dia. Meu irmão não in​sistiria que se casasse com alguém que fosse desagra​dar-lhe. Além disso, as mulheres têm de ter também sua própria vida.
— Eu já tenho… Em meus pensamentos e sonhos. Isso será suficiente.
— Nunca a vi tão cordata antes.
— O preço da noiva já foi pago. O banquete do ca​samento está sendo preparado. O padre está aqui. En​tão, haverá um matrimônio.
Siga a estrada, dissera o leproso.
O problema maior era que a estrada aparecia e desaparecia sob a luz irregular da floresta. Leon deteve o cavalo e desmontou, junto a um afloramento de rocha coberto de líquen. Impaciente, Deso sacudiu as rédeas e	esmigalhou as folhas do chão com os cascos enormes. Leon caminhou e conduziu seu imponente cavalo de campanha de cor creme pelo caminho escuro forrado de folhas caídas. Seguiu na direção de urna construção antiga de pedra até as árvores estarem tão perto, a ponto de ele não enxergar mais a próxima pedra branca que lhe serviria de orientação. Parecia uma estrada fantasma. A única pessoa que vira nas últimas cinco horas fora um morfético.
As sombras o envolveram. As árvores compactas não permitiriam a passagem da luz em um dia ensolarado. Imagine-se em um tempo como aquele. Garoa e lama dificilmente o incomodavam. Mas ele já estava exausto e congelado pelo vento.
Estou perdido, ele pensou, com vontade de deitar e descansar. A cabeça doía, a boca estava seca e a gar​ganta queimava. Mas ele continuou a marcha, faminto. Dera o último pedaço de pão ao leproso agachado ao lado de uma tigela de donativos vazia, na encruzilhada onde deveria seguir a direção de Valle Crucis.
Aquilo acontecera por volta do meio-dia. No momen​to, a noite estava próxima. A intuição lhe dizia que o caminho certo não era aquele. Não era ali que preten​dia chegar. Olhou para trás. As árvores impediam a visão mais ao longe.
“Cometi um erro”, ele se recriminou. Não deveria ter-se separado de sua escolta.
A um dia do encontro com o tesoureiro do rei, reunira seus homens e partira em direção ao país de Gales, em uma ocasião em que a geada ainda não permitira que as gramíneas verdejassem.
Seis semanas mais tarde, chuvas torrenciais fizeram transbordar córregos e rios, alagaram pântanos. A companhia enrolara as armas em couro untado com óleo e os corpos em mantos pesados providos com ca​puzes. As carroças atolaram nas estradas enlameadas, as mulas de carga afundaram o lombo no barro e a irritação tomou conta de todos.
Os alojamentos da estrada eram pequenos e insu​ficientes. Os homens resmungavam e arriscavam pal​pites se Coração de Ferro os faria prosseguir. Naquela altura, acontecera o pior. A febre acometera metade de seu grupo. Depois de muito argumentar com seu sargento, deixou os homens em Crewe sob o comando de Rodney de Leyburn e prosseguiu a viagem somente com Thomas, seu escudeiro.
Naquela altura, parecera uma boa idéia. No mo​mento, perguntava-se se não fora precipitado. Preci​sava muito de alimento e abrigo para a noite. Torna​va-se evidente que o morfético não tinha a menor idéia de onde ficava Valle Crucis.
Leon estremeceu. Viajar para o país de Gales teria sido urna missão temerária? Naquela altura, não adiantava recriminar-se.
Tinha um dever a cumprir. Teria de entregar aos monges de Cluny a relíquia da Santa Cruz confiada a ele, uma razão natural e perfeita para a visita à abadia, e descobrir se os relatórios do informantes eram verdadeiros. Depois daquilo, não resolvera o que fazer. Estava cansado das intrigas políticas. Talvez devesse renunciar ao cargo de magistrado político e judiciário do rei e assim ganhar tempo. Teria uma oportunidade de decidir o que fazer em seguida.
Poderia ir a Dinas Bran. Seu coração deu um pulo.
Seria uma insanidade, uma tolice. Podiam acusá-lo de intemperado, mas não de tolo.
Ou talvez devesse tomar a outra bifurcação da es​trada. Podia ir a Whittington e reclamar seus direitos legais. Então talvez pudesse prosseguir, sem pensar nas coisas que perdera. Se o fizesse, poderia deixar de ver o futuro como um espaço cinzento.
— Acho que estamos longe de lugar nenhum, não é, amigo?
O corcel repuxou as orelhas ao som de sua voz e o vento sussurrou sua concordância por entre os ramos úmidos.
A estrada fez uma curva ao redor de uma saliência de um paredão de rocha. O solo firme mais à frente atraiu-o. Era agradável sentir a solidez do chão e deixar a floresta para trás. Chegou a um caminho de terra batida. Fitou o aclive, viu as pedras e as vinhas por entre as árvores, as muralhas de pedra e os torreões…
Uma visão espantosa.
Dinas Bran!
O castelo sobressaía no alto, em meio ao vale, às planícies e colinas distantes. Imponente no cume do outeiro, um ninho de pedras sobrepostas, com mura​lhas espessas e nodosas, e um certo ar de negligência. Não era elegante como muitos castelos, mas tratava-se de uma fortificação bem construída e sólida, com aber​turas estreitas usadas para defesa.
Um sino começou a tocar por dentro das muralhas e ecoou pelas colinas. Seguindo os ecos, outros sons reverberaram dentro da fortaleza. O latir de cachorros, vozes humanas e o tinir dos arreios dos cavalos. Pás​saros saíram da torre, deram a volta e voaram em bando, grasnando, manchas escuras e pequenas contra o céu. Eram os corvos, que davam origem a um sem-número de doutrinas e lendas.
Deso encostou o focinho no ombro de Leon. O cava​leiro pegou as rédeas e montou.
— Viu isso, Deso? Será que eles estão à espera de nossos esqueletos?
Ouviu-se ao longe o ribombar de um trovão. Os cor​vos não pareciam ser a única ameaça. Um acúmulo de nuvens negras começava a formar-se ao norte e fazia pressupor tempestade. Um raio iluminou os cú​mulos-nimbos e deixou-os por um instante com a cor do cobre enegrecido.
Leon incitou a montaria para subir a escarpa, uma sombra negra perante o céu sombrio, atravessar o fosso e entrar na fortaleza. A trovoada repetiu-se e foi mais demorada do que a anterior. O cavalo assustou-se e resfolegou. Os arreios estalaram e tiniram, e Deso apressou a marcha. O animal subiu de maneira desor​denada e perigosa, deslizando sobre folhas que cobriam o solo, em um estender e recolher de tendões, agitando a crina, riscando o lamaçal, como se a pressa os levasse em segurança para dentro dos muros e portões.
