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1 A Revolução Russa como uma revolução permanente interrompida1. David Maciel* Introdução: Como acontecimento mais importante do século XX a Revolução Russa despertou paixões a favor ou contra, avaliações discrepantes, mesmo no campo do marxismo, e posicionamentos políticos antagônicos. Para uns foi uma revolução social efetivamente realizada pelas massas trabalhadoras, enquanto para outros não passou de um golpe de Estado bolchevique. Enquanto determinados setores a consideram a mais importante experiência socialista do século, outros avaliam que ela não passou de uma bem sucedida modernização pelo alto, baseada numa variante do capitalismo, na exploração dos trabalhadores e a um custo social e político altíssimo. Neste trabalho busca-se entender o processo revolucionário russo a partir do contraponto entre as tendências estruturais, as tendências de longo prazo da sociedade russa, cujo processo de atualização em relação à sociedade contemporânea se iniciam na segunda metade do século XIX, e os movimentos conjunturais, pontuados por momentos definidores como 1861, 1905, 1917, 1921 e 1928, capazes de interromper determinadas tendências, inaugurar outras ou ainda atualizar outras tantas. Como resultado do jogo entre estrutura e conjuntura, entre necessidade e liberdade, ou ainda entre processo e projeto a revolução russa sintetiza a contradição entre as tendências estruturais da sociedade russa, e mesmo aquelas da dinâmica internacional, e as iniciativas e projetos para atualizar seu curso ou mesmo alterá-lo radicalmente. Neste sentido, aqui se procura demonstrar como num país economicamente atrasado, dependente e semi-feudal o processo revolucionário oscilou entre a revolução passiva, ou seja, a mudança controlada de cima, onde a atualização da ordem vigente é o critério definidor da ação e da reação dos sujeitos históricos, e a revolução permanente, onde o protagonismo pertence às classes subalternas e o processo de solapamento da 1 Publicado em PINHEIRO, Milton (Org.). Os cem anos que abalaram o mundo: a revolução russa na cena do futuro. São Paulo: ICP, 2017. 2 ordem é um imperativo, tornando o processo social altamente fluído e fazendo com que as fases do processo histórico sejam condensadas e superadas num movimento ininterrupto de mudanças até que a transição ao comunismo se estabeleça e concretize. No processo revolucionário russo a revolução permanente se impõe como estratégia revolucionária historicamente necessária na conjuntura da Primeira Guerra Mundial, concatenando a dinâmica interna à internacional. Os bolcheviques só conseguiram dirigir a revolução porque foram capazes de compreender esta concatenação e as possibilidades abertas para uma revolução socialista num país atrasado, tornando-se os porta -vozes das classes subalternas. No entanto, diante de um cenário internacional adverso e das enormes dificuldades internas os bolcheviques não conseguiram levar às últimas consequências sua opção pelos soviets e pelo protagonismo das massas trabalhadoras, optando pelo resgate dos métodos autocráticos e do dirigismo econômico estatal para superar os obstáculos e salvar a nova ordem política e social. Neste sentido, a revolução passiva é recolocada como uma necessidade histórica, levada às suas últimas consequências como estratégia de atualização pelo alto da sociedade soviética. Desta forma criou-se uma potência industrial e militar, mas não uma sociedade onde prevaleciam a socialização econômica e política. 1- Uma revolução passiva falhada e incompleta (1861-1917). Apesar de compor o pequeno grupo das cinco potências do concerto europeu, até meados do século XIX a Rússia ainda era uma sociedade baseada na servidão feudal, com um Estado absolutista sustentado por uma aristocracia reacionária e por uma burguesia extremamente débil em termos políticos. O caráter feudal da formação social russa fundamentava uma política interna retrógrada, de reforço da autocracia czarista; e uma política externa agressiva e contra-revolucionária, de expansão territorial e de apoio diplomático e militar aos regimes feudal-absolutistas, fazendo da Rússia o “bastião da contra-revolução na Europa”. Num cenário de mudanças revolucionárias, enquanto em diversos lugares o absolutismo era enfraquecido ou mesmo derrubado e o Estado deixava de se limitar à sociedade política, com o avanço da sociedade civil, na Rússia o caráter autocrático do Estado era reforçado, com o czar concentrando o poder ainda mais em suas mãos; a aristocracia consolidando sua condição de burocracia 3 vocacionada para o serviço do Estado e este assumindo definitivamente o controle da Igreja e da educação (ANDERSON, 1985, p. 346-347). No plano externo o império russo foi beneficiário de sua postura política contra- revolucionária, ganhando o aval de seus aliados para conquista de novos territórios, se expandindo para o Norte, (Finlândia), o Oeste (Polônia, Bessarábia), o Sul (Cáucaso), a Ásia Central e o extremo leste (Sibéria), ampliando seu território enormemente e tendo acesso à grandes quantidades de mão de obra e de terras para cultivo. Além disso, como força militar e diplomática contra-revolucionária a Rússia participou das coligações contra a França revolucionária, participou ativamente da restauração absolutista imposta pelo Congresso de Viena (1815) e pela Santa Aliança, sufocou a revolução polonesa de 1830-31, interveio militarmente na revolução húngara, salvando a monarquia Habsburgo e o império austríaco da dissolução em 1849. Com exceção do movimento dezembrista, conspiração fracassada de nobres liberais em 1825, e da revolução polonesa, o império czarista passou relativamente incólume pelas agitações revolucionárias que varreram a Europa na primeira metade do século XIX. Desse modo, enquanto na Europa Ocidental a aristocracia perde força política e econômica diante das outras classes, principalmente da burguesia, mas também do movimento popular ascendente, tendo que conviver com um processo de alteração do aparelho de Estado no sentido do seu “aburguesamento” e com a desagregação parcial ou total da servidão; na Rússia a aristocracia feudal reforça sua dominação como nunca, fundindo-se com o Estado e intensificando a exploração feudal (idem, ibidem). No entanto, o atraso político e econômico russo em relação à Europa Ocidental começou a cobrar seu preço, manifesto dramaticamente na derrota para a Inglaterra e a França na Guerra da Criméia (1856) e no aumento vertiginoso do descontentamento camponês com o aumento da opressão feudal e o “cercamento” das terras pela aristocracia. Entre as décadas de 1820 e 1860 do século XIX a agitação no campo decuplica, com o aumento exponencial das sabotagens, pilhagens, assassinatos de nobres e funcionários do Estado e insurreições locais (NÉRÉ, 1991, p. 281; WOLF, 1984, p. 77). Tais fatores levaram a monarquia czarista a desenvolver um esforço de atualização da economia, da sociedade e da estrutura política, desencadeando assim um movimento de revolução passiva no império. 4 O primeiro passo neste sentido se deu com a abolição da servidão feudal, em 1861. Decretada pelo czar Alexandre II, a abolição da servidão tornou os camponeses homens livres, permitindo-lhes a compra da terra, porém não os livrou de diversos condicionantes, nem de um conjunto de obrigações típicas da servidão. Em primeiro lugar, as terras disponibilizadas eram menores do que aquelas que eles tradicionalmente poderiam utilizar por meio do direito de uso, portanto, expropriando-os, reduzindo seu acesso à terra e aumentando as terras sobcontrole absoluto da aristocracia. Em segundo lugar, a maior parte das terras seria comprada sob a mediação das comunas rurais, o mir, ou seja, as comunas adquiririam as terras e as distribuiriam entre os camponeses periodicamente de acordo com critérios como número de homens na família, totalidade dos membros da família e/ou capacidade de investimento; a propriedade individual absoluta sobre a terra só se generalizaria bem mais tarde. Em terceiro lugar, os nobres deveriam ser indenizados pela cessão das terras, com o pagamento de parcelas pelos camponeses por 49 anos, quando então teriam o direito à propriedade absoluta de seus lotes. Como a maior parte das indenizações foi adiantada pelo Estado à aristocracia, os camponeses passaram a dever as indenizações ao Estado, cobradas na forma de impostos. Enquanto as indenizações não fossem quitadas os camponeses só teriam acesso mediante vínculo com a comuna rural ou algum grupo doméstico, que se responsabilizava pelo pagamento do imposto e pela redistribuição periódica das terras. Mais uma vez a comuna aparece como instância mediadora do acesso à terra pelos camponeses, pois na maior parte dos casos as parcelas eram pagas coletivamente, em nome da comunidade. Em termos gerais, os camponeses passaram a ter direito à pouco mais do que 30% das terras, área menor do que à que tinham acesso antes pelo direito de uso feudal, enquanto a aristocracia passou a deter diretamente 24% (NÉRÉ, 1991, p. 281-283). O restante, predominantemente florestas ou terras improdutivas, continuou propriedade do Estado, da Coroa, da Igreja ou das comunas rurais. Em relação à aristocracia, a abolição da servidão foi plenamente positiva, pois lhes permitiu avançar sobre áreas de uso comum ou servil, conquistar um controle mais estrito sobre a terra, por meio da propriedade absoluta, ter a maior parte do pagamento devido pelos camponeses adiantado pelo Estado e ainda preservar seus