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Kyle Onstott MANDINGO

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Mandingo
Kyle Onstott
Mandingo
Girculo de Leitores
Título do original
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MANDINGO
Tradução de: MARIA CLARISSE TAVARES
Sobrecapa de: CÃMARA PEREIRA
Revisão de: LUIS BAÇÃO
EDIÇÃO INTEGRAL LICENÇA EDITORIAL PARA 0 CIRCULO DE LEITORES
POR CORTESIA DE EDITORA NOVA ERA COMPOSTO EM GARAMOND 10110 POR GRIS IMPRESSORES IMPRESSO E ENCADERNADO POR PRINTER PORTUGUESA
NO MÊS DE MARÇO DE 1977 PRIMEIRA EDIÇÃO: 20.000 EXEMPLARES É PROIBIDA A VENDA A QUEM NÃO PERTENÇA AO CIRCULO
Rancho de criação human,
Por trás das saias rodadas e do conceito de hospitalidade, do xarope de hortelã-pimenta e das magnólias em flor do Velho Sul, havia um mundo de cuja existência poucas pessoas sabiam - um mundo de violência, de crueldade, cupidez e desejo.
Mandingo traz-nos à vida real os sons, os cheiros, a terrível realidade dos ranchos de criação humana e das plantações onde homens e mulheres eram acasalados e criados como gado. .
Podem adorar Mandingo ou podem odiá-lo, mas não conseguirão pô-lo de lado, porque é um romance terrível e maravilhoso!
Dedicado à Vicky e ao Philip,
evidentemente.
Que é um inandingo?
Os Mandingos são uma tribo hamítica do Sudão Ocidental, que se crê ter origem árabe ou berbere, e quase todos os seus membros são muito perfeitos, fortes, resistentes e robustos. Os de raça pura eram de uma bela cor de cobre e tinham feições mouras, diferentes das dos negros.
0 reino dos Mandingos, com a sua dinastia que durou séculos, foi estabelecido por volta de 1200 a. D., ou talvez antes mesmo, e tinha a sua capital em Timbuctu. 0 Corão era a base da educação e o alfabetismo estava mais espalhado entre eles do que nas culturas contemporâneas da Europa.
Os Mandingos não são de modo algum negros. Estão talvez mais relacionados com os Anglo-Saxões que com os negros das florestas das Costas do Ouro, do Marfim e das Especiarias na África Ocidental.
Não obstante, foram apanhados juntamente com os verdadeiros negros e feitos escravos, quando os negreiros conseguiam adquiri-los. Valiam muitíssimo nos ranchos de criação de escravos, por causa da sua força, do seu vigor, beleza, sensibilidade e inteligência.
Só alguns mandingos, em pequena quantidade, foram tazidos para a América do Norte.
0 Mandingo do meu romance é um belo escravo à volta do qual gira uma complicada teia de violência e de cruas emoçoes.
Ky1e Onstott
Capítulo primeiro
0 velho ouviu fechar a porta da frente e os passos claudicantes no vestíbulo. Ficou satisfeito por ver que o seu filho manifestara o bom senso de mandar os negros para casa a meio da manhã e livrar-se da chuva fria e penetrante de Fevereiro. Além de se sentir preocupado por o rapaz ficar exposto aos elementos, ansiava pela companhia do filho, sempre que ele se sentia inclinado a largar as suas viagens infatigáveis e a beber com ele, em frente da lareira. Quando a porta da sala se abriu e Hammond surgiu, à entrada, sobre a larga soleira, Maxwell percebeu que o trabalho não tinha sido adiado.
- 0 Big Tom não vai rebentar comas pontes, julgo eu, como fez há três anos, mas está cheio de forças. A água já passou das marcas - comunicou o
1.ovem, com um tom de ansiedade na voz. - E esta chuva não dá sinais de parar.
- Senta-te, senta-te - acalmou-o o pai. - Há cinquenta anos que o velho Tombigbee se enfurece de vez em quando, que eu me lembre, e há-de fazê-lo mais outros cinquenta. Nunca chegou até à casa. Não consegue, estamos numa colina. Nem sequer chega às cabanas, embora uma vez inundasse a casa das reuniões, logo que a construíram. Senta-te e manda Mem preparar-te um toddy. Num dia frio como este, há-de fazer-te bem.
- Acho que não. Não tenho tempo - disse o rapaz.
- Tens todo o tempo que há - contradisse o pai. - Não podes impedir o Tombigbee de provocar inundações, desde que isso lhe apeteça. Espera-se e ele acaba por descer.
- E leva com ele toda a boa terra preta de Falconhurst - acrescentou Hammond.
- Supondo que a leva, que se há-de fazer? Suponho que a leva, filho? Não há muita. A terra de Falconhurst tem sido muito usada pelos negros, de qualquer modo. Pelo menos, não se pode empurrar o velho Tom para trás à vassourada, mesmo que tu e todos os negros o vão varrer.
Hammond encolheu os ombros.
- Acho que não - disse. - Parece que nada posso fazer. Tenho que ficar a vê-lo avançar. Além disso, pus os rapazes a cortar árvores. Tenho de ir lá.
- Este tempo não é bom para abater árvores - declarou o velho. -
Pode-se apanhar a febre dos pulmões, com esta chuva fria. Um dos rapazes pode apanhar a febre e morrer-te para ali, e vale mais do que todas as estacas e que toda a madeira que consigas cortar em dez anos; só um deles, para não falar em ti.
- Eu estou quente, pai, com este casaco e o resto. Não se rale comigo. E cortar árvores mantém os negros quentes. Não pense que vão morrer por isso.
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- Eles são tanto teus como meus, filho. Acabas por os matar com trabalho. E se tu morres, enterro-te, embora te jure que me apetecia fazer outra coisa.
Hammond atravessou a sala para beijar o pai, antes de voltar ao trabalho, cerimónia que inadvertidamente omitira à chegada. Quando se inclinou sobre o velho, pegou no copo de toddy e bebeu um golo.
- Bebe mais, bebe mais - insistiu Maxwell. - Faz-te bem, filho. De qualquer modo já está frio, para o meu gosto. Preciso de outro, e sempre posso pedir àquele preguiçoso do Meirmon que me prepare outro.
- Só um golo chega-me - disse Hammond, e depois perguntou: - 0 Mem não está a tratar bem de si? Eu já o ponho a mexer, quando voltar para o trabalho.
- Não vale a pena, não vale a pena! Eu chego para lhe dar uns berros. Mas precisa de ser endireitado. Não posso fazer isso, no estado em que estou. Tu é que tens de o endireitar. Umas mordidelas do chicote curam-lhe a preg@iiça.
- E só dizer e eu arranco-lhe a pele do rabo! Como se tem sentido? Parece que fica sempre pior, com este tempo. - Enquanto falava, Hammond levantou a mão do pai e observou as articulações inchadas.
- Mal, hoje mal. Pior que nunca, parece-me. joelhos, cotovelos, costas e mãos, todo eu.
- Há-de sentir-se melhor quando o tempo aquecer. Chegue-se bem à lareira,, deixe-se cozer - aconselhou o filho.
- E o que eu faço, eu bem me cozo - concordou o pai. - 0 melhor que há para o reumatismo é o uísque. Farto-me de beber toddy. É a única, coisa que me alivia.
- Mando-lhe um novo toddy, quando sair - disse o rapaz. - Beba bastante.
- 0 reumatismo não me estragou a voz. Posso chamar pelo rapaz quando preciso de um toddy - disse o pai, e começou a demonstrar. - Mem!
- gritou com voz estentórica. - Mern! Mermion! - chamou de novo, mais alto do que antes.
Hammond dirigia-se à sala de jantar para ir buscar Meirmon, quando o rapaz abriu a porta, com aparente alacridade, mais fingida que real.
- Não me ouviste chamar, Mem, maldito negro vadio? Arranja-me um toddy, mas bem quente! já! Não é para a semana que vem! - ordenou o amo.
- Sim, patrão, sim, siô, - disse o escravo, saindo.
- Posso falar contigo, posso aldrabar-te, posso pedir-te, e posso maldizer-te! - disse o amo severamente. - Só não posso chicotear-te, por causa do reumatismo. Mas o patrão mais novo trata disso.
0 escravo estava habituado às ameaças do patrão velho, que, até então, não tinham dado nada. Contudo, Agamerimon não apreciava sequer a possibilidade de execução de uma dessas ameaças, e olhou para o Maxwell mais novo, com as pupilas dilatadas e mostrando o branco dos olhos.
- Logo que queira eu trato dele - prometeu Hammond ao pai. - Que
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julgas tu, rapaz? Quando pego no chicote, dou com força. Separo-te a carne
dos ossos. Eh?
- Não, siô, por favÔ, siô, patrão, siô! - respondeu o negro. - Eu mexe bem. Eu não vai preguiçá mais!
Embora calculasse que a impaciência do patrão velho não passava de fanfarronada, não acreditava que o patrão mais novo falasse por falar, especialmente quando se tratava do conforto do seu pai inválido. Merimon sabia que não
era preguiçoso propriamente, mas que era negligente e
indolente e gostava de adiar as coisas, contudo decidiu tornar-se diligente a
partir dali - pelo menos durante algum tempo, até a ira do velho se acalmar. Tinha pouco trabalho, preparar os toddies para o velho, reavivar a lareira, servir à mesa, despir o patrão à noite e ajudá-lo a vestir de manhã; e
tratavam-iio bem, comia as viandas dos brancos, davam-lhe roupa limpa e
inteira, tinha pelo menos uma mulher ardente para dormir com ele, e
alternava-a com frequência. E era valioso, forte, de ombros largos, de pele clara, sem cicatrizes, desfigurações ou defeitos. Sabia que não estava à venda, embora tivesse passado dos trinta anos e valesse mais agora do que valeria mais tarde, mas não era de crer que o patrão mais novo se arriscasse a desfigurá-lo com o chicote, reduzindo o seu valor, especialmente porque sabia o orgulho que os Maxwell tinham em manter o seu gado, humano e quadrúpede, com os membros perfeitos e saudável.
Apesar da chuva fria e dos rogos do pai, o rapaz regressou ao trabalho, decidido a abrir mais terreno, fazer cercas, cortar madeira para as lareiras da casa, mas, sobretudo, a manter os negros a trabalhar. Agameirmon preparou o toddy que Maxwell tinha pedido, assegurou-se que estava quente, como lhe tinham ordenado, e, quando o levou à sala, verificou se o
fogo ardia bem na lareira. Sem esperar pelos gritos do velho, trouxe troncos novos de carvalho-da-Virgínia e ajeitou-os sobre os ferros da lareira.
