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ENTREVISTA COM MMÁÁRRIIOO CCAARRNNEEIIRROO por Lauro Escorel 2 Com o intuito de contribuir para o desenvolvimento das diferentes discussões que têm surgido em nossa lista, tive a idéia de começar uma série de entrevistas com diretores de fotografia que pudessem abordar os temas tratados à partir de uma perspectiva pessoal sem deixar de lado os aspectos técnico e histórico. Tentando dar prosseguimento ao trabalho realizado pelo Carlos Ebert com sua Pequena História da Cinematografia no Brasil, optei por entrevistar Mário Carneiro e Ricardo Aronovich, certo de que a experiência dos dois é exemplar para quem faz ou quer fazer fotografia no Brasil. Tuca Moraes e Carlos Ebert me ajudaram muito nesta empreitada. Ajudaram a localizar o Mário, a formular perguntas, e a digitalizar e editar o texto. Apresentação Mário Carneiro foi responsável pela fotografia de alguns clássicos do cinema brasileiro (Arraial do Cabo, Porto das Caixas, O Padre e a Moça, Capitú, Crônica da Casa Assassinada e mais recentemente de O Viajante). Conheci Mário em 1967, levado ao set de filmagem por Gilberto Santeiro. Mário e Paulo Cesar Saraceni me receberam com muita simpatia e passei a frequentar livremente as filmagens. Fazia algumas fotos e observava tudo. Observava principalmente Mário trabalhando. Como se fosse hoje, vejo-o indicando com um gesto largo ao seu eletricista o efeito de luz que buscava numa filmagem noturna na Casa de Rui Barbosa. Naquele gesto guardado na memória, percebo ainda hoje o lado intangível do nosso ofício. Acompanhando o surgimento de uma atmosfera fotográfica naquele set, comecei a entender um pouco a luz e seus significados. Me lembro do cuidado de Mário com o posicionamento dos refletores. Ele observava o efeito de cada um e eu, tentando ver o que ele via (e sentia), comecei ali a querer ser um dia, também, diretor de fotografia. 3 Mário Carneiro tem uma longa trajetória como pintor, gravador e fotógrafo, além de diretor e montador de cinema. Isto faz dele um personagem único na nossa cinematografia. Nossa conversa tentou refazer este roteiro. Lauro Escorel O começo O cinema pra mim tem uma origem estranha. Porque quando eu tinha uns oito anos e minha irmã uns dez anos, nós ganhamos um aparelho de 9,5 mm1, com vários filminhos. Era de um tio avô meu, tio Júlio Barbosa. E nesse conjunto de filminhos tinha desde Chaplin até o “Gordo e o Magro”. Eram filminhos de 3 a 5 minutos, e nós ficamos encantados com esse brinquedo. Aquilo era um brinquedo, mas a rua inteira ficou ligada naquele cineminha. Minha irmã e eu até pensamos em ganhar um dinheirinho cobrando ingresso pelo cineminha. Mas minha mãe gritava lá de dentro: “Isso não é pra ganhar dinheiro...” Acho que até hoje fiquei marcado por essa frase terrível: “Não é pra ganhar dinheiro”. “Está bom, então vamos brincar de cineminha”. Mas, esse foi o primeiro momento em que eu senti essa possibilidade de você ver e rever o filme. Essa possibilidade tremenda de você poder escolher o filme que você vai gostar. Fazer uma seleção. Então, eu já vi ali a possibilidade de um pré-videozinho que a gente podia ter em casa. 1 Formato amador conhecido como Pathé-Baby. Comercializado a partir de 1923. Usava a proporção 1 : 1.33. 4 Bem, passou-se o tempo e eu não sabia bem o que eu queria. Eu gostava mesmo era de desenhar, pintar e fazer essas coisas. E aí eu fui me encaminhando nesse sentido. Fui fazer arquitetura, porque eu queria ser pintor, mas a família não queria também. Aquela coisa de briga porque eu ficava sem um tostão. Sempre o problema do dinheiro aparecendo no meio. Mas aí, nesses intervalos, apareceu o primeiro cine-clube aqui no Brasil, que era do Luís Alípio de Barros. Era um clube bem simpático, ele gostava de falar aquelas prosopopéias todas. Assistíamos os filmes do Renoir. Tinha muito cinema francês. Não sei como é que ele conseguia aqueles filmes franceses, mas ele procurava dar um encadeamento, e naquela época a cinemateca era um pouco europeizada. Aqueles filmes de vanguarda, os filmes da “Avant- Garde”. Enfim a gente ficou ligado na noção de que cultura era um cinema diferente do cinema que a gente via normalmente. Eu ia ao cinema Ritz2 e via A Ilha dos Mortos Vivos. Voltava com o cabelo em pé. Eram uns filmes terríveis, que me levavam para ver pequenininho. Então, entre esses vários caminhos do cinema, eu fui sentindo que havia várias opções. E aí quando fiz minha primeira viagem para Paris, que já foi em 48, eu já tinha 18 anos. Fiz vestibular pra arquitetura e passei. Então ganhei um ano de Paris como prêmio por ter passado nesse vestibular. Mas, quando eu cheguei lá, o meu interesse foi mudando. Quer dizer; eu ia ver os museus, essa coisa toda, mas de noite eu ia para a Cinemateca. Encontrei lá com o Sergio Milliet, que era muito ligado a todas as artes, e muito ligado também ao cinema, e que me levou logo para ver filmes de Avant-Garde, Bunuel, Dali. A Cinemateca Francesa estava voltando depois da guerra. Isso em que ano, Mário? Em 48... 49. Eu já tinha 18 anos, então já era 49. E aí, todo dia praticamente eu ia para a Cinemateca. Eu via os filmes, mas via assim com um 2 Cinema situado na Cinelândia, no Rio de Janeiro. 