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Luis de Sttau Monteiro REDAÇOES DA GUIDINHA

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Luís de Sttau Monteiro
Redacções da Guidinha
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O meu padrinho José Cardoso Pires é um safado que nunca me dá amêndoas pela Páscoa nem presentes pelo Natal e que está em Londres com a consciência tranquila enquanto a afilhada anda por cá a rapar fome por causa da alta dos preços e a ficar azarzoada com os discursos dos políticos e a lixar-se por dentro e por fora com isto tudo mas deixemos de parte o meu padrinho que emigrou para poder comer bifes e para viver bem (...) o safado é tão esperto que emigrou para o país do whisky
Depois veio outro salvador da Pátria chamado Salazar que não gramava a malta da Graça por nada deste mundo e que resolveu salvá-la outra vez ena pai ena pai ena pai que rica salvação! a primeira coisa que esse Salazar fez foi pôr adesivo na boca da malta toda para ela não falar a segunda coisa foi chamar os netos do tal D. Miguel e metê-los numa coisa que houve chamada píde que era um grupo de caceteiros que usava pistolas e metralhadoras em vez de cacetes e que metia a malta da Graça numa estância de Verão que esse Salazar tinha em Caxias enfim mais desgraças de maneira que não espanta que a malta da Graça agora ande com medo de ser salva outra vez sim porque se há coisas que a malta da Graça não aguenta é outra salvação como as antigas.
Luís Sttau Monteiro
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Edição de Helena de Gubernatis
O Independente
Lisboa, 2004
Horas Extraordinárias
Concepção, direcção editorial e produção gráfica 
Vasco Rosa
A Guidinha antes e depois, 
de Luís Sttau Monteiro
Printer, Indústria Gráfica
B. 1977
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Índice
Antes e Depois, de Helena de Gubernatis
Quem sou eu?
Quem sou eu?
As minhas memórias de infância
Os meus primeiros passos na vida,
A verdade acima de tudo
A Graça é bestial.
Civilização na Graça
A Graça está chata
Já fui
Eleições no Rebenta Canelas
A Graça está uma desgraça em matéria de fé
Buff que estou farta
O meu pai anda com a mania que é marisco
As desgraças cá da Graça
Deus nos livre dos santos e dos iluminados que dos maus sabe a gente safar-se
A Graça está cheia de bombas
Os demónios da Graça
O Pele não veio à Graça diabos o pintem
O que é um bife?
A Graça vai ser um país de turismo
Aldeias de Portugal.
Areeiro
Alfama
Campo de Ourique
O Bairro Alto
A Estrela
Benfica
Alcântara
Vou ser designer
Tive uma bolsa para ir à exposição do design
Vou ser designer
Mais designs
Os meus primeiros namoros
Os meus primeiros namoros
Também tive um namoro a sério
O meu primeiro noivado
A Chatice das aulas
Vou-me licenciar por obra e graça do Espírito Santo
Que chatice começaram as aulas
Para os meninos do Liceu Pedro Nunes
O meu Pai foi preso
A linguagem é bestialmente importante
O ensino superior comprido e o ensino superior curto
A chuva (uma redacção no velho estilo da Guidinha)
Ora abóbora
O pó
As boas educações
Os empregos
Mexericos
As marchas populares
O Natal foi tão bom ai que bom que foi o Natal
Até que enfim
É preciso mais imaginação porque esta não chega
Deu a mania do cinema ao meu pai
A abóbora
Futebol e vinho tinto
Ando a poupar energia
Ena pai que festival de civismo
Contribuição para um dicionário de português contemporâneo
Precisamos dum cortejo histórico
É festa é festa
Então mas que é isto?
Da arte de driblar a censura
O sapo queixinhas
Disto e daquilo, principalmente daquilo
�
Para a Clara 
(1963-2003)
minha irmã gémea e minha melhor amiga
�
Conhecemos a Guidinha num domingo à tarde em casa da avó Paula pela mão do nosso Pai, aliás pela voz dele porque nessa altura em 1969 quando a Guidinha começou a escrever ainda a Clara e eu não sabíamos ler Essa leitura em voz alta saboreada vezes três tornou-se num ritual aguardado semanalmente com curiosidade e entusiasmo Mais tarde aprendidas as letras ganhámos desenvoltura e vocabulário da melhor maneira a sorrir!
Graças à Guidinha soube pela primeira vez que existia um bairro chamado Graça onde fui parar em crescida e ainda moro radiante também por isso vai para dez anos aprendi a descortinar sentidos na ausência deliberada de pontuação cultivada com mestria pela língua afiada de Luís Sttau Monteiro (1926-93) e generosamente posta ao serviço da sua lucidez crítica em tempos de censura o ignóbil lápis azul pude aceitar trinta e tal anos mais tarde este saboroso desafio duplo o do mergulho retrospectivo numa infância feliz vivida em estereofonia e na atribulada história recente de Portugal que a minha geração só pôde decifrar a posteriori.
A Graça da Guidinha como microcosmos do país no seu melhor e no seu pior respectivamente asfixiado e alimentado pela tacanhez do Estado Novo resistindo com orgulho bairrista a pertencer à mesma cidade... como se a Graça não fizesse parte de Lisboa e simultaneamente fosse a sua última reserva moral (ou mural?) a oposição possível ao Portugal dos Pequenitos em todo o seu esplendor!
A Guidinha com graça em plena Ditadura no tempo das Conversas em Família de Marcello Caetano do Se Bem Me Lembro de Vitorino Nemésio da pasta medicinal Couto do restaurador Olex do creme desodorizante Bily do Cartaz tv do TV Rural dos pastéis de bacalhau sem bacalhau do E a Vida Continua do folclore popular e televisivo com ou sem Pedro Homem de Mello do Museu de Cinema mudo com Lopes Ribeiro e António Melo à voz e ao piano muitos artistas de variedades outras tantas metáforas do país amordaçado já em Democracia no tempo das primeiras eleições da Gabriela e seguinte invasão das telenovelas brasileiras dos concursos televisivos como A Prata da Casa e A Cornélia da desvalorização da moeda da continuada ausência do bacalhau das reformas de rabo na boca das excursões oficiais do ultimo Tango em Paris chegado com jet lag das passagens administrativas expressões de liberdades conquistadas mas nem sempre digeridas no país recuperado...
Entre 1969 e 1980 primeiro no suplemento «A Mosca» do Diário de Lisboa pela mão do «padrinho» Cardoso Pires depois em O jornal pela mão afável de Afonso Praça graças ao talento de Luís Sttau Monteiro antes a Guidinha emprestou a sua voz infantil aos que não tinham voz porque às crianças mais facilmente se perdoa o não terem papas na língua... embora nessa altura nem sequer fosse permitido festejar o Dia Mundial da Criança depois quando as vozes se levantaram e por vezes se confundiram a Guidinha em trânsito sobreviveu teimosamente mostrando que continuava atenta sem condescendências...
Grata à Guidinha pois também porque pelo caminho encontrei outros «grilos» desenhados que podiam ser primos dela o Astérix a Mafalda o Calvin mas só pude reconhecê-los por a ter conhecido tão cedo...
Quase vinte e cinco anos depois da última «Redacção da Guidinha» muitas idiossincrasias persistem mas o sentido de oportunidade da partilha mantém-se para que a Guidinha nos lembre sempre que a amargura e a decepção que os regimes mais ou menos musculados suscitam pode ser transformada de maneira construtiva num sarcasmo metódico que aposta em pôr-nos a nu através do ridículo tão temido quando muitos insistem em gabar-nos os fatos.
Antes e depois como nas dietas fora e dentro como nas viagens... Abrir e fechar os olhos e a boca... Resistir e acreditar sorrindo!
Helena de Gubernais
Antes e Depois
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Quem sou eu?