Ouviu-se um som ritmado e sinistro de bronze, o chocalhar e gemer de correntes, enquanto a ponte le​vadiça era abaixada. Não era uma hora apropriada para se chegar sozinho e sem se anunciar. Os portões eram fechados ao entardecer e abertos com a aurora. Muitos viajantes que se enganavam a respeito do horário de chegada, passavam uma noite desconfortável do lado de fora da muralha, à mercê ladrões ou assassinos.
— O portão inferior ainda deve estar aberto — Leon falou baixo.
O cavalo mexeu-se e relinchou baixo. Devia estar pensando em um estábulo aquecido, uma boa massagem e aveia. Leon estava ansioso para tomar uma taça de cerveja e encontrar um lugar para deitar-se e descansar. Mas primeiro teria de descobrir se a poterna permanecera aberta.
O caminho fez uma curva na parte da muralha onde pedras eretas faziam uma aléia que conduzia à poter​na. Ali, ao lado do arco de pedra, fora colocada uma mesa pequena, em frente da qual se reunia uma coleção bizarra de pedintes.
Inquieto, Leon não notou vigia nenhum a postos. Na certa, mantinham um ou dois homens corpulentos prontos para lidar com possíveis emergências. Mas em uma propriedade tão grande como aquela, devia haver guardas de prontidão, ainda mais com as ameaças constantes nas fronteiras.
Leon apeou do cavalo, que permaneceu de cabeça erguida, os olhos arregalados e as narinas alargadas. Leon deu um laço nas rédeas e uma palmada leve no pescoço do animal. Deso estremeceu e aquietou-se.
Com a experiência de soldado, Leonolhou em volta, à procura de irregularidades.
Um pouco afastados, quatro camponeses agrupados conversavam em voz baixa e lançavam olhares inquie​tantes, escondidos nas sombras. Talvez fosse imagina​ção, mas Leon teve a impressão de que aqueles rufiões planejavam alguma vilania. A idéia intrigou-o e ele se animou com a perspectiva de um pouco de ação.
Sons de algazarra vinham do pátio. Uma mulher passou pela poterna, considerou a situação e fitou ra​pidamente os mendigos. A despeito da simplicidade e da cor castanha do vestido, Leon entendeu que não se tratava de uma camponesa e nem de uma camareira.
— Tudur? — ela chamou, com voz rouca, baixa e musical.
Leon riu, ao pensar que seria agradável escutar no​vamente aquela voz. Que tolice! A mulher, talvez por ouvir a risada, virou-se e fitou-o com intensidade.
Leon foi incapaz de mover-se. Seu coração disparou. Gostaria de ter vindo com as trombetas, o chocalhar das armaduras e o brilho das espadas, em vez de estar na porta traseira e na companhia de pedintes. Teve vontade de montar no lombo de Deso e fugir. Riu de novo, sem atinar com o motivo daqueles pensamentos.
Um menino alto, anguloso e muito magro, passou com dificuldade pela porta com um balde de madeira que esparrinhava líquido. Os pedintes murmuraram qualquer coisa. A mulher observou o menino deixar a vasilha pesada sobre a mesa e tornou a olhar para Leon, com a face escondida pela sombra. Com um vol​teio de saias, ela se retirou.
Os quatro maltrapilhos precipitaram-se para a en​trada. Houve uma pausa, um sussurro e uma tensão no ar. Uma exclamação súbita.
— Saiam daqui! — Uma pequena sombra adiantou-se.
— Quem disse isso? — uma voz áspera perguntou.
— Guardas! — o menino Tudur gritou.
Uma mão peluda torceu a cabeça do garoto para um lado.
Por instinto, Leon levou a mão ao punho da espada. Abriu e fechou os dedos no vazio. Deso levava a arma guardada atrás da sela. Lembrou-se do punhal no cin​to. Debaixo do manto de lã marrom e da túnica de couro, não usava cota de malha, nem a coura acol​choada. Nada além de uma camisa de linho.
Fora uma tolice deixar a armadura, o elmo e o escudo em Chirk naquela manhã, com o escudeiro. Arrepen​deu-se. Era forte e vigoroso, firme como um carvalho e duro de matar. Já estivera no inferno e sobrevivera.
Na verdade, muitos homens não tinham coragem de enfrentá-lo, com ou sem espada. Mesmo assim, lamen​tou a falta da cota. Lã e linho não protegiam contra a lâmina afiada do aço.
Concluiu que assumira uma missão arriscada. Vira o medo no olhar do escudeiro, quando se despediram e aprendera a calcular os perigos no campo de treina​mento. Mas o mal estava feito e um leve suor cobriu-lhe as pernas, apesar do vento gelado.
Tudur desvencilhou-se, esquivou-se de um soco, pas​sou pelos homens reunidos ao lado da mesa, correu até a estrada e parou de súbito, diante de Leon. O garoto levantou a cabeça, boquiaberto e com o olhar estatelado. Assustou-se e recuou, já confuso.
Leon suspirou. A cabeça latejava. Carrancudo, ten​tou sorrir.
— O senhor é um cavaleiro? — O menino pareceu um pouco receoso e inquieto.
Leon inclinou a cabeça.
O rapazote animou-se.
— Daqueles que salvam donzelas em perigo?
— É o que dizem.
— Sim, sim! Eu sabia! Dizem que sou um tolo, mas posso ver que o senhor é o cavaleiro de Brenna!
— Não tenho idéia do que está falando.
O menino fitou Leon, depois a poterna e novamente Leon.
— Ah… acho que me enganei. Como sou tolo, fiquei atrapalhado e… — Tudur voltou a fitar a porta e vi​rou-se para Leon, esperançoso. — Mas o senhor chegou em boa hora.
Leon praguejou sem querer. Não era homem dado a atos de compaixão e embora se compadecesse da aflição do rapaz, não queria ter a garganta cortada.
E nem queria morrer só por causa de uma jovem pre​sunçosa que, em um gesto de farisaísmo, ignorava o toque de recolher.
— Se pudesse ajudar, bondoso senhor! — Tudur im​plorou, piscando sem parar e muito vermelho. — Pode haver encrenca naquela poterna.
Que diabos. Ninguém pretendia bancar o herói, mas Deso precisava de feno, além de uma estrebaria aque​cida. Encarando as necessidades práticas, Leon esque​ceu o bom senso. Em silêncio, entregou as rédeas a Tudur, apontou o portão aberto, cobriu a cabeça com o capuz e esgueirou-se para as sombras da muralha.