Maxwell, surpreendido com o ataque de diligência do escravo e desapontado por perder rim pretexto de o insultar, apenas resmungava perante aquilo que considerava sinal de emenda. As suas junções atormentavam-no e levantou uma das mãos com a outra para observar os nós dos dedos inchados. Contudo, apesar da dor e do esforço que isso lhe custava, encheu-se de coragem, pôs-se de pé, cambaleante, e caminhou, inseguro, até à janela, para observar o tempo, só para provar a si próprio que conseguia fazê-lo e diminuir o tédio de olhar para o fogo e esperar o regresso de Hammond. As suas preocupações em relação ao tempo resumiam-se aos efeitos da chuva persistente e de frio penetrante sobre as dores das suas articulações que ele pensava, talvez com razão, serem agravadas pela inclemencia do tempo, mas, ainda mais que o seu reumatismo, preocupava-o a
ideia de que Hammond adoecesse por estar exposto aos elementos. Nem se incomodava em pensar na inundação do rio que subia, atingindo as zonas mais baixas da plantação, o que era de prever, de tantos em tantos anos, e pouco mais mal fazia além de arrancar uma camada de solo já exausto, que pouco lhe interessava. Sentia-se mais tranquilo quanto aos negros, desde que soube que os cortadores de árvores se aqueciam a trabalhar, e não
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pensou mais na saúde deles. Numa das suas excursões, perto do meio-dia, notou que o aguaceiro tinha diminuído e se transformara numa chuva miudinha, e prescrutou o céu à procura de uma clareira, na esperança de que a chuva parasse por completo. Entre os troncos da miscelânea de árvores - bordos, tupelos, carvalhos, castanheiros, nogueiras e olmos - que, por trás de uma vedação aos ziguezagues, se alinhavam ao longo da avenida que conduzia à entrada principal, notou um objecto que se movia. Não conseguia acreditar que um visitante chegasse a Falconhurst num dia tão mau e através do lamaçal em que as chuvas tinham transformado as estradas.
Custava-lhe a crer.
- Mem! - berrou. - Meirmon! Meirmon, estás a ouvir~me? Merrinon, meu rafeiro negro! Vem cá! Vem cá, estás a ouvir?
Mem, que dormitava em frente da lareira da cozinha, levantou-se e correu através da passagem aberta até à casa de jantar, e chegou à sala.
- Sim, siô, Patrão. Chamou?
- Claro que chamei. Chega aqui à janela. Olha lá para fora. Que te parece que vem pela alameda?
Mem olhou.
- Parece um cavalo com um siô em cima - disse ele.
0 objecto da sua observação já não deixava dúvidas, quando Mem chegou e Maxwell conclui que nunca as deixara.
- Claro que é um senhor e é claro que vem montado num cavalo - disse desdenhosamente. - Mas quem é? Quem vem a Falconhurst com este tempo através daquele lamaçal?
Mettirion não fazia qualquer ideia e disse-o. Contudo, o seu interesse não era menor do que o do amo.
- Agora vai sê bom - declarou com optimismo. A chegada de qualquer branco a Falconhurst era um acontecimento e só um branco viria a cavalo.
0 cavaleiro surgiu na zona aberta e conseguiu ver-se que vestia uma sobrecasaca e trazia um chapéu com as abas viradas para baixo, como seria de esperar, e era magríssimo e não muito alto, que a sua montada baia estava cansada, enlameada e era provavelmente castrada, pela maneira de andar, o que fez com que Maxwell sentisse certo desprezo.
Três crianças corriam ao lado do cavalo, levantando muito os pés para escapar à lama. 0 homem fazia estalar monotonamente um chicote para apressar as crianças, mas geralmente não as atingia de propósito. De vez em quando, uma delas estremecia quando uma chicotada lhe atingia as pernas ou as nádegas e apressava o passo, em três ou quatro passadas.
- É apenas um negreiro - escarneceu MaxwelI, mais para si próprio do -que para o criado.
Apesar do desprezo que pusera na voz, apressou-se a dirigir-se à porta dupla da frente e foi até ao varandim, seguido de perto por Agamérmion, para aguardar o seu hóspede. A profissão de compra e venda de negros era depreciada, mas não ao ponto de se negar a hospitalidade a quem a praticasse. 0 desprezo era para a profissão, não para o homem. Se era um mal, era
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um mal conveniente. Os negreiros poupavam aos plantadores a necessidade de ir até ao mercado para comprar um ou dois escravos; não punham problemas sobre os defeitos dos negros que compravam para revenda, e eram bons agentes para os donos se verem livres dos negros "maus"; e, o que era melhor, pagavam a pronto as suas aquisições. Além disso, eram brancos.
Eram raros os visitantes de Falconhurst; traziam notícias. E o desprezo de Maxwell pelos negreiros era mais uma convenção do que uma convicção. Sabia bem que o seu lugar na hierarquia social não era entre os cavalheiros pelo menos não entre os de qualidade, apenas era um cavalheiro por cortesia, muito acima do negreiro, mas não inteiramente um cavalheiro.
0 estranho desmontou rigidamente, massajou um pouco os flancos magros para afastar o cansaço, tirou o chapéu, e disse:
- Como passa, senhor? 0 meu nome é Brownlee. Os negrinhos que o acompanhavam afastaram-se do cavalo e, de boca aberta, olhavam em volta, desconfiados, observando a recepção feita ao seu amo.
- 0 meu é Maxwell. Warren Maxwell - disse o anfitrião, retribuindo a saudação e identificando-se.
- Fui informado do seu nome, senhor. É bem conhecido por estas bandas e, se me permite, muito favoravelmente.
- Assim tinha de ser. já estávamos aqui em Falconhurst antes da revolta de 1776. - A resposta não fora dada em tom menos amável, mas servia para sublinhar a diferença entre o cavalheiro-plantador e o negreiro. Nenhum dos homens esboçou o gesto de apertar as mãos - Entregue as rédeas ao rapaz; ele põe o cavalo no está bulo e arranja cama para os seus criados. Depois entre. 0 jantar está a ser preparado, deve estar quase pronto e como sempre óptimo.
Agamermion pegou nas rédeas, apenas para entregar a tarefa a outro negro que tinha avançado, mais ousado do que os outros, vindo de um canto da casa. Brownlee tinha boa vista para negros e reparou logo que o rapaz apenas tinha dois dedos - o grande o pequeno - no pé esquerdo. Todos os habitantes da casa observavam o visitante, escondidos. A sua chegada era um acontecimento e motivo de especulações e conversas em voz baixa.
Maxwell foi específico nas ordens dadas ao negro:
- Leva o cavalo do senhor directamente para o estábulo. Tira-lhe a sela e limpa-o bem, com água quente, não te esqueças, não quente de mais, hem? Se te apanho a lavar um cavalo com água fria nesta época do ano, esfolo-te!
- Sim, siô,
patrão - respondeu o rapaz convencionalmente.
- E leva estes negrinhos contigo e põe-os a dormir noutro estábulo e dá-lhes pão de milho, eles que comam quanto queiram. A cozinheira que te dê melaço com rum para o tornar mais saboroso. Diz-lhe que eu mandei.
- A cozinheira não dá melaço cum rum prós preto se o siô não diz -
protestou o rapaz.
- Diz-lhe que eu mandei. Se ela não acreditar, diz-lhe que pergunte ao Meirmon.
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- Sim, siô, patrão; cozinheira pergufita ao Memnon - repetiu o rapaz, para não se esquecer.
Maxwell consultou Brownlee:
- Será melhor acorrentar os negros?
- Acho que não será necessário, num dia frio como o de hoje. Estão muito cansados para correr. Claro que nunca se sabe o que passa pela cabeça de um preto - observou. - Não fazia mal nenhum.
Maxwell voltou-se outra vez para o rapaz.
- E acorrenta os negros à parede do estábulo, a fêmea separada dos machos. Usa daquelas correntes pequenas, para que eles não possam fugir, depois pega nas chaves e entrega-as ao Memnon.
- Entrega chaves ao Mertirion - repetiu o negro sotto voce.
- Quando a lama das pernas deles secar, arranca-a e tira-a também -
observou Brownlee. - Desculpe, senhor, por dar ordens ao seu criado - disse para Maxwe11.
- Os meus criados são seus criados, senhor, enquanto nos honrar com a sua companhia em Falconhurst, pode dar-lhes as ordens que quiser - disse Maxwell, tranquilizando o seu convidado. - 0 rapaz pode fazer mais alguma coisa pelos seus pretences?
- Assim ficam perfeitamente, senhor, perfeitamente.
- Menuion, depois do jantar vais ao estábulo e vês o que este rapaz, como te chamas, rapaz? - interrompeu o patrão.
- 0 meu nome é Pregadô, siô, faz favô - gaguejou o rapaz.
- 0 quê? Fala claro.
- Pregadô, siô. Meu nome é Pregadô.
- Pregadô? Não me agrada. Não significa nada. Gosto de nomes da história ou nomes de 'deuses pagãos.
- A 'nha mãe queria que eu fosse pregadô, reverendo.
- já te dou o reverendo! Vamos já mudar-te de nome. Ora vamos a ver: Barbarosa. já há muito tempo que não temos um Barbarosa. Lembra-te disto, o teu nome é Barbarosa.
- Barbarosa, Barbarosa, Barbarosa - murmurou o rapaz, confuso, mas decidido a lembrar-se da sua nova designação.
Maxwell prosseguiu as suas ordens a Meintion.
- Vê se este Barba faz tudo o que eu lhe mandei. Se ele não cuidar bem do cavalo e dos negros, pode contar com o chicote. Percebeste, rapaz?
- Sim, siô, patrão.
- É tudo - disse o patrão.
0 recém-baptizado Barbarosa levou o cavalo para o estábulo, seguido pelas três crianças.
- Barba, Barba, Barba, parece-me. 0 patrão mudou meu nome de Pregadô para Barba - fez estalar os dedos, - assim mêmo - disse para si próprio, em voz alta. E rindo-se, encantado com a sua própria piada. -
Barba, Barba, Bar.
- Negoceio em negros - anunciou Brownlee a Maxwe11.
- já calculava, já calculava - replicou o anfitrião. - Temos que ter
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negociantes, se queremos ter negros. Não podemos comê-los.
- Sei que há cavalheiros que não gostam dos negociantes de negros, mas todos temos de viver. Que fariam os plantadores sem negociantes de negros?
- Teríamos que semear os negros, penso eu. Não tenho nada contra os negociantes. Tenho feito vendas a muitos; são bem-vindos em minha casa e ao meu estábulo - isto é, desde que a minha mulher faleceu. Era uma Hammond, filha do velho senhor Theophilus Hammond, da Plantação Anglebranch, perto de Selma. 0 senhor Theophilus nada queria com negreiros, era um grande cavalheiro. Nunca vendeu um criado, nem um. Criava bons negros. Ainda me lembro de, há vinte anos, quando os pretos eram baratos, Theophilus Hammond pagar dois mil dólares por um macho mestiço; muito dinheiro, nesses tempos.
