Buscar

Fred Hoyle Geoffrey Hoyle OS HOMENS MOLECULARES

Prévia do material em texto

�
OS HOMENS MOLECULARES
�
FRED HOYLE E GEOFFREY HOYLE
OS HOMENS 
MOLECULARES
Tradução
AGATHA MARIA AUERSPERG
Digitalização: Argonauta
�
Para J. B. e Jacquetta
�
I. PÓ LUNAR
Fiquei observando impaciente, enquanto minha bagagem emergia de uma espécie de crematório ao contrário. Estava mal-humorado e constatei que, graças a Deus, essa geringonça colocada no aeroporto, para poupar trabalho, era somente semi-automática. Em tempos recentes encontrara um sistema totalmente automático, um milagre tecnológico, que arrancava as etiquetas das malas que estavam saindo e escondia as malas que chegavam em misteriosos armazéns que ninguém conseguia descobrir.
A minha profissão tem dois aspectos. Aparentemente, sou um membro graduado da Universidade de Cambridge. Por baixo do pano eu sou o que você chamaria de um espião industrial — o que não tem nada a ver com a política ou com assuntos militares. Por estranho que possa parecer, minhas duas atividades combinam muito bem, sendo que a mais respeitável é um complemento natural para a outra, menos respeitável. Quando estou em Cambridge, meu trabalho consiste em resolver questões altamente acadêmicas, e essa atividade, por sua vez, me abre as portas de todas as indústrias químicas do mundo. Quer dizer, confere-me um status que me permite entrar sempre pela porta da frente após constatar umas e outras coisinhas que minha própria companhia, a United Chemicals, quer saber.
Nessa manhã específica estava irritado e mal-humorado porque tivera que ir até os Estados Unidos em troca de nada. O episódio do solo lunar começou quando a NASA anunciou que plantas cresciam mais rapidamente nele do que em solo terrestre. Por quê?
Era óbvio que a resposta estava nos traços de algum elemento, presentes no solo. O crescimento das plantas não depende somente dos componentes básicos da terra, mas também de pequenas quantidades de materiais raros. Sendo os materiais raros da Lua diferentes dos da Terra, tudo indicava que a solução do problema estava nesses traços de materiais. A United Chemicals estava interessada por causa da possibilidade de introduzir os mesmos materiais raros na agricultura comum, sob forma de um superfertilizante. Minhas dúvidas e minha falta de entusiasmo se originavam em minha convicção de que haveria somente uma probabilidade em cem de que o problema pudesse ser resolvido de uma maneira economicamente satisfatória.
Estava escolhendo mentalmente algumas observações especialmente sarcásticas para um dos diretores da United Chemicals quando aconteceu o incidente que, finalmente, alegrou meu dia. Consegui apanhar minha mala após uma demora bastante cansativa e estava caminhando tranqüilamente pelo saguão da alfândega quando fui atropelado e empurrado, para um lado, por um homem vestindo um terno numa violenta tonalidade de azul, e com um chapéu coco. Estava tentando recuperar minha mala quando um grupo de policiais passou por mim, correndo atrás do homem que já estava se distanciando. Pensei que devia ser um pé-de-chinelo muito desajeitado.
Quando, porém, saí do edifício do aeroporto, às 7.30 de uma manhã sombria e gelada de janeiro, compreendi que o sujeito tinha boas possibilidades de escapar por causa da escuridão e do nevoeiro.
O vento era muito frio e pulei rápido para dentro do primeiro táxi, dizendo: "United Chemicals, no Strand".
Na rodovia o táxi manobrou para mudar de pista e ultrapassar um ônibus da companhia aérea. Quando emparelhamos com o coletivo lancei um olhar distraído para suas janelas. Um rosto duro e achatado estava olhando para mim. Mas o rosto não tinha nenhum significado particular. O que me interessou foi o terno cor azul elétrico que o homem estava trajando. Durante o percurso até o Strand continuei raciocinando a respeito dos motivos que poderiam levar qualquer pessoa a vestir um terno daquela cor, especialmente durante uma fuga.
�
II. IN VINO VERITAS
Cambridge é um lugar muito deprimente durante o inverno. O vento leste varre o brejo em volta, transformando as arcadas da ciência em pedras geladas. De fato, as condições atmosféricas são muito parecidas com os sentimentos que serpenteiam como rios ocultos debaixo da aparência plácida da cidade.
Minha faculdade é Emmanuel, mas os acontecimentos que vou relatar a seguir ocorreram em Jesus. Um meu colega químico convidara-me para a festa da Candelária, nos primeiros dias de fevereiro, apenas uma semana após minha volta dos Estados Unidos.
Acredito que os convidados eram setenta e cinco, e todos homens. Sentamo-nos em mesas compridas e a luz das velas provocava sombras tétricas e oscilantes. Enquanto tomávamos mais e mais vinho o nível de som foi gradativamente aumentando, e acabamos todos gritando como loucos. Carswell, o colega que me convidara, um homem reconchudo e jovial, e que eu sabia estar em contato com o serviço de contra-espionagem do Governo, insistiu no fim do jantar para que um pequeno grupo o seguisse até o apartamento dele, para tomarmos o último trago da noite.
Já estávamos a ponto de sair da sala de jantar quando um colega de idade avançada e cabelos alvos e compridos atraiu minha atenção: estava caçando uma mosca sobre a toalha em sua frente. Batia com persistência raivosa com o guardanapo, mas o inseto parecia estar dando pulinhos de um lado para o outro, evitando o guardanapo e a corrente de ar que produzia. Finalmente o velhinho, que parecia tomado pelo desespero, bateu com a mão espalmada no centro da mesa.
— O velho Simons tem reações inacreditáveis, — observou Carswell enquanto se levantava.
— Parece ser bastante robusto, — retruquei, enquanto os pratos voltavam a assentar firmemente na mesa. O velho retirou a mão, mas debaixo dela não havia sinal nenhum de uma mosca amassada. Sorri e saí da sala de jantar atrás de Carswell.
— Lembro-me de tê-lo visto durante o verão.
— E sem dúvida ele estava podando os arbustos.
— Suponho que esteja aposentado.
— Oficialmente, sim. De fato, porém, ele continua escrevendo o segundo volume de sua História da Inglaterra. Faz trinta anos que o escreve.
— E o que foi que aconteceu com o primeiro volume?
— Deve ser um best-seller por ter agüentado tanto, — disse Carswell entrando no apartamento. — Senhores, queria apresentar-lhes o doutor John West.
Acenei com a cabeça em direção aos três homens que já estavam reunidos ali.
— Aqui temos mais um historiador, Chris Spot-tiswood, — continuou Carswell indicando um homem magro parecido com Chalky nas histórias em quadrinhos de Giles.
— Este é o reitor, professor Underwood, e este é o senhor Harrison de Londres.
— Boa noite, doutor West, — disse Harrison e levantou-se para me cumprimentar. Era alto e magro, vestido corretamente de smoking com uma daquelas camisas engomadas de tipo antigo.
— Quem aceita um pouco de vinho do Porto? — perguntou Carswell, tilintando os copos.
Ficamos sentados conversando educadamente por algum tempo, e digerindo nosso jantar. A conversa, sendo o grupo pequeno, foi corrente e não confusa. A um certo ponto, descobriram que Harrison era um policial dos Serviços Especiais. Eu disse "a um certo ponto descobriram", porque pessoalmente me inteirei do assunto no instante que o vi. Ou melhor, quando o vi poderia ter dito que ele era algo especial, como um policial, agente de contra-espionagem, ou coisa parecida. Durante minhas atividades menos respeitáveis já conheci freqüentemente o mesmo tipo de pessoa.
Enquanto Harrison divertia o grupo contando algumas piadas, examinei mentalmente a situação. Minhas atividades não poderiam interessar à polícia. Poderiam, talvez, interessar aos fiscais do Ministério da Fazenda. Nesse caso, aliás, eles se interessariam muito mais pela United Chemicals que por mim pessoalmente.
De fato, você não pode financiar atividades de espiões, quer sejam do governo ou da indústria, de uma forma que possa aparecer de maneira satisfatória num balanço. Qualquer agência do governo tem um orçamento especial que está fora doalcance de uma fiscalização normal. As indústrias não podem ter orçamentos especiais desse tipo ou pelo menos não podem tê-los de maneira oficial. Por isso, é necessário infringir o regulamento. É uma situação absurda, mas acontece.
Após um certo tempo o grupo se dissolveu. Harrison interceptou-me enquanto Carswell cumprimentava os outros na porta.
— Doutor West, acredito que o senhor chegou de Chicago no vôo 99 da TWA? Na noite de 23 de janeiro?
Apanhei ostensivamente meu caderno de anotações e comecei a folheá-lo.
— Certo. Saí de Chicago a 23 de janeiro, pela TWA. Não sei, porém, o número do vôo.
— A que horas o senhor chegou?
— Acho que eram mais ou menos 7:15 hs.
— Pois então tratava-se mesmo daquele vôo. 
Comecei a ficar furioso quando percebi que Carswell não estava voltando para perto de nós. Parecia claro que arranjara aquele encontro de propósito.
— Inspetor Harrison, se o senhor está com perguntas a me fazer — e se as perguntas forem oficiais — por que não me procurou diretamente?
Fiquei bastante surpreso quando vi que Harrison estava ficando sem jeito. Coçou a orelha.
— Para falar a verdade, não tenho nenhuma pergunta oficial a lhe fazer. Estou meio perplexo.
— Por quê?
— Por causa de um homem com chapéu coco. 
Possivelmente tive uma reação qualquer, porque Harrison perguntou logo:
— Você o viu?
— Como não! Ele me atropelou. Deu-me um empurrão perto da alfândega.
— Nesse caso você poderia descrevê-lo?
— Infelizmente não posso. Quando consegui me recuperar ele já estava longe. Minha atenção, por estranho que pareça, estava tomada pela cor do terno e aquele chapéu coco.
— Um terno azul?
— Super-azul.
— Você não tem lembrança nenhuma do homem?
— Tenho certeza que tinha um corpo compacto. Não quero dizer pequeno — quero dizer atarracado.
— Você reparou nele no avião? 
— Não.
— Na fila de identificação?
— Não.
— Você não lembra o que aconteceu após a aterrissagem? Quero dizer, até que você chegou ao saguão da alfândega?