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Quem sou eu
Todos os dias recebo cartas a perguntar quem é que eu sou quem é que escreve as minhas redacções onde é que eu moro o que é que faz o meu pai quantos anos tenho porque é que não cresço e mais isto e mais aquilo até já recebi umas cartitas com ofertas de caramelos e de chiclets que era melhor eu não ter recebido sim porque eu não sou dessas meninas que andam para aí aos caramelos e aos chiclets ora o que eu digo é que se as pessoas perguntam estas coisas é porque não sabem lerporque eu assino Guidinha e que se eu me chamasse Maria assinava Mariasinha não assinava Guidinha mas o melhor é eu responder a todos duma só vez chamo-me Guidinha porque me baptisaram Margarida do Rosário para passar manteiga à minha madrinha que também se chamava Margarida do Rosário e que nessa altura ainda era solteira e tinha umas quintitas lá na terra que o meu pai julgava que me vinham parar às mãos mas se ele me pusesse o nome dela o que interessava muito porque essas quintitas davam uma água-pé a puxar para o vinho que ele achava muito boa e principalmente muito barata porque ela mandava-lhe uns garrafões da terra e ele só pagava o frete o pior foi que lhe estalou a castanha no garrafão porque ela casou com um lá da terra chamado Zé das Pingas que gostava tanto ou tão pouco de água-pé que casou com ela sem se importar que ela tivesse o maior bigode da região e agora nem água-pé há porque ele hipotecou-lhe as quintas as quintas para comprar um Ford e anda nesse Ford a beber-lhe o resto do dinheiro da hipoteca nas tascas o meu pai diz que ele até jogou no casino da Póvoa enfim é por isso que eu me chamo Margarida do Rosário o meu segundo nome é Guerreiro por via dum avô que eu tive do lado da minha Mãe chamado Herrero que era de Vigo e parou lá na terra a caminho de Lisboa para onde vinha trabalhar num vinhos e sandes qualquer mas ao saber que a minha bisavó tinha três cordões de ouro um terreno onde hoje é o campo de futebol e uma junta de bois que por acaso eram vacas ficou lá e casou com ela também para a desgraçar porque a verdade é que ela ficou sem fios de ouro sem vacas e sem terrenos e ele pirou-se para Vigo e nunca mais cá pôs os pés desse casal de Herreros nasceu o meu Avô do lado da minha Mãe que se chamou Guerreiro por patriotismo e que andou num convento a estudar para padre até conhecer a minha Avó que é aquela que vive cá em casa por ser mãe da minha Mãe e sogra do meu pai e que tinha umas territas cheias de pedras e de cepa comidas pelos anos e vai esse meu Avô Guerreiro quando a viu e soube disso também se esqueceu de que ela tinha um bigode escurito e perdeu a fé completamente tão completamente que largou a carreira de padre meteu umas cunhas ao regedor da freguesia e entrou para a carreira de empregado da Câmara em que acabou reformado antes de acabar de vez cá em casa quando escorregou num patim à saída da casa de banho enfim coitado que descanse em paz o pior é que as territas ficaram ao cuidado da minha Tia Amélia que vive lá na terra e nunca mais deram nada nem um garrafão de azeite porque todos os anos ela escreve-nos a dizer ora que foi a seca ora que foi a molha ora que foi a falta de amanho ora que foi o não haver dinheiro para o estrume mas que tirássemos a ideia de haver qualquer coisa a receber enfim como é que ela faz ninguém sabe mas a verdade é que com a molha com a seca com a falta de estrume e com a falta de mão-de-obra ela já tem um Fiat uma mercearia e um cabeleireiro coisas de quem vive perto dos bens de raiz o meu terceiro nome é Antunes que vem do lado do meu pai que é funcionário e que só não é bisneto dum funcionário porque no tempo do meu bisavô os padres não podiam ser funcionários o que até é justo sim porque tinha de haver qualquer coisa que eles não pudessem ser enfim o meu pai é duma velha família de funcionários velhos e não se cansa de dizer que enquanto os dele andavam a dirigir o país os da minha Mãe andavam atrás das cabras nos montes mas a verdade é que quando de ano a ano nos mandam um garrafão de água-pé só queria que vissem como ele e os primos descendentes da velha família de funcionários se lambem com a água-pé dos seguidores de cabras o meu primo Isequiel do lado da minha Mãe até diz que se não tivesse havido tanto funcionário a mandar e a beber havia mais água-pé mesmo muito mais água-pé mas desconfio que isso é política e por isso fico por aqui enfim já sabem quem eu sou agora passo a outra coisa que é a minha idade o que eu quero saber é o que as pessoas têm com isso sim o que é que as pessoas têm com a idade dos escritores? já alguém se lembrou de escrever ao Jorge Amado ou à Dona Odette de S. Moritz [sic] a perguntar-lhes a idade? aposto que não e por isso não digo quantos anos tenho só digo que há para aí muita gente que gostaria de ter a minha idade outra coisa que querem saber é porque eu não cresço ora a quem me pergunta isto só respondo que vá engraxar sapatos com cebo de girafa porque ninguém sabe se eu cresço ou não se calhar até estou a minguar como está a minguar a minha paciência quando me fazem perguntas destas de qualquer forma se eu não cresço é porque não sou da natureza das que crescem e ninguém altera a natureza.
In A Mosca, 25 Agosto 1973.
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As minhas memórias de infância
Não sei se sabem mas se não sabem ficam a saber que todas as semanas recebo cartas a reclamar por eu ter doze anos há mais de dez anos o que eu quero dizer é que desde que publiquei a minha primeira redacção em «A Mosca» do Diário de Lisboa vai para dez anos que continuo com a mesma idade e isso chateia as pessoas que me escrevem não sei porquê embora pense que é por inveja sem porque como essas pessoas envelheceram dez anos nos últimos dez anos têm uma inveja danada de mim por eu não ter envelhecido o que mostra como as pessoas são más e rancorosas e não perdoam aos outros conseguirem o que elas não conseguem sim porque não há ninguém senão eu que deixe o tempo passar sem lhe ligar bóia e fique sempre com a mesma idade e isso provoca raivas e invejas difamações e outros produtos nacionais da mesma família de maneira que eu vou contar como é que nasci e vou relatar as circunstâncias em que ocorreu o meu parto para começar nasci na Rua Luz Soriano 100 num andar pequenino e desarrumado onde uns maduros então chefiados por meu padrinho que se chama José Cardoso Pires preparavam um suplemento chamado «A Mosca» que ia dando cabo da cabeça do meu pai e que o teria levado rapidamente ao cemitério dos Prazeres se ele não tivesse aproveitado uns restos de juízo para se safar já agora aproveito para dizer que o meu padrinho José Cardoso Pires é um safado que nunca me dá amêndoas pela Páscoa nem presentes pelo Natal e que está em Londres com a consciência tranquila enquanto a afilhada anda por cá a rapar fome por causa da alta de preços e a ficar azarzoada com os discursos dos políticos e a lixar-se por dentro e por fora com tudo isto mas deixemos de parte o meu padrinho que emigrou para poder comer bifes e para viver bem o safado que nem sequer emigrou para os Brasis ou para as antigas colónias não senhor é tão esperto que emigrou para o país do whisky que ele não é pessoa para ir em cocos nem para beber cachaça enfim como eu ia dizendo nasci uma tarde em que era preciso lá nessa «A Mosca» chatear a censura que era uma rolha que punham antigamente na boca das pessoas para elas não dizerem o que pensavam e como era preciso chatear essa censura o meu pai resolveu fazer uma página infantil na tal «A Mosca» na esperança de que a censura fosse no bote e não olhasse para a página e isso realmente aconteceu no primeiro número em que saiu a tal página que tinha um conto de uma série chamada «Contos da Tia Guidocha» escritos pelo meu pai para chatear a censura o pior foi que nessa altura havia umas pessoas chamadas denunciantes que ainda andam por aí mascaradas de outras coisas sim porque eles não morreram nem se modificaram o que mudaram foi de estilo antigamente acusavam as pessoas de quem não gostavam de serem progressistas e agora acusam as pessoas de quem não gostam de serem reaccionárias as palavras mudaram mas os pulhas são os mesmos pois como eu ia dizendo uns denunciantes comunicaram logo à tal censura que tinham lido um conto contra o Governo em «A Mosca» e vai caiu o Carmo e a Trindade em cima dos maduros que estavam a fazer «A Mosca» e vai eles tiveram que mudar de ideias e de projectos e vai o meu padrinho perguntou ao meu pai se ele não tinha lá em casa uma outra pessoa de família que pudesse substituir a «Tia Guidocha»e o meu pai disse que não mas ficou a pensar naquilo e resolveu fazer-me isto parece esquisito e não diz lá muito bem dos hábitos do meu pai que é danado para essas coisas mas a verdade é que eu fui feita na tarde do dia seguinte na redacção da tal «A Mosca» e o pior não é só ele ter-me feito assim a meio da tarde na redacção de um jornal não senhor o pior é que me fez à frente de toda a gente em cima duma mesa com este passado o que é que querem que eu seja? para a semana conto o resto.
In O Jornal, 1 Junho 1979.
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Os meus primeiros passos na vida
Depois do meu nascimento lá no 100 da Rua Luz Soriano nunca mais deixei de trabalhar ainda eu era uma criança de mama e já era escrava porque nessa altura não havia anos internacionais das crianças nem nada e como este nada que não havia se aplicava à dispensa do meu Pai ele tratou de me explorar o mais possível para começar atirou-me para as páginas da tal «Mosca» onde eu descrevia tudo o que me passava pela cabeça desde as idas à Caparica aos casamentos das minhas primas e às coisas que eu via as vizinhas fazer pus ali a Graça toda a nu e toda a gente ficou a saber como é que as pessoas viviam só não contei as aventuras da menina Fernanda porque tive vergonha mas qualquer dia perco-a e conto tudo tudo tudo a minha grande desgraça nessa altura era uns senhores duma coisa chamada Censura que passavam a vida a cortar as minhas redacções e que me obrigavam a escrever duas três quatro e cinco redacções por semana para se ter uma ideia do que era a minha vida basta dizer que uma vez escrevi sete redacções em dois dias para eles me deixarem passar uma se isto não é uma vergonha não sei o que é que o é já agora conto que uma vez o meu Pai foi abordado por um senhor no meio da rua que lhe perguntou se ele era o Pai da Guidinha e quando ele disse que sim o tal senhor voltou-se para ele e disse-lhe que era da Censura e que mais dia menos dia o metia na cadeia por ela andar a difamar as instituições como se isso fosse verdade porque se há uma pessoa institucional essa pessoa sou eu mas a história deste período da minha vida não fica por aqui não senhor isto tem muito que se lhe diga olá se tem uma vez que essa tal censura cortou a minha redacção o meu Pai resolveu deixar em branco o espaço em que ela devia ter sido publicada na «Mosca» mas isso era proibido e não o deixaram fazer isso e vai ele publicou nesse local uma fotografia pois querem saber o que aconteceu? querem? nada mais nada menos do que um sermão dos tais senhores da Censura que ficaram danados e que disseram que o lixavam se ele não publicasse as minhas redacções todas as semanas naquele espaço estão a ver como as coisas eram sim o meu Pai tinha de escrever as minhas redacções que eles cortavam à vontade e se não escrevesse tramava-se esses anos da minha infância foram muito difíceis, as crianças de agora nunca passaram pelo que eu passei vou contar-lhes mais uma desse tempo um dia os senhores da Censura cortaram uma redacção e o meu Pai mandou outra e vai eles cortaram a segunda e o meu Pai mandou mais uma e eles cortaram a terceira e o meu Pai mandou a quarta e eles cortaram a quarta e o meu Pai mandou a quinta mas a quinta também não lhes agradou e o meu Pai teve de lhes mandar a sexta mas a sexta levou com riscos encarnados e o meu Pai mandou a sétima entretanto era preciso fechar o jornal porque se ele não fechasse perdíamos os comboios e toda a gente sabe que só ganhavam a vida sem grande trabalho os senhores da Censura porque os outros tinham mesmo de dar tudo por tudo embora tenhamos de ser verdadeiros e de dizer que nesse tempo era mais fácil ganhar a vida do que agora pois como eu ia dizendo o meu Pai que já estava farto de fazer redacções não teve outro remédio senão escrever uma que dizia assim «quem disser que não se pode escrever em Portugal mente quem disser que não se pode escrever em Portugal mente quem disser que não se pode escrever em Portugal mente» e vai repetia isto mil vezes e eles cortaram-nas todas então o meu Pai escreveu outra que dizia «Em Portugal pode-se escrever Em Portugal pode-se escrever Em Portugal pode-se escrever» mil vezes e eles cortaram-nas todas e o meu Pai não esteve com meias medidas rapou da caneta 
e escreveu mil vezes «Em Portugal em Portugal em Portugal em Portugal em Portugal» e mandou para a Censura para daí a bocado receber a prova toda cortadinha enfim escrevo isto para verem como foram os primeiros dias da minha vida que foi lixada hoje em dia as crianças não sabem como era difícil viver nesse tempo ora abóbora boa tarde até para a semana.