privilégios e diversas formas de exações feudais. No entanto, ao invés de estimular a “junkerização” da aristocracia, com sua adesão à agricultura mercantil, à melhoria dos métodos de produção visando o aumento da produtividade e às relações capitalistas de produção, a reforma de 1861 estimulou ainda mais uma postura parasitária e absenteísta, reforçando sua vinculação 5 ao Estado como burocracia. Esta postura impediu que a aristocracia não só buscasse alternativas econômicas para a desagregação progressiva da economia feudal, bem como se autonomizasse politicamente do absolutismo russo, propugnando sua reforma em direção a uma monarquia constitucional (NÉRÉ, 1991, ibidem; ANDERSON, 1985, p. 348-352; SILVA, 2012, p. 111-113). Portanto, a abolição da servidão não aboliu o feudalismo totalmente porque transformou a corvéia em formas variadas de exações feudais adiantadas pelo Estado à aristocracia e cobradas por este dos camponeses. Também manteve a preponderância aristocrática no controle da terra, métodos de produção tradicionais e a solidariedade camponesa em torno da comuna rural, o que a fortaleceu como instrumento de resistência camponesa. Após 1861 a comuna rural sobreviveu com força no centro e no norte, apesar de sua desintegração se acelerar no sul. A libertação dos servos fortaleceu a comuna rural, com o próprio apoio de setores da burocracia czarista interessados em criar um bastião tradicionalista, politicamente conservador e leal à monarquia e à Igreja Ortodoxa contra a perspectiva revolucionária dos intelectuais e de setores da classe média (ANDERSON, 1985, ibidem). Como veremos, esta tática fracassou na medida em que as comunas rurais tornaram-se o pólo do descontentamento camponês, assumindo uma posição fundamental nas agitações sociais que abalaram o campo russo em 1905. Na prática, a abolição da servidão “contornou” o entrave que o feudalismo representava ao desenvolvimento econômico, pois nem criou as condições para a aristocracia aderir à agricultura mercantil, como na “via prussiana”, mesmo que concentrando a terra em suas mãos e preservando certos privilégios; nem promoveu um processo de democratização do acesso à terra, como na “via americana”, de acordo com os conceitos de Lênin (LÊNIN, 2002, p. 28-33). Só para dar um exemplo, na maior parte do país a migração para as novas áreas conquistadas continuou rigidamente controlada, quando não proibida, num movimento inverso ao de apoio à ocupação das áreas de fronteira, como o ocorrido nos EUA. Na verdade, o decreto do fim da servidão procurou isentar a aristocracia de qualquer perspectiva de partilha das terras, desviando a “fome de terras” dos camponeses para as terras a que eles já tinham acesso pelo antigo direito de uso, desencadeando uma disputa intercamponesa pela terra. Por isto, o fim da servidão concentrou ainda mais as terras nas mãos da nobreza e reduziu a autonomia econômica dos camponeses, forçando-os a vender sua força de trabalho, pagar 6 prestações em trabalho e/ou alugar as terras dos nobres ou dos camponeses ricos, para compensar sua carência de terras e as dificuldades de subsistência. Entre os próprios camponeses há um processo de diferenciação interna, com os camponeses ricos, kulaks, adquirindo terras dos mais pobres, explorando seu trabalho ou mesmo emprestando-lhes dinheiro ou arrendando-lhes a terra. No entanto, se estes efeitos da abolição da servidão fortaleciam a tendência à separação entre propriedade dos meios de produção e propriedade da força de trabalho, por outro lado entravava seu avanço, na medida em que foram mantidas instituições e práticas do passado feudal russo, como as comunas rurais, a prestação de trabalho e as restrições às migrações internas, dificultando a circulação da mão de obra e a formação de um mercado de mão de obra de caráter nacional. As comunas rurais, mir, passaram a ter uma importância econômica e uma força política ainda maior, porque passaram a administrar a carência de terras entre os camponeses, por meio de redistribuições periódicas, em muitos lugares favorecendo os kulaks, isentando o Estado e a aristocracia da responsabilidade política por este problema social. Por outro lado, como assinalamos anteriormente, ocorre o reforço da aversão da aristocracia à gestão empresarial em favor de sua vocação como “nobreza de serviço” junto ao Estado, ao invés de sua adesão à agricultura mercantil, na medida em que o próprio objetivo estratégico da reforma de 1861 era isentá-la das pressões pela divisão das terras, garantindo seu monopólio sobre a terra. Por isto, em termos econômicos a maior parte da aristocracia continuou vivendo dos rendimentos obtidos pelas exações arrancadas dos camponeses, pelo aluguel da terra, pela venda de terras e/ou das sinecuras estatais, num processo de redução das áreas agrícolas sob controle aristocrático e de endividamento que se prolongou pelas décadas seguintes. Em outras palavras, a aristocracia russa não era a aristocracia alemã. Esta contradição evidencia os limites do projeto de modernização da agricultura russa, tornando a transição à agricultura mercantil bastante lenta e oscilante nos primeiros anos após a abolição da servidão. Em 1917, a economia agrária russa ainda era predominantemente feudal (NÉRÉ; 1991, p. 284-286; WOLF, 1984, p. 106-107, 114; ANDERSON, 1985, p. 351- 352). Também fazem parte das reformas conduzidas por Alexandre II a introdução de algumas mudanças políticas e militares, visando racionalizar o aparato militar e administrativo e promover alguma descentralização política. Visando modernizar o 7 aparato militar russo diante dos adversários ocidentais foi instituído o serviço militar obrigatório, válido para ricos epobres, a reorganização e rearmamento do exército e da marinha, foram abolidos os castigos corporais e valorizada a educação militar dos oficiais. No plano administrativo buscou-se reduzir a arbitrariedade no sistema judiciário, com um novo código penal e a criação da figura do mandato de segurança, além do fortalecimento das assembléias locais (zemstvos) nas zonas rurais e grandes cidades, com atribuições administrativas e tributárias. Ainda assim a autocracia russa continuava ainda bastante longe do formato da monarquia constitucional e da divisão dos poderes. No reinado de Alexandre III (1881-1894) parte destas reformas judicial- administrativas são revertidas, reforçando ainda mais a autocracia czarista e o centralismo decisório (NÉRÉ, 1991, p. 283; WOLF, 1984, p. 99). Porém apesar destes limites, a “Era das Reformas” iniciada em 1861 favoreceu a transição para o capitalismo na economia russa, permitindo o avanço das relações de produção e propriedade capitalistas no campo, principalmente no sul, com o crescimento das relações assalariadas e da propriedade individual sobre a propriedade comunal. Também fortaleceu os kulaks, camponeses ricos que possuíam maiores terras e tornaram-se capazes de explorar o trabalho de outros camponeses; além dos investimentos dos capitalistas urbanos no campo, com a compra de terras da aristocracia por comerciantes, banqueiros e industriais, e o crescimento vertiginoso da agricultura de exportação. Entre as décadas de 1850 e 1890 a exportação de cereais se multiplica por seis (NÉRÉ, 1991, p. 284; ANDERSON, 1985, p. 348-354). Esta, em grande medida, foi uma reação tanto às dificuldades econômicas vividas pelos camponeses, particularmente diante do aumento demográfico, quanto à necessidade de recursos externos para sustentar o aparato estatal e o próprio desenvolvimento industrial. Por isto, grande impulso no sentido do avanço do capitalismo também foi dado pelo processo de arrancada da indústria, desencadeado a partir dos anos de 1860 e acelerado nos anos 90. Nas áreas em que a especialização agrícola era menor, pois a produção era mais voltada para a subsistência e o mercado local, era muito comum os camponeses complementarem sua renda desenvolvendo atividades artesanais ou se empregando sazonalmente nas indústrias locais, o que favorecia o avanço da atividade industrial como alternativa econômica à agricultura. Parte dos capitais investidos na indústria vinha dos setores comercial e bancário, que captavam parte da renda da terra por meio do endividamento da aristocracia. Porém, a principal alavanca para o processo de 8 industrialização russa foi o impulso dado pelo Estado, principalmente por razões militares e expansionistas. A partir dos anos de 1890, também sob a pressão do imperialismo ocidental, ocorreu um vigoroso desenvolvimento industrial na Rússia, com o surgimento da grande indústria em setores estratégicos como mineração, metalurgia e ferrovias, além do setor têxtil. O Estado investe maciçamente na ferroviária, triplicando-a em apenas 25 anos, visando não apenas a integração do país, mas também sua defesa. A grande indústria russa já nasce altamente concentrada, tanto em termos econômicos, quanto em termos geográficos, “pulando” o processo de concentração e centralização progressiva ocorrido em outros países, principalmente como consequência das crises cíclicas do capitalismo (NÉRÉ, 1991, p. 285-286; WOLF, 1984, p. 103; CHRETIEN, 2017). O caráter absolutista do Estado russo fez com que predominasse uma perspectiva estatista em que as indústrias eram financiadas pelo Estado ou eram de sua propriedade direta. A contraparte deste estatismo era o endividamento externo, a busca por dividendos obtidos por meio das exportações agrícolas e o arrocho fiscal imposto sobre o campesinato. Daí a relação ao mesmo tempo contraditória e