- Sem dúvida. Ainda hoje, pode-se arranjar um criado bem bom, pronto para trabalhar em casa e tudo, por uns mil e quinhentos ou dois mil. Antes do Natal vendi um macho grande, forte e robusto, com um metro e oitenta e ombros assim - esticou os braços -, ali mesmo, em Nova Orleães, por mil e quatrocentos, claro, também capaz de cobrir qualquer fêmea.
Maxwell recusou-se a abandonar o seu aristocrático sogro.
- Evidentemente, o senhor Theophilus (sendo da família, trata-o pelo primeiro nome) costumava vender os negros maus, quando tinha algum; ou para servir um amigo com um bom rapaz para a casa ou uma boa costureira; ou então, mas só raramente, muito raramente, separava-se de um macho jovem para obter dinheiro para a Plantação de Anglebranch e para alimentar os outros, até à colheita do algodão. Mas nunca se habituou a vender os seus rapazes. Não confiava nos negreiros e não queria vender-lhes.
- Desviei-me muito do meu caminho para lhe apresentar os meus respeitos - Brownlee fez uma vénia que Maxwell retribuiu, na medida em que o reumatismo lho permitia - e para saber se não teria criados de que quisesse ver-se livre.
- Não, não posso dizer que tenha. Mandei uma caravana de machos jovens de primeira para Natchez, depois da colheita. Se tivesse aparecido nessa altura, tínhamos falado, mas agora não temos nada de primeira para lhe oferecer.
- Não é preciso que sejam de primeira. Eu ponho-os na ordem quando chegar a Nova Orleães - insistiu Brownlee, traindo o seu interesse.
- Se voltar a passar por aqui no próximo Outono arranjo-lhe uma dúzia ou uns quinze jeitosos, acredite, ou uma fêmea ou duas, se conseguir arranjá-las. Não compensa vender uma só. Os compradores querem sempre duas pelo preço de uma.
- Não sei se poderei comprar-lhe uma dúzia de uma vez. 0 capital é limitado, compreende, muito limitado, mas passo por cá, pode contar com isso.
0 vento agitava os cabelos ruivos de Maxwell e ele apercebeu-se subitamente do ar frio que podia fazer piorar o seu reumatismo.
- Parece que vem aí mais chuva. Sinto-o nas minhas juntas. E está a pôr-se vento. Algum bem havia de vir deste maldito reumatismo; posso
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prever o tempo. - Esfregou as articulações inchadas de uma mão contra as articulações igualmente inchadas da outra. - Hei-de lembrar-me sempre de que em 1831 foi um ano húmido, o ano em que apanhei o reumatismo. E agora em Fevereiro começou outra vez a ficar húmido, e o reumatismo parece que espelha o tempo.
- As estradas parecem caldo espesso, por todo o Alabama, desde que saí da Geórgia. 0 cavalo enterrava-se até aos topetes e os negrinhos ficavam cheios de lama até ao rabo. Tive que parar, a certa altura, e pôr a miúda na garupa; e o chicote atrasava mais os rapazes do que os adiantava. Estou muito satisfeito por ter tão poucos, porque vão ficar escanzelados, ou mesmo doentes, antes de chegarem ao mercado.
0 Sr. Brownlee suspirou, tirou os seus óculos de lentes quadradas, esfregou os olhos azuis, porcinos, raiados de sangue, com um sujo lenço azul, que extraiu do bolso de trás da sobrecasaca, depois tirou o chapéu preto e enxugou com o lenço o crânio calvo, com tufos de cabelo encaracolado por cima das orelhas. 0 seu rosto pequeno tinha estado liso, três ou quatro dias antes, mas, naquela altura, estava semeado de ralos pêlos negros.
- Agora, quando muito, pode descansar os ossos e engordar os seus negros. A Plantação de Falconhurst não é nenhum palácio, mas pelo menos não chove cá dentro; as vitualhas não são corno aquelas que está habituado na Verandah House de Nova Orleães, mas engordam; e o uísque pode não ser famoso, mas a água do toddy é bem quente. É bem-vindo aqui. Esperamos que se demore algum tempo connosco, pelo menos até o tempo melhorar. _ Não, obrigado, acho melhor partir esta mesma noite, tanto mais que não me pode dispensar negros. A colheita de negros é muito magra, em toda a parte. Não consigo comprá-los em parte alguma, nem na Virgínia, nas Carolinas, na Geórgia e agora no Alabama. E os preços estão a subir como balões. Paguei por aqueles três enfezadinhos tanto quanto pagava por negros de primeira, há cinco anos - queixou-se Brownlee.
- Não há pressa - argumentou Maxwe11. - Não temos a honra de receber muitas visitas em Falconhurst.
- Tenho de ir. Tenho de ir. Aprecio
a sua hospitalidade, senhor Maxwell, mas tenho de ir-me embora.
- Amanhã de manhã talvez eu pudesse decidir-me a deixá-lo levar um macho ou dois. Estamos cheios de rapazes, temos que os pôr fora do caminho a pontapé, mas são muito novos para os vender com vantagem. Por exemplo, um macho de quinze ou dezasseis anos, com bastante pão de milho, é capaz de crescer quase um palmo por ano, às vezes palmo e meio; já faz uma diferença de duzentos ou trezentos dólares, no mercado. Posso alimentar e vestir um macho em crescimento - e dos bons - por dezassete dólares por ano; há quem faça a conta a quinze, mas é demasiada economia, se quisermos que eles cresçam depressa e saíam de primeira.
- Preciso de. negros, preciso mesmo, Senhor Maxwell -, sublinhou Brownlee. - Se houver possibilidades de os arranjar e os seus preços não
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forem muito fortes, posso ficar e incomodá-lo por uma noite.
- Não incomoda, não incomoda absolutamente nada. Estou encantado por poder conversar consigo. Mas lembre-se que eu disse que talvez venda, não que vendo mesmo. Tenho de aconselhar-me com o meu filho. Entreguei-lhe a direcção de toda a plantação, por causa do meu reumatismo. Nem posso montar. Ele que a dirija à sua maneira.
- Mas entre, senhor, entre e acomode-se - insistiu Maxwell, cuspindo para a mão e arremessando para o chão um pedaço de tabaco que guardava na boca. - É muito bem-vindo - repetiu com sinceridade. - 0 jantar estará pronto logo que Ham chegar.
Brownlee parou no varandim em frente da casa, para retirar, na raspadeira, parte da lama que secava nas suas botas.
- Não se rale com isso, não se rale - disse MaxwelI, que segurava a porta aberta. - Não temos luxos, só carpetes baratas por toda a parte e muitos negros gordos para limpar tudo. Um pouco de lama não faz mal.
- Parece-me uma bela mansão - Brownlee olhou em volta. - Muito confortável.
- 0 meu avô construiu neste mesmo sítio, numa clareira, uma cabana de troncos. 0 meu pai construiu esta cabana de nove quartos, que era bastante boa, uma casa simples e vulgar, no seu tempo, até bastante jeitosa, para estes sítios. Eu pensava construir uma melhor, e bem podia fazê-lo, qualquer coisa no gênero de que o senhor Tom Jefferson tem na Virgínia, própria para viver como um cavalheiro, quando a minha mulher faleceu há sete anos. A minha mulher era uma Hammond, filha do senhor Theophilus Hammond, da Plantação Anglebranch.
- Boa família, esplêndida família - observou Brownlee.
- Eu tencionava construir uma mansão, como lhe ia dizendo, quando ela adoeceu, com qualquer doença de mulheres, uma nascida. Quando ela partiu desta para melhor, foi como se me arrancassem as entranhas. Ainda não me recuperei. Larguei tudo. Esta casa velha serve bem para o rapaz e para mim.
- Serve para qualquer pessoa, acho eu - declarou o convidado.
- É um abrigo, apenas um abrigo - depreciou o anfitrião. - Claro, se o Hammond casar com uma senhora fina, como a mãe (e conto com isso), provavelmente ele construirá urna bela casa na outra colina e deixará esta para os criados. Estão muito apertados, de qualquer modo; duas famílias com uma rapariga extra em cada cabana, e os rapazes extra a dormir sobre palha no estábulo. Não é saudável. Aparece por aí uma epizootia e ficamos arruinados.
Um fogo agradável aquecia a sala onde Maxwell acolhia o seu hóspede transitório, que cautelosamente depôs o seu corpo magro numa grande cadeira de balanço. 0 anfitrião cozia-se em frente do fogo, alternadamente de frente e de costas, esforçando-se por aliviar as dores reumáticas que afligiam as suas articulações.
- Meninon! Merimon! - chamou. Antes de o rapaz chegar perguntou ao convidado: - Como gosta do seu uísque?
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- Não contaminado, por favor, não contaminado.
- Um copo de uísque sem água para este cavalheiro e um toddy para mim. Quente, não te esqueças! - ordenou ao negro.
Brownlee observou o escravo, apreciativamente. - Um rapaz esperto declarou. - Não está para venda, suponho.
Quando Agamermion regressou com as bebidas, Brownlee parecia mais interessado no rapaz do que no uísque. Quando o negro se aproximou para lhe entregar o copo bem cheio, Brownlee estendeu a mão e apalpou-lhe criticamente os músculos da perna.
- Ajoelha-te - ordenou-lhe, e passou-lhe a mão pelos ombros, abrindo-lhe a boca passou os dedos superficialmente pelos dentes sãos. -
Cerca de trinta anos, diria eu.
- Não tanto - observou o amo, orgulhosamente.
- Parece ter cerca de trinta, pelos dentes e pelo resto. É mestiço, parece-me.
- Mais ou menos. A mãe era mulata e o pai branco.
- Totalmente domesticado, não? - insistiu o comprador.
- Sim, mas preguiçoso. Não se consegue fazê-lo trabalhar.
- Venda-mo e curo-o depressa.
- E é respondão. Tenho andado para o pendurar e chicoteá-lo um bocado, mas com o reumatismo e tudo o resto, vou adiando.
- Não, não, patrão, siô -o rapaz começou a lamentar-se- Eu é um bom nêgo; não chicoteá; vai ser bom. Não, não, patrão. Vai.
- Pára com isso - avisou o patrão. Está a ver o que eu dizia? - dirigiu-se a Brownlee. - Está sempre a falar como os brancos. E uma espécie de animal de estimação do meu filho, e o Ham estragou-o. 0 meu filho não se importa que eu lhe arranque a pele, mas está muito ocupado para o fazer ele próprio.
- Penso que então não o queira vender? - interrompeu o mercador.
- Não, acho que não. Ouviu-se um passo irregular sobre o chão rangente do vestíbulo, e Hammond Maxwell entrou, a coxear.
- Desculpe atrasar o jantar - explicou ao pai. - Dei outra volta, a cavalo, para ver como estava o rio, depois da chuvada.
- Não estragues o jantar com preocupações. - Maxwell voltou-se para o seu convidado. - Este meu filho é demasiado grave. 0 seu único defeito, acredite, é amar esta maldita plantação já esgotada e os seus pretos mais do que as mulheres brancas. Senhor Brownlee (é esse o nome correcto, não é?), senhor Brownlee, apresento-lhe o meu Hammond; recebeu o nome do seu avô, Theophilus Hammond.