— Tive que andar um bocado, desde o desembarque até a identificação. Acelerei o passo, em parte porque queria fazer um pouco de exercício e, em parte, porque desejava tomar um dos primeiros lugares da fila. Ultrapassei uma dúzia de pessoas. O tal homem não estava entre elas. O pessoal da identificação deixou-me passar de imediato. Em seguida tive que esperar bastante pela mala.
— Você viu o homem — digo, enquanto esperava?
— Não.
— O que foi que aconteceu quando você apanhou sua mala?
— Existem duas saídas: uma com um letreiro PASSAGEIROS COM OBJETOS A DECLARAR, ou coisa parecida, e a outra para os que não tem nada a declarar. Passei pela segunda. A trombada aconteceu logo em seguida.
— Estou vendo. Você acha que foi uma coincidência?
— O que é que você quer dizer com isso?
— Você não chegou a vê-lo de novo?
— Não.
Era uma mentira. Tinha uma certeza quase absoluta de ter visto o tal sujeito dentro do ônibus da companhia aérea. Não estava disposto a admiti-lo, pois poderia parecer um excesso de coincidências. Não tinha a menor intenção de permitir que Harrison achasse que havia uma ligação entre mim e o chapéu coco.
— Afinal, o que foi que o sujeito fez? — perguntei.
— Gostaria de saber!
— Você deve estar sabendo de alguma coisa. Caso contrário, você não teria se dado ao trabalho de arranjar com Carswell. . .
— Desculpe-me por isso, sim?
Harrison agora estava coçando a cabeça. Tinha toda a aparência de um homem desnorteado.
— A coisa começou na identificação. Um dos funcionários da imigração começou a suspeitar de algo.
— De que?
— Começou a suspeitar a respeito do homem.
— E o passaporte dele?
— O passaporte dele estava em perfeitas condições.
— Não estou entendendo.
Harrison fez um intervalo bastante demorado e depois continuou: — Eu também acho que não estou entendendo. Quando interroguei o funcionário ele insistiu que havia alguma coisa errada com o homem. Usou essa mesmas palavras.
Era realmente engraçado. Eu pensara a mesma coisa.
— Largou o outro funcionário na mesa — a propósito, havia dois funcionários? — perguntou Harrison.
— Sim. Pelo que eu me lembre, sempre há dois funcionários.
— Pois, então, pediu ao seu companheiro de mesa para vigiar o homem e foi buscar a lista de passageiros da TWA.
— Sempre pensei que os funcionários da imigração trabalhassem com a lista na mão.
— Parece que ainda não estavam com ela.
— E o que foi que aconteceu?
— Foi tudo muito simples. O homem fugiu. Correu para o saguão da alfândega onde deu aquele encontrão em você, e saiu do aeroporto.
— Do lado de fora ainda estava escuro, com bastante nevoeiro.
— Se quiser saber minha opinião, acho que o pessoal da segurança do aeroporto foi muito relaxado.
— Por que você se preocupa tanto com isso, Inspetor?
Harrison mexeu as pernas e mudou de posição. A luz no apartamento de Carswell era mortiça, mas percebi que seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos. — Por que não devia me preocupar com isso? — perguntou.
— Vamos, Inspetor! Os Serviços Especiais não se preocupam com qualquer imigrante que foge. Deve haver algo mais.
— Talvez eu prefira não dizer.
— Claro. Pensei poder perguntar, pois você se deu ao trabalho de dar ao nosso encontro uma veste social. Você deve ter controlado o passaporte. Qual era o nome.
— Adcock. R. A. Adcock.
— Era falso?
— Sim e não. O material do passaporte era legítimo — pelo menos o papel. Acontece que nenhum passaporte foi entregue a R. A. Adcock na data marcada nele.
— Pelo Ministério de Assuntos Exteriores?
— Isso mesmo. Nada.
— Podemos concluir que quem falsificou o passaporte tem acesso ao papel oficial filigranado. Vai ter que tomar cuidado, Inspetor: pode aparecer dinheiro falsificado.
— Já pensei nisso.
— Qual era o endereço anotado no passaporte?
— Wellington Road, 19, em Pimlico.
— Aposto que nesse endereço mora uma velhi​nha toda enrugada.
— Nesse endereço mora um estivador bastante mal-humorado. Se alguém se atrever a mencionar chapéus coco na presença dele, poderia levar um soco de esquerda e acordar no Pronto Socorro.
— Continuo sem compreender de que maneira você ficou envolvido nesse caso, Inspetor. Ou porque eu estou ficando envolvido.
— Escute, West. Você não está querendo me ensinar minha profissão?
— Claro que não. Suponho que você esteja fazendo perguntas a todos os passageiros que estiveram nesse vôo?
— Todos os que eu conseguir encontrar.
— Um bocado de trabalho para um caso relativamente simples.
— Um caso simples por que?
— Falsificação e contrabando.
— Não é tão simples assim. — Harrison inclinou-se para frente e bateu em meu joelho. — Ouça isso: o nome do estivador é Ronald Arthur Adcock. Não existem dúvidas a respeito. Examinei-o de todos os ângulos. Qual é o falsário que usaria um nome verdadeiro com endereço verdadeiro? E ainda tem mais: não havia nenhum Adcock na lista de passageiros da TWA.
Comecei a perceber que Harrison realmente não estava se sentindo à vontade. Pensando bem, nem eu. Tudo era muito esquisito. Harrison e eu, apesar de encararmos as coisas de ângulos diferentes, estávamos interessados em coisas fora do comum. Considerando isso, em circunstâncias excepcionais seria lógico que reagíssemos de maneira muito mais calma do que outras pessoas. Mas esse caso estava tão afastado de qualquer experiência anterior, era tão ridículo, que estávamos desnorteados. As palhaçadas nunca se misturam com casos de capa e espada. Harrison resumiu a situação muito bem antes da volta de Carswell.
— Sempre acreditei que existia uma explicação lógica para tudo. Tomei conhecimento desse caso porque me pediram informações. Acontece que não consegui esquecê-lo. Tive que me envolver. Deve existir uma explicação para tudo isso.
Quando Carswell me deixou sair do estacionamento de Jesus estava muito escuro, pois a iluminação principal da Faculdade já estava desligada. Ele não suspeitava que eu estivesse a par de boa parte das atividades extracurriculares dele, e evitei insinuar que sua ligação com Harrisonme parecia bastante óbvia. Dirigi o carro até minha casa em Newnham, e durante o tempo todo tive a impressão de que havia alguém logo atrás de minhas costas. Nunca me sentira tão assustado desde meu tempo de criança, especialmente quando entrei em minha casa que estava às escuras.
�
�
III. A INTERVENÇÃO DA JUSTIÇA
As semanas continuaram passando com os costumeiros fatos desagradáveis registrados pela imprensa. Tumultos no estrangeiro, greves no país, demonstrações contra isso e contra aquilo, acidentes trágicos e, como de costume, um certo número de crimes violentos.
O assalto a um banco em Lewisham foi diferente só porque não foi praticado, como sempre, por um estranho mascarado armado de pistola e bombas de fumaça, mas pelo próprio caixa do banco. O caso começou a ficar muito interessante quando chegou ao tribunal. O réu, um "homem tranqüilo" de mais ou menos quarenta e cinco anos, que nunca cometera uma infração em toda sua vida, começou a negar a autoria do assalto com a maior insistência. Manteve essa mesma atitude durante todo o processo que se seguiu, afirmando que, no dia em questão, não fora trabalhar. Infelizmente não foi capaz de apresentar qualquer prova para isso. Quando lhe perguntaram o que fizera no dia do crime, respondeu que "não estava se lembrando de nada". Havia uma quantidade esmagadora de testemunhas oculares do assalto, e algumas dessa testemunhas eram seus próprios colegas de trabalho — quer dizer, pessoas com quem trabalhara durante anos — e a defesa apresentada não podia ter a menor probabilidade de sucesso. O caixa, completamente desnorteado, foi condenado a sete anos de prisão, e ninguém mais teria ouvido falar nele durante esse período pelo menos, a não ser por causa de uma extraordinária façanha de R. A. Adcock.
Uma manhã apareceu no jornal uma notícia de meia coluna com a seguinte manchete:
Discussão a Respeito de um Erro de Identificação
"Um homem que responde pelo nome de R. A. Adcock, residente na Wellington Road, 19, em Pimlico, foi recolhido ontem ao departamento de Polícia de Lewisham, após confessar ser o autor do assalto contra o Banco Nacional de Westminster, na High Street de Lewisham, no dia 23 de fevereiro. O homem será apresentado ao tribunal na sexta-feira.
No mês de abril Kenneth Sheppard, um caixa do banco, foi processado e condenado pelo mesmo assalto. Durante o processo, Sheppard negou terminantemente qualquer participação no crime e teve um colapso após ouvir a sentença que o condenava a sete anos de prisão.
Esse caso de possível erro de identificação está provocando muitas discussões. Sir William Birch, membro do Parlamento eleito em Streatham pelo partido conservador, disse: — Já foram cometidos erros demais. Este caso, após dois similares em Bradford e mais um bastante recente em Glasgow, me convenceu que estaremos todos ameaçados se permitirmos que isso continue assim. Vou pedir ao Ministro do Interior uma ampla declaração a respeito".
No dia 23, sexta-feira, fui até o Foro de Lewisham bem cedo.
— Bom dia, pode-me dizer onde se procede ao sumário dos processos? — perguntei no balcão de informações.
— No segundo andar, sala número 4, última porta à esquerda.
A sala de audiência tinha um tamanho de mais ou menos 20 x 15 m. A parte reservada para o público já estava repleta. Consegui, com algum esforço, sentar-me no banco de frente. Do ponto em que me encontrava, havia, à minha direita, uma espécie de cercado reservado para o réu, de onde uma escada descia para as celas. No centro da sala achava-se um certo número de pessoas em volta de uma grande mesa quadrada, algumas viradas para uma espécie de estrado onde havia uma mesa estreita e comprida. Atrás dela havia três grandes cadeiras de magistrado, e do outro lado mais cadeiras, com o encosto para a sala. Atrás das cadeiras dos juizes viam-se duas grandes janelas que iluminavam razoavelmente a sala.