complementar entre a estrutura semi-feudal da agricultura e o capitalismo nascente na indústria e nas cidades (ANDERSON, 1985, p. 353-354). Paralelamente, o capital externo também contribui poderosamente para o avanço industrial na Rússia, particularmente o capital francês, que responde por um terço do total das inversões externas. Mais uma vez a trajetória da indústria está vinculada à questão militar, pois a primazia francesa se deve fundamentalmente à aliança militar franco-russa, estabelecida em 1892 após o colapso definitivo da aliança dos três imperadores (Rússia, Áustria e Prússia). Assim, o capitalismo russo, que se torna predominante na formação social russa no final do século XIX, tinha no Estado e no capital externo seus principais agentes, revelando uma burguesia nativa economicamente fraca e politicamente omissa (idem, p. 356-357). Este é um componente importante para se avaliar o caráter da revolução passiva desencadeada no império russo a partir de 1861, pois a classe burguesa é uma força fundamentalmente passiva no processo. Paralelamente o avanço industrial gera um crescimento vertiginoso do proletariado, concentrando-o em grandes cidades. Por exemplo, durante a Primeira Guerra (1914-1917) o proletariado cresce nada menos que 62%, passando de 9 aproximadamente 242 mil para 392 mil trabalhadores, sendo que deste total um quarto era composto por mulheres (CHRETIEN, 2017). Neste sentido, a abolição da servidão não só não resolveu os problemas do campesinato, como os agravou, na medida em que além do baixo nível técnico, dos altos encargos devidos ao Estado e aos nobres e da extrema pobreza, há um grande crescimento demográfico no campo, com a população rural aumentando em mais de 60% entre a década de 1860 e o final do século, tornando a “fome de terras” ainda mais aguda. Isto porque em muitos lugares o critério fundamental para o acesso à terra era o numero de membros da família camponesa, daí o aumento populacional, acirrando ainda mais a disputa intercamponesa pela terra. O governo czarista percebeu a gravidade da situação no campo e tentou atenuá-la, reduzindo as anuidades a serem pagas e criando um banco para financiar o resgate das terras pelos camponeses e outro para que a aristocracia financiasse suas dívidas sem que precisasse vender suas terras. No entanto, tais medidas não arrefeceram a crise agrária, nem o ódio camponês pela aristocracia e pelo czarismo. Ao mesmo tempo em que se deu o auge das exportações de cereais a década de 1890 foi marcada pela “grande fome” no campo, revelando uma situação social explosiva (NÉRÉ, 1991, p. 283-285). Na Revolução de 1905 as mesmas comunas rurais, que foram fortalecidas pela reforma de 1861 com o intuito de se transformarem num instrumento de contenção das agitações no campo, funcionaram como um mecanismo decisivo na mobilização revolucionária, demonstrando o fracasso da estratégia czarista (WOLF, 1984, p. 94). Após a Revolução de 1905, que abalou o czarismo, mas não foi capaz de derrubá-lo, o governo adotou um conjunto de novas reformas, com vistas a desarmar a “bomba relógio” no campo e favorecer o avanço definitivo do capitalismo na agricultura. As reformas de Stolypin (1906-1911), verdadeira política de “cercamentos” no campo russo, estimularam a desintegração da comuna com o avanço da propriedade absoluta e hereditária da terra e a colonização da Sibéria. Daí em diante os camponeses poderiam adquirir individualmente a terra, sem a mediação da comuna rural e a ameaça de redistribuições periódicas, além de poderem concentrar suas posses numa única área contígua, superando o sistema de lotes parcelados em áreas distintas. O objetivo era fortalecer a classe dos kulaks, que serviriam como base de massa de apoio à aristocracia e ao governo no campo. Enquanto isto, a aristocraciamanteve sua postura reticente diante desta perspectiva conservadora de modernização no campo, agarrando-se ainda 10 mais ao seu tradicional parasitismo econômico (NÉRÉ, 1991, p. 291; SILVA, 2012, p. 125; ANDERSON, 1985, p. 351-352). Além disso, o Estado feudal-absolutista manteve-se intacto, da mesma forma que a preponderância da aristocracia em seu interior, tanto em termos políticos, quanto em termos burocráticos, revelando a fraqueza política da burguesia russa, incapaz de colocar-se diante do Estado de maneira minimamente autônoma. O fortalecimento da burocracia durante o processo de modernização capitalista da Rússia não se deu com a ampliação do acesso da burguesia aos cargos públicos e da prevalência de uma perspectiva meritocrática, cavando uma cunha progressista no interior do Estado absolutista, mas reforçando as posições da aristocracia em seu interior e a solidariedade do Estado para com esta (ANDERSON, 1985, p. 355). Resulta daí uma revolução passiva burguesa “falhada”, quando comparada com outros processos como os casos alemão ou italiano, que criou uma formação social compósita, sob predomínio capitalista na economia urbana e industrial e em parte da agricultura, porém com sobrevivências feudais importantes no campo, emperrando o pleno desenvolvimento de um mercado consumidor interno e do próprio capitalismo agrário. Esta combinação criou um capitalismo francamente dependente do estatismo e do capital externo, com uma burguesia débil politicamente e um Estado feudal- absolutista dominado política e burocraticamente pela aristocracia e que preservou sua integridade, mantendo-se imune às formas políticas burguesas representadas pelo constitucionalismo e pelo parlamentarismo. A força do absolutismo russo se revela não só no controle “mercantilista” do Estado sobre a economia industrial, mas na própria relação deste com o nascente movimento operário, tratado por meio de uma combinação de repressão pura e simples com infiltração das direções sindicais pela polícia. Neste sentido as tendências sócio-econômicas desencadeadas pela “Era das Reformas” e pelo processo de transição ao capitalismo na Rússia foram a forte presença estatal na economia industrial; o fortalecimento da propriedade privada no campo, particularmente da propriedade dos kulaks, e o desenvolvimento de uma sociedade civil estatizada, como no caso da Igreja e da escola, ou controlada de perto pelo Estado, como no caso dos sindicatos. Após a Revolução de 1905 estas tendências são reforçadas, particularmente pela política agrária de Stolypin, mas não se fazem acompanhar de um processo efetivo de atualização burguesa do Estado czarista. A monarquia semi- constitucional e o Parlamento, criados após 1905, são concessões provisórias do 11 czarismo ao movimento revolucionário, logo anuladas em favor de uma perspectiva efetivamente autocrática, reforçada ainda mais pelo sistema administrativo de urgência suscitado pela Primeira Guerra (ANDERSON, 1985, p. 348-360). O tempo histórico em que se dá a transição para o capitalismo na Rússia, final do século XIX e início do XX, e suas relações com o capital externo, ajudam a explicar por que as reformas não serviram para fundamentar a transformação capitalista do Estado russo, mas para reforçar seu caráter feudal-absolutista. Isto porque os influxos do imperialismo permitiram que a transição para o capitalismo se desenvolvesse sem que a estrutura do Estado precisasse ser quebrada; daí a criação de uma formação social desigual e combinada em escala não vista antes. O aporte tecnológico e de recursos disponibilizado pela capital externo permitiu que a indústria russa “queimasse etapas”, atingindo altos níveis de concentração e capacidade produtiva sem que tivesse que passar por um processo de evolução lenta e gradual desde o artesanato e a manufatura, até a maquinofatura, nem que dependesse de um vigoroso processo de acumulação primitiva. Daí que o Estado pôde exercer o papel de principal agente da modernização capitalista da Rússia sem ter que instituir em sua plenitude o estatuto burguês da igualdade e da liberdade jurídica, nem ter que se abrir e adaptar aos institutos burgueses de participação e representação política como um regime constitucional, um parlamento responsável e um sistema eleitoral. Daí que o processo de transição ao capitalismo na Rússia fortaleceu, ao invés de enfraquecer, o absolutismo russo, como evidenciam o controle estatal estrito sobre a Igreja, a educação, os sindicatos e a própria indústria, além de sua perenidade e de sua capacidade de reação à crise, como no período imediatamente posterior à Revolução de 1905. Portanto, a fragilidade do czarismo russo se evidenciou no plano externo, não no plano interno; no enfrentamento deste mesmo imperialismo que o auxiliou e reforçou. As derrotas na guerra contra o Japão (1904- 1905) e contra a Alemanha na Primeira Guerra (1914-1917), evidenciam todo o anacronismo do czarismo russo num concerto internacional cada vez mais dirigido pela lógica do capital imperialista (ANDERSON, 1985, p. 356-360). Por isto, em princípio a revolução passiva russa, ou revolução-restauração, reproduz em suas linhas gerais o padrão teórico analisado por Gramsci nos casos em que ocorre uma transição para o capitalismo e o Estado burguês nos países em que não ocorreu uma revolução burguesa clássica. Esta transição se dá por meio de um processo de “modificações moleculares, que, na realidade, modificam progressivamente a 12 composição anterior das forças e, portanto, transformam-se em matriz de novas modificações”, conforme definição lapidar de Gramsci (2002, p. 317), dirigido pela classe dominante e pelo Estado a partir de cima com vistas ao esvaziamento da perspectiva revolucionária