In O Jornal, 8 Junho 1979.
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A verdade acima de tudo
Durante uma data de anos fui escrevendo redacções para a tal «A Mosca» enquanto o meu Pai coitadinho se batia com a Censura e com este e com aquele e vai um dia pediram-me para as redacções virem todas num livro chamado As Redacções da Guidinha e eu disse que sim e vai foram lá a casa raparam das minhas redacções todas e puseram-nas num livro e eu comecei a receber cartas de toda a parte escritas por meninas e meninos a dizerem-me como eram a vida deles e como é que os Pais lhes batiam e a perguntar o que é que haviam de fazer para evitar levarem tanta pancada e como é que haviam de passar nos exames sem saberem a tabuada e mais isto e mais aquilo e eu lia aquilo tudo mas nunca respondia para não fomentar a desordem no país que não precisava de mim para isso e o tempo foi passando sem ninguém dar por isso até que um dia «A Mosca» acabou numa reforma qualquer para voltar uns tempos voltar numa outra reforma e para acabar de vez numa terceira reforma para dizer a verdade ainda esteve para voltar em mais sete ou oito reformas e para não voltar em dez ou doze e eu calada que nem um rato porque em matéria de reformas sou licenciada já assisti a reformas do ensino da linguagem da administração do vocabulário dos costumes e sei lá que mais e só uma coisa é certa essa coisa é que «atrás de reforma vem reforma» tão certo como dois e dois serem quatro e que para reformar não há como os portugueses que reformam rerreformam e rerrerreformam e está tudo sempre a pedir reforma enfim como já percebi que a reforma é a vocação natural da Pátria é assim como as touradas quando há reformas sento-me na minha cadeira e deixo-as passar porque as reformas são como o vento passam sempre até vir outra e vem sempre outra mais tarde ou mais cedo embora para dizer a verdade venham quase sempre mais cedo pois como ia dizendo acabou a tal «Mosca» e eu fiquei de férias vinha um vinha outro pedir para eu escrever mais redacções para aqui e para ali mas eu não lhes dava ouvidos até que um dia veio um primo meu lá de Trás-os-Montes chamado Afonso Praça que é um que gosta muito de paio e de presunto e de boa pinga e que está sempre a dizer que um dia eu tenho de ir comer isso tudo a casa dele mas que nunca se concretiza com uma data certa e vai pediu-me para eu escrever redacções para uma coisa nova chamada O Jornal eu pensei pensei e resolvi fingir que ainda tinha doze anos e que era a mesma Guidinha da «Mosca» quando a verdade é que não era porque tinha crescido muito e aprendido muito e adquirido muita experiência nova em muitos campos mas sempre na mira de ir comer presunto e paio a casa desse meu primo calei-me e comecei a escrever agora porém rsolvi dizer a verdade e a verdade é que não tenho doze há dez anos que tenho um namorão pingão e ranhoso com um namorado chamado Odeceixe bem sei que o nome é esquisito mas ele não é e que estou para casar com um noivo chamado Tô que já pagou as sete primeiras prestações do frigorífico onde ele julga que eu vou guardar as comidas coitado que tem tantas ilusões quem vai cozinhar lá em casa é ele e além disso ainda tenho uns amores com o senhor Mesquita que são uns amores assim assim porque o raio do homem não se descose com um pedido de casamento só fala em passeios de automóvel e em idas ao Guincho como se eu fosse dessas então não querem lá ver que um dia destes me perguntou se eu queria ir beber umcopo ao Sheraton o diabo do homem que julga que eu por ser da Graça não sei muito bem o que as coisas querem dizer? é o que eu digo julga que eu sou parva mas engana-se e um dia destes no automóvel quando formos a chegar ao Guincho leva um pontapé no tornozelo que vai parar perto enfim para a semana conto coisas do meu noivo chamado Tô.
In O Jornal, 22 Junho 1979.
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A Graça é bestial
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Civilização na Graça
Não há nada como a gente ler os jornais para andar à moda e crescer depressa sim porque isto cá na Graça está velho como burro e quem manda é a velharia que ainda vive como se vivia no tempo do rei D. Afonso Henriques que era aquele que andava de espada na cintura para o caso de encontrar mouros na rua mas é claro que não se pode viver assim e que isto não é vida para ninguém e que se a gente não muda isto daqui a pouco os turistas deixam de vir à Graça e lá se vai o pilim que a gente ganha com o turismo quem fica a perder com isso é o sr. Lopes coitadinho que fuma cigarros feitos de beatas e que anda sempre atrás de estrangeiros para apanhar as beatas deles porque diz que elas têm um gostinho bestial que disfarça bestialmente o gosto dos cigarros pois eu resolvi ler os jornais para modernizar a Graça e fazer com que ela fique como Lisboa que é uma cidade grande e bestial tão boa como as que há lá fora mas que é portuguesa para conseguir isso fui até à paragem dos eléctricos que vão para a Baixa que é o sítio onde as pessoas deitam fora os jornais que compram para ler na viagem mas não julguem que é fácil apanhar lá jornais não é não senhor eu para arranjar alguns tive de andar à pancada com o filho da mulher das castanhas que está lá de serviço todo o dia a arranjar papel para a Mãe embrulhar as castanhas um jornal que dava muito gosto às castanhas era o Diário de Lisboa mas agora têm uma maneira nova de o fazer que não dá gosto nenhum palavra que é preciso não ter respeito nenhum pelos amadores de castanhas enfim fui até lá e consegui dois ou três jornais para ver como era a vida nos lugares mais bestiais de Lisboa a primeira notícia que vi foi uma duns que queimaram uma rapariga com pontas de cigarros por ela ter dois namorados ena pai que se esses dos cigarros vierem até à Graça queimar as raparigas que têm dois namorados têm trabalho até ao fim da vida e nunca mais têm de dar os nomes no desemprego eu conheço uma que até tem quatro sim senhor quatro um que se chama António outro que se chama João outro que se chama Manuel e outro que é careca mas não sei o nome dele enfim como isso de queimar as pessoas que namoram muito fica bem às grandes cidades resolvi queimar um que anda cá chamado Alberto que não namora ninguém mas que é parvo esse Alberto é já a quarta vez que não me dá um rebuçado apesar de andar sempre com os bolsos cheios e por isso merece umas queimaduras e até merece ser afogado mas isso aqui na Graça é muito difícil porque o lago está à vista de toda a gente e se calhar é proibido afogar pessoas digo isto porque nesta terra é tudo proibido de maneira que os proibidores também são capazes de já ter proibido afogar pessoas enfim chamei a minha amiga Crista que é muito boa para estas coisas porque diz sempre que sim a tudo o que eu quero fazer expliquei-lhe o meu plano de queimar pessoas para modernizar a Graça e fomos ambas à caça de beatas o pior foi que encontrámos logo o sr. Lopes que começou aos berros a dizer que não tínhamos o direito de andar às beatas porque ele é que fumava não éramos nós e que os cigarros fazem cancros e mais isto e mais aquilo para o acalmar tivemos de lhe explicar que não queríamos as beatas para fumar que só as queríamos para queimar o Alberto e ele lá se calou a olhar para nós como se nunca tivesse visto ninguém e depois fugiu pela rua acima o taradinho que quem o visse até era capaz de julgar que éramos polícias mas isso é natural porque aqui a Graça anda muito atrasada e as pessoas ainda não sabem a diferença entre ser moderna e ser antiga enfim em menos de meia hora apanhámos uma data de beatas o sítio melhor é à porta da igreja porque como é proibido fumar lá dentro os homens que lá chegam a fumar têm de deitar os cigarros fora e alguns chegam a deitar fora os cigarros muito aproveitáveis o que é pena é irem tão poucos homens à igreja aqui na Graça é o que eu digo a Graça anda bestialmente atrasada em tudo até mesmo nestas coisas de religião que tanta falta fazem a quem precisa de beatas depois como o Alberto anda na escola primária sim porque apesar de já ter doze anos o palerma ainda não conseguiu tirar a quarta classe fomos até lá e escondemo-nos atrás do muro à espera de que acabassem as aulas e escondemos os cigarros daí a um bocado apareceu o Alberto e eu chamei-o e mostrei-lhe um rebuçado que tinha pedido emprestado à Crista a ver se ele vinha e ele como é burro que nem uma porta veio logo a correr e a Crista disse-lhe Abre a boca e fecha os olhos e o palerma obedeceu é claro que lhe meti logo na boca um cigarrinho aceso que foi uma limpeza e ele fechou a boca queimou-se mas é bem feito porque só um burro é que fecha a boca com um cigarro aceso lá dentro e desatou aos berros que nem um doido começámos a fazer-lhe festas e a perguntar o que é que ele tinha e se não tinha gostava dos rebuçados de fogo sim porque se há rebuçados de licor porque é que não há-de haver rebuçados de fogo? e dissemos-lhe que o melhor era ele sentar-se até aquilo lhe passar e com isto e com aquilo levámo-lo até ao degrau duma porta eu pus-lhe outra beata debaixo do sim senhor de maneira que quando ele se sentou deu outro berro e outro salto sem razão nenhuma que essa beata até era americana e os cigarros americanos são bestialmente chiques e levou a mão ao sim senhor a ver o que é que tinha e enfiei-lhe outro cigarro na mão e ele sem saber o que era apertou-a e deu um berro tão grande que houve quem o ouvisse é claro que as pessoas que o ouviram vieram logo a correr ver o que estava a acontecer sim porque aqui na Graça as pessoas são bestialmente bisbilhoteiras e querem saber tudo o que se passa nessa altura eu e a Crista resolvemos ir-nos embora por a Graça já estar suficientemente civilizada para um dia e fomos mesmo no meio disto tudo o Alberto sofreu um bocado lá isso é verdade mas para haver civilização alguém tem de sofrer e antes ele que eu.