5 olhar mais de artista plástico mesmo, reparando na fotografia. Eu gostava das imagens. Aquilo mexia muito comigo. Eu ficava olhando aquele negócio... Depois, quando voltei para ao Brasil, já estava funcionando o cine-clube do Plínio Sussekind da Rocha, lá na Faculdade de Filosofia. E o Plínio tinha os filmes do Eisenstein, que tinha arrumado ou alugado no partido3. Tinha O Encouraçado Potemkin, Alexandre Nevski, tinha Outubro. Uma boa série de filmes para dar uma base pra gente. E aí então ele tinha aquela famosa cópia do Limite4. E ficava naquela: “É a última vez que vai ser visto Limite! “Venham ver, pois vai se perder se não for recuperado”. Esse encontro foi muito importante porque uniu a primeira vertente do pessoal do cinema novo. Tinha ali já o Joaquim Pedro. Tinha o Leon Hirszman. Estava começando a aparecer a turma que fazia engenharia. Se ligando e ao mesmo tempo já pensando em fazer cinema. Mas ainda era uma coisa mesmo muito cineclubista. Aí você voltou para a Faculdade de Arquitetura? Aí voltei para a Arquitetura, fiquei mais dois anos e fui trabalhar com o Oscar Niemeyer. Aí fiquei doente. Fiquei muito doente. Peguei aquele para- tifo de Ouro Preto. Peguei esse puta para-tifo, misturado com mononucleose. 3 Partido Comunista Brasileiro. PCB. 6 Meu pai disse: “Você está com câncer de sangue” Começaram a me dar remédios terríveis, tipo cloromicetina. Foi um inferno. Achei que ia morrer. Mas aí uma voz de Deus disse assim: “Não vai morrer porra nenhuma. Liga pra seu pai e vai embora para a Europa. Liguei para papai e disse: “Arruma um jeito de eu ir praí porque aqui está muito ruim”. Aí viajamos eu e mamãe. Chegamos e verificou-se que realmente o que eu tinha era uma mistura dessas duas coisas, e eu fui para a montanha. A primeira câmera Antes disso, minha irmã no meu aniversário, quando eu tinha feito 23 anos, em 53, viu essa famosa camerazinha Paillard-Bolex, quer dizer: famosa pra mim, porque aquilo foi um “abre-alas” danado. Ela disse: “Papai, compra isso pro Mário, porque eu sei que é isso que ele vai fazer!”. Era muito cara, custava mil e tantos dólares. Era muito dinheiro naquela época. Papai conseguiu pagar em váriasvezes, e eu peguei aquela câmera, e o manual dela, li várias vezes e essa foi a minha escola de cinema verdadeira. Aquela câmera fazia de tudo... Você podia fazer todos os efeitos, fade-in, fade-out, anda para 4 Limite (1931), filme experimental dirigido por Mário Peixoto e fotografado por Edgar Brazil. 7 atrás, anda para a frente, velocidades variáveis Era uma verdadeira “trucazinha”. E tinha três objetivas. E eu fui fazendo aqueles filmes amadores, brincadeiras. Ai, quando fui para as montanhas na Suíça fiz então o primeiro filme mais caprichadinho. Chamava-se A Boneca. A BONECA Esse filme eu fiz lá, ajudado pelo Jorge Mori, um escritor japonês, muito meu amigo. Foi comigo lá para a montanha, pois eu precisava de alguém para ir comigo, então foi o Mori, que também estava precisando de ares e aí fizemos esse filme, que era a história de uma boneca que cai de um barquinho dentro de um rio. Era um filme assim bem formalista, mas com uma historinha. Eu me lembrava sempre daquela história do soldadinho de chumbo, que você botava o soldadinho dentro de um barco, o barco caia na água e as várias aventuras que aconteciam com este soldadinho. As minhas aventuras são puramente visuais: Que riozinhos que a boneca ia passando. Aí fazia um ângulo de tal jeito, chegava na câmera de uma maneira. Depois montei esse material todo. Acabava com essa boneca cheia d'água dentro do rosto. Aí peguei uma luva de militar, se chamava “Bok”. “Bok” tinha uma calça de... Como é o nome dessa cor que eles usam? Caqui. E aquela mão agarrava a boneca assim. Então você via os olhos da boneca pingando água. Um choro terrível. Ele atirava ela sem piedade, botava o pé em cima e o pai então dizia assim: Oh! Meu filho não faça uma coisa dessa”. (Risos e comentário). Eu tenho aí a maioria desses filmes. Aliás eu tenho até que ver como eles estão. Mas, eles resistem bem. Eram Kodachrome, mas tem preto e branco também. A última vez que vi, estavam bons e isso não faz muito tempo. Mas o fato é que aí o Vinícius de Morais já estava trabalhando com meu pai, viu esse tal filme da boneca e disse pra mim assim: “Olha Mário, não é que eu não goste do que você pinta ou do que você faz em gravura, tudo isso é muito bom. Mas eu acho que o que você tem que fazer é cinema 8 mesmo. Pelo que eu vi aí. Poucos filmes que eu tenho visto têm essa coisa que me deu uma emoção. E quando um filme dá uma emoção não se pode jogar fora”. E a mesma coisa eu ouvi de pessoas estranhas. De Maneco Vargas, filho do Getúlio, que namorava uma amiga da minha irmã. Ele foi ver o filme e ficou com os olhos cheios d'água. Maneco Vargas? É. Aí A Boneca ficou sendo o meu “hit”. O pessoal todo viu aquele filme e então disseram: “O Mário vai fazer fotografia, o primeiro filme que aparecer o Mário vai fazer a fotografia”. FORMAÇÃO - Arquitetura / Pintura / Gravura / Fotografia Você então já tinha voltado da Europa? Já tinha voltado em 53, quando comecei a fazer aqueles filminhos, aí voltei de novo. Primeiro fui com dezoito anos e passei um ano. Voltei, fiz o primeiro e segundo ano da escola, fiquei doente e fiquei mais um ano lá. Levei sete anos para me formar por causa dessa doença. E ficou nesse negócio aí, até que me formei em arquitetura. Voltei para a Europa e passei um ano lá fazendo urbanismo. Mas, na verdade, eu não fazia nada de urbanismo. As aulas eram horríveis, eu ia lá só para dar uma olhada geral e depois ia ver meus filmes na Cinemateca. Fazia cópias lá no núcleo também. Eu era muito aplicado nessa parte assim pictórica. Eu já estava tendo aulas com o Iberê Camargo, que eu conheci na França em 48. Ele estava lá com um prêmio de arte. E ele gostou de mim e tal. Eu era meio desorientado e me lembro que ele disse: “Quando você chegar lá no Brasil, se você quiser aprender mesmo eu te ensino. Mas você não pode atrasar nem um minuto, se você atrasar um dia, um minuto, a porta vai estar fechada. Eu sei que você é meio bagunceiro...” 9 Eu nunca me atrasei nem um minuto. Chegava lá antes e esperava ele chegar. 