e à atualização da estrutura econômico-social e da estrutura política, promovendo mudanças revolucionárias ao mesmo tempo em que restauram elementos fundamentais da velha ordem, repondo-os em novas bases. Nisto o Estado e a classe dominante reagem tanto à pressão externa, exercida por outros países, quanto à pressão interna, exercida pelas classes subalternas e adotam variados procedimentos transformistas a fim de cooptar ou decapitar as forças adversárias2. As reformas de 1861 e a política agrária de Stolypin são os momentos mais evidentes deste processo, na medida em que abriram caminho para as modificações que possibilitaram o avanço do capitalismo, ao mesmo tempo em que restauraram o Estado absolutista, a dominação política e social da aristocracia e a grande propriedade sob seu controle. Porém, o caso russo guarda peculiaridades que o afastam bastante do caso clássico da revolução passiva, particularmente daquele representado pela Alemanha e, em menor grau, pela Itália. Em primeiro lugar, salta aos olhos a fraqueza da burguesia russa não só do ponto de vista político, mas também do ponto de vista econômico. O desenvolvimento industrial foi muito mais fruto da ação do Estado e do capital externo do que propriamente da burguesia russa. Ao contrário da burguesia alemã, que consegue impor a livre circulação de mercadorias e mão de obra no interior da federação alemã antes mesmo do abalo de 1848 e se torna a principal credora do Estado prussiano, além de conquistar espaço político no Parlamento e em instâncias de poder locais, a burguesia russa só consegue a liberdade de movimentação da mão de obra muito tardiamente e ainda assim de maneira parcial. No plano político-ideológico o liberalismo sempre foi marginal enquanto força política e corrente de pensamento, vindo a burguesia russa a se organizar em termos partidários apenas depois da Revolução de 1905 com o partido“Kadete” (Partido Constitucional Democrático) e ainda assim exercendo uma função de força política auxiliar da autocracia quando é criada a Duma (Parlamento) e a burguesia liberal passa a ter uma representação parlamentar. 2 - Gramsci trata do conceito de revolução passiva ou revolução-restauração em diversas passagens dos Cadernos do Cárcere, relacionando-o aos conceitos de transformismo, cesarismo, guerra de posição, etc. No entanto, discorre em especial sobre a revolução passiva quando trata da realidade italiana, seja discutindo a filosofia de Benedetto Croce (2004, p. 227-430) seja analisando o Risorgimento (2002). Para uma reflexão sobre os sentidos dos conceitos de revolução passiva e de transformismo ver MACIEL, 2006. 13 Em segundo lugar, a aristocracia buscou se contrapor ao anacronismo e à crise da ordem econômica e social feudal reforçando seus laços com a autocracia, suas posições no interior do Estado como burocracia e seu “parasitismo” econômico, ao invés de aderir maciçamente à agricultura mercantil e à perspectiva empresarial. Ou seja, à crise da ordem social feudal e do absolutismo a aristocracia russa reagiu defensivamente, restaurando seus privilégios econômicos e reforçando suas posições tradicionais, não buscando dar a direção do processo de mudanças. Neste sentido, os setores reformistas da burocracia que dirigiram a revolução passiva falhada na Rússia, não só careceram do apoio da classe dominante fundamental, mas sofreram dela dose considerável de resistência, como se evidencia na ineficácia do banco estatal para financiar sua adesão à agricultura mercantil. Em terceiro lugar, a autocracia czarista e a burguesia russa nunca foram capazes de desenvolver um movimento transformista bem sucedido em favor de sua perspectiva de revolução passiva sobre seus adversários. As tentativas de transformar a comuna rural num bastião em defesa do czarismo fracassaram completamente, como evidenciam seu papel nos levantes camponeses e na defesa dos seus interesses contra o Estado e a aristocracia. A força dos “populistas russos”, narodnikis, e depois do partido socialista revolucionário no campo também é outra evidencia importante da hostilidade do campesinato diante da autocracia czarista. Em relação ao movimento operário o fracasso é ainda maior, pois tanto a social-democracia, quanto o anarquismo sempre vislumbraram a perspectiva revolucionária. Mesmo os mencheviques, que defendiam a aliança do proletariado com a burguesia vislumbravam a derrubada do czarismo pela via revolucionária. Assim, fracassou a tentativa de atualização da ordem social russa por meio de uma revolução passiva promovida pelo Estado czarista e pela aristocracia, tornando a revolução social ativa uma necessidade histórica. 2- Uma revolução permanente em processo: da irrupção à paralisia (1917-1928). Ao contrário do que se dá nas revoluções passivas bem sucedidas, a revolução passiva russa não só não afastou a ameaça da revolução social, como a tornou mais necessária à medida que as contradições devidas ao caráter compósito de sua formação social se acirravam. A Revolução de 1905 abriu uma era de revolução social, evidenciando tanto a necessidade histórica da revolução, quanto a incapacidade orgânica do czarismo de anulá-la em favor da perspectiva passiva por meio de um 14 movimento de cooptação das forças revolucionárias. Com o refluxo da revolução as pequenas modificações promovidas na estrutura política foram rápida e decididamente anuladas, restaurando o czarismo em sua inteireza sob a capa de uma monarquia semiconstitucional, enquanto o avanço do capitalismo foi acelerado com as reformas de Stolypin. A crescente contradição entre estrutura sócio-econômica e estrutura política explodiu em 1917 de maneira tal que o regime não resistiu por duas semanas ao levante popular de fevereiro. A partir daí retoma-se um processo de revolução social manifesto na aceleração da organização popular por meio dos soviets, das comunas rurais, dos sindicatos e partidos de esquerda, na ocupação das terras pelos camponeses, na deserção em massa dos soldados e na criação de uma crescente dualidade de poderes entre o governo provisório, instalado em fevereiro, e o soviet de Petrogrado. A novidade é que a perspectiva socialista se colocava no horizonte da revolução russa, por conta de um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, deve-se destacar o protagonismo dos trabalhadores, particularmente do operariado industrial, no processo revolucionário, devido à própria incapacidade orgânica da burguesia russa de dirigir qualquer perspectiva revolucionária, mesmo a de tipo passivo. Protagonismo expresso em sua emergência absolutamente inovadora na cena política, em termos organizativos e programáticos com os soviets e com a perspectiva de controle operário da produção industrial, de democratização das relações no interior das forças armadas e ocupação das terras. A partir de fevereiro a demanda pelo controle das fábricas e fazendas pelos trabalhadores se colocou progressivamente com uma força ainda não vista e inspirou inúmeras iniciativas de ocupação e autogestão, instituindo uma nova correlação de forças em favor do aprofundamento da revolução e atropelando a própria legalidade instalada com a queda da monarquia (FERRO, 1974). Em segundo lugar, a situação internacional de guerra, favorável à emergência revolucionária das massas no centro e na periferia do sistema capitalista num movimento articulado de revolução mundial que poderia favorecer a transição socialista num país ainda atrasado graças ao apoio dos países desenvolvidos cujo poder já estivesse sob controle dos trabalhadores. Em terceiro lugar, o avanço e a própria especificidade do processo de modernização econômica da sociedade russa que, apesar de seus limites, já possuía um setor industrial com níveis de concentração e avanço tecnológico consideráveis, capazes de dinamizar o desenvolvimento econômico em 15 outros setores e assim criar a base material necessária à transição socialista, além de concentrar a classe operária nas principais cidades do país. Esta nova situação conferia à revolução russa o caráter de uma revolução permanente, pois sequer as tarefas democrático-burguesas haviam sido realizadas e as tarefas socialistas já se colocavam como uma necessidade histórica (MEDVEDEV, 1978, p. 17-61; DEUTSCHER, 1968, p. 1-18). Como se sabe, a perspectiva da revolução permanente foi desenvolvida por Marx e Engels no âmbito da Revolução de 1848-49 na então Alemanha, a partir da análise da experiência histórica da Revolução Francesa (1789-1799). Para eles a revolução em permanência se colocava como uma necessidade histórica num país ainda predominantemente feudal, dividido em diversas entidades políticas, governado por príncipes absolutistas e bastante atrasado em termos econômicos e sociais. Em sua perspectiva a classe operária deveria compor o bloco de forças antiabsolutistas liderado pela burguesia e apoiar a revolução democrático-burguesa, sem, no entanto, perder sua autonomia politico-ideológica e organizativa. Após a derrubada do feudal-absolutismo e a criação de uma república democrática unificada na Alemanha a classe operária deveria apoiar resolutamente a luta da pequena burguesia contra a burguesia, fazendo a revolução avançar numa perspectiva mais popular e democrática, até o momento em que esta tomaria o poder. A partir daí a classe operária deveria pressionar o máximo possível a pequena burguesia e seu governo no sentido da adoção de medidas socializantes, conquistar instâncias de poder exclusivamente operáriase avançar em sua organização política e militar