In A Mosca, 23 Janeiro 1972.
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A Graça está chata
Cá na Graça tudo bem obrigado não está a acontecer nada de especial senão boatos e mais boatos por todos os cantos primeiro foi o boato das casas devolutas que eu ainda quis aproveitar mas logo por azar a única coisa devoluta que encontrei no meu prédio foi a retrete e mesmo essa foi por pouco tempo cá em casa temos pouca coisa devoluta sim porque com três assoalhadas e meia não contando com o armário da cozinha para seis pessoas o único espaço devoluto que temos como eu já disse é a retrete e mesmo isso é só às vezes porque há por cá quem abuse sim há por cá quem abuse quando acabou esse boato das casas devolutas começou a espalhar-se que ia recomeçar a guerra de África mas nesse a gente para dizer a verdade não acreditou lá muito depois veio o boato de que iam subir os transportes e a gente acreditou em todos que foi uma limpeza depois veio o boato de que o peixe ia descer a gente não acreditou cá na Graça a gente em matéria de boatos tem uma regra que nunca falha e que é esta se vem o boato de que alguma coisa vai subir de preço não é boato é verdade mas se vem o boato de que alguma coisa vai descer de preço não é verdade é boato esta regra é bestial quem a seguir nunca se engana cá na Graça a malta sabe muito destas coisas de preços enfim com esta arrumo a questão dos preços para falar da carne que toda a gente sabe que subiu eu cá antigamente gostava de carne acho que tinha um gosto bestial de que ainda me lembro depois com a subida do preço conservou o mesmo gosto mas desapareceu cá da minha casa se por acaso alguém souber dum bocado de carne devoluto que me diga que vou logo a correr buscá-lo outra coisa quechateia a gente cá na Graça é a lixívia não chegar às torneiras dos prédios altos ao princípio quando começou a cólera ainda deitavam um bocado de água na lixívia mas ultimamente talvez por causa da seca deitam lixívia pura para os canos o meu pai coitadinho anda cada vez pior porque como é subdesenvolvido não gosta do «gostinho da saúde» e só bebe vinho tinto estão a ver como anda a vida cá em casa mas de qualquer forma a lixívia agora não chega aos andares altos das casas a gente quando quer uma pinga de lixívia para cozer o arroz ou para lavar a cara tem de ir pedi-la aos vizinhos do rés-do-chão ou do primeiro andar ó vizinha dá-me licença de ir à sua torneira buscar uma pinga de lixívia para o meu homem fazer a barba? e elas lá dão coitadas que não têm outro remédio senão a gente diz no carvoeiro que elas são forretas e pronto ficam com pior fama que à que já têm e que é bem má enfim com esta da lixívia o que eu posso dizer é que ando branquinha por dentro que até pareço uma parede caiada outra notícia que houve cá na Graça foi a menina Odette andar à procura dum emprego devoluto o que é bestialmente difícil de encontrar antigamente a menina Odette vivia bem mas é que mesmo bem sem fazer nada mas é que mesmo nada que se visse porque tinha um emprego nocturno digo isso porque todas as noites vinha cá um Jaguar bestial buscá-la às nove e meia da noite e lá para as cinco da manhã voltava a casa num Porsche ou num Lamborghini ou num Mercedes conforme os dias que emprego é que ela tinha não sei o que sei é que deve ter sido saneada porque já ninguém a vem buscar e trazer e porque ela anda à procura dum emprego devoluto compatível agora lá com que o emprego tem de ser compatível é que eu não sei antes de ontem perguntei-lhe o que é que lhe tinha acontecido e ela disse-me que a vida nocturna andava uma desgraça que era uma tristeza que o que estava a acontecer era muito mau para o turismo e que já andava com saudades do passado coitadita que passa o dia à janela a cantar o ó tempo volta para trás tenho ouvido dizer que não é só ela que está em crise e que andam para aí muitas mulheres que trabalhavam no turno da noite com pouco serviço está-se mesmo a ver que é obra da reacção sim porque se elas trabalhavam e agora não trabalham quem é que tem a culpa senão quem não lhes dá emprego? Disse-me a menina Odette que estava com dificuldades porque o seu protector tinha ido a Espanha e ainda não tinha voltado calculo que seja pessoa muito viajada e que se calhar não deixou a menina Odette prevenida porque teve de sair de repente ouvi dizer que houve umas pessoas que tiveram de sair de repente cá para mim é por isso que esta gente anda a passar dificuldades enfim cá na Graça há de tudo o Zezinho que é um de quem eu já tenho falado que trabalha na livraria-tabacaria-quinquilharia-papelaria-artigos de ménage anda rico como tudo a vender revistas com meninas nuas estendidas em sofás de cetim no outro dia o lambisgóio do Vasquinho das vidraças que é um que tem menos um ano que eu chegou-se a mim todo lambido e mostrou-me uma revista dessas a ver o que eu dizia e eu não lhe disse nada vi a revista toda e no fim quando ele estava à espera do meu comentário afinfei-lhe com o comentário na cara com tanta força que ele ficou com a cara a arder uma data de dias para aprender mas lá que na Graça o negócio é bom disso é que não há a menor dúvida porque não há miúdo que não ande com uma revistinha dessas no bolso e não há graúdo que não compre uma ou duas por semana isto se continua assim daqui a pouco deixamos de ser subdesenvolvidos vai ser uma maravilha olá se vai e por hoje parece-me que basta porque esta semana cá na Graça não aconteceu nada de especial de que valha a pena falar vamos lá a ver se a semana que vem é melhor.
In A Mosca, 16 Novembro 1974.
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Já fui
Durante muitos anos bastava eu dizer que queria qualquer coisa para me dizerem ainda não tens idade para isso ou então quando chegares à idade de ter isso terás e outras coisas igualmente burras que os adultos inventam para chatear a gente ou para não nos darem aquilo que a gente quer tinha eu dez anos e vai uma vez apeteceu-me beber vinho do Porto num dia de festa como toda a gente e vai começaram logo ainda não tens idade para beber vinho do Porto como se houvesse uma idade especial para beber vinho do Porto doutra vez quis ver uma fita portuguesa chamada O Leão da Estrela bestialmente estúpida que ia na televisão e foi logo ainda não tens idade para ver o «Leão da Estrela» que eu vi na leitaria sem eles saberem e que não tinha mesmo idade para ver porque para gostar daquilo é preciso ter pelo menos a idade do Afonso Henriques que já patinou mas toda a vida foi assim e quem se trama são sempre eles porque quando há festas e eu desconfio que ainda não tenho idade para beber vinho do Porto bebo-o lá dentro deito água na garrafa e quem bebe o vinho aguado são eles só queria que as pessoas soubessem as coisas que eu tenho feito sem ter idade para as fazer mas nisto de fazer coisas o melhor é uma pessoa fazê-las pela calada e fechar a boca senão acaba como a minha Tia Amélia que não tinha idade para casar quando tinha noivo e que não tinha noivo quando chegou a idade para casar e que acabou sem casamento sem noivo e sem nada senão manias e isso no tempo em que ainda havia noivos sim porque agora os noivos emigram e quem fica são os velhos mas enfim isto são outras histórias o que eu quero é contar que há cá na Graça um clube com colóquios que é assim uma festa sem bolos nem laranjadas onde as pessoas vão dizer coisas quando não têm mais nada que fazer e o assunto não interessa a ninguém sim porque quando interessa não deixam e as pessoas têm de ir para o café onde vão dizer as mesmas coisas que iam dizer ao colóquio e que lá diriam se não houvesse colóquio nenhum mas isso é a vida pois este ano já houve um colóquio sobre a bomba atómica e toda a gente foi contra mas como não havia lá ninguém que tivesse uma bomba atómica ou que soubesse fazer uma não sei bem para que é que aquilo serviu se fizessem um sobre bombas de Santo António que sempre é uma coisa que se pode comprar nas capelistas ou fazer em casa sempre valia a pena mas esta gente só gosta de coisas grandes outro colóquio que lá houve muito importante foi um em que foi lá falar um que pinta quadros e que explicou porque é que pinta assim e não assado e que disse muito mal das coisas por não lhe comprarem os quadros todos e que acabou por oferecer um ao clube que ninguém sabe onde é que há-de pôr mas eu a esses colóquios não fui por não ter ainda idade para ir a colóquios sei o que se passou porque me contou o Jorge da padaria que já tem idade para ir e que me disse que não se passou nada mesmo nadinha senão as pessoas da Graça a fugirem surrateiras e as de Lisboa a ficarem porque uma especialidade destes colóquios que há lá na Graça é que meia hora antes de começarem começa a chegar gente de Lisboa e acaba por não ir lá quase ninguém da Graça até me disseram que esta gente que lá vai é sempre a mesma e vai a todos os colóquios mesmo quando eles são longe para dizerem coisas e que tem dois partidos um é o dos que sabem o que dizem e o outro é dos que dizem o que sabem e é pouco enfim é uma maneira de passar o tempo e não é tão má como outras que há o meu pai por exemplo se fosse mais a estes colóquios e menos aos da taberna não perdia nada com isso mas enfim como não me deixavam ir a nenhum eu resolvi ir às escondidas e fui mesmo a um sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea que é a de agora e gostei muito mesmo muito de ouvir falar uma senhora que lá foi sobre o papel da mãe que é como o das que não são mães mas que além disso são mães o que é bestial sim porque fiquei bestialmente satisfeita por ouvir aquelas coisas que essa senhora disse e que eu já tinha ouvido na televisão ditas de outra maneira porque a televisão também tem muitos colóquios o que são é só com uma pessoa a falar e como a gente não está lá não pode mandar essa pessoa bugiar ou fazer qualquer outra coisao que é uma pena de qualquer forma fui a um colóquio às escondidas e posso dizer a toda a gente que não vale a pena ainda é mais chato que ficar em casa a ver o quadradinho e isto é dizer muito mesmo muito olá se é.