Tudur levou o animal através da entrada e Deso fez o trajeto mexendo as orelhas, dançando e saltando obstáculos imaginários, enquanto as ferraduras res​soavam nas pedras arredondadas e cinzentas. Os cor​vos, que circulavam no alto, voaram mais baixo, talvez para avisar que estavam à espreita.
A jovem saiu mais uma vez, com as tranças negras soltas e balançando por baixo da rede, as saias esvoa​çantes e pés que mal tocam o solo. Vinha carregando um cesto largo cheio de carne e pão.
— Depressa, Telyn, já passamos da hora!
Um jovem imberbe a seguia, vestido com túnica ver​de e calções amarelos, trazendo outro cesto.
— Isto é uma loucura — o menino resmungou. — O toque de recolher já soou. Os portões devem ser fechados!
A jovem riu, sem importar-se com o aviso e Leon admirou o riso franco e suave.
— Será que esses coitados devem ficar com fome só por que já passou da hora? — A jovem ficou séria. — Aproximem-se, meus bons camaradas. Trouxemos pão para todos.
Os murmúrios se elevaram entre os pedintes e ou​viu-se uma voz.
— Não é seguro, Brenna. O ar está carregado de perigo!
A jovem ergueu o rosto e Leon pôde ver-lhe as fei​ções. Ele, que em geral não prestava muita atenção em detalhes, foi atraído por aquela fisionomia.
Sentiu um aperto na garganta. Ela o lembrava o anjo de seus sonhos. Nunca vira olhos escuros tão belos ou pele tão alva. Não era uma beldade no sentido exato da palavra. A boca era muito grande, o queixo pro​nunciado e as maçãs do rosto muito largas. Mas o resultado era mágico e o encantou.
Ela sorriu, mostrando os dentes perolados, e esten​deu a mão com a palma para cima.
— Venha, senhor, há o suficiente para todos — ela declarou e deslumbrou-o pela segunda vez.
Leon hesitou. Ela esperou.
— Venha — ela insistiu, com voz musical.
Leon foi preso em um redemoinho de conscientiza​ção, preso por dois olhos negros, luminosos e afastados, por cima de um nariz reto e fino. Olhar inteligente e compreensivo. Ele sentiu o rosto em fogo e as veias salientes no pescoço. Ficou imóvel e tenso. Pensou que deveria estar parecendo um tolo, como um aldeão inex​periente, aturdido por causa de uma mulher.
Sentiu-se inteiramente fascinado por ela. As pernas não lhe obedeciam, o que nunca lhe acontecera. Cada passo parecia carregado com um potencial de calami​dade. Por que as pernas o traíam? E se ele tropeçasse e caísse?
Perturbado, fechou mais a capa. Suas botas ecoaram um refrão severo.
Brenna. Brenna. Brenna…
Finalmente ele parou e, por ser bem mais alto, fi​tou-a de cima. Eles se entreolharam e, por um mo​mento, a jovem mostrou-se intrigada. Aos poucos, Leon entendeu o que via ali. Um reflexo de suas próprias emoções. Ela tentava esconder o aturdimento.
Os trovões tornaram a ribombar, com intervalos me​nores. Brenna sacudiu-se, como quem voltava de um transe e estendeu uma pequena tigela com leite. Já não sorria. Mirou-o gravemente.
Ao encostar os dedos nos dela, Leon teve vontade de tocar em outros lugares. Desejou mil coisas, todas perigosas.
— Meu bom camarada, o senhor já tem cicatrizes suficientes para adornar uma tapeçaria. Afaste-se um pouco. Encontrarei um ungüento que deixe a pele mais esticada… — Ela curvou a cabeça e, com o cenho fran​zido e corada, analisou um garoto que chorava. — E essa tosse, criança, precisa de uma tisana de ervas… esta ferida em sua mão pede um cataplasma…
Leon teve a impressão de que suas orelhas pegavam fogo, como um rapazola que vê um tornozelo feminino pela primeira vez. Escondeu o nariz na tigela, agra​deceu em voz baixa, bebeu tudo, deixou a vasilha sobre a mesa e afastou-se.
O céu clareou um pouco, com o vento que afastavaas nuvens. Leon estreitou e levantou os olhos. Os cor​vos grasnaram, voaram em círculos e desapareceram na torre.
Pelo canto do olho, percebeu um movimento. Alerta, não se mexeu e fitou novamente o grupo dos quatro mendigos. Um deles afastou-se da muralha e mexeu-se devagar, na direção da poterna, com a mão no quadril. Voltou, ao perceber que Leon o observava.
Leon inquietou-se e deduziu que problemas se avi​zinhavam. Era como sentir, mais do que ouvir, os ecos do sino de alarme clamando no ar a partir do posto de observação mais afastado, bem antes do inimigo ter alcançado o portão do castelo.
A jovem deu um grito de protesto. Os mendigos! Parecia que ela recusava o pedido de pouso por uma noite.
— Não — ela negou e recuou.
— Então há abrigo para mulheres e crianças, mas não para os homens? — o esmoleiro protestou, mal-humorado.
A jovem não se perturbou. Uma mulher e duas crian​ças foram conduzidas para dentro e a jovem, postan​do-se na entrada, barrou o acesso dos outros.
— Eles precisam de ervas e poções. O senhor não precisa disso. Vá embora e procure uma cama na es​talagem da aldeia.
Apesar do coração disparado, Leon continuou no mesmo lugar. Enquanto tivesse o punhal nas mãos, não lhe importava que fossem quatro assaltantes ou mais. Com a adaga, a inteligência, a experiência e a força já vencera muitos em uma luta. Mesmo sozinho e sem a espada, seria um adversário temível para aque​les homens.
Os raios iluminaram o céu, os pedintes, o castelo e a jovem. Por um instante, eles se entreolharam. Ela semicerrou os olhos, abriu ligeiramente os lábios e in​clinou a cabeça. Sem piscar, encarou-o com intensidade e suspirou. Era como se dissesse: Eu sou aquela que o senhor estava procurando, e o senhor é aquele a quem eu procurava.
Leon admirou-se daquele pensamento, mas não teve tempo de encontrar uma resposta. Voltou a atenção para os homens maltrapilhos que se aproximavam pou​co a pouco.
Ainda não, Leon advertiu-se. Seria melhor esperar mais um pouco.
Cinco passos mais.
— Dê-nos uma esmola e iremos embora — disse um, já bem perto da jovem, fitando a bolsa pendurada no cinteiro. A ameaça velada consistiu na mão no quadril.