Observei o público já sentado, para ver de que tipo de pessoas era composto. Fiquei curioso para saber se havia amigos de Sheppard, ou se eram simplesmente homens e mulheres com tendência um pouco mórbida, — como aquelas que ficam paradas à beira da calçada para ver as vítimas de um acidente automobilístico serem removidas das ferragens. Vi que na extrema direita, além do cercado reservado ao réu, havia mais gente ainda. Como eram pessoas com montes de papéis à sua frente, concluí que deviam ser representantes da imprensa. Ninguém parecia impressionado com a austeridade do lugar. Na passagem, perto da porta, duas policiais femininas estavam trocando piadas com um policial. Funcionários corriam para todos os lados numa grande demonstração de eficiência, mas aparentemente com escassos resultados.
Acho que a sala de audiência de um tribunal é dos poucos lugares, ou talvez o único lugar, em que você pode entrar e sentar sem que alguém tente impedi-lo. Parece que é o lugar em que todo mundo se preocupa exclusivamente com seus próprios assuntos. Quanto à autoridade, é possível que ela se sinta lisonjeada com a sua presença, com a premissa de que você fique quieto e comportado, e isso afinal está certo, porque você está aproveitando a iluminação e a calefação às custas do povo.
Às dez e trinta aproximadamente, os magistrados subiram para o estrado do fundo da sala: eram dois homens e uma mulher com um extraordinário chapéu vermelho. As demais pessoas que estavam na sala puseram-se de pé. Iniciou-se o expediente.
Em primeiro lugar foram despachadas as prorrogações de licenças para venda de bebidas alcoólicas em alguns bares e hotéis, em seguida os juizes deliberaram a respeito de uma série de infrações de trânsito. O maior humorista do mundo não conseguiria encontrar a menor graça naquele procedimento de um tédio mortal. Fiquei escutando, e quanto mais ouvia, mais sentia pena dos magistrados. A obrigação de ouvir todos os dias esse tipo de coisas poderia ser realmente um inferno — pelo menos na minha interpretação. Após o despacho de cada caso os assentos destinados ao público se esvaziaram um pouco, mas quando se aproximou o meio-dia, a sala começou a se encher de novo.
Harrison apareceu discretamente por volta das 11:50. Fiquei surpreso em ver que ele, como eu, sentava em meio ao público. Isso me fez pensar que, pelo menos em aparência, o interesse dele não era oficial. Vi-o entrando pela porta do fundo da sala e comecei a me esforçar para não olhar na direção dele. Achei que provavelmente me veria, mas não desejava chamar a atenção dele no caso de que fosse bastante distraído para não me ver.
Finalmente trouxeram R. A. Adcock. A maneira mais simples e mais eficaz de descrevê-lo é dizer que o homem tinha a aparência daqueles camaradas que organizam missões de paz russas. Tinha o mesmo corpo quadrado, atarracado e sólido, e a mesma expressão vazia. Os cabelos, bastante curtos, realçavam ainda mais as feições grosseiras e sem características. Sem dúvida nenhuma, o detalhe que mais dava na vista era, mais uma vez, o terno de um azul berrante.
O promotor leu o sumário de culpa e o escrivão informou Adcock de seus direitos. O homem só ficou a observar os três juizes sentados sobre o estrado. O escrivão pediu que Adcock declarasse seu nome e seu endereço. Mais uma vez, não obteve resposta. O escrivão e um dos juizes — possivelmente o juiz presidente — ficaram cochichando um pouco; em seguida o réu foi levado à poltrona reservada às testemunhas. Repetiram a mesma pergunta. Adcock pareceu ouvir, mas não respondeu nada.
— Meretíssimo, posso fazer uma pergunta ao acusado? — perguntou o promotor.
O juiz e o escrivão voltaram a cochichar durante alguns minutos. Em seguida o promotor recebeu uma resposta afirmativa.
— Seu nome é Ronald Arthur Adcock? — perguntou o promotor.
Adcock respondeu tossindo violentamente.
— Seu nome é Ronald Arthur Adcock? — o promotor voltou a perguntar.
Mais tosse.
— Por favor, responda à pergunta — exortou a juíza com voz aguda.
— Sim, — disse Adcock, e seu coaxar pareceu tosse.
— Qual é a sua idade?
Adcock mostrou as mãos e depoislevantou os dedos para indicar os anos.
— Quarenta e um? — perguntou o escrivão.
Mais tosse e finalmente um "sim".
— E seu endereço é Wellington Road, 19, Londres S.W. 1?
Uma tosse demorada e finalmente um grasnado que pareceu um "não".
— O senhor não mora na Wellington Road, 19, em Londres S.W. 1? — perguntou o juiz presidente.
Adcock fez uma série de caretas e sacudiu a cabeça. Seguiu-se um intervalo de grande confusão em que o escrivão, o promotor e os magistrados consultaram rapidamente os respectivos papéis.
— Em sua confissão à polícia o senhor decorou estar domiciliado na Wellington Road, 10, em Londres S.W. 1. Afinal, o senhor reside ou não neste endereço? — perguntou o juiz presidente com voz tão áspera que quase parecia a tosse de Adcock. Adcock ficou a observá-lo demoradamente e com muita atenção. No mesmo instante em que o juiz abria a boca para falar de novo, disse vagarosamente e com muito cuidado: — Não.
— Ah, espere um pouco. Deixe que eu pergunte de outra forma: você vive na Wellington Road, 19, em Londres S.W. 1? — perguntou o escrivão.
Adcock teve um acesso violento de tosse. Os juizes e a promotoria se consultaram e chegaram à conclusão de que se tratava de uma resposta afirmativa.
Daí se percebe que os mais simples preliminares se prolongaram até a hora do almoço. Não foi como sempre costuma ser, quando o réu recebe a notificação da data do processo após uma permanência de três minutos na sala. Adcock conseguiu levar seus inquisidores à beira de um colapso de esgotamento. Com muito alívio acertaram um recesso da corte até depois do almoço.
Esperava conseguir evitar Harrison, mas ele estava esperando por mim no corredor.
— Ah, doutor West. Vi você lá dentro. Posso lhe oferecer um lanche?
— Você é muito amável.
Não havia motivo para recusar. Tinha-me lembrado de alguns pormenores e talvez Harrison pudesse esclarecer alguns pontos para mim. Não fomos para a rua, mas descemos por muitas escadas até a cantina da polícia. Havia alguns grupos de pessoas, algumas fardadas e outras à paisana. Harrison não demonstrou querer se juntar a nenhum deles, mas foi até o balcão para apanhar chá, pão e queijo para dois.
— Então, esse é o tal Adcock.
— Ele parece mesmo ser um Adcock, mas só Deus sabe quem ele é realmente — grunhiu Harrison, cortando um pedaço de queijo.
— Você quer dizer que ambos os homens vivem naquele endereço em Pimlico? Este Adcock e também o estivador?
— Parece que sim, mas nenhum de meus homens conseguiu ver este Adcock saindo ou entrando.
Harrison fez um movimento com os pés e quase virou as xícaras cheias que estavam na mesa. Julgava-o ter passado um pouco dos quarenta, alguns anos mais velho do que eu.
— De qualquer forma, este é o do chapéu coco.
— Hum, — fez meu companheiro de mesa com a boca cheia de queijo.
— Compreendo agora porque o tal sujeito da imigração ficou preocupado. Este sujeito é realmente esquisito.
— Realmente.
— Não consigo compreender uma coisa. Esta história do assalto ao banco. Ninguém poderia tomar Adcock pelo caixa.
— Sheppard? Claro que não.
— Pois então porque a polícia está metida nesse caso?
— Por que todo esse interesse, doutor West? — perguntou Harrison lançando-me um olhar.
— Acho que por simples curiosidade. Foi você mesmo que a despertou, aquela noite no apartamento de Carswell.
— Compreendo.
— Você não respondeu à minha pergunta.
— Adcock devolveu o dinheiro roubado.
— O dinheiro não estava com Sheppard?
— Nunca foi encontrado — nem um pingo do dinheiro estava com Sheppard. Foi por isso que Sheppard conseguiu uma espécie de defesa.
— Estou vendo. Aliás não, não estou vendo. Quero dizer, não entendo como se deu o erro de identificação.
— Possivelmente foi Sheppard que apanhou o dinheiro.
— E Adcock foi quem o escondeu. Ele poderia ser a pessoa encarregada de levar o dinheiro para o estrangeiro — falei sem muita convicção.
— Pois ele não parece nada disso, não é mesmo? 
Tive que admitir que aquele sujeito de terno azul furta-cor não parecia de nada. Expliquei isso e acrescentei: — Ele não parece uma pessoa que já esteve numa sala de audiência.
— Ele parece alguém que nunca esteve antes em lugar nenhum — respondeu Harrison tomando um gole de chá.
Fiquei olhando por algum tempo para o rosto dele e finalmente resmunguei: — Nunca esteve antes em lugar nenhum? — Isso resumia as coisas de maneira apropriada. Adcock carecia de todos os reflexos sociais normais. Dava a impressão de ter passado todo o tempo entre o nascimento e a idade adulta sem ter tido contato com a sociedade humana. Era essa a característica que o transformava num elemento tão perturbador dentro da sala de audiência. Em nosso intercâmbio social cotidiano todos nós aceitamos continuamente milhares de pequenas convenções. Sem essas convenções qualquer intercâmbio normal torna-se impossível. A dificuldade estava aqui mesmo. Fora esse o problema enfrentado pelo funcionário no aeroporto.
Voltamos à sala de audiência às 14 horas em ponto. Os funcionários presentes não estavam mais sorrindo. Tive a impressão de que durante o lanche tivessem decidido não permitir mais nenhuma coisa sem sentido. De fato, tudo começou em ritmo acelerado. Mas como não podia deixar de acontecer, o método empregado por Adcock em suas respostas conseguiu cansar a promotoria. Parecia não existir jeito para obter uma resposta direta do réu. Levou mais de uma hora para chegarmos aos motivos de Adcock para tirar o dinheiro do banco. O raciocínio dele deixou todo mundo perplexo. Qualquer pessoa não tirava dinheiro do banco? O promotor, completamente desnorteado por essa resposta de débil mental, sentou em seu banco enquanto o escrivão tentava reconduzir a situação à normalidade, explicando a Adcock que ninguém tira dinheiro de um banco sem ter antes depositado o dinheiro no banco. Quando ouviu isso, Adcock respondeu com uma série de grunhidos esquisitos.