- Encantado pela honra da sua companhia - respondeu Hammond cordialmente.
- Muito obrigado, senhor. Também estou encantado - disse Brownlee, erguendo-se e estendendo a mão.
- 0 senhor Brownlee anda pelo país a comprar negros para o mercado de Nova Orleães. Não conseguiu um bom grupo e passou por Falconhurst para ver o que temos. Achas que podemos arranjar-lhe um macho ou dois?
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- Acho que não nos podemos negar a ajudar um cavalheiro. Teremos muito gosto em arranjar-lhe qualquer coisa - disse Ham, para encorajar Brownlee, pois a sua noção de hospitalidade ultrapassava o seu desprezo pela profissão do convidado. - Mas o jantar está à nossa espera. Quer acompanhar-me à outra sala, para partilharmos uma ligeira refeição?
- Sim, já é altura e tu deves estar esfomeado, filho, depois de passares toda a manhã na sela - declarou o pai, com certa preocupação, avançando para a casa de jantar.
Era uma sala enorme e nua, cuja extensão apenas era modificada pela altura dos tectos. Contra uma das paredes encontrava-se um enorme aparador de estilo Império, em mogno, coberto de talha, mas de certa elegância e distinção. Contudo, a sua superfície estava de tal modo cheia de pratas e vidros, em estilo rococó, que se destruíra toda a dignidade que o móvel poderia possuir.
A grande mesa rectangular parecia pequena, no meio da sala longa e alta. Estava coberta com uma toalha de damasco, de quadrados vermelhos e brancos, pequenos no centro e maiores nos rebordos. Mesmo no meio da mesa havia um enorme galheteiro giratório em prata ou metal com galhetas, recipientes para condimentos e para diversos tipos de picles. Da sua pega superior estavam penduradas duas pinças e, em volta do seu perímetro, estavam suspensas colherinhas de prata.
Num dos cantos da mesa encontrava-se um enorme jarro de vidro cheio de leite espesso e amarelo, algo entre leite e creme. A mesa estava posta para três pessoas. Os pratos de porcelana rosada eram enormes, ornamentados com templos e pagodes chineses. junto de cada um deles havia um
pratinho para ossos, da mesma louça. As facas e os garfos, enormes, eram de aço, com os cabos de osso manchados de amarelo por demasiadas lavagens com água quente. As chávenas de café vazias que se encontravam à direita de cada prato, com as asas meticulosamente voltadas para a direita, eram da mesma escala excessiva dos pratos. Por trás das chávenas, havia altos copos de vidro grosso, contendo, cada um deles, um guardanapo dobrado e passado a ferro, de modo a mostrar o rebordo franjado.
Com excepção dos picles dentro dos seus recipientes e do sal dentro de espaçosos pratos de pesado vidro vermelho, não havia comida à vista.
Apesar de não haver moscas a afastar, naquele dia frio, com excepção de três ou quatro que languidamente atravessavam o tecto e não ameaçavam a comida, havia dois rapazes lustrosos, de cerca de quatro pés de altura (Maxwell calculá-los-ia em doze palmos, duas ou três polegadas), um de cada lado da mesa, agitando leques de penas de pavão, de um lado para o outro, monótona e incansavelmente. 0 negociante avaliou imediatamente os rapazes, mal lhes pôs a vista em cima. Era coisa que valia a pena, coisa boa. Que preço obteria por aquele par num negócio particular em Nova Orleães! Sabia exactamente quais os homens, quais as pessoas que estariam interessadas. 0 grande copo de uísque que bebera ampliou a sua imaginação. Talvez aqueles rústicos não compreendessem o valor daquela parelha, no mercado, devido aos fins para que seria vendida, e ao uso que lhe seria
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dado. Qualquer deles, só por si, era uma jóia. Em conjunto, gêmeos, valiam quatro ou cinco vezes mais do que valeriam separados.
Continuou a olhar sub-repticiamente para os pequenos tratantes, receando que o seu excesso de interesse pudesse causar desconfiança.
olhando de soslaio de um para o outro, não detectava qualquer diferença. os contornos dos seus crânios bem rapados eram exactamente iguais, as faces igualmente redondas e cheias, os narizes iguais, apenas ligeiramente achatados, com as narinas um pouco largas, as mesmas orelhas pequenas, a mesma boca grossa, voltada para cima nos cantos, os mesmos olhos grandes, com íris tão negras que era impossível detectar as pupilas. A pele dos rostos era igual em cor e textura - um tom de âmbar-claro através do qual brilhava o rosado das faces. A sua pele fina parecia brunida, mas de saúde e do sabão macio que recentemente haviam aplicado para poderem servir na sala de jantar do amo.
Até aos pequenos pés, arqueados e descalços, eram exactamente iguais em altura, comprimento dos braços, comprimento das pernas, lisura do peito, arredondar das nádegas. Não estavam vestidos de igual de propósito, mas sim porque os rapazinhos de Falconhurst, depois dos seis ou oito anos, se vestiam todos de igual, com as camisas grosseiras e as calças mais grosseiras ainda que eram o seu único vestuário. Antes dos seis ou oito anos, frequentemente até aos dez, os rapazes nada vestiam, embora as raparigas usassem roupa um pouco mais cedo. Os fatos dos rapazes eram uniformes, também, na idade e no tom - não se lhe podia chamar cor.
0 vestuário dos gêmeos diferia um tanto do dos rapazes destinados a trabalhar no campo, porque estava relativamente, apenas relativamente, inteiro, e diferia nitidamente porque estava limpo - parecia limpo e bem cheiroso - mesmo imaculado. Um dos rapazes, não importa qual, porque eram exactamente iguais e os vestuários eram intermutáveis, tinha um buraco nas calças, à altura da coxa, que parecia ter sido remendado e o remendo parecia ter-se gasto ou não se segurar, tendo a costureira ou o alfaiate ou o encarregado do guarda-roupa desistido de o arranjar. 0 outro rapaz mostrava candidamente as nádegas. Os buracos serviam para mostrar que a sua semelhança de pigmentação não terminava no pescoço, e era tão igual sob o vestuário como nas extremidades.
Alguém atara um laço de um vermelho que passara para rosa, em volta do braço de um dos rapazes, e um laço de um azul que passara para cinzento, em volta do braço do outro - ostensivamente para os distinguir. Possivelmente eles próprios os tinham colocado, para não os confundirem. Ou talvez fossem ordens de Deus para poder distribuir devidamente os seus pecadilhos no livro do julgamento. De pecados propriamente ditos não podia Ele acusá-los. Tais querubins eram incapazes de pecar e, aliás, não tinham a noção de pecado, mas podiam ser acusados de coisas como rir na presença dos seus superiores, de gritar nas suas brincadeiras, de recordarem ao outro que era um negro ou um malandro, ou de se esquecerem de agitar o leque de penas de pavão com o ritmo devido.
A observação que Brownlee fez da sala e a sua avaliação dos gêmeos
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foram rápidas. Não levaram mais tempo do que levou Agameirmon a
afastar a cadeira, forrada a couro, e a sentar o seu reumático patrão à cabeceira da mesa, após o que afastou a cadeira de Brownlee e a empurrou. Hammond dispensou a ajuda do negro e sentou-se à mesa, em frente de Brownlee, cujos olhos sôfregos continuavam a observar os rapazitos. 0 seu apetite não ía para a comida, apesar da viagem matinal, enquanto retirava o guardanapo vermelho do copo, e desdobrava e o enfiava cuidadosamente no colarinho.
Contudo, o odor da comida que Agamérmion fora buscar à cozinha e colocara sobre a mesa reavivou-lhe a fome. Primeiramente chegou uma imensa travessa de galinha guisada, rodeada de tortas de maçã, e bastava olhar para ela e ver a maneira como começava a separar-se, para se compreender como era tenra. Seguiu-se outra travessa com talha-das de presunto dispostas em círculo, rodeadas pelo molho vermelho em que tinham sido cozinhadas. Uma terceira travessa continha ovos estrelados, mais de uma dúzia deles, fritos apenas de um lado, com as gemas de um amarelo-vivo centradas na clara branca, como um ramo de margaridas enormes.
Seguidamente surgiu uma travessa cheia de batatas empilhadas e tenras verduras, sobre as quais repousava um grande pedaço de bacon.
Agameirmon encheu os copos com o leite cremoso do jarro, e foi buscar à cozinha um prato cheio de grandes biscoitos quentes empilhados, espalhando um aroma a excesso de bicarbonato, simultaneamente agradável e repugnante, como o odor do suor.
Em seguida, Agameirmon encheu as chávenas de um café forte, negro e quente, sobre o qual colocou um creme tão espesso que era difícil vertê~lo do jarro, em estado de semiliquidez. Passou então um recipiente de melaço claro, com o qual se podia adoçar o café, e Maxwell desculpou-se:
- Nós gostamos de um adoçamento mais lento- explicou. -Deve haver açúcar por aí, algures, mas eu e o Ham nunca lhe tocamos. Gostamos do paladar deste.
- 0 adoçamento lento é sempre melhor - concordou Brownlee, que deitava o café no pires e o soprava.
- Claro que o gosto a rum sabe mal a um branco. Este melaço é de primeira. Caro de mais para se dar a pretos. 0 de rum serve-lhes bem.
- Claro que sim - voltou a concordar Brownlee, levando à boca uma perna de galinha, cuja carne ameaçava separar-se do osso. - Mas não dá aos negros açúcar ou coisa parecida? - perguntou, um pouco espantado.
- Dou-lhes melaço com rum todos os dias.
- Mas isso não os faz crescer e aumenta-lhes o apetite, fá-los comer mais. É um desperdício - disse o comerciante, incrédulo.
- Quero que os meus negros comam. Quanto mais comem, mais crescem. Não acredito na ideia de poupar em comida e gastar no veterinário.
- Além disso - acrescentou Brownlee -, estraga-lhes os dentes. Maxwell riu, pela experiência que tinha do assunto.
- Isso são histórias, apenas histórias. Os meus negros comem melaço com rum no pão todos os dias e, se encontrar um dente cariado nesta
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plantação, dou-lhe o negro. Examine qualquer deles. Brownlee aceitou a sugestão. Empurrando um pouco a cadeira para trás, fez sinal ao rapazito que estava atrás dele.
- Vem cá, rapaz - ordenou. Embaraçado, o garoto avançou timidamente. Brownlee envolveu-o com o braço esquerdo, introduzindo acidentalmente a mão pelo buraco dos calções e acariciando-o,
enquanto com a mão direita abria boca do rapaz e prolongava a sua exploração dos dentes. 0 rapaz encolheu-se e procurou suavemente afastar-se, o que Hammond notou.
- Alph-esconjurou-o-, deixa esse branco observara tua boca. Queres que te pendure?
0 rapaz apenas podia grunhir uma resposta negativa à questão retórica, para não morder o dedo branco introduzido entre os seus dentes.