com vistas à sua constituição como classe dominante. Impedindo assim a interrupção da revolução no plano meramente político, ou seja, no plano da mudança do tipo de Estado e da alteração da classe dominante, e pressionando por sua continuidade até a expropriação política e econômica das classes proprietárias, com a conquista do poder de Estado pelo proletariado, a concentração das forças produtivas decisivas nas suas mãos e a abolição da propriedade privada e das classes. Ou seja, para Marx e Engels a revolução permanente continua durante todo o período do que chamamos hoje de “transição socialista” e em caráter internacional, ou seja, “até (...) que a associação dos proletários, não só num país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro, tenha avançado a tal ponto que tenha cessado a concorrência dos proletários nesses países” (MARX e ENGELS, 1982, p. 182). Daí a importância da revolução também ser bem sucedida num país mais desenvolvido que 16 pudesse auxiliar o processo revolucionário no país atrasado, como no caso da França em relação à Alemanha 3. Uma revolução permanente na Rússia era a aposta de Trotsky desde 1906, quando, avaliando a experiência da Revolução de 1905 e a própria história da Rússia, conclui pela impossibilidade de uma revolução burguesa que não fosse dirigida pela classe operária e conduzida por um governo operário, pois a burguesia russa era demasiado débil politicamente para operar tal tarefa histórica. Conclui ainda pela impossibilidade da classe operária no poder se limitar a realizar uma revolução burguesa, devendo concatená-la com as tarefas de uma revolução socialista, sob o risco de tornar o seu poder provisório e ser vítima de uma reação implacável. Na execução das tarefas burguesas da revolução permanente a classe operária atrairia o apoio do campesinato; mas sem partilhar o poder com ele. Para a execução das tarefas socialistas a classe operária precisaria não apenas tomar o poder e assim desenvolver as condições materiais para a transição socialista, mas também contar com o apoio do proletariado revolucionário europeu, ao mesmo tempo em que a revolução russa estimula a revolução socialista na Europa Ocidental. A concatenação entre a revolução permanente na Rússia e a revolução socialista na Europa tornou-se possível depois da derrota do Império Russo na guerra com o Japão, fraturando a unidade do concerto europeu e abrindo caminho para a guerra mundial (TROTSKY, 1973). A revolução permanente também se tornou a aposta de Lênin mais tarde, quando a partir da eclosão da Primeira Guerra Mundial passa a conceber a possibilidade da guerra patriótica se transformar numa guerra civil, abrindo caminho para uma revolução de caráter mundial que estouraria primeiramente no elo mais fraco da cadeia imperialista, a Rússia. Conseqüentemente, ao retornar do exílio Lênin propõe todo o poder aos soviets e a criação de um governo operário-camponês que realizaria as tarefas burguesas e proletárias da revolução sob a mediação da nacionalização/estatização das grandes 3 - O conceito de revolução permanente foi desenvolvido por Marx e Engels em diversos trabalhos durante a conjuntura revolucionária de 1848-49 e no âmbito de sua militância na Liga dos Comunistas. Desde Princípios básicos do comunismo (1847), elaborado por Engels, passando pelo Manifesto do Partido Comunista (1848) e pelas Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha (1848) a estratégia da revolução permanente é colocada para a classe operária como caminho para a ultrapassagem da revolução burguesa e a efetivação da revolução socialista, no entanto, é na Mensagem da Direção Central da Liga dos Comunistas (1850) que a dinâmica e as tarefas da revolução permanente são descritas com detalhe, particularmente no tocante à construção da autonomia política e organizativa da classe operária. Para uma análise do contexto de elaboração e do próprio conceito de revolução permanente ver MACIEL, 2014. 17 empresas e da criação de um capitalismo de Estado como ante-sala do socialismo. Na prática, a concatenação entre revolução burguesa e revolução socialista se deu paulatinamente ao longo de 1917 e consumou-se em outubro com a tomada do poder pelos bolcheviques (LÊNIN, 2005, p. 23-169; REIMAN, 1985). A fragilidade da revolução burguesa de fevereiro se evidencia na incapacidade da burguesia liberal, dos setores conscientes da aristocracia e dos socialistas moderados (mencheviques e socialistas revolucionários de direita), que compuseram os sucessivos governos provisórios, em se desvencilhar dos compromissos assumidos pelo czarismo e em afastar decididamente a ameaça da contra-revolução. Apesar das vacilações da direção Socialista Revolucionária e menchevique do soviet de Petrogrado em assumir a dualidade de poderes, por conta de sua aposta no caráter burguês da revolução, foi impossível para o governo provisório manter-se no poder e levar a cabo as tarefas burguesas. A participação dos partidos de esquerda no governo não alterou este cenário, tornando a insurreição liderada pelos bolcheviques em outubro uma necessidade para salvar a revolução. A própria história dos sucessivos governos provisórios entre fevereiro e outubro expressa de modo acelerado a dinâmica clássica da revolução permanente, evoluindo de uma revolução política para uma revolução social quando no interior do bloco revolucionário a burguesia vai sendo deslocada pela pequena burguesia e posteriormente esta é deslocada pelo proletariado. De um governo formado exclusivamente pelos liberais (burguesia e aristocratas “esclarecidos”), preocupado fundamentalmente em normalizar a vida social diante da radicalização popular, a situação política evolui em maio para a montagem de um governo de coalizão com os socialistas moderados, que assumem sua direção política em julho, quando os liberais abandonam o governo. No entanto, o fracasso da nova ofensiva militar desencadeada em junho, somada à intensificação das greves e ocupações de terras curtocircuita a perspectiva burguesa do governo socialista abrindo caminho para a radicalização política e a superação do impasse (FERRO, 1974, p. 13-67). O dínamo por trás desta escalada em direção à revolução socialista é a contradição entre a inércia do governo provisório acerca do atendimento das demandas da Revolução de Fevereiro e o avanço político e ideológico dos trabalhadores e soldados. No início do processo revolucionário os operários defendiam a convocação de uma assembléia constituinte, a criação de uma republica democrática, melhorias salariais e a implantação de direitos trabalhistas; os camponeses defendiam que a terra fosse dada a 18 quem nela trabalhasse e os soldados pediam um tratamento disciplinar mais humano com o fim dos castigos físicos, indenização aos feridos e mutilados e abono às famílias dos soldados (idem, p. 41-43). No entanto, a partir de maio, com a crise do governo Miliukov e o lockout da burguesia, há uma retomada das greves e um processo de ocupação das fábricas e de estabelecimento de sua gestão pelos soviets e comissões de fábrica. Enquanto isto, os camponeses passam a ocupar as terras abandonadas ou improdutivas e se apropriar do gado e dos equipamentos agrícolas e os soldados passam a defender o fim da guerra e o estabelecimento da democracia soviética no Exército e na Marinha, com a escolha dos comandantes pelos soldados e o controle das tropas pelos soviets (idem, p. 62-64). Em julho, após o fracasso da ofensiva militar, enquanto o Exército sofre um processo de decomposição com deserçõesem massa o retorno dos soldados dá um novo impulso revolucionário ao campesinato, estimulando ações violentas contra a aristocracia e acelerando a expropriação de suas terras, e mesmo as terras dos kulaks (idem, p. 77-78). É em reação a isto e à incapacidade do governo provisório de estancar a radicalização popular que o general Kornilov tenta tomar o poder e instituir uma ditadura militar. Portanto, de um lado a contra-revolução levanta a cabeça, com a tentativa de golpe do general Kornilov; de outro lado os bolcheviques avançam, conquistando posições nos soviets, sindicatos e comitês de fábrica e habilitando-se à tomada do poder, como em julho. Após o fracasso do golpe de Kornilov, em grande medida graças à mobilização bolchevique, o governo provisório não dirige mais o processo revolucionário. Criam-se as condições para a dualidade de poderes com o soviet de Petrogrado e a insurreição de Outubro. Ao contrário da revolução alemã de 1848, vivida e teorizada por Marx e Engels, interrompida com a derrota da pequena burguesia diante da recomposição da burguesia com as forças feudal-absolutistas, no processo revolucionário russo a revolução em permanência se acelera nos planos político e social, com a classe operária assumindo a direção do processo revolucionário e o governo através dos soviets e do partido bolchevique (idem, p. 68-96). A Revolução de Outubro se configura como uma revolução socialista não só porque institucionaliza politicamente e amplia o processo de ocupação das fábricas e das terras pelos trabalhadores, que já ocorria desde a queda do czar, e o controle operário da produção; mas também porque cria um governo baseado nos soviets, órgãos de democracia direta dos trabalhadores, implodindo de vez o sistema político 19 representativo criado em fevereiro e o calendário político por ele definido, como a assembléia constituinte. O chamado “Comunismo de guerra”, instituído mais em função das dificuldades impostas pela dinâmica da revolução, e logo