Convenci-me de que os três juizes estavam com muita vontade de condenar Adcock por ofensa à corte naquele mesmo instante. No estrado, os três estavam resmungando e cochichando indignados. Mas também era óbvio que Adcock não tinha a intenção de ofender ninguém. Sua atitude era a de uma pessoa que estava na sala simplesmente para observar o que estava acontecendo e não o de um pessoa que estivesse sendo processada por um crime.
Finalmente chegou-se ao ponto em que perguntaram a Adcock como tirara o dinheiro do banco, e que era a questão que me deixava tão perplexo. O prisioneiro começou a se mostrar muito mais animado. Suas respostas não se limitaram mais a monossílabos. Mas não adiantou nada, porque as respostas continuaram sendo muito pouco inteligíveis. Adcock disse ter impedido a um homem que trabalhava no banco de ir trabalhar naquele dia — devia ser o tal Sheppard. Em seguida fora pessoalmente até o banco, mas usando a "forma" de Sheppard. Entrara com uma pequena mala, enchera a mala de dinheiro e saíra em seguida. Fora tudo muito simples. Uma coisa de nada. Por que confessara o crime? A essa altura Adcock levantou um dedo em riste em direção aos três magistrados num gesto acusador e disse: — Para evitar a "inverdade" criada por eles. — Dava a impressão de que não Adcock, mas sim os magistrados fossem os réus no caso.
Os funcionários da corte estavam visivelmente esgotados. O promotor voltou a perguntar, repetidamente e com insistência, como era esse caso da "forma". Como era possível ir ao banco na forma de um outro homem? Após uma série de respostas incompreensíveis Adcock finalmente levantou o braço direito, como um sacerdote dando uma benção. Todo mundo reunido na sala se calou e eu tive a esquisita impressão de que Adcock estava interrompendo o processo. Após três horas e meia de perguntas e indescritíveis respostas, ninguém lá dentro estava em condições de fazer muito mais do que ficar observando.
De repente o braço direito de Adcock voltou a se apoiar sobre o peitoril do cercado. Desse jeito teve o apoio necessário para se erguer e se colocar de pé sobre um dos lados. Os três policiaisque estavam sentados ao lado quase não se mexeram. Com um pulo ágil Adcock chegou em cima da mesa dos magistrados. Com dois ou três passos chegou a se colocar sobre o peitoril da janela.
Se você ou eu tivéssemos que atravessar uma janela fechada, não sei exatamente como faríamos. Pessoalmente, acho que se tivesse tempo suficiente, daria alguns chutes no vidro e em seguida passaria com muito cuidado pelo buraco, sempre que fosse suficientemente largo. Mas se houvesse um incêndio no quarto e fosse impossível sair pela porta, provavelmente protegeria meu rosto com um braço e sairia pela janela, empurrando-a com o ombro. Mas o que vimos foi realmente inacreditável: Adcock, de frente para a enorme janela, simplesmente a atravessou. Vi quando começava a cair para a rua. Não emitiu grito nenhum. Fiquei assombrado em ver como atravessava a janela, todo de uma vez — pernas, corpo, braços e cabeça saíram todos ao mesmo tempo. Só ouvimos o tilintar do vidro quebrado que caía e logo em seguida os gritos do povo que estava passando na rua. A este ponto a sala de audiência se transformou em algo caótico.
Percebi o corpo de Harrison se mexer enquanto abandonava o assento ao meu lado. Pulei de pé e comecei a correr para o corredor.
— Venham, vocês dois, não fiquem parados aí — ouvi Harrison gritar mais adiante.
Quando cheguei ao patamar vi que estávamos acompanhados por dois policiais. Eu não tinha percebido que as ruas em frente e atrás do edifício se encontravam em níveis diferentes. A sala de audiência se encontrava no segundo andar da frente do edifício, mas a queda de Adcock fora pelos fundos. Nos fundos a altura era de pelo menos três andares. A cada curva da escada eu me agarrava firmemente ao corrimão, girando energicamente e derrapando sobre o concreto com meus sapatos de sola de couro.
Fui o último a sair pela pesada porta de madeira. A rua dos fundos não era muito larga. Os carros estacionados de ambos os lados só deixavam livre uma estreita faixa que permitia a passagem de um carro no máximo. Uma pequena multidão ficou parada observando Harrison e os dois policiais que corriam em círculos, parecendo cachorros em busca de uma pista.
— Onde diabo está o sujeito? — perguntou Harrison enquanto passava rápido por mim.
Encolhi os ombros e olhei para cima, para a janela quebrada da sala de audiências. A distância da rua era de aproximadamente quinze metros, mas assim mesmo não havia vestígios de um corpo quebrado.
— Eu vi tudo — disse uma mulher que parecia traumatizada, parando Harrison numa de suas rápidas passagens.
— O que foi que a senhora viu?
— Vi um homem caindo lá de cima.
— O que foi que aconteceu quando ele caiu ao chão?
— Fechei os olhos — respondeu ela.
— O que foi que a senhora viu quando abriu os olhos?
— Não havia nada no chão — nada na rua. Pensei que talvez tivesse imaginado tudo, mas depois olhei para a janela quebrada. Só que aqui a mulher apontou para o chão — aqui não havia nada.
— Quando a senhora abriu os olhos talvez viu algum carro se afastando?
— Não.
— Meu Deus, olhe aí!
Harrison agarrou meu ombro e apontou para o céu, onde se via uma nuvem escura. Acho que não a vimos desde logo porque ela se deslocava em frente a outros prédios. Agora estava subindo e descendo enquanto se movimentava sobre a fachada do prédio do foro. Dava a impressão de estar procurando algo. Enquanto olhávamos, entrou pela janela quebrada. Foi só naquele instante que compreendi que a nuvem escura era um enxame de abelhas.
— Não posso acreditar — berrei. — Vamos, venha comigo.
Harrison estava roçando meus calcanhares enquanto eu subia correndo por todas aqueles escadarias. Antes mesmo de chegar ao primeiro andar meu coração estava aos pulos e parecia querer estourar. Tive que fazer um esforço enorme para não tropeçar nos degraus e Harrison atrás de mim soltava palavrões enquanto subia cambaleando e dando passos em falso.
Quando cheguei ao corredor que levava à sala de audiência parei um instante para me ajeitar um pouco. Harrison passou a jato ao meu lado mas depois ficou imóvel. Acima dos gritos desesperados que vinham da sala, podíamos ouvir o zz-zzz de abelhas enfurecidas. Não precisava de muita imaginação para compreender que as pessoas na sala estavam sendo picadas por todos os lados. De repente a porta se abriu como um dique que se arrebenta e as pessoas começaram a sair de lá, pálidas e assustadas. Os olhos de um policial estavam vermelhos e inchando rapidamente. Um homem de japona verde se enfiou num canto e começou a soluçar.
Não consegui resistir à tentação. Deixei de lado Harrison que me olhava boquiaberto e comecei a empurrar os outros, abrindo passagem em direção à porta de vaivém. — Volte para trás, seu palerma imbecil, — uma voz berrou ao meu ouvido. Apesar disso entrei na sala de audiência.
O que eu vi era realmente fantástico. O ambiente estava repleto de enormes silhuetas pretas bem visíveis contra a luz das janelas que estavam no fundo. Fui empurrado com violência e caí sobre um dos bancos. Endireitei-me e depois subi no banco para ver melhor. No chão, em frente ao estrado, havia um monte de pessoas berrando e dando chutes. De repente um enxame de abelhas veio em minha direção, direto para o meu rosto. Evitei-as encolhendo-me, mas vi que havia outro enxame chegando atrás de mim. Dessa vez fui alcançado e recebi o impacto de seis ou sete abelhas enormes — repito, enormes. Cometi o erro de fazer um gesto para afastá-las de meu rosto. Como era de se esperar, levei uma ferroada. Pulei em direção à porta como perseguido por todos os diabos do inferno. Tive sorte. O caminho estava razoavelmente livre e passei para o outro lado antes que um novo enxame me atacasse. Estava tremendo e por uma ótima razão, porque o medo provocado por um enxame de abelhas é muito maior do que o medo de ser picado por um único inseto. Mas o fato que mais me assustou foi que essas abelhas não estavam voando ao acaso como qualquer enxame normal, mas pareciam organizadas, voando em grupos e atacando objetivos certos.
— Por que raio você foi fazer isso? — ralhou Harrison, enquanto eu olhava paia minha mão avermelhada que estava começando a inchar.
— Precisava ver com meus próprios olhos.
— Mas o que?
— O que aquelas abelhas estavam fazendo. Devem ter atacado os juizes e todos os outros, inclusive o promotor. Escute aqui, Harrison, logo que for possível mande tirar todas as pessoas feridas da sala e depois tranque tudo com muito cuidado — expliquei e quase esqueci a dor da picada.
— Mas por quê? — perguntou Harrison.
— Pelo amor de Deus, homem, não fique aqui parado perguntando porque. Procure fechar aquela janela quebrada. Veja se encontra um pedaço de plástico ou coisa parecida, e feche tudo.
— Você quer dizer, para manter as abelhas na sala? — Harrison perguntou como quem não quer acreditar.
— Sim, sim, sim! — respondi quase aos berros, admirado que o sujeito fosse tão grosso. Meu tom transmitiu a urgência necessária para que ele finalmente tomasse uma atitude.
Deixei Harrison dando as ordens necessárias. Estavam chegando os enfermeiros das ambulâncias e vi, também, alguns bombeiros correndo pelo corredor. Uma policial feminina mostrou-me uma caixa de pronto-socorro. Passei um remédio alcalino na picada e em alguns minutos a dor diminuiu. A policial estava me esperando — Como é possível que aquelas abelhas ficassem tão enfurecidas? — perguntou ela.
— É possível que teriam ficado calmas se ninguém as molestasse, — respondi evasivamente.
— Mas na sala de audiências não há nenhum pólen!
— É provável que elas tenham entrado por acaso — já aconteceu antes. Sabe, abelhas que invadem casas, por exemplo.
— Assim mesmo, a coisa me parece bastante esquisita — murmurou ela.