Ela não se intimidava facilmente.
— O senhor tem coragem de ameaçar-me? Já lhe dei comida e não darei mais nada! — Ela enfrentou o homem com o olhar chamejante e os punhos fechados na cintura.
Leon escutou o sibilar conhecido de metal e prague​jou. Murmúrios elevaram-se às suas costas.
— Ele tem uma espada! — alguém gritou.
As pessoas fugiram em todas as direções, gritando. Os que haviam procurado comida e esmolas afasta​ram-se, deixando o espaço vago.
— Eu vou ajudar. — O rapaz de roupas coloridas passou correndo por Leon e impediu-lhe a investida.
O homem deu uma estocada por cima da mesa. Leon sentiu a dor na têmpora e viu manchas girarem ao redor dos olhos. Abaixou o punho fechado. O balde fora partido ao meio e havia leite derramado leite em todas as direções. A jovem foi empurrada.
— É um contra quatro e eu já peguei a bolsa!
Leon não hesitou mais. Ergueu a mão e em uma verdadeira chicotada atingiu o assaltante embaixo da orelha. O homem arregalou os olhos e balançou a ca​beça como se fosse um boneco. Leon percebeu os olha​res aterrorizados dos outros, diante do homem dobrado sobre si mesmo.
Chutou a arma da mão do homem, quando um outro avançou com o porrete para golpeá-lo. Investiu e apa​rou a mão erguida. Com a mão livre, virou-o pelo co​tovelo. A seguir agarrou o terceiro que saltava em sua direção, girou-o como se fosse um galho seco e sentiu a armadura sob a roupa.
Apertou o pescoço do seguinte e jogou-o contra a muralha.
Naquele momento, ouviu-se um estrépito de pés. Servos e homens armados saíram pela poterna. Os soldados vinham com as espadas em riste.
— Peguem-nos, peguem-nos!
Os quatro meliantes dispararam. Telyn saiu atrás, liderando o destacamento na perseguição.
Leon ficou parado, respirando normalmente. Nem mesmo usara a adaga.
— A senhora está bem? Em nome de Deus, por que esse descuido? — Ele demonstrou irritação. — Uma sentinela de plantão evitaria tais incidentes, milady.
— Sinto muito — Brenna murmurou, com a face brilhante. — Foi tolice minha. Eu deveria ter pedido ajuda mais cedo.
Leon a fitou e acalmou-se, curioso. Ela estava com a roupa molhada, o véu torto, as tranças negras de​sarranjadas. Os olhos brilhavam. Talvez estivesse mais assustada do que gostaria de admitir.
— Isso não deveria ter acontecido — ele falou, ainda com tom áspero.
Ela recuou com os lábios trêmulos e sacudiu a cabeça.
— Nunca fui ameaçada por ninguém.
— Uma idiotice dessas poderia ser fatal. A senhora não pensou nas conseqüências? Ou que poderia expor outros ao perigo? — Levado por memórias amargas, a voz dele foi dura e não convincente.
— Eu não estou ferida! — Ela sacudiu a cabeça e sorriu levemente. — Acho que foi uma feliz coincidên​cia o senhor estar aqui, quando os homens atacaram.
Leon sentiu a boca seca. Passara muitos anos em meio a lutas e não estava acostumado a elogios. Mas sob aquelas palavras fúteis, sentiu uma tensão nervosa que beirava o medo.
— Não acredito em coincidências, oportunidades ou sorte. Mantenho sempre minha arma afiada. — Leon não conseguiu evitar o cinismo.
Brenna fitou-o com altivez.
— Se todos os cavaleiros mostrassem a sua coragem, sir, os cruzados teriam conquistado a Terra Santa.
— Mas que diabos! Sou um homem, não um exército cruzado, senhora — ele exclamou.
— O senhor é corajoso e ousado.
— No meu oficio, vive-se diariamente sob ameaça de morte — ele respondeu, pragmático.
Mas eu vi uma demonstração de muita valentia! Sem armadura e sem arma, o senhor pôs os cães para correr. O senhor não conhece o medo!
— Não tenho nada a perder, portanto nada a temer — Leon retrucou com brusquidez.
Ela mordeu o lábio e franziu a testa, à procura de uma resposta sensata.
— Um homem que não teme nada, não ama nada. E sendo assim, que graça tem a vida? — Brenna per​guntou com veemência.
— Nunca encontrei uma mulher que falasse comigo dessa maneira. — Leon começava a sentir dor de cabeça.
— Nem mesmo sua esposa? — Ela fitou-o, desafiadora.
— Não tenho esposa.
Brenna o examinava atentamente, como a um touro no mercado. Leon irritou-se e cerrou os dentes. Os anos vividos junto a uma espada haviam enterrado sua sensibilidade e qualquer chance de enternecer o coração de uma mulher.
Naquele momento, ela pareceu dar-se por satisfeita. Já entendera o que a intrigava.
— E eu não tenho marido. Ainda.
— Se tivesse, a senhora seria mais circunspecta.
Ela inclinou a cabeça orgulhosa e abriu as mãos em leque.
— Aqui não é bem assim.
— Não acho que nas fronteiras seja diferente — Leon concordou, com um toque de ironia. — A senhora sabia que eu teria de intervir, se fosse necessário.
A jovem corou, mas não desmentiu a afirmativa.
— Sim — ela afirmou com sinceridade e deu a im​pressão de que se tratava de uma característica de seu caráter.
Ouviram-se passos e o tinir das espadas nas bainhas. Os soldados retornavam com dois dos meliantes e a bolsa da jovem. Os servos gritaram e aplaudiram. O rapaz recolheu os cestos e apressou-a para que entras​se, dizendo que não tardaria a chover e que sir Edmund ficaria irritado.
— Não havia nada que eu quisesse mais de que sua vinda a esta colina. — Ela segurou-lhe o braço com a mão delicada. — Bem-vindo a Dinas Bran.
CAPITULO II
Seria possível? Sim, sim! Ele estava ali! Ele viera!
Resoluta, ao lado do cavaleiro e de Telyn, Brenna entrou no pátio externo, rodeou o muro e passou pelo pátio interno cheio de gente, sem importar-se com a agitação dos guardas e o bruxuleio das tochas, com as faces ocultas pelas sombras e as vozes chocadas.
Não havia tempo para argumentos ou explicações. A atitude mais certa e civilizada seria levar o noivo para cima, onde ele poderia banhar-se e preparar-se para asfestividades.