0 outro rapaz riu-se à socapa, mais embaraçado do que divertido com o atrapalhamento do irmão.
- Pára com os risinhos, Meg - avisou Hammond -, ou chicoteio-os a ambos. Queres ser negro de casa, não queres? Ou preferes trabalhar no campo@
Bro wnlee soltou Alph e chamou o outro gêmeo.
- Meg? - perguntou, quando o agarrou. - Que raio de coisa, chamar um rapaz por um nome de rapariga! É porque foi castrado? - e apalpou abertamente os seus órgãos genitais, ficando desapontado por os sentir flácidos.
- Raios, não, não foi castrado! - gritou o velho MaxwelI, indignado com a ideia de castrar um negro. - Apalpe-o! - o que Brownlee continuou a fazer. - Não há cavalos nem negros castrados nesta plantação.
Hammond interrompeu com uma explicação, não só para acalmar a ira do seu pai perante as acusações implícitas, mas também para esclarecer o estranho sobre o nome do rapaz.
1 - Meg é uma abreviatura de ómega! órnega e Alpha, percebe, Alpha e Omega.
- Não conheço nada sobre deuses romanos, mas percebo de negros e este é um macho. Não pensa vender este par?
Hammond riu, ao responder.
- Morríamos de fome, se os vendêssemos. A cozinheira tinha um ataque; são filhos dela.
- Ganhava forças três dias depois, como o resto deles; e têm-me pedido que descubra um par como este, sei muito bem a quem os havia de vender.
- São de estimação, mais ou menos. 0 meu pai e eu achamos que são espertos. Acho que os vamos conservar para semente - disse Hammond, declinando a proposta sem descortesia para o convidado.
0 Maxwell mais velho ainda estava irritado com a ideia da castração do rapaz e voltou ao assunto.
- Nunca castrei um negro na minha vida, nem o meu pai, nem o meu avô o fizeram. Nem sequer nunca os ameacei com isso. Fugiam e era bem feito. Não os censurava por isso.
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- Não queria ofender - disse Brownlee, tentando acalmá-lo. - Muitos cavalheiros castram os pretos de casa ou os pretos maus. Tenho vendido muitos.
- Comer e fornicar são as únicas coisas para que um negro vive - e um ser humano também, para falar verdade - filosofou Maxwell com ar profundo. - E claro, uma fêmea também gosta de dar de mamar aos filhos.
Brownlee, que não apreciava um gênero de conversa tão abstracta, mudou de assunto.
- A comida é muito boa na sua plantação, senhor MaxwelI, a avaliar
por esta amostra.
- Coma à vontade, coma à vontade - insistiu o anfitrião. - Pode bem limpar as travessas. Os restos, de qualquer modo, são só para os criados.
- Grande quantidade, grande quantidade - declarou Brownlee, bebendo o último pires da sua quarta chávena de café. - Esplêndida refeição, esplêndida refeição, senhor Maxwe11. - Tirou o guardanapo do pescoço, dobrou-o cuidadosamente, com delicadeza, e colocou-o junto do rato. Depois, seguindo o procedimento dos seus anfitriões, empurrou a caJeira e
levantou-se, sacudiu as mifalhas do fato e, co,mo ostensivo cumprimento pelo jantar que comera, es regou o estômago e- desapertou o último botão do casaco.
- Nada de especial, nada de especial. É o jantar habitual - disse Maxwell, depreciando o cumprimento e regressando à sala de estar.
- E agora vamos àqueles criados que se ofereceu para me vender -
insistiu Brownlee, enterrando-se na sua cadeira, em frente da lareira.
Maxwell estava relutante em falar de negócios.
- Bom, vejamos - disse. - Que achas, Ham? Hammond mostrou menos relutância.
- Bom, e se lhe entregássemos aquele Pregador e o rapaz magro, a:astanhado, chamado Imperador?
- São vivos e enérgicos? Que idade têm?
- Um deles tem cerca de quinze palmos e três polegadas, calculo eu. 0 senhor viu-o. Levou o seu cavalo para o estábulo. 0 outro é mais alto, tem talvez dezassete palmos; mas vão crescer mais. São bons trabalhadores -
afirmou o Maxwell mais velho.
- Estava só a calcular - respondeu o negociante. - Aquele Pregador é aleijado, não é? Faltam-lhe dedos num pé, não faltam?
- Não é aleijado. Não lhe fazem falta nenhuma - disse Hammond. Claro, se não lhe interessa ...
- Está bem, está bem. Um negro é um negro- claro, conforme o preço.
- Claro - concorou Hammond.
- Que defeito tem o outro? - inquiriu Brownlee.
- Uma cicatriz de queimadura; não o estraga em nada, mas o meu pai e eu não gostamos de dar de comer a um rapaz que não tem bom aspecto. Os negros de Falconhurst são todos saudáveis e assim queremos conservá-los. Orgulhamo-nos de ter bom gado, sem defeitos nem doenças. É esse o único motivo porque eles são mais baratos.
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- Que extensão tem a queimadura e como a fez ele?
- 0 caldeirão das barrelas caiu por cima dele, apanhou-o no estômago, nas partes e num flanco. Uma grande cicatriz, mas curou-se bem. Tinha algumas manchas vermelhas ainda, mas estavam prestes a desaparecer quando o vi, há um mês ou coisa parecida.
- Hei-de vê-lo - disse Brownlee.
- Não lhe garanto que consigo educá-lo. É muito calado, mas nunca o amansámos, nem um bocado.
- Se é capaz de cortar cana e colher algodão, posso usá-lo; claro, com desconto.
- Merruion, vai buscar esses dois rapazes, o Pregador e o Imperador; despe-os e dá-lhes um pedaço de sabã o duro. Diz-lhes que vão ao rio e se lavem bem, e depois voltem aqui e esperem em frente do varandim -
ordenou Hammond. - E manda buscar o meu cavalo.
- Não quero que te mates, filho, a trabalhar com este tempo, de frio e chuva.
- Não se preocupe, pai - disse o rapaz. - Estou quente e o casaco é à prova de água.
- Quanto peço ao senhor Brownlee pelos rapazes> -perguntou o velho.
- 0 que achar justo- respondeu o rapaz. -Tem mais experiência disso do que eu.
Inclinou-se e beijou o pai, fez uma vénia ao negociante e partiu.
0 pai suspirou, levantou-se e caminhou penosamente até à janela embaciada, onde abriu uma clareira para ver o filho montar a cavalo.
- Aquele rapaz é demasiado fogoso e ambicioso. É esse o mal dele. Não herdou isso de mim. Herdou-o do velho Theophilus Hammond, penso eu. Herdou o exterior de mim e o interior dos Hammonds. Tem a minha cara avermelhada e os meus olhos azuis, mais claros, o meu corpo comprido e as pernas curtas: tudo; mas herdou a teimosia e a vontade de subir dos Hammonds. Trabalha de mais e não se diverte. É o melhor filho que um pai jamais teve, mas trabalha de mais. É o único defeito que consigo encontrar-lhe.
- Merimon, Mermion! - chamou.
- Sim, siô, patrão - respondeu o rapaz.
- Um toddy quente, para mim. Que descia beber, senhor?
- Só um pouco de uísque simples, se faz favor. Só um pouco - respon~ deu o convidado.
Apesar de Brownlee estar ansioso por inspeccionar as suas aquisições em perspectiva, Maxwell preferiu aguardar um pouco, imaginando o prazer que sabia obter em efectuar a transacção. Calculava o interesse que o negociante sentia em comprar e confiava em que saberia esperar até o peixe ter engolido o anzol. Bebeu o seu toddy tranquilamente, em pequenos golos, pousando o copo de vez em quando, enquanto esfregava os joelhos doloridos ou massajava uma mão com a outra, aquecendo as pernas ao fogo. Havia poucos dias no ano, no Alabama, suficientemente frios para justificar o uso das lareiras e Maxwell apreciava o conforto de um cepo crepitante.
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- Hammond pensa que isto é uma plantação de algodão - observou. -
Falconhurst não é só urna plantação de algodão. É uma criação de pretos, é o que isto é, uma criação de pretos. Anos após anos fizeram-se colheitas de algodão até já não haver mais algodão na terra. Há sítios onde já não pode dar mais ue um bom fardo em cada cinquenta acres, e a fibra é tão curta que o coei iciente de Nova Orleães temi o dobro, ou mesmo o triplo.
Brownlee não estava interessado
na economia do algodão no Alabarna. De vez em quando levantava-se e ia até à janela, olhando para os dois negros nus que esperavam pacientemente por baixo duma nissa que os resguardava parcialmente da chuva arrastada pelo vento.
Para tomar parte na conversa, inseriu uma observação no solilóquio do seu anfitrião.
- Uma maneira lenta de viver, ao que parece. Leva um tempo dos diabos a criar um negro para o levar ao mercado.
- Não muito, não muito. 0 tempo passa depressa, na minha idade. Em passando dos quarenta, a cova começa a olhar para nós. Não podemos escapar-lhe; também não tenho vontade disso, com o reumatismo e tudo o resto. Claro, gostava de viver o suficiente para casar Hammond com uma jovem de boas famílias, com bom sangue, que lhe desse um filho para continuar a usar o nome dos Maxwe11. Hammond, esse tem bom sangue; neto do velho Theophilus Hammond, da Plantação Anglebranch. Com Hammond casado e um filho a caminho, estarei pronto para ir ao encontro do Criador. Não tenho medo, nem um bocadinho. Claro, nunca me dei muito bem com pregadores e coisas no género, mas sempre tentei proceder bem, nunca enganei um branco nos negócios, tratei sempre bem os meus pretos, dei-lhes de comer, nunca os fiz trabalhar aos domingos, excepto na altura das colheitas, nunca vendi uma criança sem a mãe antes de estar desmamada e mesmo assim só raramente, nunca andei atrás de putas brancas e nunca fui estroina. Nunca fiz coisa alguma de que me envergonhasse. Es ero ser desculpado, quando chegar o meu rol.
Brownfee estava menos preocupado com a virtude de Maxwell e a sua recompensa do que corri o negócio dos negros. Fez nova excursão à janela.
- A queimadura do rapaz tem mau aspecto - observou.
- Parece, vista dessa janela. Vê-se tudo distorcido, por causa do vidro martelado. Mas não é nada, quase. Contudo, Hammond não pode suportar ter um negro que não seja perfeito. É estranho. Talvez lhe faça recordar a sua perna rígida, que um pónei castrado lhe fez quando tinha seis anos. 0 maldito pónei parecia manso quando o comprei, mas nunca se pode confiar num castrado, cavalo ou negro. São maus e traiçoeiros. 0 vadio atirou o garoto ao chão no terceiro dia de o ter, sem qualquer motivo. Não me pareceu que o rapaz estivesse ferido, mas trouxe-o ao colo para casa (não o confiei a qualquer negro) e deitei-o naquele sofá ali do canto, tentei fazê-lo parar de chorar, despi-o com todo o cuidado e esfreguei-lhe a perna com uísque. Lucrécia Bórgia, a cozinheira, andava a amamentar os dois gêmeos
- os que viu na casa de jantar - e ela e eu demos os bebés a Ham, para o convencer a deixá-la esfregar-lhe a perna todos os dias com uísque. Mas não
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serviu de nada. 0 joelho endureceu. Mal pode dobrá-lo. Brownlee estava menos interessado no joelho rígido de Hammond do que nos negros lá em baixo.