Voltei a sair para a rua. Um bombeiro estava subindo por uma escada com todo o cuidado quando o enxame saiu de repente pela janela quebrada. O bombeiro estava com sorte, pois o enxame se afastou por cima dos tetos das casas do outro lado da rua.
Fiquei refletindo que o poder da justiça não parecia ter sidomuito eficiente em seu contato com R. A. Adcock.
�
IV. INTERVENÇÃO DAS FORÇAS
ARMADAS
Harrison saiu do prédio, carrancudo e mal-humorado.
— Parece que aqui não há mais nada a fazer —falei calmamente.
— A gente não pode fazer nada nessa maldita choça. Este não é o lugar onde as pessoas fazem o que devem. Só há gente que sabe como mudar de lugar montes de papéis, em sua maioria formulários oficiais. Todo esse maldito prédio não passa de um enorme arquivo podre, — respondeu com expressão enojada e começou a andar em direção à High Street.
— Seria melhor você ir para algum lugar onde fosse capaz de obter algum resultado.
— Você tem razão. É para lá que estamos indo.
Harrison se colocou no meio da rua e parou um táxi que vinha da direção oposta. Num instante conseguiu parar o trânsito nas duas mãos e o táxi fez uma conversão. Rumamos em direção a Londres. Só quando já estávamos próximos à ponte de Westminster, Harrison decidiu desamarrar a cara.
— Tive a impressão de que você estava compreendendo alguma coisa, ainda há pouco, — disse de repente e mexeu violentamente os pés, atingindo meus tornozelos.
— É possível que eu tenha uma ou duas idéias a propósito, — admiti, observando a ruga que se desenhava em sua testa.
— Pois então, diga-me. Gostaria de saber o que você pensa.
— Sem dúvida. É que eu não estou com vontade de falar.
— Malditos cientistas de uma figa, — rosnou Harrison. — Nunca consigo uma resposta clara e direta de nenhum deles.
— É possível. Acontece que eu gosto de raciocinar antes de falar.
— Pois então raciocine depressa. Pode ser que você já não tenha muito tempo para pensar.
Fiquei me preocupando com essa última observação de Harrison enquanto o táxi atravessava Londres com uma boa velocidade, considerando a hora do dia. O motorista parou o carro em frente a algo que se parecia com um canteiro de obras, na Lambolle Road, perto de Hampstead Heath. Harrison pagou a corrida. Atravessamos a rua e entramos por uma grande porta dupla de madeira para uma espécie de pátio. O lugar estava abarrotado de pilhas de madeira e pilhas de tubos de ferro. Um monte de escadas estava apoiado contra a parede de fundo de uma casa, cuja porta de serviço parecia escondida por um misturador de cimento enferrujado.
— Que belo cenário — observei, olhando para as paredes rachadas.
Harrison abriu a porta e descemos pela escada até uma grande sala repleta de equipamento eletrônico.
— Sargento Hope — chamou Harrison.
— Aqui, senhor, — chegou a resposta de um escritório lateral.
— Dê uma boa olhada por aqui, doutor West. Vou voltar num instante.
Harrison atravessou a sala em direção ao escritório onde, evidentemente, estava querendo falar em particular com o sargento.
— Boa tarde — falei olhando para um moço sentado em frente a um painel de controle encabeçado por uma grande tela.
— . . . tarde.
— Isso é um equipamento de radar? — perguntei. 
— Se assim quiser.
O moço não parecia disposto a me dar qualquer informação útil e comecei a observar o resto da sala. A parede de fundo parecia completamente coberta por um enorme mapa operado eletronicamente, e que mostrava a totalidade das ilhas britânicas. Pequenos pontos luminosos se mexiam em várias direções em volta da área londrina.
— Helicópteros — explicou Harrison chegando atrás de minhas costas.
— Você quer dizer que está procurando aquele enxame de abelhas?
— Você está certo, por todos os diabos. O único equipamento útil que encontrei naquele maldito prédio de Lewisham foi um telefone. Dê uma espiadinha nisso — falou, entregando-me uma pasta azul. — É melhor jogarmos as cartas descobertas.
"S. I. 9," murmurei folheando as páginas. — Acontece que assim mesmo continuo acreditando que não vou poder ajudá-lo.
— Concordo com você até um certo ponto, porém, meus superiores parecem ter uma opinião totalmente diferente.
— Seus superiores parecem ter opiniões formadas.
— Sabe como é. Nunca convém discutir com os poderosos.
— Pode ser que você esteja certo. Sempre pensei que a gente precisasse ser autorizada pela segurança, para poder ter acesso a informações classificadas — enquanto devolvia a pasta azul que continha farto material de minhas atividades passadas.
— Desde quando você tem essa ficha minha? — continuei.
— Faz anos — disse Harrison indo para o outro lado da sala para observar melhor o mapa eletrônico.
— É completamente automático?
— O mapa, sim. Um computador recebe todas as informações e as transmite às posições no painel. Esses pontos brancos são helicópteros — e esses pontos azuis são aviões a jato.
— Por que estão estendendo a busca a uma área tão grande fora de Londres? — Vi que alguns pontos azuis estavam chegando a oeste até Exeter.
— Provavelmente trata-se de um pouco de espírito de competição entre as armas. Os helicópteros são do exército e os aviões supersônicos são da Força Aérea. Veja só: a Marinha está procurando no Canal e no Mar do Norte. — Harrison apontou algumas largas manchas amarelas.
Fiquei observando o mapa, percebendo o silêncio que reinava nessa sala de operações subterrâneas. Achei que deveria existir em qualquer lugar um centro de controle normal, onde as imagens se seguissem em meio ao clamor de uma Torre de Babel. Nunca consegui entender porque as comunicações entre um piloto e a torre de controle fossem mantidas num volume tão alto, e fossem ao mesmo tempo de tão péssima qualidade.
Imaginei os telefonemas que deviam estar seguindo para todos os criadores de abelhas do país, pedindo qualquer tipo de informação. Quem sabe, poderia haver até algum satélite metido na operação. Abelhinha, abelhinha, seu Grande Irmão a está observando.
Harrison de repente bateu com o indicador no vidro. Olhei atentamente e vi um pequeno ponto vermelho.
— Veja se alguém sabe o que é que é isso! — berrou ele.
— Objeto não-identificado em direção nordeste, provindo de Tottenham, pode investigar a natureza disso? — perguntou a voz do moço no painel de controle.
A sala se encheu de repente de estalos de estática e palavras confusas.
— Madrugada Vermelha chamando Alvorecer. Objeto não-identificado, deslocando-se de Tottenham para nordeste. Você poderia investigar?
— Alvorecer para Madrugada Vermelha. Vou agir.
— Ótimo, Alvorecer.
— Alvorecer para Madrugada Vermelha — o objeto não-identificado é um enxame de abelhas.
— Estou ouvindo, Alvorecer.
— Puxa, essas abelhas têm um tamanho incrível — continuou a voz entre estalos de estática. — Estão voando como se fosse uma questão de vida ou de morte.
— Diga àquele piloto para ficar fora do alcance delas, — berrei, mas era tarde demais.
— Por Deus, estão mergulhando por cima de mim. Estão cobrindo toda a parte externa do avião, — continuou a voz num evidente tom de alarma.
— Aqui Madrugada Vermelha, tire a sua lata fora do enxame.
— Madrugada Vermelha, aqui Alvorecer. Não consigo mais enxergar nada, meu pára-brisa está completamente coberto e meu limpador está encalacrado. Maldito o tamanho desses bichos enormes!
— Não entendo mais nada, — rosnou Harrison.
— Não é possível — murmurei, perdido atrás de um novo raciocínio.
— O que é impossível?
— Aquelas abelhas são grandes demais. Elas não poderiam viver tanto — continuei. — Não é possível, tendo o tamanho que têm. Elas não seriam capazes de absorver oxigênio em quantidade suficiente.
— Qual é o tamanho delas?
— Pelo que eu vi, o tamanho de uma bola de golfe.
Harrison agarrou meu braço e me arrastou para o escritório. Um homem de meia-idade, à paisana, possivelmente o tal sargento, levantou-se e saiu.
— Quer me dizer que diabo você pretende com isso, doutor West? Se você sabe alguma coisa a respeito desse assunto, seria melhor que falasse logo. — Harrison agora parecia pálido e preocupado. Foi por isso que, contrariando meus hábitos e uma natural reticência, decidi o que eu estava pensando.
— Somente sei o que posso deduzir pelos fatos — falei, sentando no canto da escrivaninha.
— Um homem se transformou, não sei de que maneira, num enxame deabelhas.
— Até agora resisti desesperadamente a chegar à mesma conclusão.
— Por quê? Você acha que isso é impossível?
— Certo. Eu sei que isso é impossível — foi a resposta decidida.
— Mas a própria vida não é também impossível?
— Como assim?
— Aceitamos a vida porque estamos acostumados com ela. Mas se pensamos nela, em termos abstratos, ela parece impossível da mesma forma que essa confusão com Adcock.
— Sinto muito, mas não acredito que esteja seguindo seu raciocínio.
— Eu disse que estava pensando em termos abstratos. Deixe, porém, que eu lhe apresente o problema em termos químicos. Aqui estão os ingredientes. Um saco de carvão. Uma meia dúzia de cilindros de ar liquefeito. Um saco cheio de terra comum de jardim e um tanque cheio de água. Agora pegue tudo e faça disso uma criatura humana.
— O que é que uma coisa tem a ver com a outra?
— Estes são os ingredientes que compõem criaturas humanas — continuei. — Carbônio do carvão, oxigênio e nitrogênio do ar, água e uma porção de outros ingredientes que você pode encontrar em solo de jardim. A natureza apanha esses ingredientes e forma, com eles, uma grande quantidade de seres vivos.
— Deve existir algo mais, para fazer isso.
— Só o conhecimento de como proceder. 
Harrison parecia pensativo. Sentou-se e começou seu costumeiro movimento de pés.
— Mas como isso acontece? — perguntou.
— Comece com a idéia mais primitiva. Vamos supor que você deseje fizer um tigre. Apanhe um tigre de verdade e faça uma cópia exata.
— Continuo a não ver como é possível.
— Você pode imaginar o procedimento. Você copia todas as partes — a cabeça, a cauda, os olhos. Mais ou menos como faz um escultor. E assim você copia cada átomo.
— Seria um trabalhão dos diabos — murmurou Harrison.