7 horas da manhã. Tinha aula das 7 ao meio dia, aí saía e ia para a escola. De uma às sete eu ficava na escola. Eu fiz dois cursos. Um de pintura com o Iberê, que incluía também gravura, Iberê também tinha sido aluno de André Lot, tinha sido aluno do De Chirico, então ele tinha uma cultura muito grande nessa parte. Além de ter sido aluno do Guignard aqui no Rio. Então ele tinha uma grande vontade de experimentar as coisas todas, de aprender tudo. E eu então o ajudava a fazer gravuras. Fiquei uma espécie de aprendiz, na maneira renascentista. Tinha que lixar as placas. Só não tinha que amassar pigmento, porque já tinha tinta pronta. Mas fazíamos uma porção de coisas. Eu realmente ajudava muito e assim fui aprendendo e fazendo minhas gravuras. Quando voltei em 58, eu trouxe já uma boa série de gravuras da Europa. Então meu caminho estava aberto para fazer gravuras. Muitas. Fui para a Bienal de São Paulo, já com três gravuras grandes. Foi um bom começo de carreira. E tinha o escritório de arquitetura junto com Homero Leite (filho de um amigo que morreu no ano passado), que era o primeiro aluno da minha turma e primeiro aluno de arquitetura. Super inteligente, preparado, sempre trabalhou com Lúcio Costa. E eu era um dos piores alunos de arquitetura porque vivia flanando. Achava tudo engraçado. Fazia as provas, tinha um jeito, mas não levava aquilo a sério. Aquilo para mim era: “Preciso desse diploma, vamos lá”. Mas o Homero falava: “Você é o cara com quem eu quero ter meu escritório de arquitetura”. “Mas logo eu Homero, que não sei nada de Arquitetura”. Por isso mesmo. Você não sabe mas tem um treco em você que eu acho engraçado. Eu prefiro abrir com você”. Aí abrimos um escritório de arquitetura que durou uns oito anos. Fizemos casas e muitas lojas. Tivemos muitos projetos e levamos muito trambique. Arquitetura estava na moda. Todo mundo achava ótimo você fazer o projeto, mas depois na hora da grana o cara se arrancava e você ficava a ver navios. Mas isso daí me deu uma boa base. Esse período todo formou meu olhar. Formou uma visão 10 mais apurada em vários níveis, em várias tecnologias. Porque gravura é uma coisa complicada, tecnicamente complicada. Depois a pintura que eu queria fazer. Fazer aquelas cópias, diante do modelo. Pra copiar Veronese. Tá lá o quadro e as pessoas todas olhando o que você está fazendo. Então também é uma boa prova. Uma boa comprovação para o seu estado de nervos, porque se você ficar nervoso não sai nada. Não é? Então, isso tudo formou assim esse meu “background” do olhar, e foi muito útil para mim, para a minha geração, porque aí eu comecei também a fazer fotografia. Quer dizer, fotografias de still. Então fiz laboratórios de P&B, inventei também umas gravuras feitas de plaquinhas de vidro usando o ampliador. Fazia muitas caricaturas, algumas até de sacanagem mesmo. Fazia, ampliava e guardava. Fazia também as minhas fotografias, depois ampliava também, que era uma forma de desenvolver. E assim foi indo até que apareceu a chance de fazer o Arraial do Cabo. ARRAIAL DO CABO Eu já tinha 29 anos a essa altura. Quer dizer: em termos de cinema eu já não era mais criança. Hoje em dia se começa a fazer filmes com dezoito 11 anos. Eu já estava formado nas outras coisas, tinha o escritório de arquitetura. Tranqüilamente podia continuar a minha vida de pintor e gravador, mas quando aconteceu esse negócio de fazer o Arraial do Cabo, Paulo CésarSaraceni me ligou e nós fomos lá pro Arraial do Cabo. Eu, quando vi o lugar, fui tomado por esse estado vertiginoso que é você começar realmente a entrar na vida profissional. Tinha a câmera do Sérgio Montanha, que era uma Cameflex que ele tinha comprado do Fellini, com uma óptica Cooke maravilhosa. Quando peguei aquela câmera eu pensei: “Pô, mas isso aqui agora é uma beleza! Estava acostumado com a Paillard, com aquela correção de paralaxe, com a corda de no máximo três minutos. Isso aí vai ser um chuá! Ai o Montanha me ensinou como é que funcionava aquele negócio e eu aprendi. Todos os dias tinha que desmontar, limpar, porque lá era areia pra todo o lado. E aí fiz esse outro curso que foi fazer o Arraial do Cabo, já fazendo a câmera, fazendo luz um pouquinho (a gente tinha uma maleta de luz, rebatedores e tal...) E aí a gente toca a subir e descer. Eu carregava a câmera e tudo o mais por aí afora. Nessa época eu tinha uma energia incrível, não é? Aí, papai dizia assim: “Mas meu filho, você sabe onde você está se metendo? O cinema aqui no Brasil é uma loucura! Não tem nenhum futuro!” Terminamos de rodar e aí o Paulo César viajou, veio a tal bolsa lá da Itália, e eu fiquei acabando a montagem do Arraial do Cabo. Ficou com 25 minutos e eu achei que estava comprido, muito grande. Aí ficou aquela coisa: “Pelo amor de Deus! Corta, não corta.... Foi lançado pelo Alberto Shatovsky5. Lançou no Cine Alvorada e por acaso tinha um outro filme de barco antes. As pessoas ficaram furiosas e começaram a jogar coisas na tela. “Mário, estão arrebentando o cinema, venha apanhar o Arraial do Cabo por favor”. Fui lá peguei as latas do Arraial do Cabo, cópia única, original. Aí pensei: “Vou tirar uma cópia 16mm e vou remontar isso aqui em casa mesmo”. Peguei o meu projetorzinho e passei o filme de 20 e tantos minutos para dezoito, e botei a 5 Crítico de cinema e assistente de direção de Alex Vianny em Rua sem Sol (1954). 