- É melhor irmos ver os rapazes. Ali nus à chuva, são capazes de apanhar febre dos pulmões ou coisa parecida.
- Não lhes vem mal nenhum enquanto estiverem nus. São as roupas molhadas que fazem adoecer. Além disso, já têm juízo suficiente para se meterem debaixo da árvore, não acha? Espere até eu beber este copo de toddy. já arrefeceu e está quase vazio.
Maxwell bebeu o resto do seu toddy e Brownlee esboçou o gesto de ajudar o reumático a levantar-se.
- Não se incomode, não se incomode - protestou este, lutando para se pôr de pé. - Meirmon, Merririon! - chamou. - Põe aquela coberta do sofá por cima dos meus ombros.
Aquecido com a manta azul e branca, Maxwell atravessou o vestíbulo até à porta da frente, que Agamermion lhe abriu, descendo o degrau para o varandim. 0 negro trouxe cadeiras de balanço, mas apenas o patrão se sentou. Brownlee, preocupado em fechar o negócio continuou de pé.
- Manda os rapazes virem até ao varandim e enxuga-os - ordenou Maxwell a Agamermion, tirando um lenço sujo do bolso e estendendo-lhe. -
0 senhor Brownlee está ansioso por lhes tocar.
Os dois jovens negros aproximaram-se do varandim com embaraço. Nunca lhes tinham permitido aproximar-se tanto da casa e agora que tinham sido convocados, tomavam consciência dos seus pés cheios de lama. Ambos tremiam, tanto de medo como de frio.
Agameitmon, que baixava do serviço de criado de quarto ao de trabalhador do campo, escolheu Imperador, de cor mais clara, como o menor dos males, e enxugou-o cuidadosamente com o lenço, após o que, com um olhar interrogativo na direcção do amo, atirou o lenço molhado ao Pregador que começou a torcê-lo e a limpar as gotas de chuva que tinha sobre o corpo. Era impossível secar-se com o pano molhado.
Brownlee ocupou-se do Imperador; fez uma passagem preliminar das mãos sobre as costas em pele de galinha e a perna magra, a os o que voltou a atenção para a grande cicatriz, que estava tão bem c Y3 e que não abriu sangue nem sangrou com a pancada e o beliscão que o negociante lhe deu. Imperador ficara imunizado à dor pela queimadura e pelo tratamento que suportara, e nem se moveu.
- Muito feia - lamentou Brownlee. - Ombros estreitos e corcovados.
- Eu sei que ele ainda não está pronto para vender. Precisa de mais um ano. Pois não foi engordado e preparado - contradisse o proprietário.
- Tem uma boca de porco horrível.
- Não queria que ele chupasse por uma palhinha, pois não? - respondeu Maxwell. - A boca de porco não o impede de comer como um porco.
- E um daqueles vadios do cabo da Boa Esperança, dos lados de Zanzibar, parece-me - disse Brownlee, deixando-se cair na cadeira, desaprovadoramente.
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- Talvez. Não sei nada sobre a raça dele. Talvez tenha sangue da Costa Oriental. Mas já lho tirámos. De resto, nunca me deu problemas. Nunca tive que o chicotear.
- Ajoelha-te aí na minha frente, rapaz, - ordenou o negreiro. - Não, assim não. De costas para mim.
Imperador voltou-se, e, apesar da ausência de marcas visíveis, o negreiro explorou cuidadosamente os músculos por baixo da pele, para ver se
encontrava estrias que traíssem as marcas já curadas do chicote.
Continuou a conversar com Maxwell enquanto percorria, com as mãos experientes, as costas do negro.
- Talvez este não seja desordeiro, mas, na cidade, levei ao mercado um negro da Costa Oriental e não consegui ofertas. Os plantadores não estão para se arriscar. Mas tem as costas limpas.
- já lhe disse que nunca o chicoteei.
- Podia alguém tê-lo feito antes de ser seu, não duvido da sua palavra -
disse Brownlee, empurrando o rapaz para a frente, de cara para o chão, para poder observar as nádegas magras e ver se tinha hemorróidas no anus, mas não encontrou sinais delas. Voltou a puxar o rapaz para o pôr de novo de joelhos, inclinou-lhe a cabeça para trás e correu os dedos pelos dentes, que, apesar do defeito da mandíbula inferior, eram tão sãos como se as suas extremidades se tivessem fixado normalmente. Pondo Imperador de pé, puxou-lhe os dedos e torceu-os e, , verificando que nenhum deles estava partido, soldado ou torcido, fez-lhe sinal para levantar os pés, um de cada vez, até ao braço da cadeira, para lhe poder examinar os dedos.
- Traz-me aquele bocado de madeira, rapaz - ordenou, indicando um pequeno pedaço de lenha a alguns pés de distância. Levantou-se e, atirando-o o mais longe que podia, disse: - Vai buscar. - Imperador trotou em direcção ao au.
B: @=u-se para Meirmon que estava de pé, por detrás da cadeira do amo e ordenou-lhe: - Vai buscar o meu chicote. Está ao pé da lareira.
Maxwell interrompeu o "sim, slô" de Meirmon para avisar:
- Não vai usá-lo nos meus negros. Eu é que os chicoteio.
- Vou só enrolá-lo à volta das pernas dele umas vezes para se apressar. Tenho que o ver a correr. Não vou magoar ninguém - explicou o negreiro, um pouco surpreendido.
Não se preocupe, não se preocupe, o rapaz galopa - respondeu o patrão. - Não vale a pena, Meirmon - contra-ordenou.
Maxwell estava farto da tediosa precisão com que o outro examinava um rapaz que já lhe dissera não ser perfeito. A sua paciência esgotava-se.
- Atira tu - Brownlee entregou o pau a Meirmon que o atirou
muito mais longe do que Brownlee o fizera. - Vai apanhar - disse Brownlee ao Imperador que correu languidamente e o trouxe de volta, uma actuação indiferente.
- Ouve-me bem, meu malandro - disse Maxwell pegando-lhe na mão.
- Tu és preguiçoso. Podes trotar com muito mais energia. Se estragas o
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negócio com a tua preguiça, penduro-te pelos calcanhares e mando Memnon desancar-te até mostrares mais velocidade e enquanto puderes. Percebes? Desanco-te até já nem poderes andar. Arranco-te a preguiça dos ossos. Agora vai buscar.
- Sim, siô, patrão. Imperador correu tanto quanto podia mas a distância não era suficientemente grande para lhe permitir dar toda a sua velocidade. Brownlee pareceu ficar satisfeito.
- Agora salta - disse. - Mais alto! Mais alto! Maxwell estava disposto a acabar com a transacção.
- Leva o rapaz - disse a Meirmon. - 0 senhor Brownlee não está interessado. Só quer negros de primeira. Leva-o.
- Espere um minuto, espere um ininuto, senhor Maxwe11. Posso ficar com o macho. Tenho interesse em comprá-lo - interrompeu Brownlee.
- Não parece - disse Maxwell, mostrando a sua impaciência.
- Quanto quer por ele, senhor? - 0 colóquio tornara-se formal.
- Deve valer seiscentos e cinquenta - aventurou Maxwell, à experiência.
- É de mais. Não me serve por esse preço. Não consigo mais de setecentos por ele em Nova Orleães.
- Seiscentos e vinte e cinco, então?
- Espere: deixe-me ver o outro. Talvez possamos fazer o negócio para ambos.
0 Pregador estava cheio de frio e a tremer, mas avançou indolentemente, para ser examinado. já não sentia medo e não mostrava mais indícios de indignação do que o companheiro apresentara. Sabia que era apenas uma propriedade que já tinha mudado de dono antes.
É pena o pé - depreciou o negreiro. - Como foi? Um cavalo pisou-o, acho eu. Mas é um trabalhador seguro. Brownlee resmungou. Continuou a sua inspecção do mesmo modo que fizera com Imperador.
- Um angolano - disse depreciativamente.
- Penso que só lhe interessam rnandingos e fulas - disse Maxwell, com desprezo.
- Bem, são bons negros, especialmente os mandingos. Brownlee apressou o seu exame ao Pregador, sentindo a irritação crescente de Maxwell, mas o seu estudo não deixava de ser minucioso. Chegou às costas que aparentemente estavam limpas. Os seus dedos exploradores detectaram uma saliência por baixo da pele, e mais abaixo outra.
- Há aqui marcas. Este vadio foi chicoteado.
- Onde? - Maxwell tentou levantar-se, incrédulo.
- Aqui e aqui. Apalpe.
- Eu seja cão se foi! Não me lembro de o ter chicoteado, acho que não o fiz - pelo menos não usei o chicote. Chicoteei-te, Barba? - Procurava confirmação.
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- Não, siô - respondeu o rapaz.
- Então quem foi?
- 0 patrão Johnson, capataz do patrão Knowlton, na Plantação KnowIton Knoll, antes de comprá eu - explicou o rapaz. - 0 patrão velho ria quando o patrão Johnson chicoteô eu e esfregô sal e pimenta no meu carne. - 0 rapaz começou a chorar, ao lembrar-se.
- Não te rales; já passou tudo; o sal e a pimenta curam - declarou Maxwell em tom terno. - É estranho eu não ter reparado nos altos, quando o comprei. E deviam estar maiores nessa altura.
- Angolano? - roçou Brownlee. - Não suporta uma chicotadazinha.
- Porque é que ele te chicoteou? Que fizeste tu? - perguntou o amo.
0 Pregador era demasiado negro para corar. Baixou a cabeça e parou de soluçar.
- Responde, que fizeste tu? - ordenou MaxwelI, com firmeza.
- Eu..., eu... - Pregador hesitou e depois murmurou, embaraçado. - 0 patrão apanhô eu no palha a brincá.
Maxwell estava divertido.
- Nunca chicoteio um rapaz por isso. Digo-lhe que aquilo cal e assim o assusto. Seja como for, não serve de nada.
- A única coisa para curar isso é uma fêmea - anunciou Brownlee.
- Talvez, talvez.
- Compensa, compensa.
- Penso que não lhe interessa um rapaz com cicatrizes nas costas... -
aventurou Maxwell.
- Depende do preço, depende do preço - disse Brownlee, continuando a sua investigação.
0 Pregador foi melhor que o Imperador, no teste de actividade. Era mais vigoroso, mais vivo e, não sendo tão alto, não era tão prejudicado pela curta distância que tinha de correr para apanhar o pau.