— Seria quase como copiar a Catedral de St. Paul pedra por pedra. Aliás, bem pior. Você não conseguiria ir muito longe. Mas você poderia imaginar como fazê-lo.
— E você acha que foi isso que aconteceu com as abelhas?
— Mais ou menos isso.
— Deve haver algo mais.
— Claro que deve haver algo mais. Já disse que essa era a idéia mais primitiva.
— Continue.
— A natureza não trabalha dessa forma. É muito demorada e difícil. Os construtores humanos também não trabalham assim. Quando pretendemos construir algo do tamanho de St. Paul, nem sonhamos com uma cópia exata, tijolo por tijolo.
— Certo — murmurou Harrison com o queixo sobre o peito.
— Nós trabalhamos seguindo um plano. Os planos são marcados no papel. Quando a gente olha para eles, pouco se assemelham ao prédio futuro. São abstratos. Mas contêm a informação necessária para o prédio ser construído. A Natureza trabalha da mesma maneira — baseada em planos.
— Você não está sendo muito claro.
Respirei fundo e continuei: — Está certo. Toda criatura viva, além de ser uma estrutura operante, leva dentro de si mesma os planos pela sua própria reconstrução. É isso que os cientistas chamam de código genético.
— Você quer dizer, esse assunto de cromossomos?
— Isso mesmo. Uma minúscula célula contém uma quantidade enorme de informações. Essas informações dão todas as instruções necessárias para construir um tigre — ou uma criatura humana, ou então um grãozinho de trigo. Passando de uma planta ou de um animal para um outro, as instruções mudam, mas os materiais são sempre mais ou menos os mesmos.
— Entendo. A água e o carvão.
— Isso é bastante interessante, se você reflete um pouco. Quando um tigre come um búfalo, os materiais continuam os mesmos, mas as instruções que eram de búfalo, passam a ser instruções de tigre. Então teremos o caso do mesmo material usado de duas maneiras diferentes — continuei.
— Não acredito que essa seja também a idéia do búfalo — resmungou Harrison.
— Claro que não. Cada um de nós só tem um único grupo de instruções. Só temos o que somos.
— Está certo. Mas como isso se aplica ao Adcock?
— Experimente imaginar uma criatura que tem instruções que lhe permitam ser mais do que um ser só. Talvez tenha instruções para ser qualquer coisa que queira ser. Um homem, um enxame de abelhas, qualquer coisa.
— Estou começando a perceber o que você está querendo dizer. Mas nós não temos criaturas dessa espécie.
— Aqui na Terra, não.
— Como?
— Eu disse que não temos criaturas desse tipo em nosso planeta. Não as tendo, o comportamento de Adcock forçosamente nos parece muito peculiar.
— Onde você quer chegar com isso, por todos os diabos?
— Não quero chegar a lugar nenhum. Estou simplesmente fazendo perguntas. Estou perguntando a mim mesmo qual seria o sistema mais simples para invadir o planeta. Quero dizer, do espaço. Evidentemente, não seria por meio de naves espaciais. Isso só serve para espetáculos infantis na TV.
— Pelo amor de Deus, me diga suas conclusões — gemeu Harrison, afrouxando-se na cadeira e mostrando toda sua agonia mental.
— O sistema ideal, — expliquei enquanto organizava meu raciocínio, — seria de se apropriar de todas as instruções necessárias para construir qualquer criatura do planeta a ser invadido. Você não acha? Você então não precisaria preocupar-se com o estar em contraste com o ambiente natural do planeta a ser invadido, estaria em condições de respirar em sua atmosfera, e mais centenas de outros pormenores. Você teria a certeza de poder fazer tudo o que fosse necessário.
— Porque você seria igual às criaturas que já existem no planeta — murmurou Harrison pensativo.
— Certo. Você está lembrado dos marcianos de H. G. Wells? Terminaram sua carreira de maneira inglória porque foram atacados por micróbios — bactérias terrestres. Isso não aconteceria se já tivessem a resistência normal que as criaturas terrestres possuem. E mais uma coisa: se alguém tentasse eliminar você, você simplesmente mudaria de forma. Se Adcock tivesse sido condenado à cadeia, poderia se transformar num guarda ou no diretor da prisão, da mesma forma em que — eu acho — ele se transformou em Sheppard, o caixa do banco.
— West, escute. Se há um pingo de verdade em tudo isso, o que é que podemos fazer?
— Não sei. Só sei que se apanharmos aquelas abelhas, nem que elas sejam queimadas com lança-chamas, isso não vai resolver nada.
— Presumindo que aquele conto de fadas corresponda à verdade...
— Não acredito estar muito longe da verdade. Aquelas abelhas eram grandes demais.
— Por todos os diabos do inferno, o que é isso...
— Eram grandes demais para viver muito, por causa da falta de oxigênio. Mas sendo tão grandes, a picada delas foi bem dolorida, — observei examinando minha mão que ainda ardia.
— Gostaria de saber qual será a próxima forma daquelas abelhas, a menos que já a tenham mudado —grunhiu Harrison abrindo a porta do escritório no momento em que o operador do radar gritava: — Senhor, parece que as abelhas pararam a algumas milhas a leste de Bishop's Stortford, num local denominado Floresta de Hatfield.
O grande mapa eletrônico mostrou onde era o lugar.
— Pelo menos sabemos que continuam sendo abelhas — comentou Harrison com uma ponta de satisfação. Senti-me de repente compelido a perguntar:
— Você acha que poderíamos chegar até Bishop's Stortford?
Preciso reconhecer que Harrison começou logo a tomar todas as providências necessárias para conseguir as devidas informações. A situação era bastante confusa, mas percebi que o exército estava ocupando uma área muito ampla. Os meios de transporte e os carros armados estavam bloqueando todas as estradas, desde Ongar no sul até Saffron Walden no norte, e desde Dunmow no leste até Ware no oeste. Apesar de todas as dificuldades Harrison conseguiu convencer uma alta patente a nos conceder salvo-condutos para entrar na área. A esse ponto tive a impressão de que Harrison não tencionava mais permitir que eu ficasse longe de sua vigilância.
Mas, como todos sabemos, muitas vezes os melhores planos estão fadados ao fracasso. Se tivéssemos mais dez minutos de tempo, o plano de Harrison poderia dar certo. Estava tudo em ordem: tínhamos nosso salvo-condutos e o carro já estava esperando quando,de repente, Harrison teve que atender o telefone. Vi que estava muito contrariado quando voltou para a sala de operações.
— Nunca discuta com os poderosos — observei irônico.
— O raio que os parta. Malditos! O raio que os parta — ele comentou.
Acontecera o que era óbvio. Em primeiro lugar, os superiores de Harrison haviam de querer um relatório pessoal dele, com prioridade absoluta, para saber os motivos reais de toda aquela confusão. Em segundo lugar, apesar de Harrison estar decidido a me vigiar constantemente, era evidente que, por enquanto, não estava autorizado a fazê-lo. Aliás, antes do telefonema fatal, eu já decidira me livrar dele na primeira oportunidade possível. Aquele telefonema fora uma verdadeira dádiva do céu.
— Que falta de sorte, Harrison. Que falta de sorte! Mas não se preocupe. Vou voltar e lhe contar tudo — falei com expressão hipócrita.
— Quero ser mico se você fizer isso.
— Você vai virar mico se eu não fizer isso. Dê-me o carro e os salvo-condutos. Vou estar de volta amanhã, mas não sei bem a que horas. Ou então vou para minha casa.
Eu estava com a faca e o queijo, e ambos sabíamos disso. A discussão que se seguiu foi simplesmente uma maneira de salvar as aparências.
Apanhei o carro e saí de Lambolle Road. Poderá parecer esquisito, mas minha primeira ação foi a de procurar um jornal. Continuava cheio de admiração por toda aquela frenética atividade. Parecia-me impossível que o país inteiro tivesse que ser informado a respeito da sinistra ameaça que R. A. Adcock estava representando. O jornal que comprei tinha uma manchete em tipos garrafais:
REUNIÃO DE JUIZES TERMINA A
EM PANDEMÔNIO
A reportagem trazia mais fotografias do que texto. Havia uma, realmente extraordinária, do escrivão da corte enquanto pulava em cima da grande mesa quadrada de braços abertos e com a peruca a lhe sair da cabeça. Sempre achei notável que, em qualquer tipo de calamidade, em qualquer lugar e a qualquer hora, sempre houvesse à mão um fotógrafo para bater algumas chapas. Era quase impossível imaginar a dificuldade que o fotógrafo tivera que superar para bater essas, considerando o enxame de abelhas em ação.
O repórter relatava a cena indecorosa na sala de audiência mas não mencionava o que acontecera com Adcock. Parecia que ninguém reparara na ligação entre Adcock e as abelhas, que afinal era o ponto-chave do acontecimento. Fiquei surpreso ao constatar que um repórter fosse tapado até esse ponto. Por outro lado, se o repórter não era tapado, era bem possível que o redator tivesse cancelado o episódio com um grosso lápis azul. Um redator que por muitos anos se acostumara a fabricar sensacionalismo artificial, baseando-se em notícias que nada tinham de extraordinário, não seria capaz de reconhecer um fato realmente sensacional e genuíno nem que alguém o esfregasse no nariz dele.
Mas por qual motivo as forças armadas estariam tão violentamente envolvidas? Raciocinando, achei a resposta. Todo oficial num posto de comando de qualquer unidade, grande ou pequena, de forças terrestres, aéreas ou do mar, está sempre em busca de motivações de atividades. Ele só procura um meio para levar seus homens a fazer qualquer coisa, em vez de ficar eternamente fazendo nada. Por isso, inventam manobras para manter os homens em movimento, mas ninguém se ilude com manobras. Todo mundo obedece às ordens, todo mundo faz o que deve fazer, mas sabe também que se trata de uma enorme bobagem. Agora porém, após o alerta dado por Harrison, as forças armadas estavam aproveitando essa oportunidade, caída do céu, de finalmente fazer alguma coisa, nem que fosse simplesmente cercar um enxame de abelhas.