In Mosca, 6 Janeiro 1973.
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Eleições no Rebenta Canelas
Ena pai o que para aqui vai por causa das eleições! ena pai! quem não conhecesse o Rebenta Canelas cá da Graça e visse o que está a acontecer até era capaz de pensar que valia a pena tomar conta dele e que os vencedores iam ganhar muito com a vitória! é claro que as pessoas que sabem como as contas andam o que querem é estar de fora ai não! enfim o melhor é eu começar do princípio senão ninguém me entende pois os sócios do Rebenta Canelas da Graça Futebol Clube vão votar uma gerência nova e há os que são do pró e os que são do contra os que são do pró votam na gerência que está à frente do clube e os que são do contra votam contra ela está-se mesmo a ver que não podia deixar de ser assim os que são do pró findam a colar cartazes a dizer que está tudo bem e como têm muito pilim andam a colar cartazes nas paredes nas árvores em toda a parte só ainda não colaram cartazes nas costas da gente porque os distribuidores não têm comissão nisso senão já estávamos cartizados que era uma limpeza os que são do contra coitados não podem colar cartazes porque se os colarem vão parar à chana por andarem a fazer propaganda contra a moral da Graça que toda a gente sabe que é muito boa mas isto ainda não é tudo não senhor o grande problema que há cá no clube é o do bufete que custa os olhos da cara aos sócios de maneira que há uns que querem o bufete e há outros que querem largá-lo esse é que é o grande problema mas não se pode falar nele não senhor porque a direcção não deixa os do contra podem falar disto e daquilo mas quem falar do bufete já sabe o que lhe acontece de maneira que as eleições do nosso Rebenta Canelas Futebol Clube da Graça são assim como um jogo de futebol em que seja proibido tocar com os pés na bola não sei se me percebem se não perceberam venham até cá ver o que se está a passar que eu prometo gargalhadas a todos mas de qualquer forma a Graça está a ser um bom exemplo para todos nisso de correcção somos tão correctos que nem sequer falamos das coisas que nos interessa não vá alguém ficar magoado em matéria de correcção ninguém nos leva a palma não senhor e os outros clubes podem pôr os olhos no que se está a passar na Graça porque se seguirem o nosso exemplo ficam como nós e se todos ficarem como nós deixamos de ser subdesenvolvidos porque como os outros começam a subdesenvolver-se ficamos todos iguais e ninguém nota que a gente é diferente o que é preciso é que os outros sigam o nosso exemplo palavra que o mundo vai ser bestial quando os Rebenta Canelas Futebol Clube de Londres de Paris de Nova Iorque e de Moscovo ficarem como o da Graça o que não se percebe é que eles não nos imitem sim não se percebe como é que eles vendo como a gente é bestial e sabe tudo não nos imitem às vezes penso que eles são parvos mas o meu pai diz que há uma data de anos que lê nos jornais artigos escritos por senhores bestialmente importantes a dizer que o mundo vai acabar por nos dar razão diz ele que anda a ler artigos há mais de quarenta anos e que o mundo não há meio de nos seguir o exemplo o que eu digo é que ou anda malandrice no caso ou que os directores do Rebenta Canelas estrangeiros não lêem o nosso diário de notícias da Graça quem sabe se eles falarão a nossa língua eu cá se fosse importante traduzia os artigos cá do nosso diário de notícias e mandava-lhes as traduções para ver se eles conseguem entender-nos é que se eles não seguirem o nosso exemplo vão continuar a minguar a minguar enquanto a gente cresce com as nossas boas ideias e daqui a uns anos somos uma grande potência e eles coitaditos estão todos subdesenvolviditos e lá se vai o equilíbrio do mundo sim porque quem sabe tudo somos nós e basta olhar para o diário de notícias cá da Graça para se ficar espantado com o nosso saber e com a ignorância dos outros mas além disso há outra razão para os outros seguirem o nosso exemplo que tão bons resultados está a dar e esse motivo é que é uma pena que este nosso exemplo que é tão bom e tão útil fique desperdiçado sem ninguém o aproveitar quando penso nisto que se está a passar de termos tão bons exemplos para dar e de ninguém os querer importar pergunto que fazer? É que podíamos exportar exemplos já que não podemos exportar mais nada pronto sempre exportávamos qualquer coisa cá por mim estou convencida de que a direcção ganha as eleições e que mais tarde ou mais cedo o mundo vai seguir o seu exemplo para bem da humanidade sim porque a Graça é um modelo.
In A Mosca, 6 Outubro 1973.
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A Graça está uma desgraça em matéria de fé
Eu cá nestas coisas sou como a padeira de Aljubarrota que Deus tem quem não acreditar no que eu digo que vá para o Cabo da Roca meditar até ter uma visão e digo isto porque sei muito bem que quem se sentar no Cabo da Roca a meditar num dia de Verão sem chapéus na cabeça começa a ter visões passados dois minutos ainda no outro dia quando foi do Portugal-Bulgária disse na leitaria Portugal ganha por dez a zero e quem não acreditar que vá para o campo do Benfica meditar numa vitória que lá houve há uns anos é verdade que Portugal não ganhou mas isso que tem? sim isso que tem uma pessoa não pode ter razão todos os dias em todas as coisas e eu sei muito bem que Portugal não ganhou à Bulgária só e unicamente por causa da Bulgária sim porque se a Bulgária não tivesse comparecido no campo Portugal ganhava por falta de comparência do adversário ora como é que eu havia de adivinhar que a Bulgária comparecia no campo o que eu fui foi mal informada e ninguém me pode criticar de qualquer forma eu agora quando encontro uma pessoa que não acredita no que eu digo mando-a logo para o Cabo da Roca meditar sim porque enquanto está no Cabo da Roca a meditar não está a ver o que é que andou a fazer ontem disse ao meu pai daqui a dez anos vamos estar bestialmente ricos vamos ter dois automóveis uma vivenda no Estoril e um bacalhau para comer com as batatas uma vez por mês e se não acreditar nisso vá para o Cabo da Roca meditar e vai ele ficou a olhar para mim como se nunca me tivesse visto e daí a bocado foi para a taberna dizer que eu não estava boa do juízo e que sofria da pinha que se tivesse dinheiro me levava ao médico e que só não chamava o médico da Caixa porque ele só viria depois de eu estar curada e de qualquer forma não tinha as dez coroas que agora é preciso meter nas máquinas para elas fazerem uma chamada de sete tostões enfim o que lhe falta é fé porque se ele tivesse fé até ficava contente por saber que ia ser rico daqui a uns anos mas isto aqui na Graça em matéria de fé está uma desgraça é que está mesmo uma desgraça porque ninguém acredita em nada mais dia menos dia o meu Bairro passa a chamar-se Desgraça não sei o que aconteceu às pessoas mas a verdade é que a gente dá-lhes uma notícia boa e elas sorriem com o ar triste de quem não acredita no que está a ouvir o que é engraçado é que se a gente lhes der uma notícia má acreditam logo veio cá um senhor dizer que isto ia de bem para melhor e que para o ano ainda ia estar melhor e toda a gente ouviu e mudou de conversa é que não sei o que aconteceu à gente cá da Graça mas a verdade é que isto é assim mesmo já ninguém acredita em nada e toda a gente anda triste triste triste triste tão triste que a minha Graça está cada vez mais parecida com o cemitério dos Prazeres em dia de Finados eu até vou mais longe: a minha Graça está a transformar-se num Cabo da Roca gigantesco cheio de gente que não acredita em nada nem mesmo nas virtudes da meditação o perigo é se o cabo não aguenta com o peso e damos todos com os focinhos na água mas enfim como somos todos filhos de navegadores ainda nos podíamos safar mas é que já nem acreditamos em que sabemos nadar sim já não acreditam isto vai cada vez pior e de qualquer forma esta minha ordem é estúpidasim porque a gente aqui na Graça tem lá dinheiro para ir meditar para o Cabo da Roca não era para lá que ia não senhor a não ser talvez em vacances quando viesse do sítio para onde ia se tivesse dinheiro para ir a qualquer sítio e isso o que é triste é que nem sequer já temos dinheiro para irmos até ao Cabo da Roca ou até outro cabo qualquer meditar no dinheiro que não temos.
In A Mosca, 27 Outubro 1973.