- Quanto, quer por este? - perguntou Brownlee.
- Setecentos, mais ou menos. - Maxwell chegara ao ponto de negociar propriamente, e gostava de regatear.
- Não posso dar isso porque não o recebo. Quanto quer pelos dois?
- Quanto é que eu lhe pedi pelo mais claro? Seiscentos e vinte e cinco, não foi? E setecentos por este. Dá, dá, velamos. Sou muito lento a fazer contas de cabeça. Mil e trezentos e vinte e cinco, não é? Vá lá, mil duzentos e cinquenta pelos dois. É bem barato.
- Não posso - esquivou-se o negreiro. - Faça-me, digamos, cerca de ...
- Não pense nisso. Mil duzentos e cinquenta é o melhor que posso fazer-lhe. É pegar ou largar. É como quiser. Eu não estou aflito por os vender.
Brownlee pressentiu um tom de finalidade na declaração de Maxwell que ele não tencionara dar-lhe. Brownlee pareceu prestes a desistir.
- Oh, vá lá mil e duzentos - acedeu Maxwe11.
- Eles não são perfeitos - argumentou o negreiro, passando a mão sobre a cicatriz do Imperador. - Lamento, mas não posso dar-lhe esse preço.
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- Tenho uma ideia! -propôs Maxwell, como se isso lhe tivesse acabado de ocorrer. - Podia trocar os três garoto s que tem no estábulo por estes dois machos.
- Não os troco. Talvez por dois - ofereceu o negreiro.
- Vamos lá vê-los - Maxwell voltou-se para Meirmon. - Tu tens as chaves. Vai buscá-los.
Enquanto Agamémnon partia para cumprir a ordem, o amo deu permissão aos dois rapazes para entrarem numa cabana e se aquecerem.
- Vão para a cabana da Dido. Ela tem um bom fogo, nesta altura: está a cozinhar.
- Não consegue vender os miúdos em Nova Orleães - começou Maxwe11.
- Os rapazes já são bastante grandes e a rapariga passa bem por onze anos. Uma lei estúpida, de qualquer modo - declarou Brownlee.
- Não me referia à lei da Luisiana quanto à venda dos pequenos. Toda a gente sabe que é estúpida. Quem tem negros pequenos, devia poder vendê-los quando muito bem lhe apetecesse. Ninguém tem nada com isso -
afirmou Maxwell - , mas calculo que os seus pequenos não possam fazer nada ainda, não valham nada no mercado. Calculo que o saiba e os tenha comprado por baixo preço. Ficando com eles, uns três, quatro ou cinco anos, já terão valor real.
- E onde é que eu os guardo? Não posso guardá-los em Nova Orleães. Comprei-os para os vender. Quero receber o meu dinheiro e comprar mais negros.,
- E o que estou a dizer-lhe; é o que estou a dizer-lhe. Troque-os pelos meus dois rapazes que podem trabalhar e estão bons para o mercado. Eu crio os pequenos aqui, onde a comida é barata e o senhor pode voltar a comprar-mos, quando tiverem crescido e amadurecido. Claro, quero observá-los, antes da troca.
Brownlee parecia não encontrar falhas no argumento de Maxwe11. Meirmon surgiu, vindo dos estábulos, seguido pelos dois rapazes. Trazia a menina pela mão. Exaustos pela viagem matinal, tinham estado a dormir e encontravam-se apenas meio acordados. Um dos rapazes esfregava o olho
com o punho, o que talvez tivesse proporcionado uma deixa ao outro - que tinha uma constipação - porque o pus, seco e granulado, se acumulava nas extremidades das pálpebras. A rapariga era a mais feliz e animada dos três.
- Descasca-os - ordenou Maxwe11. - Não me apetece mexer nesses patifes sem os lavar. Mas já está muito frio agora, pois o sol está a pôr-se. Se estivessem lavados, podíamos levá-los para casa, onde está quente.
Memnon retirara o vestuário dos dois negros, e a rapariga, desabotoando o seu único botão, tinha despido o vestido, puxando-o por cima da cabeça.
Maxwell não fez uma observação tão detalhada como a que Brownlee fizera aos rapazes mais velhos. Delegou-a, na maior parte a Memnon. Os rapazes tinham aproximadamente a mesma idade, eram ambos mulatos escuros, e o que estava constipado era mais escuro que o outro. Não eram
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gémeos,
obviamente, embora semelhantes na forma, bem arredondados, mas robustos e de músculos fortes, para a sua idade. Maxwell notou a sua semelhança e Brownlee respondeu:
- 0 mesmo pai, provavelmente. Comprei-os ao mesmo criador. Foi difícil, mas não queria vender os mais velhos.
Maxwell apalpou-lhes superficialmente as coxas e as barrigas das pernas, inspeccionou o umbigo de um deles que suspeitou de ter uma hérnia, mandou Meirmon abrir-lhe a boca para examinar os dentes, e declarou-se satisfeito.
A rapariga não era bonita, mas era viva e simpática. Apreciou a atenção que lhe prestavam e reagia instantaneamente a qualquer ordem. Maxwell observou-a rapidamente. Clara, mais ou menos mestiça, tinha ossos pequenos e pouca carne. Os seus seios começavam a inchar, mas ainda estava longe da nubilidade.
- Virgem, julgo eu? - inquiriu Maxwe11.
- Era, sim; não sei o que lhe possa ter feito andar montada na garupa do cavalo.
- Observa-a, Meirmon - ordenou Maxweli. A rapariga divertiu-se com a exploração de Meinnon. Um dos rapazes -
o que estava engripado - olhava fixamente para o processo e Brownlee, notando o seu excesso de interesse, bateu-lhe no rabo com o pedaço de madeira que atirara para o Imperador ir buscar.
- Tem cuidado, rapaz, tem cuidado. Volta as costas e não olhes para os brancos, se vais ser assim. - 0 rapaz voltou-se de costas a chorar. - Suponho que posso beter nos meus pretos, já que não posso tocar nos seus - comentou Brownlee.
- Por esse motivo não, não pode. Aqui não. Deixe o miúdo divertir-se. Não se pode mudar a natureza dos machos - disse Maxwe11. - Bom acrescentou. - Como vamos negociar?
- Troca-se por igual. Os seus dois pelos meus três.
- Não, quero cem dólares, além disso.
- Por igual.
- Cinquenta.
- Não posso dar-lhe excedente, Os seus dois rapazes não são perfeitos.
- Não deprecio o seu material.
- Não há nada para depreciar. São perfeitos como moedas de ouro.
- Nunca faço uma troca sem receber qualquer coisa. Digo-lhe o que vou fazer, vou ao seu encontro - dez dólares, ou cinco.
- Raios, dou-lhe cinco - concordou o negreiro.
- Feito - declarou MaxwelI, satisfeito por manter a sua resolução de obter dinheiro em metal sonante em todas as suas transacções.
- Agora temos que fazer as facturas.
- E pagar o dinheiro. Mas agora que ela é minha, digo-lhe que a rapariga não é saudável. Qualquer pessoa pode ver que tem vermes, os vermes quase que lhe saiem pela garganta. Talvez sejam só lombrigas, mas eu acho que deve ser uma ténia. Vou purgá-la e ver o que sai. Não é assim
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muito feia. É apenas magra e angulosa.
- É sua e pode tratá-la como quiser. Estou satisfeito por ficar livre dessa porcalhona - regozijou-se o negreiro.
- Memnon, leva a pobrezinha à Dido. Diz-lhe que tome cuidado com os rapazes, à volta dela, porque não a quero estragada já, e ela que o evite. E diz à Dido que não lhe dê de comer ou de beber esta noite - nem uma dentada nem uma gota. É por isso que é mau uma criança ter bichas - ficam vazias. Gosto de alimentar o gado e fazê-lo crescer. E veste qualquer coisa seca aos dois rapazes do senhor Brownlee e leva-os outra vez para o estábulo. -
Voltando-se para o negreiro. Maxwell perguntou: - Quer que se ponham grilhetas nos rapazes, não vão eles fugir esta noite? Agora são seus. Lavo daí as minhas mãos.
- Tragam-mos cá antes de os mandarem para o estábulo. Vou falar com eles. Quando acabar a conversa, j .a não fogem - respondeu o novo dono.
- Deita estes dois pretinhos no estábulo com os outros miúdos. Eles que fiquem a conhecer-se. Alimenta~os e dá-lhes bastante melaço com rum. Não tenhas medo que fujam esta noite; estão muito cansados para fugir, e amanhã saberão que a comida de Falconhurst é tão boa que nem conseguíamos correr com eles.
- Sim, siô, patrão - disse Mertirion.
- E não te esqueças de triturar esta noite umas nozes de betel para aquela miúda. Tritura-as bem, em pó. E não tentes usar aquele pó já velho que sobrou. Têm que ser trituradas frescas ou não servem de nada. A quantidade que couber numa medida. É a melhor cura para bichas que já se viu, se conseguirmos fazê-los engolir aquilo.
- Só isso, patrão siô?
- Só isso; vê se não te esqueces do que te disse. Vai buscar o Barbarosa e o Imperador para virem ao seu novo dono. Eu vou para ]unto da lareira. Ainda faz frio e chuva.
Maxwell levantou-se, ajeitou a manta azul e branca e entrou na casa, com Mertirion a segurar a porta.
- Eu vou contigo - disse Brownlee a Merimon. Não quero que os dois rapazes saiam nus com esta chuva.
Agamértirion levou-o à cabana de Dido, seguido pelos três miúdos nus, com o negreiro atrás.
Encontraram o Pregador e o Imperador sentados no chão escorado, ao lado da lareira, junto da qual a enorme Dido fazia o jantar numa panela, com um bebé agarrado ao peito. Quatro outras crianças, dispersas pela única divisão da cabana sem janelas, reuniram-se de costas para a parede, para olhar para o branco estranho. Os dois rapazes nus levantaram-se e afastaram-se do fogo, para dar lugar aos seus superiores. Os seus rostos estavam sombrios.
Brownlee dirigiu-se-lhes.
- Gostavam de vir comigo, de serem os meus negros? - disse, em tom bondoso.
- Eu gosta daqui, patrão é bom para eu - disse Imperador e o Pregador
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desatou a chorar de novo.
- Eu também vou ser bom para vocês.
- Siô levá gente para Nova Orleães e vendê gente pra trabalhá nos campo - protestou Imperador.
- Que disparate! Nada disso! Se eu ficar com vocês, vão ficar para mim. Claro que vamos para Nova Orleães, onde tenho que comprar mais alguns trabalhadores; mas eu tenho uma grande plantação no Kentucky e tenho umas dezoito ou vinte fêmeas à espera e têm que ser servidas.
Agmerimon abafou o riso com a mão. Não teria tido vontade de rir se qualquer dos Maxwell estivesse presente.
Brownlee esperou que a sua informação penetrasse nas suas cabeças duras. Viu as suas colunas endireitarem-se, as cabeças levantarem-se, e a animação espalhar-se pelas suas faces.