depois da guerra civil, do que propriamente pela intenção do governo bolchevique, representa uma ruptura em relação à propriedade privada na economia urbana na medida em que combina formas de controle operário e formas de controle estatal das empresas e em que estabelece a nacionalização/estatização das indústrias estratégicas e de grande porte, dos bancos e do comércio exterior e entrega a administração de parte das fábricas aos soviets, sindicatos e comitês de fábrica. Mas a Revolução de Outubro também se configura como uma revolução democrático-burguesa, na medida em que rompe com a grande propriedade da aristocracia e da burguesia no campo, referendando e legalizando o processo de ocupação das terras pelos camponeses. Este processo de ocupação camponesa das terras se dá de forma combinada, pois são as comunas rurais e cooperativas que organizam a distribuição das terras, prevalecendo a perspectiva da pequena propriedade individual. O confisco das indústrias pelos trabalhadores e pelos órgãos ligados ao Conselho Supremo de Economia, criado para estabelecer um mínimo de planejamento e organização gerais, e a nacionalização/estatização dos bancos e do comércio exterior impuseram-se à iniciativa privada não apenas respondendo ao programa que motivou a Revolução de Outubro, mas também tentando dar respostas à grave crise vivenciada nas cidades nos primeiros meses com a redução da produção industrial e graves problemas no sistema de abastecimento e de circulação de bens. O controle operário das empresas conviveu com grandes dificuldades devido à inexperiência administrativa dos trabalhadores, à falta de articulação entre as empresas socializadas, à resistência e sabotagem de patrões e gerentes, à escassez de matérias primas. Em muitos casos a produção industrial era interrompida logo que o estoque de matérias primas era consumido, mas não reposto. Além disso, o comércio reduziu-se em grande parte às trocas naturais, abrindo caminho para o mercado negro e a especulação, enquanto a maior parte da produção agrícola retrocedia para a mera produção de subsistência dos camponeses, rompendo a unidade econômica entre e campo e cidade. Assim o controle estatal ou social da propriedade na economia urbana não resolveu os problemas acima citados, pois estes foram ainda mais agravados pelo início da guerra civil, pela necessidade de abastecimento do Exército Vermelho e pelo despovoamento das grandes cidades devido ao recrutamento militar de operários e trabalhadores urbanos e à própria 20 escassez de alimentos e produtos básicos, fazendo segmentos da população voltar para o campo em busca de terras para produção. Se Moscou sofreu uma redução de sua população da ordem de 44,5%, em Petrogrado este índice atingiu 57% da população (MEDVEDEV, 1978, p 85-105; CARR, 1981, p. 27-35). Na verdade, além da situação de emergência criada pela guerra civil, a grave situação econômica nas cidades se deveu também ao processo de distribuição das terras estabelecido no campo. Apesar dos bolcheviques terem proclamado a divisão igualitária da terra entre os que nela trabalhavam, prevaleceu a ocupação e distribuição das terras da aristocracia, da burguesia e dos kulaks entre os camponeses médios e pobres pelas comunas rurais e cooperativas, prevalecendo a pequena propriedade individual e a produção de subsistência. O processo de desorganização no abastecimento e na distribuição dos bens favoreceu o comércio clandestino e a ação de especuladores, os chamados “caixeiros-viajantes”, que enriqueciam diante da situação de caos. Isto afetou diretamente o abastecimento das cidades e do Exército Vermelho, motivando medidas centralizadoras e o choque entre a perspectiva do controle social e aquela do controle estatal. Inicialmente os bolcheviques criaram comitês de abastecimento e requisição de alimentos compostos pelos próprios camponeses para abastecer as cidades, mas o fracasso de tais iniciativas determinou o estabelecimento das requisições forçadas, e muitas vezes utilizando-se de métodos violentos, principalmente para abastecer o Exército. Isto reacendeu a velha desconfiança camponesa diante do centralismo estatal e da burocracia. Os próprios sovkoses criados pelo governo ou pelas indústrias estatizadas, sob controle do Comitê Supremo de Economia, para tentar atender o abastecimento dos trabalhadores urbanos famintos estimularam esta desconfiança, na medida em que muitas destas propriedades eram administradas por antigos gerentes agrários, em conformidade com a política que passa a ser adotada pelos bolcheviques de recrutar os quadros administrativos e militares da velha ordem dispostos a colaborar com o novo regime. Nas cidades o governo bolchevique intensifica as medidas de controle estatal da produção e distribuição, esvaziando o controle operário exercido por meio dos soviets, sindicatos e comissões de fábrica e valorizando a administração dos antigos gerentes e especialistas sob supervisão dos comissários bolcheviques. A guerra civil, o fracasso das sucessivas tentativas revolucionárias na Europa Ocidental e o isolamento diplomático da Rússia soviética tornaram a situação ainda mais dramática e caótica, favorecendo a centralização política, o autoritarismo e o esvaziamento dos 21 soviets e, por suposto, da própria perspectiva socialista (CARR, 1981, p, 27-35; NÉRÉ, 1991, p. 425-428). Neste sentido, a Revolução de Outubro de 1917, o Comunismo de Guerra e a Guerra Civil (1918-1921) representam uma revolução política e social compósita, combinando revolução burguesa e revolução socialista. No entanto, a perspectiva socialista presente nas formas de controle operário da produção,de controle camponês da distribuição das terras e na nacionalização da propriedade convivem contraditoriamente com duas perspectivas burguesas. De um lado a perspectiva do capitalismo de Estado, presente no estatismo representado pelo dirigismo administrativo, que submeteu paulatinamente o controle operário à gestão individual dos gerentes indicados pelo governo; pela centralização decisória, cada vez mais intensa no âmbito do partido e do governo; pelo esvaziamento dos soviets como instâncias efetivas de poder, pela submissão dos comitês de fábrica aos sindicatos e destes ao governo e pelo privilegiamento dos “especialistas” no plano da gestão econômica e do comando militar, aprofundando a divisão social do trabalho, a diferenciação salarial e favorecendo a adesão de segmentos burgueses e burocráticos identificados com a velha ordem ao partido e ao novo regime. De outro lado, a perspectiva privatista pequeno-burguesa, representada pela propriedade individual camponesa e artesanal, que garantiu o apoio camponês ao governo bolchevique e a manutenção da aliança operário-camponesa, particularmente diante da ameaça da restauração aristocrático-burguesa representada pelos Exércitos Brancos, mas ao preço de tornar o campo russo ainda mais impermeável à perspectiva socialista. Ora, na medida em que a revolução mundial era derrotada e deslocada do horizonte político, permitindo a salvação do sistema imperialista e abortando a perspectiva de auxilio externo por parte de uma revolução socialista vitoriosa num país desenvolvido; em que o atraso econômico-social mostrou-se mais sólido e renitente que o ideário da mudança social e cultural, cobrando um preço econômico gigantesco; em que o cerco internacional e a guerra civil impunham uma situação dramática, dizimando física e socialmente a classe operária russa e forçando a criação de uma economia de guerra, prevalecem sobre a perspectiva socialista a composição com as forças sociais da velha ordem, o privatismo e as tendências centralizadoras e burocráticas, esvaziando o horizonte socialista da revolução. Neste aspecto desagrega-se uma das condições para o êxito da revolução permanente na ótica de Marx e Engels, qual seja a autonomia política, ideológica e organizativa do proletariado e sua transformação em classe 22 dominante, processo iniciado em 1905, reforçado em 1917 e agora contra-restado pelo estatismo e pelo centralismo decisório. Portanto, a revolução permanente consolidada em Outubro de 1917 começa a ser paralisada em seu próprio bojo, na medida em que a perspectiva socialista conviveu com grandes dificuldades e começou a ser revertida no seu próprio processo de implantação. A NEP (1921-1927) restaura em parte as tendências históricas desencadeadas durante a revolução passiva burguesa, porém sob poder bolchevique, manifestas no estatismo, no privatismo e no kulakismo. O estatismo expresso na propriedade estatal das grandes empresas e no controle estatal sobre a economia privada; o privatismo expresso nas concessões à economia privada e no restabelecimento das relações de mercado; e o kulakismo no estímulo à propriedade privada no campo e à produção para o mercado, que beneficiou prioritariamente os camponeses ricos, kulaks. Assim, durante a NEP a perspectiva socialista é afastada, mesmo que intencionalmente de maneira provisória, em nome da manutenção da aliança operário-camponesa que garantiu a Revolução de Outubro e a vitoria na Guerra Civil. A NEP (Nova Política Econômica) teve como ponto de partida o estabelecimento do imposto em espécie, em março de 1921, para substituir as requisições forçadas no campo e estimular a retomada da produção agrícola e assim aplacar o descontentamento do campesinato com o regime na medida em que a guerra civil era vencida pelo Exército Vermelho e a ameaça de restauração aristocrático-burguesa era afastada. Uma vez pago o imposto em espécie