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Luis Fernando Verissimo SEM TIRAR NEM POR

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Luis Fernando Verissimo
09/11/2003
Sem tirar nem pôr
- Sou eu sem tirar nem pôr - disse a Juventina sobre uma personagem da novela.
As pessoas acharam graça. Juventina adorava novelas. Via todas. E estava sempre comentando a
vida dos personagens como se fossem reais. Mas neste caso havia, mesmo, algumas coincidências
curiosas. Fora o nome, a personagem se parecia muito com a Juventina. Se parecia demais. O
mesmo jeito, a mesma origem nordestina, a mesma história familiar...
Um dia, depois que a personagem falou na mãe costureira e viúva que deixara na sua cidade natal
e não via há cinco anos, Juventina atirou as mãos para o alto e exclamou:
- Meus santos, essa sou eu!
Juventina dizia muito "meus santos". Foi, aliás, depois do capítulo em que, no fim de uma briga
com o irmão safado, a personagem da novela atirou as mãos para o alto e disse "Meus santos, me
acudam!" que todos concordaram: a Juventina deveria fazer alguma coisa a respeito daquilo.
A personagem era ela sem tirar nem pôr!
* * *
Mas fazer o quê?
- Procure a televisão. Eles estão roubando a sua vida - disse alguém.
- Isso é plágio - disse outro.
Mas procurar a televisão, como? Escrevendo uma carta? Milhares de pessoas, provavelmente,
escreviam para a televisão, dizendo que eram iguais a personagens de novelas. E ela não podia
simplesmente bater na porta da televisão, pedir para falar com a direção e dizer "Parem de me
copiar". Foi quando a lembraram que novelas tinham autores.
Eram os que inventavam as histórias e os personagens. Talvez o autor da novela fosse um
conhecido seu, que soubesse da sua vida e a estivesse aproveitando no enredo. "Mas por quê?
Minha vida é tão sem graça" disse a Juventina. Não era tão sem graça assim. Ela podia não se dar
conta, mas era uma pessoa interessante, com uma vida interessante. Uma vida que, obviamente,
inspirara o autor. Mas ela não identificava o nome do autor. Jamais conhecera um autor do que
quer que fosse. Viu sua fotografia numa revista, recebendo um prêmio, e também não o
identificou. Não importava. Juventina precisava procurá-lo e tirar aquilo a limpo. Onde já se vira,
usar a vida de uma pessoa assim, sem pedir licença?
* * *
Foi tão difícil a Juventina chegar ao autor como fora dificil para a personagem, que era do núcleo
pobre da novela, chegar ao núcleo rico. Finalmente, através do cunhado de uma prima (sempre há
o cunhado de uma prima) que conhecia alguém cujo irmão tinha algo a ver com um fornecedor da
televisão, Juventina foi recebida pelo autor. Que foi muito simpático. Sacudiu a cabeça e disse
"Que coincidência!" quando a Juventina contou que a personagem era ela sem tirar nem pôr. E
assegurou que era tudo isso mesmo. Coincidência.
- Mas de onde o senhor tirou a mãe viúva e costureira que eu deixei no Nordeste e não vejo há
cinco anos?
- Da minha cabeça.
- E o meu arroz com carne de sol com a salsa em cruz pra dar certo?
- Da minha cabeça.
- E o irmão safado que me rouba dinheiro?
- Da minha cabeça.
- E a minha mania de dizer "Meus santos"?
- Taí. Pensei que eu é que tivesse inventado essa expressão.
Juventina não sabia mais o que dizer. O autor sorriu e observou que vidas parecidas com a dela
existiam muitas, as coincidências não eram assim tão espantosas. E, mesmo, ela não precisava
mais se preocupar.
A personagem morreria num capítulo próximo.
* * *
Juventina já estava no elevador quando resolveu voltar. Bateu na porta do autor e, quando ele
abriu, perguntou:
- Como?
- Como o quê?
- Como ela vai morrer?
- Ainda não decidi.
- O senhor ainda não escreveu a cena?
- Não.
- Eu posso entrar de novo?
* * *
A única coisa que Juventina disse, àquela noite, quando a televisão deu a notícia da morte
misteriosa do autor, golpeado na cabeça com um prêmio que recém recebera por um
desconhecido, dentro do seu apartamento, foi:
- Meus santos, o que que é isso?
No dia seguinte, viajou para o Nordeste, dizendo que precisava rever a sua mãezinha e talvez não
voltasse tão cedo.

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