Nem mesmo se incomodou em olhar os assaltantes que eram leva pelos guardas. Embora não preten​desse causar problemas, quebrando o toque de recolher, o mal já fora feito. Logo os meliantes estariam sendo interrogados em uma cela. Já não era mais de sua conta. Estava por demais envolvida em sentimentos estranhos e tão intensos que lhe provocavam vertigens.
Ele era seu noivo! O homem de seus sonhos! E viera até ali!
Brenna o ouvira rir, um riso aveludado e doce, e sentira que seu coração se abria. Quando eles se en​treolharam, o recém-chegado ficara sério. Com certeza, a reconhecera.
Era ele, o único!
Era mesmo curioso. Ela rezara para que ele não a desapontasse e viesse. Naquele momento, sentia uma inquietude por sua chegada tardia, por sua aparência peculiar. Mostrara-se um homem curioso. Ficara à margem da multidão, na sombra, com a mão pousada no que parecia ser a bainha de uma espada. Sisudo e ameaçador.
Brenna engoliu em seco. Não havia outro igual a ele. Um calor estranho invadiu-a com profundidade. A mão do cavaleiro, pesada em seu ombro, tinha a solidez do ferro. Pensou em aconchegar-se naquela energia… embora não soubesse como.
Aquele homem podia ser seu noivo, mas não passava de um desconhecido. Parecia impossível que fosse o mesmo de seus sonhos. E como pudera tão facilmente tornar-se “o único”?
Até seu cavaleiro chegar, desprezara inúmeros pre​tendentes e deixara as tias em pânico. Fixara-se em seus sonhos até deixar o avô impaciente e ordenar que a neta se casasse. Ela somente consentira porque com as constantes escaramuças para defender as fronteiras, os cofres do avô estavam vazios e ele precisava dos bens doados pelo noivo à família da noiva. Era o valor da noiva. Além disso, o amável Aubrey de Leeds pa​recia mais conveniente de que Keith Kil Coed!
Seja razoável, Brenna.
Aquele cavaleiro diferente de todos os outros trans​cendia os mais belos sonhos. Devia ser uma idéia louca, trazida pelas tensões do dia. Não podia permitir que as emoções dominassem a razão.
Eles subiram a escada e entraram no castelo. Os archotes presos ao longo da parede iluminavam o gran​de hall, onde as tapeçarias drapejavam ao vento. Da cozinha vinha um cheiro delicioso de carne de veado sendo assada. Servos iam e vinham, carregavam ban​dejas com cidra e cerveja.
Brenna parou e mandou um pajem chamar sua cria​da. Telyn, ainda segurando os cestos, bateu-lhe no bra​ço com delicadeza.
— Obrigada, Telyn. Serviu-me muito bem hoje.
O escudeiro estalou a língua.
— Milady, será melhor não incomodar sir Edmund com as novidades deste… senhor. Ele já está à mesa e me culpará por deixá-la sair sozinha. Não houve prejuízo. Sua bolsa foi recuperada e se eu…
— Tudo bem, Telyn. Eu assumo a responsabilidade. Pode ir comer. Eu levarei o cavaleiro até seus aposentos.
— Mas…
— Descerei em seguida. Por favor, diga ao vovô que sir Aubrey chegou e subiu para refrescar-se.
Não houve objeções, apenas um murmúrio educado, de quem não sabia o que responder.
— Obrigada, Telyn.
Depois que ela dispensou o pajem, o cavaleiro vi​rou-se e fez a capa cinza ondular.
— Deso! — ele exclamou, com voz rouca. — Deso!
— É esse nome de seu cavalo? Tudur levou-o até o estábulo. Os cavalariços tomarão conta dele. — Brenna fitou-o de viés. — Ele é mesmo um cavalo de batalha?
— Sim, é um veterano de guerra e um dos melhores — Leon explicou, com naturalidade, mas seus olhos brilharam de orgulho.
Brenna começou a arfar. O capuz do cavaleiro caíra nas costas, o que revelara cabelos que pareciam feitos de ouro. Seu noivo tinha queixo austero e quadrado, e uma boca bem delineada. As cicatrizes leves na metade do rosto traduziam a coragem e o valor de um guerreiro. O manto de lã sobre os ombros não escondia a largura dos mesmos e sugeria uma grande força.
Brenna sentiu o coração palpitar forte. Tratava-se de um homem admirável e bem mais jovem do que imaginara. Não teria mais de vinte e oito anos e su​perava em muito as expectativas.
Então por que aquele desassossego?
Aubrey não devia ser um cavaleiro comum. Embora soubesse como defender-se, usasse uma camisa de li​nho de tecedura fina, túnica e botas em couro flexível fixas com cavilhas de metal adornado, ele viera sem armadura e sem escudo. Em algum lugar perdera a couraça e as armas. Ah, mas um cavaleiro desmontado na arena não era privado de seu equipamento?
Não importava. Ele viera.
— Vamos.
Ereta e com as tranças balançantes, Brenna condu​ziu-o pela porta interna, por uma escada curva e es​treita de madeira até os aposentos situados no alto da torre. No final do corredor, parou e puxou uma cortina de couro.
— O senhor pode dormir aqui.
O cavaleiro tropeçou e quase machucou-a, ao agar​rar-se em seu braço. Devagar, a pressão diminuiu e ela sentiu-se aliviada.
O quarto era circular, com janelas altas e estreitas. Havia fogo na lareira e a câmara brilhava com a ilu​minação da lamparina de óleo que estava em cima de uma mesa baixa cheia de rolos de pergaminho e rol​danas de madeira.
Brenna caminhou sobre o piso forrado de junco olo​roso, curvou-se, ajustou o pavio da lamparina e fitou o cavaleiro, surpresa com as batidas desordenadas de seu coração. Por um momento, ela apertou a mão no peito e acalmou-se. Por que o nervosismo? Era seu noivo!
Leon retardou-se e parou na entrada, evitando fitar a anfitriã. Sua fisionomia determinada estava desti​tuída de emoções. Parecia uma escultura de pedra.
Brenna esqueceu todas as regras de hospitalidade. Imaginou o que poderia, pelo menos, falar com ele. Conversas sem importância, só para preencher o si​lêncio. Mas seu coração batia temeroso e constrangido.
— O senhor está cansado? — ela balbuciou. Ele deu de ombros. Brenna aproximou-se, pegou-o pelo braço e sentou-o em uma cadeira, como se ele fosse uma criança, sem importar-se que era um homem com uma cabeça a mais de altura é pesasse três vezes mais de que ela.
— O senhor se sentirá outro depois de um banho, e de um copo de vinho aquecido e adoçado com espe​ciarias. Dentro da arca há sabão, ervas e toalhas lim​pas. O colchão é de plumas.