- Acham que podem fazer esse trabalho?
- Pode, sim - ecoaram as suas palavras antes de as poderem pronunciar. Olharam um para o outro, mal acreditando ria sua boa sorte.
- Claro que o negócio ainda não está feito. 0 vosso patrão quer muito dinheiro por machos de primeira como vocês, e eu quero ver que gênero de bebés vocês fazem antes de me arriscar a entregá-los às minhas belas fêmeas.
Ficaram ambos embaraçados.
- 0 patrão Ham não usou eu ainda. Está apoupá- exclamou Pregador.
- Eu também não - acrescentou Imperador. - Mas pode fazer bebés bons. Eu sabe que pode, slô. Experimente eu.
- Tu nã pode fazê nada, nègo. Tu está todo queimado. - Pregador tentou aproveitar a sua vantagem. - Os cavalheiro branco na precisa de ti? Eu pode servir todas as fêmea, eu sozinho sem ajuda.
- Interesso-me pelos dois - disse Brownlee, - se conseguir um bom preço. Amanhã de manhã se verá.
Voltou-se para sair da cabana.
- Esta noite não fogem. Não vale a pena pôr-lhes grilhetas. Veste-lhes fatos secos e manda-os para a cama como habitualmente - ordenou a Merririon.
Merrírion não estava de bom modo. Não gostava de fazer de ama de rapazes de campo. Estava abaixo da sua dignidade. 0 seu lugar era em casa
- na casa, a fazer toddies, a espevitar a lareira e a servir à mesa dos brancos.
Levou os pretos pequenos e os dois mais velhos para os estábulos. Logo que ficaram suficientemente longe de Brownlee para que este pudesse ouvi-los, Mem desatou a rir.
- Vocês pensam que aquele branco vai comprá vocês pra criação? Nenhum branco é parvo para comprá vocês pra porcas quanto mais pra fêmeas de criação - explicou.
- Eles quer preto grande como eu pra esse trabalho.
- Eu pode fazê mêrno que tu - replicou Pregador, persistindo na sua credulidade. - Talvez Imperador não pode; tá todo queimado.
- Pode, pode tão bem como tu! - gritou o Imperador.
- Plantação no Kentucky, uff@ - continuou Meirmon com desprezo. -
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Aquele branco não tem plantação nenhuma,
em sítio algum. É só negreiro um simples e vulgar negreiro sem valor. Não é cavalheiro nenhum. 0 patrão Brownlee vai comprá vocês, já comprou vocês, para levar vocês para Nova Orleães e pô vocês no mercado e vendê pla maiô oferta que aparecê. Agora entrem pró estábulo, pró pé dos outros rapazes e esqueçam-se de Kentucky e das mulheres. Pra criação! - resmungou Meirmon com desprezo, fechando e aferrolhando a porta do estábulo.
Pregador e Imperador guardaram, como um tesouro, a garantia que Brownlee lhes dera. Não queriam que lhes roubassem o seu sonho. Gabaram-se aos companheiros dos êxtases que os esperavam, discutiram azedamente um com o outro a sua futura fecundidade, em comparação, e não conseguiriam levá-los a fugir mesmo que lhes prometessem o paraíso.
Capítulo segundo
0 senhor BrownIce saiu da zona das cabanas e encaminhou-se lentamente para a casa, sob a luz que desaparecia. A chuva tinha-se transformado num chuvisco, de tal modo que as gotas que escorriam das árvores, quando passava sob elas, molhavam mais do que a chuva nos espaços abertos. 0 negreiro compreendeu que o chuvisco era apenas uma pausa na fúria dos elementos porque se aproximavam, de oeste, nuvens carregadas de água que o vento impulsionava. Brownlee estava preocupado com o tempo e cogitava na sua viagem, pensando se ela teria que ser adiada por mais um dia, dois, ou mesmo três, em Falconhurst, ou se lhe seria possível partir na manhã seguinte.
Estava impaciente para sair dali, chegar a Nova Orleães e receber o seu dinheiro e o lucro, com a venda dos dois escravos - ou antes, o dinheiro do seu capitalista, pois o capital para a sua expedição tinha sido emprestado, e o lucro líquido obtido na venda dos negros que comprasse teria de ser dividido entre ele e o cavalheiro que o financiara. Esses lucros seriam provavelmente pequenos, nesta incursão. Tinha encontrado poucos pretos, caros, de má qualidade, e difíceis de comprar. Era um mercado em inflação e os plantadores aguardavam preços mais altos - com excepção daqueles que vendiam um negro ou dois para comprar comida para os que mantinham em reserva.
Brownlee riu-se, intimamente, com a mentira que pregara aos rapazes, para fortalecer a sua vontade de o seguirem. Um negro que mudara de dono contra vontade era susceptível de criar problemas ao seu novo dono. BrownIce pensava que a sua conversa com os rapazes apressaria os seus passos pelo caminho fora, tanto como a ameaça do chicote nas pernas.
Ao entrar em casa, que mergulhava na obscuridade, encontrou o seu anfitrião inclinado sobre as poucas brasas da lareira, furioso, insultando Agamerririon por permitir que o fogo se apagasse. Necessitava terrivelmente de um toddy e queria velas. Embora estivesse tão coberto que era impossível vê-lo, a face do Sol desaparecera totalmente no horizonte, mas o dia ainda não expirara tão completamente como Maxwell julgava. Sempre impaciente com as ausências de Hammond, por muito curtas que fossem, mostrava-se agora mimado e irritado com o atraso do seu regresso do trabalho.
Agameirmon tendo devidamente executado as ordens que o seu amo lhe dera, chegou poucos minutos depois de Brownlee. Entrou pela porta da casa de jantar, com os braços carregados de lenha para o fogão e despejou-a toda sobre a trempe.
A descompustura que Maxwell aplicou ao negro era uma obra-prima de invectivas - sarcasmos sobre insultos e insultos sobre vitupérios. Merririon
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absorveu tudo como se o merecesse, sem apreciar a eloquência. Conservando-se perante o fogo, mexendo as brasas e esforçando-se por fazer arder a madeira nova e húmida, não tentou refutar os argumentos do amo, mas afastou a sua ira com um "sim, siô, patrão>@, ou um <,não, siô, patrao", pronunciados em tom suave e contrito, sempre que podia, introduzindo-os nas breves pausas que Maxwell fazia para recuperar o fôlego.
Meirmon era demasiado educado, talvez demasiado assustado, para tentar escapar-se antes do amo ter esgotado a sua arenga. Continuou a
ivamente, para dar a espevitar o fogo, mesmo depois de ele já arder v? Maxwell oportunidade de dar largas a todo o seu fel. Logo que viu que era seguro fazê-lo, desapreceu, voltou com as velas e retirou-se para preparar um toddy para Maxwell e um copo grande de uísque para Brownlee. Sabia bem que nada acalmava mais o patrão do que beber um toddy.
Escurecera bastante quando Hamnond regressou. Vinha cansado mas bem disposto. Os vaticínios do pai tinham sido feitos em vão.
- Boa noite, pai- disse, inclinando-se para beijara face do velho. -Boa noite, senhor Brownlee. Então o pai convenceu-o a comprar os rapazes?
- Claro que sim - declarou Brownlee. - Fizemos negocio ... Maxwell resolveu adiar a notícia do modo como o negócio tinha sido feito e mudou de assunto.
- Chama o Mermion para te preparar um toddy, filho, e senta-te e bebe-o antes da ceia. Ajuda-te a descansar um pouco.
Hammond aceitou o conselho. Enquanto Merimon estava na sala, para receber as instruções de Hammond, o Maxwell mais velho despejou o seu copo e disse:
- Apetece-me outro. Apanhei um raio de um frio naquele varandim e esse maldito negro preguiçoso deixou o fogo apagar-se. Sinto o reumatismo a piorar. Acho melhor beber outro. E o senhor Brownlee, que toma?
- Outro uísque - respondeu o negreiro.
- Conte-me a venda, - disse Hammond, voltando ao assunto. - 0 pai arrancou-lhe um dente, senhor Brownlee?
- Quase - respondeu o negociante. Maxwell sentiu que chegara a altura de não poder adiar mais a confissão a que estivera a fugir.
- A falar verdade, não foi uma venda - começou ele.
- Não? - perguntou Hammond.
- Não, foi uma espécie de troca, por assim dizer; embora eu recebesse um excedente - e repetiu: - Recebi um excedente, lá isso recebi.
Quando Merimon voltou com as bebidas, Maxwell aproveitou a oportunidade para falar doutra coisa.
- Traz ao patrão Ham umas pantufas e calça-lhas, para ele descansar. Não vês que está molhado? Não mais consegues fazer nada sem te mandarem?
As perguntas desorientavam Merririon, mas era preciso reconhecê-las, mesmo que não lhes respondesse.
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- Sim, siô; não siô - respondeu, deixando o patrão escolher a resposta que lhe conviesse.
- Que gênero de troca? - insistiu Hammond, implacavelmente, enquanto Meirmon lhe trazia as pantufas, ajoelhava-se em frente dele e, apoiando na barriga o pé do patrão, lhe arrancava as botas de montar, após o que lhe despiu as meias de lã, passou os dedos entre os dedos do pé para lhes tirar a humidade, massajou as articulações e esfregou o peito do pé, antes de lhe calçar as pantufas espessas, desajeitadas e enormes, feitas de carpeta de Bruxelas com desenhos tão grandes que as pantufas não pareciam constituir um par.
- Bem, para dizer a verdade, o senhor Brownlee tinha três pretinhos que vinham com ele, um casal de machos com cerca de quinze palmos de altura e uma fêmea clarita e jeitosa.
- Eu vi-os acorrentados nos estábulos. E calculo que trocou os dois machos grandes por eles? - 0 tom da pergunta traía contrariedade.
- Mas recebi o excedente, recebi o excedente - protestou o pai. Brownlee absteve-se de discutir.
- Quanto? Não tinha que receber excedente, parece-me.
- Só cinco dólares. Mas excedente é excedente. Maxwell sentiu a contrariedade de Hammond e esfregou as articulações artríticas, para o incitar à piedade. 0 seu rosto ensombrou-se, como se fosse chorar.
- julgava que estava a fazer um bom negócio. Talvez esteja a perder a mão, talvez esteja mesmo a perder o juízo.
- Ora, ora, pai! Teve toda a razão - disse Ham, ao ver o desgosto que a sua crítica causara. Levantou-se da cadeira, arrastou as pantufas através da sala, apertou suavemente uma das mãos distorcidas e fez-lhe uma leve fricção. - Não, não; fez boa troca. Foi boa porque em vez de obter dinheiro com os dois negros, arranjou-nos mais um, e nada de dinheiro.
- Cinco dólares.
- Sim, cinco dólares. Não pode ver um preto pequeno sem o comprar. Falconhurst está apinhada de negros jovens que não servem para tratar

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