o campesinato podia vender o seu excedente de produção, o que estimulou o restabelecimento da economia de mercado no campo. Na prática, os principais beneficiários desta liberação foram o camponeses ricos, kulaks, pois o camponês pobre continuou a produzir para subsistência. Mais tarde o governo bolchevique liberou o arrendamento das terras e a exploração de mão de obra no campo, favorecendo os kulaks mais uma vez e estimulando seu enriquecimento (CARR, 1981, p. 41-42; NÉRÉ, 1991, p. 428-433). No setor industrial e da economia urbana a NEP favoreceu mais a pequena indústria, produtora de bens de consumo, particularmente aquela localizada na zona rural, do que a grande indústria do setor de bens de produção, para garantir o abastecimento do campo e estimular a produção de excedente agrícola. Também limitou o processo de nacionalização/estatização, devolvendo diversas empresas à iniciativa 23 privada, inclusive aos ex-proprietários; além de abrir a economia russa à investimentos estrangeiros, estimular as práticas comerciais e a busca do lucro. Neste movimento foram beneficiados os antigos “caixeiros-viajantes”, que passaram a explorar o comércio varejista, enquanto o governo procurava controlar o processo de distribuição no atacado. Com o retorno pleno da economia monetária a moeda sofreu um processo de forte desvalorização, gerando inflação e favorecendo ainda mais os comerciantes privados. Entre as empresas estatais o governo estimulou a formação de grandes trustes, reunindo diversas empresas, que também passaram a ser geridas pela perspectiva da lucratividade. Apesar desta tentativa de otimização da produção e de superação da desorganização econômica da época do “Comunismo de Guerra”, a grande indústria continuou estagnada, particularmente durante a chamada “crise da tesoura”, carente de investimentos, de maquinário e de técnicos, com aumento do desemprego e queda salarial. Mesmo depois, quando há uma retomada geral da indústria, o setor que mais se desenvolve ainda é a pequena indústria de bens de consumo, crucial para garantir as trocas com o campo e o abastecimento das cidades. Paralelamente o controle operário da produção era definitivamente enterrado, na medida em que a tendência a entregar a gestão das empresas para os “Gerentes Vermelhos”, recrutados entre os antigos gerentes e proprietários das indústrias, se consolidou, conferindo-lhes uma série de privilégios, salários diferenciados e permitindo-lhes a adoção de métodos administrativos despóticos. Se a proposta de militarização dos sindicatos foi rejeitada, por outro lado os mesmos passaram a ser considerados órgãos auxiliares do Estado, com a função de estimular o aumento da produtividade e a disciplina no trabalho, paralelamente à sua condição de órgão de defesa dos interesses dos trabalhadores. O descontentamento operário não se fez esperar, com a ocorrência de diversas greves e a denúncia por parte de diversos setores de que o governo bolchevique traía a perspectiva socialista da revolução (CARR, 1981, p. 53-60). A liberalidade econômica instituída pela NEP não se fez acompanhar da liberalidade política, ao contrário, o centralismo e o autoritarismo aumentaram, tanto no aparelho de Estado, quanto no interior do partido, com os diversos setores de oposição sofrendo forte processo de repressão e isolamento político, desde a rebelião de Kronstadt, em 1921, até o cerco e eliminação da Oposição Unificada (Trotsky, Zinoviev, Kamenev) em 1926/27. O sucesso da NEP fortaleceu seus defensores nas estruturas de comando, mas particularmente fortaleceu os novos segmentos recrutados 24 para a burocracia, cada vez mais dependentes dos favores e privilégios que lhes eram concedidos pela secretaria geral do partido (idem, p.43-52). Assim, ao restabelecer o avanço da iniciativa privada, mesmo que sob controle estatal, atraindo investimentos de capitalistas nacionais e estrangeiros, os nepmen; fortalecer os kulaks no campo, apesar da manutenção da comuna rural, e restabelecer o livre-mercado, o governo bolchevique solapou o controle operário e o papel político dos soviets, base política para qualquer perspectiva socialista efetiva. É fato que no campo o controle de parte das terras pela comuna rural e pelas cooperativas camponesas continuou, mas o setor mais dinâmico da agricultura era claramente baseado na grande propriedade camponesa e no enriquecimento dos kulaks. Apesar da retomada dos índices de produção para níveis anteriores à Primeira Guerra, o que permitiu a superação relativa da grave escassez de bens e alimentos, o reabastecimento das cidades e certo reequilíbrio econômico, consolidando o poder revolucionário numa situação de isolamento internacional e fracasso da revolução mundial, a NEP desatou novas contradições, antagonizando estatismo e privatismo de maneira crescente e radical. O que reforçou as tendências centralistas e burocráticas já manifestas durante o "Comunismo de Guerra" e impôs o monolitismo político no interior do partido, do governo e do próprio movimento comunista internacional. Neste sentido, a NEP significou uma paralisação (intencionalmente momentânea) na revolução permanente, prevalecendo as duas perspectivas burguesas que assinalamos, do capitalismo de Estado e do privatismo, em detrimento da perspectiva socialista. 3- Uma revolução passiva burocrática (1928-1941). A partir de 1925 o debate sobre os rumos da NEP se instala, fundamentalmente por conta das preocupações de alguns setores do partido com as dificuldades de desenvolvimento da indústria de bens de capital e dos novos problemas com o abastecimento nas cidades. A liberação das práticas de mercado e a abertura à propriedade privada na indústria beneficiaram fundamentalmente o setor de bens de consumo, mantendo o setor de bens de capital, sob predomínio da propriedade estatal, carente de recursos, tecnologia e mesmo maquinário, apesar do grande avanço em termos de concentração e centralização econômica. A retomada do desenvolvimento econômico e o avanço tecnológico nos países capitalistas tornaram-se fonte de preocupação ante a possibilidade de um novo ataque militar, particularmente na 25 conjuntura de rompimento diplomático com a Inglaterra (1927) e isolamento internacional da URSS. Paralelamente, o processo de desvalorização do rublo fez com que os camponeses passassem a estocar o principal ativo de que dispunham, os cereais, ao invés de vendê-los no mercado e trocá-los por uma moeda desvalorizada pela escalada inflacionária, causando nova crise de abastecimento nas cidades (idem, p. 115- 121). Diante deste cenário as demandas por planejamento econômico e apoio à industrialização se intensificam, mesmo entre os defensores da NEP, redefinindo a correlação de forças no interior do partido e do Estado e abrindo caminho para o planejamento estatal, a industrialização acelerada e a “coletivização” forçada do campo. Isto porque como uma das bandeiras da Oposição Unificada (Trotsky, Zinoviev, Kamenev) era a defesa da industrialização e a redução das vantagens dadas aos camponeses, além das críticas ao centralismo decisório e ao burocratismo, enquanto esta não foi derrotada os setores dirigentes vinculados à Stálin contiveram suas críticas à NEP. No entanto, após a derrota definitiva da Oposição Unificada, em 1927, os ataques aos privilégios conferidos aos camponeses se intensificam e a “guerra aos kulaks” é anunciada; além da defesa do planejamento econômico e do apoio à indústria pesada como medidas estrategicamente necessárias à sobrevivência da URSS. A partir daí a aliança entre Stálin e Bukharin em torno da defesa da NEP se rompe progressivamente e este passa a constituir a chamada “Oposição de Direita” (Bukharin, Rikov e Tomsky), derrotada a seguir (idem, p. 108-114). Em função da proposta da industrialização acelerada, que tem como eixo fundamental o apoio integral à indústria de bens de capital, e de guerra aos kulaks e à iniciativa privada no campo, o governo passa a instituir a planificação econômica, com a definição de prioridades, fontes de financiamento e metas de produção e distribuição. O Primeiro Plano Qüinqüenal é aprovado em maio de 1929. Toda a economia passa a girar em torno da priorização maciça da indústria de bens de capital (metalurgia, siderurgia, eletricidade, maquinário), da indústria bélica (aeronáutica, tanques, armas, além da indústria química) e dos setores de infra-estrutura e transportes (auto-estradas, ferrovias, automóveis, caminhões e tratores). Entre 1928 e 1940 enquanto a porcentagem de bens de consumo cai de mais de dois terços da produção total para menos de um quinto, a produção de bens de produção sobe de pouco menos de um terço para mais de 60%, evidenciando não só a prioridade dada à indústria pesada, mas o 26 próprio processo de depressão do consumo das classes trabalhadoras (CALLINICOS, 1992, p. 52). Paralelamente, há uma intensificação da pressão pelo aumento da produtividade, tendo em vista que uma das fontes de financiamento da industrialização era a inversão dos lucros das próprias indústrias. Daí a intensificação da extração da mais-valia, favorecida pela normatização crescente da atividade produtiva, pela política de planejamento estatal dos aumentos salariais, o que implicava no arrocho salarial e no esvaziamento dos sindicatos como instâncias de negociação, porém, em contrapartida, no seu reforço como órgãos de educação e disciplinarização dos trabalhadores no sentido do produtivismo. Considerando-se o índice 100 para os anos de 1927-1928, em 1931 o índice de renda nacional