Possivelmente, tudo começara com o primeiro telefonema urgente de Harrison, de Lewisham, pedindo um certo número de helicópteros. Mas a notícia de que algo estava acontecendo começou a circular. Outras unidades desejosas de entrar em ação não poderiam ser excluídas. Dentro de uma hora, enquanto um esquadrão após outro levantava vôo e uma brigada após outra estava sendo mobilizada, a operação virou um verdadeiro macaréu. Os comandos se reuniram em suas respectivas salas de operações e uma multidão de oficiais bigodudos começou a gritar: "Sim, senhor," e "Vou agir, senhor". Tentei imaginar as filas de inúmeros carros armados que engarrafavam o trânsito nas proximidades de Bishop's Stortford.
Continuei a rodar para o norte pela A 11, passando pela Buckhurst Hill. As árvores que beiravam a estrada de ambos os lados criavam um cenário sinistro. Já começava a me sentir cansado quando finalmente percebi luzes piscando, que anunciavam a primeira barreira.
— . . . noite, senhor — disse o policial enquanto eu abaixava o vidro.
— A noite não parece muito boa?
— Não, senhor — respondeu enfiando a cabeça pela janela para ver melhor o rádio da polícia que se encontrava debaixo do painel. Entreguei o salvo-conduto que recebera de Harrison.
— felicidades. É preferível que vá o senhor; eu pessoalmente nunca gostei de abelhas — disse o policial apagando sua lanterna e devolvendo o salvo-conduto. — O caminho melhor é chegar até a estrada de terra e depois virar à direita. Existe uma placa indicando a floresta de Hatfield.
— Existem mais barreiras pelo caminho?
— Isso eu não sei, senhor.
Encontrei facilmente o ponto em que deveria virar à direita, pois havia uma grande oficina lá perto, e consegui desenvolver uma maior velocidade por aquela tranqüila estrada secundária que passava entre campos cultivados. Hatfield Heath estava cheia de veículos militares e soldados. Entretanto, ninguém parecia muito interessado em mim. Rodei vagarosamente, atravessei a estrada principal A 414 e voltei para o campo. À beira da estrada havia veículos militares parados e soldados sentados no chão.
Levei um tempão passando e repassando por estradinhas secundárias até encontrar a placa que assinalava a floresta de Hatfield. Eu procurava uma placa branca normal e visível, mas essa era de outra cor e colocada mais baixa que o normal; assim sendo, passei em frente sem vê-la durante algumas voltas. A entrada na floresta era duas milhas mais adiante. Estacionei o carro no limiar e desci, pois estava com muita vontade de esticar minhas pernas. Eu levara quase quatro horas para percorrer mais ou menos cinqüenta e cinco quilômetros.
— Parado! Quem está aí? — gritou uma voz na escuridão.
— Um amigo — respondi.
— Aproxime-se para identificação. 
Atravessei uma cerca de gado e caminhei por algo que parecia uma trilha limpa. Aproximei-me de um grupo de soldados e logo alguém acendeu um possante feixe de luz que foi dirigido para meu rosto.
— O que é que você está fazendo por aqui? — perguntou uma voz muito bem modulada. Entreguei meu passe militar especial. O feixe da lanterna se abaixou e meus olhos começaram mais uma vez a se acostumar com a escuridão.
— Doutor West? — O feixe de luz voltou a me ofuscar.
— Sim.
— O que é que eu posso fazer pelo senhor?
— Gostaria de ver o local em que as abelhas foram avistadas pela última vez — respondi, esforçando-me para descobrir o rosto de quem estava perguntando, apesar do feixe de luz.
— Isso é mais fácil dizer do que fazer. — A voz hesitou, enquanto o homem lia mais uma vez uma nota de Harrison.
— O exército não poderá se responsabilizar. . . — continuou ele.
— Compreendo perfeitamente que o exército não pode se responsabilizar.
— Nesse caso. . . muito bem. Thompson, leve o doutor West até a Seção 4.
Um moço que carregava uma arma mortífera saiu da escuridão. Caminhamos durante algum tempo. A trilha estava cheia de buracos repletos de lama. De vez em quando via a brasa de um cigarro ou ouvia palavrões à meia-voz.
— O senhor é alguma espécie de crânio? — perguntou o soldado quase timidamente.
— Isso mesmo. Uma espécie. Quando foi que as abelhas foram vistas pela última vez?
— Lá pelas sete, perto do lugar para o qual estamos indo. Danada estupidez, mobilizar todo o maldito exército por causa de um enxame de abelhas. Não entendo porque não borrifaram simplesmente uma boa quantidadede inseticida nessa área.
— Seria um ótimo remédio — concordei, e comecei a especular se os poderosos teriam se valido desse meio. Ouvimos um farfalhar entre os arbustos mais próximos. Thompson estacou, tirou seu rifle do ombro e acendeu a lanterna. Por um instante não vimos nada. Em seguida percebi um rabinho branco entre as gramas altas. "Lebre", expliquei. O soldado apagou a lanterna, mastigou um palavrão entre os dentes e continuamos nosso caminho. 
— Parado! Quem está aí? — A ordem chegou num sussurro quando saímos da trilha e entramos numa estreita picada entre as árvores.
— Um seu danado amigo — respondeu meu guia.
— Aproxime-se para identificação e mantenha a voz baixa.
— Trouxe um convidado para você, sargento —disse Thompson. — Este é o doutor West. Ele quer saber onde se encontram as abelhas.
— Muito bem, soldado. Doutor West, bem-vindo à nossa festa.
Thompson fez continência no escuro e se afastou, com certeza para voltar perto do oficial com voz excepcionalmente bem modulada.
— Receio que o senhor não vai poder ver muita coisa essa noite — disse o sargento.
— O senhor viu as abelhas lá pelas sete, é isso?
— Não, eu não as vi, eu só as ouvi. Estavam fazendo tanto barulho que pareciam um maldito motor.
Meus olhos já estavam bem acostumados com a escuridão. Vi que o sargento tentava inutilmente ilustrar suas palavras com gestos.
— Desde então não ouviu mais nada?
— A essas horas acredito que elas devem estar num sono ferrado — respondeu o soldado. — Isso, se não estiverem já todas mortas.
— Como assim?
— O Quartel-General anunciou que toda essa área foi borrifada com inseticida algumas horas atrás. Veja só. — Apontou sua lanterna para o solo, coberto de insetos mortos. Mas não havia abelhas.
Assim, tinham mesmo usado inseticida — fechando as porteiras, pensei. Falei:
— Os entomologistas ficarão muito amolados com isso.
— Hum.
— Ninguém ouviu ruídos estranhos? — perguntei.
— Não sei, não. A floresta está cheia de ruídos. Uma hora mais tarde o ruído do motor de um avião que estava nos sobrevoando aliviou um pouco a tensão que estava se avolumando dentro de mim, como conseqüência dos ruídos da floresta. Por alguns instantes, tudo voltou ao nível do mundo civilizado e conhecido. Logo depois, tudo o que eu podia ouvir era o vento nas copas das árvores. De repente um uivo prolongado e que aumentava gradativamente de intensidade, despertou a atenção de todo mundo.
— O que foi isso, sargento?
— Como é que posso saber, danação do inferno?
— Pareceu-me um animal.
— Acertou na cabeça do prego — respondeu o sargento, sarcástico.
O uivo foi ouvido mais uma vez, muito mais forte. Qualquer coisa que fosse, não poderia estar muito longe.
— Vamos investigar.
— Está bem, sargento. Como quiser.
Havia aproximadamente oito homens. Apanharam suas armas apoiadas num jipão estacionado à beira da trilha e, em seguida, começamos a nos adentrar cautelosamente pela mata espessa. A criatura não estava longe e não foi difícil achá-la. A luz da lanterna iluminou um animal branco e peludo que, pela aparência, parecia um lobo, apesar de ser bastante avantajado para esse tipo de animal. Antes que eu pudesse fazer um gesto para impedi-lo, o sargento apontou seu rifle e atirou. O animal, em vez de cair como teria sido lógico, pareceu se desdobrar, e de repente vimos dois. O primeiro animal agora estava acompanhado por outro. Ambos foram envolvidos por uma verdadeira nuvem de tiros. Como num filme com efeitos especiais, a floresta se encheu de animais, como se os lobos imortais do inferno tivessem chegado para ajudá-los.
Dei alguns passos para trás enquanto os lobos brancos continuavam avançando debaixo de uma saraivada de projéteis supostamente mortais. Os soldados continuaram a atirar até que os lobos chegaram bem em cima deles. Aí o fogo parou e aconteceu mais uma vez aquela coisa estranha que só acontece num filme: os soldados desapareceram. Saí tropeçando desesperadamente da picada e cheguei mais uma vez à trilha.
Tive muita sorte e achei o jipão. Sentei nele e comecei a remexer atrapalhadamente nos controles, falando comigo mesmo entredentes, sem parar. O motor finalmente pegou. Estava num ponto em que nada mais me importava, só queria sair dali. Dei marcha a ré e bati numa árvore; em seguida, fui para frente, esbarrando em árvores novas. Na orla da floresta um grupo de vultos brancos se acercou do carro. Estercei com violência tentando afastá-los. O carro ficou correndo pela trilha esburacada enquanto um dos animais, plantado em cima da capota do motor, se virava para me olhar. Em seguida, como se tivesse recebido um sinal, o animal pulou com as quatro patas para o alto e sumiu na noite.
R. A. Adcock mostrara quais eram suas capacidades. Nenhum soldado estaria mais disposto a enfrentá-lo, porque os rifles se tornam inúteis quando eles não matam, mas transformam as criaturas como costumava fazer Circe, a feiticeira. Os lobos continuaram uivando durante todo o tempo em que perduraram as trevas, como se estivessem se divertindo das ações dos homens.
�
V. A OPINIÃO DOS CIENTISTAS
O azul profundo do céu anunciou a chegada do dia. Acho que estava cochilando, jogado no assento do jipão, porque fui acordado por um soldado que me ofereceu uma xícara de chá e uma mensagem dentro de um envelope de aparência muito oficial. Meus olhos ardiam como se estivessem cheios de areia, por isso esperei acabar o chá antes de abrir o envelope e retirar uma folha de papel que também parecia oficial. Entretanto, era simplesmente uma mensagem de Harrison convidando-me peremptoriamente a voltar para Londres — o que aliás era minha intenção fazer de qualquer maneira. Quando o céu clareou, cessaram os uivos dos animais. A grama verde e as árvores tinham uma aparência tão normal que parecia até difícil se lembrar da funesta inquietação da noite anterior.