12 música toda também. Mexi em toda a parte de música. Você assina a direção junto não é, Mário? Assinamos juntos. Ficou como co-realização. Por eu ter feito fotografia, roteiro, depois fiz a montagem, botei a música. Co-realização até para o meu lado ficar um pouquinho mais gordo, já que eu tive que botar uma graninha para acabar tudo isso aí. E o filme foi bancado por vocês mesmos? Não. Isso foi feito pela Saga Filmes, que na época já estava na mão de Joaquim Pedro e de Sérgio Montanha. Depois foi vendida pro Leon e pro Marcos Farias. Antes tinha sido do Gerson Tavares, que já tinha até feito um filme e ganho este mesmo prêmio que a gente ganhou lá em Bilbao, o “Urso de Ouro”. Mas não sei, o filme dele passou em brancas nuvens. Talvez porque não estava na hora do movimento. Daí começaram a aparecer as pessoas. Chegou o Glauber da Bahia, Nelson Pereira já tinha feito os dois filmes dele. Aquela porta lá da Lider, na rua Arthur Ramos, já existia como um centro de pessoas que queriam fazer cinema. E começou a chegar gente de todo lado: da Paraíba, o João Ramiro6, outro de não sei onde. Quando você via, já tinha lá aquela mesinha de tomar chope e todo mundo batendo papo de cinema. Leon Hirszman... O Joaquim dizia: “Leon, você tem que acabar com essa mania de virar engenheiro. Você tem que fazer cinema. Você não pode ter outra profissão. Cinema é cinema. Joga fora teu diploma, entrega pro teu pai! E o Leon ficava vermelho: “Mas eu não posso fazer isso, eu não posso”. Acabou fazendo... Tem histórias engraçadas... Bem, mas o fato é que depois Arraial do Cabo foi lá para Bilbao, ganhou prêmio lá em Bilbao. E aí atrás desse prêmio, ganhou mais outros cinco prêmios. Ganhou quase todos os prêmios para 6 João Ramiro Mello. [Guinefort] 13 documentário na Europa. O Jean Rouch fazia parte de um dos júris. Escreveu um belo artigo sobre o filme. E com isso as portas foram se abrindo. Então, depois disso, ficou difícil para mim voltar atrás, pensar no meu escritório de arquitetura, porque eu já estava cooptado. Imediatamente o Joaquim me chamou para fazer Couro de Gato. Você entrou meio como co-realizador. Como é que a fotografia se afirmou. Você já tinha um projeto fotográfico? Você tinha alguma coisa ou era mais fazer cinema? Não, porque de fato eu acho que meu dado visual era mais forte do que as outras coisas todas que eu fazia. Embora eu tenha montado o filme, musicado o filme (eu levava jeito para essas coisas). Mas o que eu gostava mesmo, no fundo, era de pegar a câmera, enquadrar, fazer os movimentos, fazer isso e aquilo. Eu acho que isso era a minha vocação mais forte. Eu me lembro até depois, com o Paulo César, quando fomos fazer Porto das Caixas, ele disse assim para mim: “Mas esse a gente não vai mais assinar junto não. Você vai ser só o fotógrafo”. Eu ia passando pela rua e tinha uma linha de uma pipa que um menino tinha jogado e ficou presa no poste, e aquele fio me prendeu pelo pescoço. Foi como se eu tivesse levado uma navalhada. Tivesse sido traído e levado uma navalhada que eu não vi o que era. Na hora em que o Paulo te disse isso? Na hora exata em que o Paulo me disse isso, eu fiquei preso pelo pescoço naquele negócio. Ai eu disse: “Mas meu Deus, porque? Porque que não pode assinar junto?” “Não, porque cinema tem uma hierarquia. Eu quero dirigir. Você se mete demais na direção. Você também quer dirigir. Você passa por cima. Você faz do seu jeito...” “Então tá legal”. Eu fui assimilando o golpe e tal. Mais ainda discuti várias vezes esse problema da autoria dentro do cinema, que para mim sempre foi uma coisa meio misteriosa. Fulano é o diretor do filme! Mas, as vezes, o diretor é quem menos faz. Já vi vários filmes 14 em que o diretor não atuava. Co-autoria Mário, sem querer te interromper, mas essa era uma das perguntas que eu queria te fazer. A Imago, a associação dos fotógrafos europeus, está colocando essa questão da co-autoria. Os fotógrafos europeus estão pleiteando o status de co-autores e, consequentemente, direitos autorais e tudo o mais. O que você pensa sobre isso? Isso é uma coisa interessante pra gente. Eu já tive muita discussão, inclusive com o Cláudio, primo do Sérgio Saraceni, que é um dos advogados que lidam com direitos autorais. E os direitos autorais em cinema não incluem os direitos da imagem. O que me parecia um absurdo total. Eu dizia: “Mas escuta, o cinema começou mudo, começou com a imagem, era só imagem, imagem que se move: isso era o cinema. Depois vieram as outras coisas. Agora, por que o autor da história é um co-autor e tem direitos autorais, o diretor tem e o autor da imagem não tem? “Ah! Mas aí é o corpo técnico”. Como corpo técnico? Eu sou um artista! Eu me considero um artista. E acho que todos os grandes fotógrafos são grandes artistas de uma arte complicadíssima. Porque você fazer fotografia para cinema não é coisa fácil, que você possa chamar um sujeito e dizer: “Não, ele entende de fotografia e vai fazer o filme”. Não... ele tem que ter outra sensibilidade. Inclusive você é muito co-autor do filme. Eu usava exatamente esta expressão. Até propus numas reuniões, daquelas que as pessoas ficavam com ódio, o que eu queria: “Então, vamos fazer o cinema catedral, já que todo mundo aqui é meio comunista, meio de esquerda, ninguém assina. Vamos fazer os filmes sem assinatura, como são as catedrais”. “Mário, você está doido, não sei o que...” Aí, ficou essa piada: O “filme catedral”, de Mário Carneiro. Que eram os filmes sem autoria. Aí eu disse: “Vocês são engraçados, quanto mais vocês querem filmes para o povo, falando de umanova 15 organização social, mais vocês autoram esses filmes através de assinatura: Um filme escrito e dirigido, não sei mas o quê. E bota: produzido, escrito e dirigido... Então tem uma ego-trip aí terrível, misturada com as boas intenções. Mas então você acha que esta reivindicação dos europeus está na hora? A reivindicação já chega até com bastante atraso. Mas nos Estados Unidos rejeitam bravamente. Os estúdios não querem nem ouvir falar desse assunto. Claro, eu imagino porquê. Autoria é uma coisa que criaria mais uma classe para receber melhores direitos autorais. Então é uma coisa que eles resolvem com salário e pronto. Por semana ou por mês, por isso ou por aquilo. E agora os roteiristas nos Estados Unidos. Acho que há dois meses atrás, os roteiristas conseguiram passar a receber pontos percentuais. É uma vitória extraordinária. Se um dia chover na nossa horta... Isso aí é uma boa, porque acho que a fotografia dentro do cinema é uma coisa fundamental. Não vejo como é que o Limite poderia ter sido feito por outra pessoa que não o Edgar Brazil. Se tivesse o Mário Peixoto e um outro fotógrafo qualquer não teria sido Limite. Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. Você chegou a conhecer o Edgar? Não. Conheci o Mário Peixoto. O Edgar morreu cedo, não? Morreu moço num acidente. Parece que quebrou o pescoço. 16 PORTO DAS CAIXAS Bem, vamos passar para outro período. Já que estamos falando sobre a história do cinema brasileiro, vamos falar um pouco dos nomes que estavam em evidência nesse momento que eu comecei a fazer filmes. O primeiro longa que eu fiz, que foi Porto das Caixas, foi considerado um absurdo. “Como é que Mário Carneiro vai sair de um documentário para fazer um filme de ficção, nunca teve escola!” Aí o Tony Rabatoni ficava furioso, porque ele vinha de uma tradição lá da Vera Cruz. Então havia essa “escola” da Vera Cruz, que depois virou Maristela7. Tinha o Chick Fowle que era um grande nome, um grande fotógrafo mesmo. Mas quando a gente fez Arraial do Cabo, aí o Paulo César encontrou com o Chick lá na Líder. O Chick Fowle disse. “Eu sei que você está fazendo um filme aí, o seu primeiro filme. Mas primeiro filme não pode ser feito com qualquer um não. Você tem que ter um fotógrafo para fazer isso”. Aí o Paulo César disse: “Mas eu estou com um cara que é bom”. “Deixa ver”. Pegou o rolo de filme e foi desenrolando na enroladeira. Depois que rodou tudo, disse: “É, o cara é bom”. Aí colocou de novo na enroladeira e não falou mais nada. Aí o Alberto Cavalcante falou a mesma coisa para ele também: “Não pode estar trabalhando sem um bom fotógrafo. Tem que conhecer uma pessoa com experiência”. Aí fez o mesmo que o Chick e disse: “Ah, mas esse cara é bom mesmo”. Aí eu fiquei já mais tranqüilo. Eu tinha uma noção, pelas coisas que eu tinha visto, que estava bom. E o Sérgio Montanha, que era o dono da câmera, acompanhava um pouco essa qualidade e dizia assim: “Eu estou achando que está ficando muito é bom”. A gente usou filtro laranja, eu entendia bastante do uso de filtros, pela fotografias de still que eu fazia. Sabia o que eu queria daqueles contrastes de céu, pesados. Tinha que valorizar os brancos. Porque Arraial do Cabo tem brancos de vários tipos: Branco de areia, branco de mar, branco de camisa, branco de pele, tudo 17 isso definido como ficou. Ficou um trabalho bom. Acho que ficou legal. Agora, quando começou o Porto das Caixas a coisa pesou pro meu lado, porque eu nunca tinha filmado interiores. Os interiores eram considerados uma coisa complicada. De fato, esse interior era complicado porque a gente resolveu fazer um filme realista, pelo menos do ponto de vista das locações. Era uma casinha mínima mesmo, a casinha onde o Sérgio, os três moravam com a Irma Alvarez. Era o Paulo Padilha, não é? É, o Paulo Padilha e a Irma Alvarez. Era tudo muito pequenininho. Ele as vezes fazia assim com a mão e mexia na luz. Só tinha um eletricista que era o Lídio, não é? Já tinha aquela perna ruim. Jogava no gol, ele defendia a bola e fazia dois tempos. Depois pegava a bola e jogava. E tinha também umas pessoas engraçadas. Tinha o Miéle fazendo a produção. O filme era meio desarticulado. O Miéle fazendo a produção era engraçado... Enfim, era um filme assim meio “ação entre amigos”, mas tinha uma pessoa fazendo essa produção, esqueci o nome dele agora. Ele tinha uma loja da Kodak, ali na Rua Araújo Porto Alegre, então ele resolveu entrar no negócio de cinema porque estava com a grana e achava muito interessante ter mulheres bonitas por perto, a Irma Alvarez e tal. Ele enchia a boca e aparecia com uns carrões lá, levava os amigos para ver as filmagens. E pela primeira vez eu tive um assistente, porque aí botei Fernando Duarte como meu assistente, Fernando era fotógrafo do jornal Última Hora. Porque em Arraial do Cabo eu não tinha assistente. Fazia foco, fazia tudo. E aí de repente comentavam: “Não, você tem que ter um assistente para mudar o filme e tudo o mais”. Eu até reagia: “Como vou ter um assistente, vai ficar pesando. Aquele negócio todo”. Não, a gente pega o Fernando... Aí, tudo bem: um assistente. Serginho Sanz também 7 A afirmação é incorreta, já que a Vera Cruz e a Maristela foram praticamente contemporâneas. A Vera Cruz transformou-se mais tarde, para contornar sua 18 fazia assistência para o Paulo César. Era uma equipe bastante divertida e boa. Tinha o José Henrique Bello, que fazia cenografia. Mas o fato é que saía uma fotografia com uma certa novidade, uma novidade que hoje o Jabor falaria: “Chega de novidades do precário. Chega da poesia do precário, queremos o avanço tecnológico”. Evidentemente, aquele filme não é um filme de avanço tecnológico, era um filme que utilizava com sensibilidade uma precariedade que havia. Inexorável pelos custos, pela minha falta de experiência, mas com uma sensibilidade muito grande que veio do meu aprendizado que pouca gente tinha, se é que alguém tinha naquela época passado por essa formação. Mas você tinha consciência dessa precariedade? Você não se sentia limitado por ela? Eu não me sentia tão limitado. Quer dizer, me sentia limitado quando fazia os planos noturnos, às vezes planos maiores. Eu dizia: “Preciso de mais luz!” Queria botar uma luz ali pra caixa d'água. Aí tinha só um contraluz lá onde caía a água. E aí queria botar luz nas estações. Aí subia o eletricista e botava uma foto-flood em cima. Enfim, nós tínhamos dois refletores de 5.000 W. Depois daí o gerador já começava a gemer, se pusesse um pouquinho mais de luz. Era uma coisa difícil. Então, tinha que concentrar. Eu usava muito a luz que vinha do próprio trem. E aí o Padilha passava na frente do trem, com risco mesmo. Mas o fato é que ficou uma coisa com uma certa pobreza, mas os elementos fundamentais e