Brenna corou e admoestou-se pelo que dissera. Na certa dera a impressão que não era mais donzela ou que não via a hora de ir para a cama com um homem.
Leon limitou-se a tirar o manto, atirá-lo sobre uma cadeira e fazer um aceno com a mão.
— Está ótimo.
O quarto simples, em madeira e pedra, era espaçoso e a mobília, confortável. No ar, um aroma floral. Sobre a mesa, ao lado de um recipiente com tinta e uma pilha de rêmiges, havia uma gamela cheia de pétalas de rosas de fragrância suave.
Brenna ajoelhou-se, atiçou o fogo com uma vareta de ferro e levantou a cabeça. Ambos se entreolharam novamente. Ela reparou que os olhos dele eram da cor da floresta e sua respiração acelerou-se.
— Era o quarto de meu pai. A cama veio da França. Brenna percebeu logo que tocara em um ponto sen​sível. Dois sulcos profundos apareceram no rosto de Aubrey, desde as narinas até os lados da boca severa.
— Posso assegurar-lhe, milady, que esse sacrifício não é necessário. Eu viajei muito e estou cansado. Um catre em qualquer canto é o suficiente.
Brenna surpreendeu-se com a brusquidez do cava​leiro. Ele parecia horrorizado. Ela o teria ofendido? Ou não a achara atraente? Essa idéia atingiu-lhe a vaidade, o que em geral era uma coisa incomum.
Ela sempre fora admirada pelos homens e nunca se preocupara muito com isso. Mas daquela vez, o fato a incomodava. Pela primeira vez na vida, um homem provocava a sua curiosidade e o seu interesse. E esse mesmo homem recusava-se a partilhar a cama com ela, como se fosse uma leprosa.
Brenna levantou-se e apertou as mãos trêmulas. En​direitou as costas e ergueu o queixo, sem demonstrar a aflição por sua própria aparência. O vestido tinha sido de sua mãe. Era surrado e coberto de barro. Ainda por cima, estava despenteada.
Não se conformava. Queria muito ter dado uma boa impressão. A hospitalidade de Dinas Bran era bem conhecida.Um visitante recebia abrigo, comida, cer​veja, carne para os cachorros, aveia para o cavalo, tudo generosamente. A seu noivo, não podia oferecer menos.
Os cavaleiros tinham um traço comum, a honra. Brenna refletiu que talvez fosse também orgulho e era o que o recém-chegado tinha em excesso. Se ao menos ele a fitasse, afirmasse a confiança com aqueles lábios generosos e lhe trouxesse um brilho de certeza ao coração… Porém ele olhava em frente, contido e distante. O que ela deveria fazer?
— Sir Edmund não gosta de transgredir os costumes. Ele me perguntará o porquê da recusa. O que devo dizer?
— Que é muita bondade, mas…
— Permita-me esclarecer que meu pai há muito não faz uso desta cama. Ele foi morto na batalha de Acre.
— Perdão, milady, mas não estou me sentindo bem.
O cavaleiro parecia febril, o que já era de se esperar. Sabe lá Deus por quanto tempo ele viajara com a capa ensopada.
— Nesse caso, eu insisto — Brenna afirmou, afo​gueada. — Além disso, aqui temos o costume de dar as melhores acomodações para nossos nobres visitan​tes. Não quero que digam que Dinas Bran hospedou-o de maneira indigna.
Leon abraçou-se e encarou-a. A primeira vista, pen​sara que o rosto da jovem lembrava magia. Naquela altura, teve certeza disso. Na verdade, era o semblante mais extraordinário que já vira. A pele branca e macia estava corada. Os olhos eram escuros, brilhantes, cu​riosamente inclinados. Os cílios longos, as sobrance​lhas e os ca1~los eram negros como a noite. A única imperfeição, o queixo um tanto pronunciado e pertinaz, somente lhe salientava a beleza. Sem ele, seria ado​rável. Como era, tirava o fôlego.
Ele se encostou na parede e coçou o rosto suado. O quarto era muito quente. Ficava difícil respirar e pensar.
Para que tantas dúvidas?, Leon perguntou-se. Se estivesse sob o efeito de um encantamento, nada po​deria ser feito. Se fosse apenas febre, um banho res​friaria os sentidos superaquecidos. Após tantos dias em cima de uma sela, suas roupas estavam empoeiradas, sujas e suadas. Ele mesmo não estava em me​lhores condições, a despeito de ter tomado banho e lavado as roupas nos rios gelados.
Exausto, nada lhe pareceu melhor do que água quen​te, sabão e navalhas para barbear-se. A energia gasta durante a missão de salvamento tinha seu preço. Sen​tia-se bastante desalinhado e um tanto alquebrado. Passou a mão na testa que latejava.
— Aqui também há o costume, como no continente, que a senhora da casa ofereça aos hóspedes assistência no banho? — ele perguntou, receoso.
Brenna ficou surpresa, sem saber o que pensar. O cavaleiro sugerira que ela o atendesse? Ou se tratava de um simples comentário? O embaraço cedeu lugar ao ressentimento. Por que tudo tinha de ser tão con​traditório? Será que ousaria fazer uma coisa daquelas? O avô jamais permitiria que ela ajudasse a banhar os hóspedes. Era uma tarefa destinada às criadas. Mas, afinal, tratava-se de seu futuro marido!
— Se o senhor assim o desejar… — Brenna tentou parecer calma.
— Devo acreditar em seu discernimento e espero que não venha a arrepender-se de sua decisão.
Sobre o que ele falava?, Brenna cismou, pasma. Ele havia pago o valor estipulado à família da noiva e finalmente chegara. O casamento estava preparado. Por que a hesitação? Estaria ele se referindo ao que aconteceria depois no leito nupcial? O mesmo leito que rejeitara?
— É o mínimo que posso fazer, milorde.
Leon sentiu a cabeça girar. Procurou traços de hi​pocrisia no rosto da jovem, mas só viu sinceridade. A razão aconselhou-o a ter cautela, mas seu corpo dolo​rido falou mais alto. Sentiu calafrios e a vertigem aumentou. O calor alternava-se com o frio. Parecia… amor. Mas como podia pensar em uma coisa daquelas?
— Receio, milady, que a senhora esteja me favore​cendo em excesso. Sou apenas um soldado, não um poderoso senhor — Leon ainda encontrou forças para dizer.
— O senhor disfarça bem, milorde — Brenna co​mentou, já insegura e um pouco irritada. — Acredito que o senhor é mais do que isso. Mas não pretendo discutir. Se o senhor quiser que eu acredite que é um guerreiro modesto, que seja. Não me importo com a sua classe social, embora o senhor não pareça ser um homem sem títulos.