cresce para 140, o índice de produção industrial sobe para 165, enquanto o índice de salários reais na indústria desce para 65,4, evidenciando o processo de arrocho salarial (NÉRE, 1991, p. 436). Em outro dado revelador do processo intensificação da exploração da classe operária com vistas ao financiamento da industrialização acelerada, entre 1928 e 1932 a taxa de mais-valia mais do que quadruplica (idem, p. 45). Além do autofinanciamento pelas próprias indústrias, outras fontes de financiamento definidas pelo plano eram o imposto de renda, o imposto sobre a agricultura, o imposto sobre o consumo (este equivalendo a nada menos que um terço de toda a carga tributária) e o imposto sobre os setores privados ainda remanescentes. Portanto, não apenas os camponeses financiaram a industrialização acelerada, mas como vimos acima principalmente a própria classe operária, cujo crescimento demográfico se amplifica rapidamente após o fim da guerra civil, com a própria industrialização e com o êxodo rural criado no campo pela política de coletivização forçada. Se entre 1928 e 1940 calcula-se uma redução de mais de 10 milhões de habitantes na tendência de evolução demográfica do país, no mesmo período a população urbana cresce de menos de um quinto para um quarto da população total, enquanto o operariado industrial quase triplica (idem, p. 45). Com a planificação ocorre o controle político da distribuição dos produtos e dos preços em geral, além do avanço acelerado da estatização das empresas, principalmente nas grandes empresas, com a propriedade privada tornando-se cada vez mais restrita e limitada às pequenas indústrias até o seu desaparecimento (idem , p. 122- 140). 27 Na agricultura, o governo impõe um processo virulento de “coletivização” da terra, obrigando os camponeses a integrarem suas terras, equipamentose animais aos kolkoses ou aos sovkoses, forçando a abolição da propriedade individual e tirando dos camponeses a capacidade de decidir como e onde produzir e para quem vender. Com toda força e pela força voltam as requisições de cereais e o controle de preços, criando um processo de tensão no campo que opõe o governo soviético ao conjunto do campesinato, não só aos kulaks, abrindo caminho para uma nova guerra civil. Entre 1928 e 1932 em média há uma tendência de queda na produção de alimentos básicos como cereais, batata, carne e leite, enquanto o volume coletado por meio das requisições forçadas aumenta em termos gerais, e em alguns casos quase duplica, como no caso dos cereais, ou mais que triplica, como no caso da batatas (NÉRE, 1992, p. 437). Por conta desta orientação, ao mesmo tempo em que há um processo de aumento da área dos kolkoses e sovkoses, o chamado “gigantismo”, a comuna rural russa, mir, é extinta como instância de organização e deliberação camponesa, eliminando-se assim o último resquício do passado feudal russo (CARR, 1981, p. 141-148). A combinação entre industrialização acelerada e “coletivização” forçada do campo modifica drasticamente a paisagem social da URSS na década de 1930, com o crescimento vertiginoso da população urbana, particularmente do operariado industrial, graças em grande parte ao êxodo rural, ao mesmo tempo em que há uma redução significativa na população geral do país. Esta situação permitia aos trabalhadores do campo e da cidade buscarem melhores condições de vida e trabalho, no entanto, gerava uma situação de instabilidade social que o governo procurou conter restabelecendo a antiga política czarista de passaportes internos e registro compulsório na polícia, aliada à uma legislação repressiva que proibia a mudança de emprego e a falta ao trabalho (CALLINICOS, 1992, p. 45-47). No plano político, as tendências centralizadoras e autoritárias desencadeadas desde a guerra civil se intensificam ainda mais, pois a ascensão de Stálin ao poder significou a vitória definitiva da burocracia sobre os trabalhadores e sobre as tendências que ainda vislumbravam a retomada da perspectiva socialista. Particularmente vitoriosos são os novos quadros recrutados para a burocracia e as funções “especializadas” entre o novo operariado e os recém ingressos no partido. Enquanto há um processo de expurgo dos antigos “especialistas”, quadros da época do czarismo que aderiram ao novo regime, ocorre a ascensão de uma nova geração, que herda os privilégios da antiga e a 28 legitimidade política da origem proletária ou camponesa. E mesmo entre os quadros vitoriosos, que ascenderam ao poder junto com Stálin, os expurgos continuaram durante toda a década de 1930. Após os processos de Moscou, que eliminaram o que restava das oposições na antiga liderança bolchevique (Oposição Unificada e Oposição de Direita), o acerto de contas em favor da autocracia staliniana continuou, atingindo parte dos próprios quadros stalinistas nos aparatos administrativo, repressivo e militar. Quanto mais a perspectiva da guerra se fortalecia, mais Stálin buscou eliminar toda e qualquer alternativa política à sua liderança, mobilizando a máquina do Terror até mesmo contra seus mais próximos colaboradores. Na configuração da nova ordem política destacam- se o centralismo burocrático, que estabeleceu o esvaziamento definitivo das instâncias independentes e autônomas de organização dos trabalhadores, como os soviets e sindicatos; o controle da sociedade civil, que cresceu e se ampliou, mas voltou a ser rigidamente controlada pelo Estado; e uma ideologia legitimadora baseada no culto à personalidade, no nacionalismo russo travestido de teoria do “socialismo num só país” e na transformação do materialismo histórico numa ideologia estatolatra denominada “marxismo-leninismo”, que passou a justificar com ares de cientificidade e inevitabilidade histórica a realpolitik do Estado soviético. Assim, o stalinismo reviveu sob o manto do socialismo as tradições e práticas autocráticas do czarismo russo (CARR, p. 149-156; DEL ROIO, 1998, p. 313-318, DEUTSCHER, 2006, p. 317-407; MONTEFIORE, 2006, p. 179-403; MEDVEDEV e MEDVEDEV, 2006, p. 243-288). A revolução passiva burocrática (1928) identificada com o stalinismo e desencadeada a partir da industrialização acelerada, da “coletivização forçada” no campo e da planificação estatal, significou a vitória definitiva do estatismo sobre o privatismo e o kulakismo com o reforço da antiga autonomia burocrática sobre a sociedade e o dirigismo estatal sobre toda a economia. Neste sentido, o Estado voltou a ser “tudo” e a sociedade civil “primitiva e gelatinosa”, pois se a revolução passiva burocrática significou uma revolução em relação à perspectiva privatista burguesa ao mesmo tempo significou uma contra-revolução em relação à perspectiva proletária e socialista. Na dialética entre revolução e restauração a revolução passiva burocrática aboliu definitivamente a economia de mercado, a propriedade e acumulação privadas, eliminando a burguesia e a pequena burguesia enquanto classes, assim superando a própria revolução democrático-burguesa sob o imperativo da modernização econômica. 29 No entanto, a superação da revolução democrático-burguesa não implicou na retomada da revolução socialista, consumando a revolução permanente, mas na restauração de práticas e processos sociais da época do czarismo, sob a capa ideológica do “socialismo num só país”, configurando assim uma verdadeira contra-revolução em relação à perspectiva socialista original. Em primeiro lugar, é restaurado o cativeiro da mão de obra urbana e rural, com o controle das migrações internas e da própria mobilidade dos trabalhadores no trabalho, enquanto a diferenciação salarial e a desigualdade social entre “especialistas” e trabalhadores manuais é estimulada. O planejamento econômico e a estatização da economia radicalizam o intervencionismo estatal “mercantilista” do Estado czarista, tornando o crescimento econômico um fator de fortalecimento e crescimento do aparato estatal. A própria burocracia emerge como única força política institucionalizada e organizada, limitando a sociedade política ao governo, particularmente à alta cúpula, e estatizando a sociedade civil. Este processo se dá por meio da incorporação do partido comunista no Estado, da extinção dos outros partidos e organizações políticas, do fim dos soviets enquanto organizações independentes e autônomas dos trabalhadores, da extinção da comuna rural e da transformação dos sindicatos em órgãos do Estado para o controle dos trabalhadores e sua submissão à lógica do produtivismo e da super-extração da mais-valia. No plano ideológico há uma ampliação significativa dos aparatos culturais, educacionais e científicos, porém sob controle estrito e censura policial. A serviço de uma política de potência, da legitimação do regime e da submissão das repúblicas e territórios não-russos dentro da URSS à Rússia o velho nacionalismo grão-russo é resgatado, juntamente com valores e tradições do imaginário czarista como a grandeza imperial, o paternalismo do czar, etc. Porém não na sua forma original, mas travestidos na doutrina do “socialismo num só pais”, no “culto à personalidade” do líder infalível, na ideologia da “pátria do socialismo” e no próprio marxismo-leninismo, como doutrina da inevitabilidade histórica do socialismo. Nesta operação foram mobilizados não apenas a literatura, o cinema, a música e as artes, mas a própria historiografia, orientada para ressaltar a continuidade entre a grandeza da Rússia dos Czares e a infalibilidade da URSS de Stálin diante do Ocidente capitalista.
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