mais precisos eu sempre conseguia botar funcionando. Isso dava um certo resultado minimalístico, vamos dizer assim. Sem nenhum abuso, pelo contrário, uma coisa assim mais ressecada. E tinha a ver com aquele tom do lugar, enfim com a própria pobreza. Tudo era iluminado com luz de lampião. De maneira que, para isso aí, a luz que nós tínhamos era mais ou menos suficiente – embora, de fato, eu deveria ter feito com muito mais luz. Se fosse num estúdio teria posto uma luz geral para falência, na Cinematográfica Brasil Filme. [Guinefort] 19 poder ter um diafragmamais fechado, porque eu acabei trabalhando quase todo o filme nos interiores com 2.8. Então vira e mexe ficava com muito pouca profundidade de campo. Embora eu usasse Tri-X em alguns momentos (usava Double-X também). O TRI-X era nos momentos mais negros, mais terríveis. Mas o fato é que quando o filme foi visto, havia um jogo de claro e escuro no filme. De zonas negras, de zonas brancas e muita contra-luz, que vinha da minha linguagem de gravador e também muito por influência do Goeldi. Eu então ia fazer um filme com o Paulo César sobre o Goeldi. Eu adorava o Goeldi. Então, o filme tem mais influência da xilogravura do Goeldi do que da minha própria gravura sobre metal, que é menos contrastada normalmente. Mas, o fato é que eu conseguia essas entradas e essas saídas, esses ires e vires de brancos e pretos, que depois no filme do Joaquim Pedro, Negro Amor de Rendas Brancas8, eu consegui fazer com mais recursos. Ficou melhor nesse filme, mas talvez não tão emocionante como em alguns momentos de Porto das Caixas. Eu acho que Porto das Caixas tem a coisa do primeiro filme que é uma coisa que você não sabe, que é uma magia. Uma magia que vem da descoberta, que você não sabe o que é. Acho que Deus ajuda. Qualquer coisa assim... Eu tenho essa relação com São Bernardo. Que é um belíssimo filme também. Mas tem umas coisas que são defeitos. Depois a gente passa a ver defeito nas qualidades. Mas no momento você fica meio... Eu via muito defeito. Mais do que todo o mundo. Mas, les jeux sont faits... Vamos em frente. Não há o que fazer. Mas o fato é que criou-se até uma certa mitologia em torno do filme. Depois diziam: “Escuta, quer dizer que você trabalhou só com esse tanto de luz. Só com isso e conseguiu fazer?” “Consegui e custou muito barato”. Então 8 Título do poema de Carlos Drummond de Andrade em que se baseia o filme O Padre e a Moça (Joaquim Pedro de Andrade, 1965). Figura também como título 20 essa tal economia do possível, do precário, acabou mais ou menos sendo assimilada pela estética do cinema novo. A estética da fome. Que era muito o fazer do jeito que desse para fazer. O Nelson Pereira foi fazer Vidas Secas mais ou menos nos mesmos princípios. Eu conversei muito com o Luiz Carlos Barreto e ele disse: “Ah, mas aí estoura os planos”. Eu disse: “Mas eu não estourei não. Mas, se quiser, estoura que vai ficar muito bom”. Eu virei uma espécie assim de... O Barreto se aconselhou com você para o Vidas Secas? Se aconselhou. Mas o Barreto nega isso se você falar isso com ele hoje. Vai dizer: “O quê? Eu conversei com o Mário lá no bar uma bobagem qualquer. Depois fui lá e disse pro Rosa9 tudo como ele tinha que fazer. A luz do Cinema Novo vem de Vidas Secas. Fui eu que fiz!” Eu sei muito bem como são as coisas... Vocês tinham visto filmes do neo-realismo também? Filme neo-realista eu vi lá na Europa, na época. Mas eu não sentia grande atração pela fotografia neo-realista. O Hélio Silva, por exemplo, que fazia os filmes do Nelson, se baseava muito na fotografia do neo-realismo. O Hélio sempre gostou muito desses meus primeiros filmes. Não só o Hélio, eu estive lá com o Michel Brault, que fazia os filmes com o Jean Rouch, encontrei com ele lá em Moscou, eu estava lá junto com o Joaquim Pedro, a gente levou o Garrincha e acabou até esquecendo o Garrincha, que ficou no Rio. Foi um bode essa viagem para a URSS. Terrível... Mas o fato é que aí eu conheci o Michel Brault e ele estava falando dos filmes brasileiros e disse: “Tem um filme brasileiro que eu adorei. Um tal de Porto das Caixas. Aí eu complementar do filme. 9 José Rosa. Sobrinho de Edgar Brazil. Câmera e diretor de fotografia. Dividiu com Luiz Carlos Barreto a fotografia de Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963). 21 disse: “Eu fiz a fotografia”. Ele disse: “Meus parabéns! Adorei aquela fotografia”. Aí eu até saí com o Michel Brault para ver o último filme do Jean Rouch, La Chasse au Lion, morria o cara no meio. Parava o filme. Enfim Porto das Caixas marcou, assim como Arraial do Cabo marcou também um lado documental mais elaborado. Todo mundo comentou: “Mas, é um filme muito formal. Mário Carneiro é um formalista. Ele resolve tudo no enquadramento, no olho. Porque tem um olho de gravador, de pintor... Mas isso não é cinema, não é uma solução cinematográfica, isso é uma solução estética que vem de outras artes e se aplica ao cinema”. Quem tinha esse argumento? Ah, esse argumento? Por exemplo, houve um grande debate sobre Arraial do Cabo, do nosso amigo francês, Jean-Claude Bernardet10. Atacou violentamente. Disse que era um filme contra o desenvolvimento das indústrias. Em Arraial do Cabo os moradores não gostavam era de uma fábrica de álcool que fora mal localizada, e quase acabou com a pesca. Disse também que o filme era formalista: “Mas o Mário pega aquela câmera e nem olha, vai fazendo assim... É porque ele tem um olho muito bem educado nas artes plásticas, e a coisa já sai assim de uma certa maneira formalizada porque é a maneira dele ver. E é uma maneira que ele limpa o quadro. Tem tanta coisa pra ser mostrada e ele mostra exatamente, precisamente”. Agora, isso não quer dizer que se interrompe o filme para requintar um enquadramento. Isso nunca existiu. Foi sempre aqui, ali e acolá. Então, eu