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Buff que estou farta
Buff que estou mesmo a cair de cansaço logo de manhã a minha mãe mandou-me para a bicha do leite e quando cheguei a casa e disse que tinha lá estado mas que não tinha conseguido leite mandou-me para a bicha do bacalhau ia a dar-me uma estalada mas o meu primo Manel do Mercedes não deixou e disse que era verdade porque ele de manhã tinha estado na bicha da gasolina e também não tinha conseguido gasolina estávamos nesta conversa e o meu pai chegou a casa todo baforido a dizer que um bicha se tinha metido com ele na rua enfim isto é um país de bichas e mais bichas e mais bichas qualquer dia começamos a vender as nossas bichas para os jardins zoológicos e ficamos ricos mas não é só em bichas que estamos com excessos não senhor agora andamos com boatos por todos os cantos o meu pai assim que chegou a casa disse que era preciso comprar arroz porque ia subir de preço e o meu primo disse logo que o óleo e o azeite também iam subir e vai a minha mãe vestiu o casaco para ir à rua comprar estas coisas e pediu dinheiro ao meu pai e ele rapou da carteira e deu-lhe vinte escudos para as compras ora toda a gente sabe que agora com vinte escudos não se compra nada de maneira que a minha mãe teve de despir o casaco outra vez a choramingar muito triste por não poder encher a despensa mas lá que ela é esperta isso é no meio da choraminguice meteu os vinte escudos no bolso como quem não quer a coisa e se o meu pai não a tivesse visto ainda a esta hora lá estavam mas ele é que não é parvo nenhum de maneira que daí a dez minutos foi à cozinha perguntar pelos vinte escudos e ela teve que lhes dizer adeus coitada cá em casa há uma contabilidade bestial e ninguém vai em golpadas é o vais! Quem anda contente com a falta de gasolina é o meu pai esse anda a dizer que vão ser obrigados a não deixar as pessoas passear ao domingo e que o resultado disso vai ser as pessoas não poderem ir ao futebol e eles não terem outro remédio senão porem os jogos na televisão o que é bom para quem não tem carro nem pilim que é o caso dele o meu primo Manel do Mercedes é que anda lixado porque gastou o pilim no Mercedes para armar aos cágados e se não o deixarem passear ao domingo fica sem nada na alma sim porque ele em casa não tem lá grandes coisas não senhor senão uns móveisitos comprados na Rua dos Fanqueiros uma coisa que há chamada «bronzes de arte» que é uns cavalos a pastar e um senhor vestido de guerreiro com uma lança na mão em cima dum cavalo que está a pisar uma cobra e mais nada e mesmo isso só na sala porque lá para dentro não há nada metade das pessoas que andam de Mercedes gastam tudo nele e vivem pior que eu sei lá já tenho pensado que se a Mercedes sair com um modelo que tenha casa de banho há uma data de pataratas que nunca mais vão a casa e que acabam a vida a passear dum lado para o outro de Mercedes para fingir não se sabe o quê enfim cada um arma com o que pode e com o que tem cá na Graça há uma que arma a dizer que tem todo o bacalhau que quer porque conhece um senhor que conhece um outro que é primo dum outro enfim uma bicha de conhecimentos que nunca mais acaba para comprar de vez em quando um rabito de bacalhau! cá na Graça as pessoas armam a dizer que têm o que falta às outras é uma maneira bestialmente estúpida de armar mas as pessoas são assim mesmo e não há nada a fazer senão aguentar adeus vou para a bicha do sabão que anda para aí gente a dizer que vai subir.
In A Mosca, 27 Outubro 1973.
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O meu pai anda com a mania que é marisco
Os pais são bestialmente difíceis de entender e quem disser o contrário ou é órfão ou precisa de fósforo porque há coisas que toda a gente sabe mesmo os burros e uma dessas é esta dos pais serem bestialmente difíceis de entender o meu por exemplo que se calhar nem é dos piores é tão difícil de entender tão difícil de entender que às vezes até me pergunto se ele não terá caído no chão em pequenino sem ninguém saber agora por exemplo anda com medo de ser mexilhão e não fala noutra coisa na sexta-feira dei com ele a conversar com o senhor Silva do talho que é um que tem dois matadouros clandestinos e que vende uma carne tão esquisita que mesmo quando é vendida à peça parece picada e pus-me à escuta para ouvir o que eles diziam palavra que ainda estou gaga o tal Silva dizia assim: isto vai de mal a pior meu amigo sim que se não metem o povo na ordem isto ainda acaba mal então não querem lá ver que no outro dia veio aqui um pobre-diabo que nem para sabão ganha dinheiro e teve a lata de me dizer que a minha carne não prestava? A minha carne! Pensei que o meu pai ia concordar com tal pobre-diabo sem sabão porque lá em casa passa a vida a chamar ladrão ao Silva mas não senhor voltou-se para ele e disse-lhe o senhor Silva tem toda a razão olhe que eu ainda hoje disse lá no trabalho que se não metem o povo na ordem isto acaba mal fiquei de boca aberta a olhar para ele palavra que fiquei pois daí a bocadinho estávamos os dois sentados num banco do jardim ao pé do lago para o meu pai ler o jornal por cima do ombro dum senhor que o tinha acabado de comprar e vai chegou-se a nós o senhor Carlos da capelista que é o homem mais lido da Graça e disse-lhe assim o senhor sabe o que é que nos está a tramar a vida sabe? pois fique sabendo que é não deixarem o povo fazer o que quer porque ninguém brinca com o povo, olhe meu amigo se o povo cá da Graça mandasse o Silva do talho já tinha ido ao ar porque esse bandido não vende senão carne podre preparei-me para ouvir o meu pai discutir porque não ainda cinco minutos antes o tinha ouvido falar com o Silva mas sabem o que ele disse sabem? pois se não sabem fiquem sabendo que se voltou para o senhor Carlos da capelista e disse tem toda a razão toda meu amigo olhe que ainda hoje lá no trabalho estive a dizer que o mal disto tudo era o povo não poder fazer o que quer palavra que fiquei sem fala mais caladinha que um mudo sem boca e vai daí a bocadinho quando o senhor Carlos partiu para ir pregar a outra freguesia virei-me para o meu pai e perguntei-lhe oiça lá você é por o povo fazer o que quer ou é por o povo não fazer o que quer? e vai ele virou-se para mim e disse esta coisa que ninguém entende quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão fiquei logo a pensar que ele estava mas era maluco de todo e que o melhor era eu ir chamar a minha mãe sim porque já lhe tem dado para ser comerciante vendedor de propriedades angariador de publicidade e mais uma data de coisas que acabam por ele nunca conseguir vender nada mas nunca lhe tinha dado para ser marisco e com o negócio do peixe como está se lhe dava para continuar com a mania de ser mexilhão lá ficávamos outra vez sem a televisão como aconteceu daquela vez que lhe deu para andar de porta em porta cá na Graça a vender apartamentos no Algarve enfim daí a bocado íamos a caminho de casa e o meu pai esbarrou com o senhor Eusébio que é do partido socialista e que lhe disse então o meu amigo como anda? cheio de esperança na vitória cá do partido ou quê? e vai ele respondeu com toda a lata tenho-a por certa senhor Eusébio isto é tão certo como dois e dois serem quatro já quase a chegarmos a casa demos com o senhor Adalberto da pastelaria que é do partido comunista e que lhe disse ao ouvido então desta vez é que vai camarada? e vai ele respondeu com toda a lata já cá canta camarada Adalberto isto desta vez não falha e mesmo à porta de casa esbarrámos com o antigo chefe Roberto que agora trabalha na funerária e que lhe segredou muito baixinho o amigo não desespere que isto já se começou a organizar é só esperar e vai ele respondeu não espero outra coisasenhor Roberto olhe que não espero outra coisa palavra que é duma pessoa ficar doida quando íamos a subir a escada perguntei-lhe oiça lá de que partido é você? e vai ele respondeu com toda a lata quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão como se fosse natural um homem da idade do meu pai com uma filha crescida e responsabilidades na vida andar com a mania que é marisco.
In A Mosca, 8 Julho 1974.
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As desgraças cá da Graça
Cá na Graça toda a gente pensa que a vida é uma coisa muito triste que aconteça o que acontecer as coisas caminham para pior que não há bem que sempre dure que o pior ainda está para vir e que a gente está sempre lixada já a minha avó que Deus tem coitadinha quando alguém dizia que Deus lhe tinha mandado uma desgraça dizia logo Não te queixes de Deus que se não houvesse Deus havia outra coisa qualquer para te lixar pessoas são assim pessimistas porque nunca lhes aconteceu nada de bom e nunca lhes aconteceu nada de bom porque os reaças nunca deixaram que lhes acontecesse uma coisa boa no tempo dos meus antepassados que Deus tem coitadinhos as coisas já eram assim cá na Graça apesar do povo fazer o que podia quando foi dum chamado Mestre de Aviz a malta foi para a rua aos berros e correu dum lado para o outro a fazer comícios a favor dele e vai fizeram-no rei e tudo correu bem durante uns tempos mas a verdade é que passados esses tempos que foram bem curtos as coisas começaram a correr mal outra vez porque engatavam cá a malta da Graça para ir nas caravelas coitadinhos e eles lá iam e muitas vezes não voltavam e quando chegavam ao fim das viagens não tinham ganho para pagar a prestação da casa ao J. Pimenta desse tempo que era um chamado Infante D. Henrique que era uma espécie de Tenreiro que em vez de peixe congelado tinha congelado bocados de África que lhe rendiam uns pilins bestiais enfim desgraças! nessa altura o Algarve era promovido por esse D. Henrique porque estas coisas passaram-se antes de haver Torralta mas a verdade é que mesmo nesse tempo aquilo era caro de mais para a malta da Graça lá ir passar as férias e mesmo que fosse barato não ia porque as pessoas tinham medo de serem apanhadas pelos angariadores de trabalho voluntário nas caravelas tal como agora têm medo de serem apanhadas pelos donos dos restaurantes e dos hotéis que lhes ficam com tudo e mais alguma coisa nessa altura foi apanhada muita malta da Graça mas é que mesmo muita e ninguém mais lhe pôs a vista em cima se algum dia rasparem o fundo do mar no Cabo da Boa Esperança dão com uma data de esqueletos «made in Graça» olá se dão! nesse tempo de desgraças enquanto o tal infante D. Henrique mais os sócios da Torralta da época enchiam a barriga de coisas boas vindas de África como cocos bananas e amendoins cá a malta da Graça rapava uma fome danada e comia um naquito de pão quando o apanhava a jeito mal constava que o tal infante tinha tido mais uma glória e tinha descoberto mais um sítio a malta fugia a sete pés para não ir lá parar porque era certo e sabido que quem ia malhar com os ossos às fortalezas gloriosas era a malta da Graça e quem lá morria com fome e febre era a malta da Graça e quem lá dava o corpo ao manifesto quando havia combates era a malta da Graça sim porque esse Tenreiro D. Henrique não levantava o rabo de Sagres que era o Hotel Alvor desse tempo mas as desgraças da malta da Graça não ficaram por aí não senhor quando um chamado D. António que era prior do Crato que não sei onde é nem quero saber resolveu salvar a Pátria que estava a ser atacada pelos espanhóis quem foi para o caneiro de Alcântara levar bumba no toutiço foi a malta da Graça porque os nobres e os cavaleiros e os mais accionistas das empresas do tempo cavaram por todos os lados e puseram-se do lado dos espanhóis sim quem foi falecer prematuramente a Alcântara foi a malta da Graça mais tarde veio um chamado D. Miguel Cazal Ribeiro ou qualquer coisa parecida que tinha ao seu serviço uma data de arruaceiros votados à defesa dos bons princípios e vai esses para defenderem os bons princípios davam com os cacetes nas cabeças da malta da Graça havia noites que o barulho das cacetadas era tão grande que até parecia que estalavam foguetes sim porque é certo e sabido que quando é preciso salvar o País quem leva com a cachaporra é a malta da Graça isto é tão certo como dois e dois serem quatro esse D. Miguel salvava a Pátria todos os dias e nessa altura como não havia bancos nos hospitais a malta da Graça tinha de curar as salvações da Pátria com que ficava no corpo com papas de linhaça e pupú de galinha enfim desgraças e mais desgraças vai a certa altura a malta da Graça que ainda tinha uns optimismos escondidos lembrou-se de fazer uma coisa chamada a República para ver se virava a moeda e durante uns tempos até a mudou mas depois veio outro salvador da Pátria chamado Salazar que não gramava a malta da Graça por nada deste mundo e que resolveu salvá-la outra vez ena pai ena pai ena pai que rica salvação! a primeira coisa que esse Salazar fez foi pôr adesivo na boca da malta toda para ela não falar a segunda coisa foi chamar os netos do tal D. Miguel e metê-los numa coisa que houve chamada pide que era um grupo de caceteiros que usava pistolas e metralhadoras em vez de cacetes e que metia a malta da Graça numa estância de Verão que esse Salazar tinha em Caxias enfim mais desgraças de maneira que não espanta que a malta da Graça agora ande com medo de ser salva outra vez sim porque se há coisas que a malta da Graça não aguenta é outra salvação como as antigas agora ou a salvação é diferente ou a malta da Graça acaba de vez porque não há ninguém que aguente tanta salvação o que eu quero dizer com isso é que a malta da Graça está de olho vivo a ver o que acontece porque está farta de curar as feridas das salvações e desta vez gostava que as coisas corressem de outra maneira por enquanto anda cheia de esperanças mas começa a dizer que há discursos a mais e feitos a menos no tempo do salvador Salazar que o Diabo tem levavam a malta ao futebol para distrair e para ela não pensar no que está a acontecer agora não a levam ao futebol não senhor mas há muitos futebóis diferentes e em matéria de distracções há futebóis em que não há bolas e que nem sequer são nos campos de futebol como há maneiras de pôr a malta a berrar sem ser a dar vivas ao Eusébio a malta da Graça já berrou tanta coisa no decorrer da sua vida que para ela as palavras são como as caganitas de cabra nos montes nem as come nem as apanha nem as leva a sério é por isso que está a ver menos televisão a ouvir menos rádio e a voltar aos cafés palavras leva-as o vento e agora o vento deve andar cheio delas porque a malta da Graça já está a meter algodão nos ouvidos de tanta palavra que para aí anda no ar.