— Fico feliz que pense assim.
— E qual ser racional não faria o mesmo? — Brenna disfarçou e fitou-o com um olhar desconcertante. — Ouvi dizer que o senhor é um grande cavaleiro, afável e devoto. Será que eram boatos falsos?
Leon teve a impressão de que uma corrente de ar tocava-lhe o rosto e sua expressão tornou-se gélida. Um calafrio percorreu-lhe a espinha e por um instante o quarto pareceu escurecer. Sentiu a pulsação forte nos ouvidos. As persianas chocalharam, uma depois da outra. O vento uivava, rugia e movia as sombras nos cantos. Do lado de fora a noite era iluminada pela chuva e pelos raios. Tudo aquilo uma grande tolice que o faria rir mais tarde, com um bom copo de vinho na mão. Mesmo assim…
— Como pode ter ouvido uma coisa dessas? — Leon agarrou-lhe o pulso. — A senhora só me conheceu esta noite.
Brenna não entendeu o motivo da voz cortante. Te​riam sido os rumores errôneos? Fitou os olhos do noivo, verdadeiros pedaços de gelo e o mau gênio dos Brenig voltou a atacá-la.
— É surpreendente como as novidades chegam da corte, mas começo a pensar que tudo não passa de exagero. O senhor vem com tantos rodeios e não me parece nada amável!
Leon não se perturbou. Após um pequeno período de silêncio pesado, soltou-lhe o pulso.
— Provavelmente a senhora tem razão.
Brenna sentiu calor. Nada seguia como o plane​jado. A precaução e a culpa lutaram com desejos va​gos e mal formados até que, finalmente, o dever ditou uma atitude mais sensível. Mas a curiosidade voltou a atormentá-la.
— Disseram que o senhor não viria, que estava en​volvido em amizade estreita com o rei e que a corte necessitava de sua presença. Ambos sabemos que isso não é verdade, não é mesmo?
— A senhora tem sido mal informada, milady. As vezes, a estrada segue caminhos tortuosos.
— Então o senhor também poderia ser rotulado de matreiro. Quando um homem de sua estatura social viaja sem escudeiros, pode-se supor… que ele esteja disfarçado?
Leon admirou-se da rapidez de raciocínio da jovem. Conhecia muito bem as regras da hospitalidade. Nunca se perguntava a um visitante: De onde?, Para onde?, Quantos? ou Por quanto tempo?. Sobretudo, jamais indagar: Quando? No minuto seguinte, ela passaria a supor que se tratava de um homem do rei.
— Perdoe-me. Não pretendia desrespeitá-lo.
— Não importa.
— Eu nem percebi. Pensei… talvez… — Brenna pro​curou uma frase racional para dizer e não encontrou. — Pelo estado de suas roupas, eu me pergunto se o senhor foi perseguido na estrada.
Leon franziu o cenho. Teve certeza de haver detec​tado um tremor na voz da jovem. Entretanto o brilho de seu olhar deixou-o intrigado. A jovem continuou parada, orgulhosa, sem demonstrar desprezo ante o aspecto andrajoso de suas vestes sujas de viagem.
— Milady, fui perseguido como um destruidor de corações. — Ele não resistiu à zombaria.
— Então o senhor deve ser temido?
— Milady, isso depende de suas intenções.
Ele podia quebrar não só o coração, mas também os ossos, Brenna advertiu-se. A ansiedade invadiu-a e ela começou a tremer. Mordeu o lábio. Teve de lutar contra a vontade de tocá-lo, nem que fosse casualmen​te. Era um sentimento novo, em nada parecido com os que já conhecia. O coração batia em descompasso. Precisava controlar-se, mas o bom senso havia sumido.
— Senhor! Eu… me sentiria melhor se me permitisse ter certeza de que está sendo cuidado.
— O que milady pedir… Não poderei negar. Estou resolvido a agradá-la.
Brenna procurou agarrar-se ao subterfúgio de ma​neira cautelosa e tocou-lhe o rosto.
— Não — ele disse, segurando-lhe a mão.
Ela estremeceu, ao ver o ligeiro tremor das pálpebras do cavaleiro.
— Essas ofensas não foram punidas?
Os olhos dele faiscaram e depois voltaram a esfriar. Leon não gostava daquela lembrança.
— Estouvivo, não vê?
Eu não acredito em coincidências.
Brenna observou que o homem à sua frente traduzia a honra mais perfeita e pura na face marcada, na linha do nariz e nas sobrancelhas que destacavam a intensidade do olhar.
— Então isso resolve a questão.
O sorriso da jovem, capaz de iluminar as trevas, provocou uma sensação estranha em Leon. Um cre​scendo de alegria. Mas por quê? Por ela não demons​trar pena e nem repulsa por seu rosto cheio de cica​trizes? Mas esse fato isolado não poderia desencadear a nova emoção que fluía e refluía dentro de si.
Com a mão livre, ele tocou involuntariamente a tú​nica de couro na altura do peito e sentiu a algibeira interna, onde escondia um pedaço manchado de fita. Era o seu tesouro guardado durante anos. Crescera quase acreditando que era uma salvaguarda que o de​fendia das tentações indignas de um cavaleiro cristão.
Era um teste de coragem e uma vergonha arriscar a confiança de uma jovem.
— Pode ir. — Leon soltou-lhe o pulso.
— Muita generosidade de sua parte.
Com suavidade, Brenna tornou a tocar-lhe no rosto. Leon experimentou um calor súbito que o reviveu e acalentou. Era uma tensão deliciosa que lhe apertava o corpo inteiro. Seu coração batia em descompasso. Um frêmito percorreu-o do peito à virilha. Não ima​ginava que pudesse ter tantos anseios, em meio a tal pesadelo.
Brenna foi incapaz de resistir à vontade de tocá-lo, de acariciar levemente as cicatrizes. Era uma ousadia. Sentiu-o estremecer e fitou-o, esboçando um sorriso.
— Estarei excedendo os limites? — ela perguntou.
“De muitas maneiras!”
— Um pouco. — Leon esforçou-se para manter a calma.
Lembrou-se das palavras de seu mestre-de-armas em Whittington: É preciso encarar o que mais se teme. Enfrentar e vencer. Primeiro conhecer a si mesmo, paro depois conquistar uma legião de adversários.
Naquela época, era um menino de doze verões, in. consciente do destino que o aguardava.
Devagar, os dedos da jovem prosseguiram o caminho tortuoso. Leon ficou imóvel, com medo até de respirar. A proximidade de Brenna o deixava tonto. Uma rigide2 dolorosa atingiu-o nos limites do couro de sua calça. Não ousou se mexer, com medo de denunciar-se.