disse assim: “Olha, isso aí deve ser possivelmente um defeito meu”. Mas é uma grande qualidade, porque eu acho que todo fotógrafo tem que ter uma boa formação visual do que veio antes e do que veio depois. Porque a fotografia tem muito a ver com a gramática visual. Se você não sabe as leis da composição, não é só da pintura não, do próprio quadro de cinema, do movimento. Quem vem antes, quem 22 vem depois, quem aparece. Essa compartimentação dos atores dentro do quadro, isso fica assim muito qualquer coisa. Eu errei muito nos meus primeiros filmes. Eram completamente alucinantes, errantes. E antes de começar a entender que a câmera deve ficar parada, ou pelo menos com o mínimo de movimento possível para não ficar uma coisa muito louca. Pois há uma tendência para você se “embarrocar” de cara. Então esse negócio pelo menos, eu rapidamente fui aprendendo e acho que isso aí me ajudou muito na minha formação. Embora, eu admito que haja outras pessoas que não precisam disso, que podem ter isso naturalmente, ou não precisam passar por todo esse vai-e-vem de arquitetura, de pintura e não sei mais o que. Mas eu acho que é muito interessante se houver um curso básico para uma formação visual das artes anteriores ao cinema, porque isso ajuda muito e tudo que ajuda é muito bom. Mas esse teu lado de artista, de pintor, você teve que brigar muito para impor aos filmes, você encontrou muita resistência? Olha, por um lado as pessoas ficavam um pouco temerosas. Joaquim Pedro, por exemplo, quando a gente fez O Padre e a Moça, estava muito interessado na direção de atores. E não sei porque, ele já tinha feito uma experiência antes com os irmãos Santos Pereira, Revolução em Vila Rica11, um pouco estranha. Mas Joaquim tinha ainda um pouco essa mitologia do cinema de estúdio, do rosto do ator iluminado, então quando eu usava aquelas silhuetas e achava que o clima geral do filme dava margem: o Mário Lago conversando em contra-luz com a Helena Ignês, ele ficava meio assim: “Mas escuta; eu quero ver a cara, porque eu estudei tanto esse olhar”. “Você vai ver o olhar, vai estar aqui, só que você vai ver esse olhar como um olhar de gato à noite.Você vai sentir esse olhar”. Então, sempre houve uma certa dificuldade 10 Na realidade, o crítico e roterista é Belga. 11 O título correto é Rebelião em Vila Rica (1958). [Guinefort] 23 entre essa visão, vamos chamar assim, pictórica, que achava que essa organização do quadro era superior a uma visão dividida do close, da aproximação, com muita luz de rosto e essa coisa toda. Eu preferia pensar assim; o clima é esse, a luz é essa, vamos manter. Senão essa seqüência vai ficar nesse meio-tom de luz... As vezes a gente precisava discutir. Eu me lembro de uma seqüência que Joaquim marcou em que Helena Ignês estava com o Mário lá na cama e falava com ele não sei o quê e depois dizia assim: “Tenho uma surpresa para você”. Então ela se levantava e ia até um baú, um daqueles baús antigos, abria o baú e de dentro saía um vestido de noiva. Quando ela se levantava, ficava uma luz lindíssima. Eu aí vi o ensaio. Lindíssimo! Mas ele disse: “Mas eu não quero que a camera vá pra ela... tem que ficar no rosto do Mário Lago”. “Mas Joaquim!?! Não, não, depois a gente faz uma cobertura, e não sei o que mais”. Eu comecei a fazer o plano, mas fui me encantando com a figura da Helena se movendo. Daqui a pouco cadê o Mário Lago? Eu larguei o Mário Lago e vinha com a Helena no quadro. Ela levantou o vestido e tal. E aí ficou todo mundo assim comentando: “Pô! Você errou o plano! Vamos refazer”. Então falei: “Joaquim, vem cá dar uma olhadinha. Fica aqui. Segura a câmera e faz o movimento pra ver se você tem coragem de cortar esse plano. Eu não consegui”. E não foi por uma “rebeldia” não. Foi porque a coisa era tão forte plasticamente que não me deixava interromper. Aí Joaquim viu e disse: “É verdade... Olha, não vou nem fazer essa cobertura pois não vai dar para usar”. Assim, muita coisa foi sendo feita na medida em que eu mostrava um enquadramento e então era aprovado por uma questão de sensibilidade. O Joaquim tinha muita sensibilidade visual. Ele sabia o que era bom em matéria de cinema. E se aparecia um achado, ele não discutia. Embora tenha levado vinte cinco anos para achar que a fotografia de O Padre e a Moça era boa... Não acredito! Mas te disse? 24 Na época, ele disse: “Você fez uma fotografia que não tinha nada a ver com o que eu queria”. Aí passou-se um tempo, a gente desistiu de fazer outros filmes juntos e então, vinte e cinco anos depois, teve aquele festival de Roterdã. Levaram O Padre e a Moça e foi um sucesso extraordinário. As pessoas aplaudiam durante a projeção. E aí Joaquim foi se dando conta de que aquela fotografia era muito forte. Então aí ele foi lá em casa. Chegou de noite, bateu na porta com uma garrafinha de vodca debaixo do braço. “Vamos tomar uma vodca. Meus parabéns! É uma bela fotografia a que você fez pro Padre e a Moça. E eu: “Joaquim, você levou vinte e cinco anos pra me dizer isso?!? “Você me desculpa, mas só agora é que me dei conta”. Achei isso tão genial. Pô, isso ai é fantástico! Realmente. Ele escreveu isso, ele descreve isso. Devo ter por aí numa introduçãozinha. Você acha que é sua melhor fotografia em preto e branco? Não sei se é a melhor. Acho que Porto das Caixas tem momentos que são extraordinários. Mas, não sei. Capitú, já é uma fotografia muito mais elaborada. Uma fotografia que o Ricardo Aronovich foi lá em casa pra dizer que era uma das melhores fotografias que ele já tinha visto em preto e branco. Ficou abraçado comigo e eu fiquei muito emocionado. Ricardo, você sabe, não é de fazer muito rapapé não. Ele é muito seco. Ele é muito amistoso mas ele guarda uma distância razoável. De maneira que eu fiquei um pouco contaminado por essa solidariedade que as pessoas