Quando consegui sair da área controlada pelos militares só levei mais meia hora para chegar a Lambolle Road, em Londres. Ainda era bastante cedo e não havia trânsito: até os motoristas que gostavam de evitar a hora do rush ainda não tinham saído de suas casas.
— Onde foi que você se meteu? — perguntou Harrison no instante em que entrei pela porta dos fundos do prédio aparentemente abandonado.
— Estive dirigindo.
— O exército levou quase três horas para entregar-lhe uma mensagem.
— Por que essa pressa toda? — perguntei, notando que um relógio na parede estava marcando as sete e quarenta e cinco.
— Você terá que aparecer numa reunião de alto nível. Tem só o tempo de tomar banho e comer alguma coisa.
Enquanto tomava banho e me barbeava refleti sobre os acontecimentos e tive a impressão de que R. A. Adcock, até o momento, mostrara-se bastante comedido em seus contatos conosco. De fato, só tinha passado uma descompostura na justiça e consumido uma pequena fração de nosso exército bem armado, supereficiente e ultra-organizado. A minha imaginação se recusava a considerar as conseqüências no caso de R. A. Adcock se decidir a se transformar num virulento bacilo de peste.
Harrison não estava mostrando nenhuma disposição de largar o telefone e decidi tomar meu desjejum. Ouvi trechos de conversa que indicavam que a reunião de alto nível seria, nada mais e nada menos, no número 10 de Downing Street. Seria uma reunião especial dos assessores científicos do Primeiro Ministro, exigida pelos jornais que agora já estavam publicando todos os acontecimentos.
Enquanto íamos para Whitehall, Harrison contou-me ter relatado minhas observações da tarde anterior. Seus superiores dos Serviços Especiais decidiram que elas deviam ser conhecidas, também, pelas autoridades em Whitehall. Era intenção deles que as informações chegassem ao conhecimento de, no máximo, uma dúzia de pessoas. Mas pelo tipo da informação, ela não poderia ser mantida secreta durante muito tempo. Não estava se tratando de alguma arma secreta ou de algum tratado diplomático: a coisa era tão extraordinária que, logicamente, seria amplamente discutida. Ao término de uma hora,a coisa ficou conhecida por umas vinte pessoas e, logo em seguida, por quarenta. Finalmente, pela imprensa. Daí tornou-se pública e por isso eu estava a caminho de Whitehall, bem barbeadinho e pronto a ser despedaçado por uma comissão de cientistas.
Não sou uma pessoa de natureza nervosa, mas a coisa que justamente teria mais probabilidades de me deixar uma pilha de nervos era a perspectiva de aparecer em frente a uma comissão dos mais aquilatados cientistas do país, os quais, ainda por cima, já tinham estudado minhas loucas declarações aos jornais.
Em Downing Street, na altura do número 10, havia grande quantidade de repórteres e o pessoal da televisão. Harrison abriu caminho naquela parede humana empurrando com o ombro, e eu o segui de perto. Ele murmurou algo para os policiais que estavam guardando a entrada, mas assim mesmo eles insistiram para que ele mostrasse sua identificação. Do lado de dentro, fomos convidados a ficar numa espécie de sala de espera. Alguns minutos mais tarde um rapaz, que devia ser um secretário, entrou e disse: — Por favor, por esse lado, doutor West.
— Da frigideira para a brasa — resmunguei passando pela porta. Na realidade, já me sentia muito menos nervoso, porque vi que Harrison não assistiria à reunião. Sua função fora simplesmente de me acompanhar como uma espécie de guarda, e isso me deixou bastante irritado.
O interior do prédio era muito maior de quanto esperava. Muitos acres de parede eram cobertos por retratos e fotografias de personalidades políticas, o que dava ao ambiente um certo ar de museu. Talvez um epitáfio apropriado para todos aqueles políticos poderia ser o seguinte: "Passamos por aqui, mas nunca vivemos, respiramos ou morremos aqui."
Obriguei-me a voltar à realidade quando a porta do Gabinete se abriu à minha frente. O salão era mais comprido do que largo. À primeira vista, calculei que havia umas trinta e cinco pessoas já presentes. Conhecia alguns cientistas de vista. A reunião era mesmo de altíssimo nível porque, além do Primeiro Ministro, vi que lá estava o Ministro da Defesa, o Secretário de Educação e Ciências e algum vice-ministro mais novo. A reunião era presidida, não pelo Primeiro Ministro, mas pelo seu principal assessor científico.
Era evidente que todos já se encontravam lá havia algum tempo. A diferença entre tomar parte numa reunião desde seu início, e "ser chamado" a uma reunião por algum item especial, é sempre bastante óbvia. Não havia dúvidas sobre o fato de eu representar o item especial.
— Tomamos conhecimento do relatório do senhor Stanton — disse o presidente olhando para mim.
Quem seria Stanton? Não estava com vontade de admitir que não conhecia nenhum Stanton. Pedi para ver uma cópia do relatório. À primeira vista parecia conter um resumo de minha conversa com Harrison.
— Receio que não conheço o senhor Stanton — falei incauto.
— Como assim, não conhece o senhor Stanton? Pelo que sei, ele trouxe o senhor até aqui — observou secamente o Primeiro Ministro, batendo com insistência o cachimbo no intuito de esvaziá-lo.
— Sinto muito — respondi. — Pessoalmente, conheço aquele cavalheiro pelo nome de Harrison.
Houve uma troca de sorrisos em volta da mesa. Era claro que todo mundo estava pensando que meu exórdio fora péssimo.
— Sugiro que o senhor explique os fatos que constam do relatório — resmungou o Primeiro Ministro.
— Os senhores conhecem perfeitamente os fatos contidos nesse relatório do... senhor Stanton. Os fatos são fatos — comecei.
— Doutor West, passei anos lendo relatórios sobre os assuntos mais diversificados, e isso me forçou a chegar à conclusão de que a informação mais certa a respeito de assuntos importantes é sempre a que sai da própria "boca do cavalo", por assim dizer — explicou o Primeiro Ministro borrifando de fumo a pessoa que estava sentada a seu lado.
— Nesse caso, senhor Primeiro Ministro, aqui estão os fatos como eu os conheço. Um homem atravessa uma janela do terceiro andar e cai até a rua, de uma altura de quinze metros. Apesar disso nenhum corpo se encontra na rua. Em compensação, cinco minutos mais tarde abelhas do tamanho de bolas de golfe entram pela janela quebrada da sala de audiências. Após ferroar gravemente os juizes e os membros da corte, as abelhas saem, voando até a floresta de Hatfield, ao norte.
— É um bocado de caminho para um enxame de abelhas — observou o Ministro da Defesa.
— O caminho seria realmente muito longo, se o enxame não tivesse arranjado uma carona no pára-brisa de um avião chamado Alvorecer. Em seguida, as abelhas aterrissaram na floresta de Hatfield, onde foram borrifadas com inseticidas. Por causa disso, o enxame se transformou num lobo, ou talvez em mais lobos. De qualquer forma, no fim havia realmente uma malta de lobos, acredito eu, pela transformação de um certo número de militares.
Seguiu-se um silêncio pesado, finalmente interrompido pelo Primeiro Ministro que perguntou: — E quem é que vai falar depois de ouvir uma coisa dessas?
— Gostaria de falar, senhor Primeiro Ministro — disse o presidente da comissão. — Eu apreciaria ouvir mais detalhes a respeito da implicação microbiológica contida no relatório do doutor West. Quero saber como é a organização biológica dessa criatura.
— O senhor quer saber se a criatura muda seus cromossomos? — perguntei.
— O senhor sabe que ela muda seus cromossomos? — retorquiu ele.
— É minha opinião pessoal, mas é claro que não posso ter nenhuma certeza.
— Ah! — exclamou o presidente como se tivesse ganho um ponto importante.
— Por que o senhor pensa isso, doutor West? — interrompeu um homem magro com uma grande cabeleira que eu nunca vira antes.
— Se os cavalheiros me derem licença vou tentar reproduzir meu raciocínio a esse respeito.
— Acho bom — concordou o presidente. 
Percebi que o catedrático de Microbiologia da Universidade de Wolverhampton estava batendo seu cachimbo numa perfeita imitação do Primeiro Ministro.
— A minha idéia era a respeito de um estágio mais apurado na organização da vida, ou seja, um estágio que não depende de uma estrutura cromossômica.
— Como isso não pareceu provocar nenhuma reação, continuei: — Da mesma maneira em que, num computador, um programa pode existir em várias fases de sofisticação.
Um Subsecretário do Ministério de Tecnologia emitiu um "Ah-haa!" demorado, pois os computadores eram o pão de cada dia do MINTEC. Esperei para o camarada dizer alguma coisa, porque se mexeu e gesticulou, mas não disse nada. Continuei.
— É possível estabelecer um programa na fita magnética numa forma estrutural fixa. Isso corresponde à vida no estado cromossômico. Em ambos os casos a informação se encontra armazenada em termos de agrupamentos específicos da matéria, como os genes nos cromossomos e os sinais magnéticos na fita.
— O professor Hindmarsh é um técnico em computadores — disse finalmente o Subsecretário do MINTEC.
— Então o professor Hindmarsh sabe que os programas podem existir também numa forma dinâmica de alta velocidade — falei, olhando insistentemente para o Subsecretário que começou, rapidamente, a fazer rabiscos sobre um papel que tinha à frente. — A informação é representada por sinais elétricos que se propagam no computador com uma velocidade comparável à da luz. Parece-me, portanto, que a criatura que nos preocupa consegue, de uma forma qualquer, controlar as informações relativas à vida dessa mesma forma.
— Receio que ninguém entre nós está entendendo o raciocínio que leva o senhor a essa extraordinária conclusão — observou o presidente distraído, como quem não está prestando atenção.
Continuei firme: — O extraordinário efeito poderia ser, em parte, o resultado da habilidade da criatura de passar rapidamente de uma forma de vida a outra. Mudar de um grupo de cromossomos para um outro, seria parecido a escrever diferentes grupos de memórias numa fita magnética. E naturalmente, também, da extrema velocidade dessas passagens.
— Velocidade? perguntou o Primeiro Ministro.
— Sim senhor, velocidade. Já na hora em que o fato aconteceu,

Continue navegando