In A Mosca, 19 Outubro 1974.
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Deus nos livre dos santos 
e dos iluminados que dos maus sabe a gente safar-se
Dois passos para a frente e um para trás dois passos para trás e um para a frente dois passos para o lado para ver o que acontece dois passos para trás e quatro para a frente quatro passos pra trás e dois para a frente isto aqui na Graça está uma confusão que ninguém se entende porque ninguém tem nada para fazer senão botar sentença sobre coisas que não entende e tentar chegar ao alto seja como for o grande problema é que as pessoas quando se habituam a botar sentença e receber palmas e ter o retrato nos jornais nunca mais querem outra vida e quem pensa que elas são capazes de voltar a ser aquilo que realmente são ou é parvo ou faz-se sim porque isto tem pouco que se lhe diga e conta-se em duas palavras para começar durante a confusão que houve vai para dois anos o guarda nocturno Silva deu consigo mesmo um dia a mandar na cantina na escola e na sala de espectáculos do clube é claro que foi um ar que deu ao clube porque o guarda-nocturno Silva talvez saiba guardanoturnar mas não sabe tomar conta de cantinas de escolas e de salas de espectáculos de forma que de um dia para o outro a cantina ficou sem bolos de arroz a escola ficousem carteiras e a sala de espectáculos ficou mais vazia que a barriga da gente no fim do mês em vez disso tudo a malta ia para o clube dar vivas ao senhor Silva berrar reivindicar gritar e fazer outras coisas o que a malta não fazia era trabalhar vai as coisas começaram a modificar-se o senhor Silva foi parar ao olho da rua e começou-se outra vez a ver se o clube funcionava mesmo que funcionasse mal sempre era um princípio enfim com o clube parado é que a gente ia mesmo ao fundo mas quem é que aguenta o senhor Silva a guardanotunar agora que se habitou às palmas aos gritos e aos vivas? sim quem é que consegue que ele ande de porta em porta à noite agora que se habitou aos projectores? sim quem é que consegue que o senhor Silva em lugar de sonhar com coisas que não entende ande a ver se os automóveis e as casas têm as portas bem fechadas? e os amigos do senhor Silva? quem é que consegue que eles voltem a andar no jardim dum lado para o outro todos fardados a armar aos cágados quando eles se habituaram a ir à rádio e à televisão botar sentença? quem é que consegue que eles voltem a ser os apagadinhos que nasceram agora que eles se habituaram a ser iluminados e a julgar que andam a cumprir missões históricas? é que há coisas mesmo impossíveis como esta por exemplo dum homem que fez a sua carreira de guarda-nocturno e que um dia deu consigo a comandar o clube se satisfazer em voltar a guardanoturnar sem palmas sem vivas sem berros e sem excitações é o que eu digo quem se habitua às alturas nunca mais se satisfaz com as baixuras mesmo que a natureza o tenha feito para viver nas baixuras que Deus Nosso Senhor nos salve dos iluminados e dos parvos que dos maus sabe a gente defender-se cá na Graça o perigo digo e repito não é os maus subirem à direcção do clube o perigo é os iluminados e os santos conseguirem sentar-se na cadeira do poder é para eles sol de pouca dura mas enquanto o pau vai e vem ou vem e vai lá sobe o preço do peixe lá desaparece a carne outra vez lá aumenta o desemprego lá ficam os actores todos desempregados por eles ocuparem a televisão de manhã à noite lá fica a rádio a «sloganisar» todo o dia lá fica a gente outra vez aos gritos e aos berros para disfarçar a fome e a sede palavra que isto aqui na Graça não vai nada bem não senhor a gente anda toda aterrada com medo de que o Silva desate para aí aos saltos outra vez e se meta em alhadas porque é certo e sabido que se fizer desta vez as coisas correm de outra forma e anda tudo para trás de tal maneira que é como se não tivesse nunca havido eleições no clube isto é tão sério que até se pode perguntar se os iluminados não serão todos parvos e não perceberão o que se passa à volta deles? serão cegos? serão surdos? andarão sempre uns com os outros e não ouvirão as outras pessoas? palavra que o futuro do clube impressiona-me porque o Silva e os amigos não têm nada que fazer senão conspirar e ter saudades do tempo em que eram aplaudidos de maneira que há poucas esperanças de que tenham apanhado juízo e percebido o triste fim que os espera e que nos espera a todos se não tiverem muito mas é que muito juízo sim porque se eles nos metem numa alhada é certo e sabido que estamos todos tramados porque os inimigos do Silva matam-nos a todos sem pedir autorização a ninguém e o pior é que o Silva e os amigos ainda se conseguem safar para o estrangeiro como já demonstraram mas nós temos mesmo de ficar cá e de ir malhar com os ossos à cadeia se não tivermos um destino pior é sempre a mesma coisa os heróis iluminados metem toda a gente em alhadas e pisgam-se para continuar a luta num sítio seguro enquanto a gente se amola num sítio inseguro palavra que me espanto de como é que há gente que ainda não entendeu a Graça porque a Graça é bestialmente fácil de entender olá se é! só os iluminados e os burros é que não entendem os outros sabem muito bem como as coisas são e tanto lhes faz ganhar hoje como amanhã se calhar aos inimigos do Silva convinha que o Silva e os amigos se metessem noutra se calhar até rezam para isso acontecer porque era uma maneira de se verem livres deles o pior e é bom que toda a gente da Graça entenda isto é que os inimigos do Silva e dos seus muchachos que lá arranjarão um salvo-conduto para se porem a mexer o pior é que vão ver-se livres de nós todos e isso é que é chato porque ficam com o país só para eles e nem daqui a vinte anos damos outro passo em frente.
In O Jornal, 29 Outubro 1976.