Leon fechou os olhos e inspirou fundo. Permitiu-se um raro momento de satisfação dos próprios desejos. Depois, com a experiência de uma longa prática, forçou a tentação emocional de volta a um canto escondido de sua mente. Aprendera, há muito tempo, que a única maneira de sobreviver era manter os sentimentos sob rígido controle e um coração de ferro. Funcionava como um tipo de armadura. Depois de tudo o que acontecera no ano passado, nada mais havia a temer.
Eles estavam bem próximos. Brenna sentiu-lhe o calor e o odor leve, porém peculiar. Almíscar, couro e lã molhada. A respiração dele era quente e suave. Teve esperança de ser beijada. Ah, e como ela desejava aqui​lo! O coração bateu forte, quando ela se inclinou e seu busto roçou-lhe o peito. Como seria beijar um homem?
Os lábios de ambos se tocaram. Ele era muito bonito, forte e seu beijo foi suave. Rápido. Sensacional. Quente. Com gosto de especiarias. Brenna sentiu o corpo musculoso pressionado contra o seu e teve consciência de sensações desconhecidas nas regiões mais secretas.
Ele se afastou, mas Brenna não se moveu.
Os olhos do cavaleiro escureceram até a cor esme​ralda. Franziu ligeiramente o cenho e fez urna mesura, com a expressão de novo fria.
— Sinto-me honrado. Espero que minha presença não lhe traga maiores transtornos.
— A honra é nossa e esperamos proporcionar-lhe conforto. Pedirei que um criado lhe traga vinho e um tabuleiro com carne. E também roupas limpas.
Dito isso, ela saiu.
Deu dois passos e foi obrigada a parar. Elen, a velha babá e atual criada pessoal, bloqueava o corredor, com os braços nos quadris.
— Santa Maria, o que quer dizer isso, Brenna?
Brenna deu um pulo, como quem pretendia levan​tar-lhe os braços, e começou a imitar a dança alegre dos menestréis. Seguida pela outra, irrompeu no hall cantando e dando gritinhos.
— Elen, aconteceu o inacreditável! Meu cavaleiro… Ele veio! Ele é adorável e eu sempre o amarei! A se​nhora sabe disso.
Elen demonstrou a desaprovação por tanta exu​berância.
— Telyn nada disse a respeito de um cavaleiro. Con​tou apenas que um dos pedintes veio socorrê-la.
— Onde já se viu um mendigo a cavalo? Aliás, ele tem um belo animal. Elen, Aubrey é magnífico! Ele é exatamente como imaginei que fosse meu cavaleiro. Belo, forte e confiante. Eu nunca vi audácia, coragem e destemor tão grandes. Não tenho a menor dúvida de que ele tem todas as virtudes heróicas e uma bon​dade inigualável.
— A menina me parece encantada.
Estupefata, seria o correto. E sob o efeito de uma atração violenta. Seu ombro ainda formigava no lugar onde ele tocara. Os lábios ainda guardavam o sabor do beijo. Brenna deu uma risada.
— Ele tem todos os traços de um herói. O rosto é de um guerreiro. Tem olhos adoráveis, verdes e brilhan​tes. E os cabelos dourados… Por aqui, são incomuns.
— Por minha alma, Brenna, isso me parece um delírio.
— Não é!
— Uma pessoa sujeita a uma paixão distorce tudo.
— Há paixões… e paixões.
— Milady sabe muito bem que Keith Kil Coed man​dou avisar que virá propor uma aliança forte com Dinas Bran e que também terá grande prazer em selar o pacto, casando-se com a senhora.
Brenna fitou a ama com impaciência.
— A chegada de meu noivo e nosso casamento no sábado deverá suspender qualquer ambição por parte de outro pretendente. Isso só pode ser uma brincadeira…
— Gostaria de ter-lhe dito mais cedo, mas não queria incomodá-la antes de ter certeza.
Brenna ressentiu-se.
— Nós aceitamos o dinheiro de Aubrey. Estou com​prometida com ele.
— Keith Kil Coed é magnífico. Além disso, ele é galês.
— Eu não me casarei com ele!
— Minha filha, não há outra escolha. Ao final do inverno, ele começou a reunir um exército. Lady Agnita disse que sir Edmund suspeita. de que ele virá contra nós para forçar uma aliança e usará nossas forças no avanço em direção a Gwynedd, a leste.
— Mas estou comprometida com Aubrey de Leeds!
— Compromissos podem ser anulados.
— Não nas vésperas das núpcias!
— Não há o que discutir. Sir Edmund tem o direito de decidir sobre seu destino e está irritado com sua última tolice. E ficará pior, se não a vir à mesa. Ponha o vestido azul, seja amável com seu avô e verá como o amansará depressa.
— Mesmo que vovô queira renegar o acordo e pre​tender que eu me case com aquele presunçoso do Kil Coed, meu cavaleiro chegou, como em um passe de mágica. E isso é um bom presságio.
— Não diga isso! As paredes têm ouvidos — Elen sussurrou, fazendo o sinal da cruz na sobrancelha e no peito. — Sempre há criados prontos a levar histórias de bruxaria e druidismo.
— Mentiras e rancores velhos. Ninguém fará isso.
— Cuidado! Não posso impedir que ouvidos hostis escutem palavras impensadas. Não quero que a mi​nha menina seja chamada de bruxa ou queimada na fogueira.
Brenna sentia muita ternura por aquela mulher gri​salha, idosa, sempre tão boa e indulgente. Embora re​conhecesse que a velha ama era supersticiosa.
— Elen, a senhora está tentando assustar-me. Mas lembre-se de que isso não é muito fácil.
— Essas conversas são sempre perigosas — Elen murmurou. — Brenna, eu a vi crescer. Foi uma criança que corria e pulava à maneira dos meninos, falava quatro línguas e até lia. Isso não se espera de uma mulher. É uma inversão da ordem natural das coisas.
Brenna mordeu o lábio para não rir.
— Também sei costurar, tecer lã, assar pães, cul​tivar ervas, cuidar dos doentes e ainda canto para as abelhas.
— Inúmeros talentos em uma pessoa só é algo sobrenatural. Por isso acham que tem parte com o demônio.
— Absurdo. As abelhas gostam do meu canto e em agradecimento, produzem mais mel. Não entendo de magia. Ah, se eu soubesse como, tiraria todo o poder de Kil Coed.
— Não lhes dê mais oportunidade de falatórios!
— E quem se importa?

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