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A Graça está cheia de bombas
Essa coisa das bombas anda a lixar a malta cá da Graça olá se anda para começar a malta anda tão assustada que mal encontra um embrulho fica logo a arder de medo e chama a polícia no outro dia uma que há cá chamada Engrácia e que tem uma tabacaria desatou aos gritos que tinha uma bomba na capelista e vai tanto gritou que atraiu a atenção do guarda Silva que estava de serviço na taberna do sr. João e que não teve outro remédio senão abandonar o copito que estava a provar para ir até lá a mulher estava aos gritos à porta da loja e o guarda Silva perguntou-lhe o que era aquela alteração da ordem pública! E ela disse-lhe que tinham posto uma bomba no chão ao pé do balcão quando ouviu isto o guarda Silva começou a desanimar e afastar-se do local para discutir o assunto o mais longe porque nestas coisas de bombas as discussões devem ser afastadas dos sítios onde estão as bombas para garantir que a conversa continua depois das bombas rebentarem começou logo a juntar-se gente o Batista que é um finório meteu meio nariz na loja e disse que a bomba era de plástico porque já tinha visto uma e sabia distingui-la das outras o senhor Ernesto que é uma autoridade porque esteve emigrado três anos na Alemanha e por isso é muito batido em coisas de electrónica disse que a bomba tinha um dispositivo de disparo transistorizado o Joãozinho dos rádios que ganha a vida a roubar rádios de automóveis assim que ouviu a palavra transistorizado desapareceu logo do local não andasse por ali alguém da Judiciária a fazer investigações como eu disse estava-se a juntar uma data de gente e o berreiro era cada vez maior felizmente quando o guarda Silva ia à cabina ligar para a brigada de minas e armadilhas apareceu a Dona Rosette aos berros a dizer que se tinha esquecido na capelista dum embrulhinho com dois pastéis de Belém e lá acabou aquilo tudo tudo porque o raio da mulher entrou na loja abriu o embrulho e viu-se que a bomba eram mesmo dois pastéis de Belém bestialmente bem embrulhadinhos que ela tinha comprado para a sogra que está entrevadinha coitada enfim este caso ficou resolvido a contento de todos mas o caso do meu Pai foi mais grave foi sim senhor e quem disser o contrário mente eu já andava desconfiada de que lhe ia acontecer qualquer coisa porque sempre que há um acontecimento qualquer no país quem se trama é o meu pai como ia dizendo um destes dias a minha mãe encontrou um embrulho escondido no armário do quadro de electricidade e vai chamou a vizinha que chamou uma amiga que chamou a vizinha dela dez minutos depois havia ao patamar sete vizinhas aos gritos e é claro que chamaram logo a polícia e mais uma data de amadores que há lá na Graça e que se juntam sempre que há um embrulho qualquer pois como eu ia dizendo juntou-se uma data de gente e o polícia a tremer como varas verdes começou a desarmadilhar a bomba assim que abriu o embrulho apareceu o gargalo duma garrafa e a verdade é que ninguém sabia se as bombas têm gargalo de maneira que continuaram a abrir o embrulho até que houve um amador que disse que aquilo era um Molotov enfim quando o papel caiu viu-se que a bomba era uma garrafa de bagaço e vai chegou o meu pai e desatou aos berros a dizer que ninguém tem o direito de andar a desarmadilhar as garrafas alheias que era uma infâmia inconstitucional porque os embrulhos são invioláveis e mais isto e mais aquilo é claro que ele não disse que a garrafa era dele ou que ele é que a tinha escondido mas eu cá para mim ando suspeita de que a bomba era uma garrafita que ele tinha escondido para se aquecer ao entrare ao sair de casa enfim aposto que o meu pai é a única pessoa que há em Portugal a quem desarmadilharam o bagaço.
In O Jornal, 2.9 Outubro 1976.
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Os demónios da Graça
Aquele senhor do cinema chamado Fonseca e Costa deve ser muito rico sim deve mesmo andar a nadar em pilim porque teve de ir a Alcácer Quibir à procura de demónios quando lhe bastava ir a Alcácer do Sal que é muito mais perto poupando dinheiro em transportes e em hotéis pensando bem até podia ter vindo aqui à Graça porque os nossos demónios não são em nada inferiores aos de Alcácer Quibir não senhor se é que não são superiores para começar lixaram o bairro todo colando cartazes nas paredes temos cá tantos cartazes que há prédios que nem se vêem alguns têm cartazes já com valor histórico que deviam ir para o museu dos cartazes sim porque temos cá cartazes com três anos de idade ou mais mas os demónios não ficaram por aqui alguns pintaram as paredes com quadros feios como burro ninguém sabe ao certo quem é que lhes disse que eles sabiam pintar mas a verdade é que temos as paredes cheias de demonstrações de falta de talento os que perceberam a tempo que não sabiam pintar dedicam-se a escrever nas paredes temos frases de todos os tipos desde o viva o povo ao VIVA A MARIQUINHAS DO 5º ANDAR e desde O SPÍNOLA é fascista ao queremos mais leite cá na Graça temos frases para todos os gostos e para todas as idades mas onde os demónios mostram talento é nas retretes aí é que a gente se benze de espanto e afasta a cara do espelho para não nos vermos corados a retrete da Pérola da Graça por exemplo tem frases como quem precisar de mim ligue para este número e vai tem um número de telefone a seguir tenho pensado bastante nisto sim porque não é costume precisar-se de alguém quando se está na retrete e vai pensei que talvez isto tivesse sido escrito por um enfermeiro especializado em prisões de ventre urgentes outra frase que lá está escrita é a manuela vai para a cama ora eu não sei quem é a Manuela mas não percebo porque é que ela não pode ir para a cama ou o que é que tem de especial ela ir para a cama se quisessem escrever os nomes de todas as pessoas que vão para a cama não havia portas de retretes no mundo inteiro que chegassem para escrever a lista sim porque ir para a cama é uma coisa que toda a gente faz mas os nossos demónios para frases misteriosas estão por aqui senão vejam esta que está escrita na porta da retrete da Drogaria Ideal É proibido espreitar pelo buraco da fechadura ora em primeiro lugar não lembra a ninguém ir para a retrete espreitar pelo buraco da fechadura e em segundo lugar é impossível porque a retrete fica a quase um metro da porta e ninguém é tão comprido que possa fazer as duas coisas ao mesmo tempo outra actividade dos demónios cá do bairro é tocarem às campainhas das portas quando a gente está a dormir sim porque não há nada mais chato do que tocarem-nos à porta e obrigarem a gente a levantar-se a meio da noite para esbarrar com o focinho no ar mas antes isso do que dar com o focinho em dois matulões como aconteceu àquela velhinha de Tábua a quem fizeram coisas tais que a coitadinha ficou transformada num pastel de bacalhau para não dizer outra coisa sim porque não foi só num pastel de bacalhau que ela ficou transformada não senhor.
In O Jornal, 22 Abril 1977.
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O Pele não veio à Graça diabos o pintem
Uma das grandes infâmias da discriminação que se fez contra a Graça é o Pele ter ido a Lisboa e não ter ido à Graça que fica mesmo ao lado não se percebe como é que uma pessoa tão viajada perdeu esta oportunidade que podia aumentar bestialmente os seus conhecimentos de geografia e disto e daquilo e lá por isso também não se percebe porque é que a Pepsi Cola se divorciou da Graça que é um país populoso e sedoso que até podia ser um bom mercado sim porque se a Pepsi Cola soubesse o que anda a fazer tinha mesmo ido à Graça com o Pele eu cá para mim não distingo a Pepsi Cola da Coca da Surf Cola e da Schwepps Cola para mim são todas iguais e castanhas mas distingo perfeitamente o Pele que é muito diferente doutros jogadores como do Chalana por exemplo e gostava de o ver passear na Graça que é uma terra de heróis de mártires e de virgens onde os heróis devem ir quanto mais não seja para poderem dizer que foram lá fico por aqui porque não sei bem o que é que devo dizer para justificar a necessidade das virgens irem à Graça sim porque se estiverem lá há muito tempo deixam de ter esse atributo e dos mártires nem falo porque queremos lá mais do que os que já temos e posso jurar que temos muitos sim porque com os transportes pelo preço porque estão e com esta vergonha do governo nunca ter fomentado a indústria da Graça a grande maioria dos Gracenses (há quem lhes chame Graciosos) tem de trabalhar no estrangeiro no fundo nós os Gracenses somos um povo de emigração quotidiana o que deve ser raro no mundo eu só conheço um caso parecido que é dos Berlinenses que vivem de um lado do muro e trabalham do outro para dizer a verdade nós cá na Graça ainda não fizemos um muro de separação porque há muita falta de cimento e porque temos pena que os lisboetas não possam beneficiar das nossas maravilhas mas se as coisas continuam como estão temos mesmo de o fazer até porque andam imensas confusões nos espíritos das pessoas como é o caso do ministro Medeiros Ferreira que se demitiu do governo de Lisboa e que muita gente julga que também era ministro dos Estrangeiros da Graça o que é uma mentira estúpida está-se mesmo a ver que não era porque nós ainda não nomeámos o nosso ministro dos Estrangeiros e como somos um embaixador em Lisboa enfim isto tudo são politiquices mas lá que isso do Pele não ter cá vindo é uma verdade que ofendeu muito os Gracenses isso é que ninguém pode negar e que é indecente brincar com os sentimentos de um povo isso é outra verdade que ninguém pode negar enfim vamos às notícias porque se está a fazer tarde para já não temos notícias nenhumas a dar tudo que se passa é antigo porque somos um povo pacífico e trabalhador que não tem o menor desejo de andar sempre metido em agitações e confusões como as que há nos países estrangeiros como Lisboa para só falar desse nuestro hermano que tem fronteiras com a gente a única coisa digna de registo é que tem cá vindo muito lisboeta trocar escudos com medo da desvalorização para dizer a verdade ainda não temos moeda nossa o que impede os lisboetas de fazer negociatas isto é bom sim deve dizer-se que isto é bom porque se já tivéssemos moeda nossa já tínhamos trocado uma data delas por escudos e estávamos à beira duma crise económica insuperável como esta palavra é difícil e feia de mais para acabar um artigo acabo com outra mais bonita: adeus.
In O Jornal, 14 Outubro 1977.
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O que é um bife?
Cá a nossa República Impopular da Graça continua na sua marcha ascensional para o fundo do poço com tudo a correr de mal a pior e com Deus sempre em férias para bem dos nossos pecados que são a única coisa em que somos auto-abastecidos sim porque o resto é tudo importado desde as ideias ao tabaco para começar continuamos sem governo o que para dizer a verdade faz menos falta do que o bacalhau a que estávamos habituados o resultado é que até estamos em crise de inauguradores e cortadores de fitas o que também para dizer a verdade nos faz pouca diferença porque não temos nada para inaugurar senão os preços cada vez mais altos que vão aparecendo e esses não dão motivo para festas o que vale é que agora vamos ter a pirâmide que é uma festa em que toda a gente vai dar aquilo de que não precisa sempre estou para ver se alguém põe nessa pirâmide um pastel de bacalhau ou um quilo de feijão porque lá em casa estamos muito precisados de comer e uma piramidezita de alimentos mesmo que pequena calhava que nem ginjas olá se calhava eu cá por mim também não me importava que alguém me desse uma piramidezita de cadernos para a escola porque o meu pai anda com dificuldades financeiras a curto a médio e a longo prazo e não tem dinheiro que chegue para

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