demonstravam com relação aos filmes, e perdi um pouco o meu espírito crítico. Hoje eu não sei. Eu gosto deles todos assim com um certo afastamento, eu acho que cada um tem seus defeitos e suas qualidades. Acho que aquele conjunto valeu por um período em o cinema tinha esse poder encantatório da redescoberta do Brasil. A gente estava retomando essas raízes brasileiras, que já existiam desde Humberto Mauro, mas que estavam muito abandonadas do ponto de vista cinematográfico. Sobretudo essas intenções estéticas estavam muito presentes 25 na minha fotografia. Capitú foi um filme em que, você lembra, eu freqüentava as filmagens.. Eu lembro de ficar olhando você trabalhando a luz e quando eu olho teus filmes eu percebo claramente como você foi dominando os instrumentos, digamos assim. Como a visão do pintor foi sendo depurada. Quer dizer, vem vindo e vai dominando. O que eu sempre acho curioso na história da nossa fotografia é que em toda a história da Vera Cruz, por exemplo, a coisa considerada acadêmica, que deu Rabatoni, Chick Fowle, etc, também dominavam esses mesmos instrumentos. Então, eu acho que de alguma maneira houve uma convergência. Eu acho que esse negócio todo de eu ter sido um auto-didata, isso foi útil nos primeiros momentos, porque eu não sentia a falta de match (continuidade fotográfica entre os diversos planos de uma mesma sequência). Eu não sabia o que significava o match. RICARDO ARONOVICH Depois chegou o Ricardo Aronovich aqui. Na minha opinião, ele foi uma das presenças mais importantes aqui no Brasil. Ele e o Arne Sucksdorf eram duas presenças muito marcantes para o nosso aprimoramento tecnológico. Colocaram exigências a nível de laboratório. A revelação com gamma fixa. Uma série de coisas que eles deram e a gente foi ganhando. Eu, por não ter feito escola de cinema, essas coisas vinham caindo do céu. Cada informação nova para mim chovia na minha horta, e eu transformava imediatamente numa coisa útil para mim. Eu nunca fui contra nenhuma dessas coisas. Eu pegava a lista do Aronovich e mostrava: “Olha aqui. Olha o que ele pede para fazer um filme. Está vendo?” Eu fiz a cenografia de O 26 Homem que Comprou o Mundo12 mais para poder trabalhar com o Ricardo. Pra ver como é que ele trabalhava. Mas não fiquei com ele muito tempo não. Fiquei só quinze dias, e estava sempre fazendo outra cenografia em outro lugar longe da filmagem. Então eu só vi umas quatro ou cinco vezes o Ricardo trabalhando. Mas vi ele usando, naquela época, “lã de vidro” como difusor, refletores em externas. Umas coisas que eu já sabia que se usava, mas que ele usando era diferente, pois eu via porque que ele estava usando. Como ele fotometrava, que critérios tinha para expor o negativo, porque usava aquele diafragma e não um outro. Essa presença do Ricardo aqui foi da maior importância porque, em primeiro lugar, ele fez uma escola de cinema. Os argentinos tinham de fato uma escola muito séria que dava uma formação técnica muito boa. Por outro lado, eu tinha uma formação que ele não tinha. Especificamente desenvolvida quando eu fazia gravura. Me lembro que a mulher dele, a Helena, dizia assim: “Vê se ensina gravura pro Ricardo, que ele tem uma mão meio canhestra. Ele é uma pessoa um pouco disléxica”. “Mas como? Ele faz câmeras tão maravilhosas”. “Ah, mas isso é só um lado. Se ele puder fazer gravura fará muito bem a ele”. Ele olhou as gravuras (eu até dei uma gravura minha para ele), mas ele não quis fazer não. Então ficava sempre aquele negócio da alta tecnologia que o Ricardo representava, e eu representando uma estética, vamos dizer, pictórica. Crescendo dentro dessa tecnologia que eu ia aprendendo com ele. Ele gostou muito também do Porto das Caixas. Aí depois ele me viu fazendo (eu acho até que você estava lá com o Eduardo e o Jabor) um carrinhodentro do Mosteiro de São Bento. Aí eu estava fazendo aquele carrinho mas não tinha nenhum assistente. Eu mesmo fazia o foco. Ele disse: “Ah, agora eu estou entendendo why your films are always slightly blur13”. (risos) Se você mesmo faz o foco, nunca vai sair perfeito... Eu respondi: “É que não dá 12 Filme dirigido em 1968, por Eduardo Coutinho. 13 “...porque os seus filmes são sempre um pouco borrados”. [Guinefort] 27 nem pra ter duas pessoas aqui em cima”. Mas ele tinha razão. Mas muitos filmes foram feitos assim. Era um talento, na época, você fazer seu próprio foco. Dib fazia isso com a maior tranqüilidade. De trás pra frente, de frente pra trás sem nenhum problema. Você nunca filmou com o Dib como câmera, não é? No ano passado, fizemos um documentário no qual eu fiz a luz e o Dib a câmera. Um primeiro encontro? Não, a gente já tinha feito também o do Domingos de Oliveira. O Edu Coração de Ouro. Foi metade o Dib, metade eu. Mas é impressionante. Você nunca sabe o que é de um e o que é do outro. Ficou com uma unidade incrível o filme. Eu olhei como é que ele tinha feito, a gente conversava. Porque o Dib foi sempre assim pouco pretensioso e com o jogo muito aberto. Se ele queria perguntar alguma coisa, perguntava. Não tinha aquela coisa barretiana de estar sempre escondendo uma cartinha... Depois ele vai ler isso aqui e vai querer me matar... A gente não mostra pra ele. Mas a verdade é que tem algumas pessoas que tem mais ambição e outras menos. São mais... Enfim, você pode conversar qualquer coisa sem que a pessoa se ofenda, ou ache que você está... Esse caso especifico do Barreto eu vou esclarecer logo. O Barreto era um excelente fotógrafo da revista O Cruzeiro, mas ele não tinha experiência de câmera de cinema. Quando a gente foi fazer Garrincha, Alegria do Povo, Joaquim resolveu botar ele para fazer uma das câmeras. “Olha Barreto, é muito simples pra quem faz fotografia. Você vai 28 subir na marquise, se apoiar, e só fazer câmera. Ela vai ficar fixa”. Aí ele começou a fazer câmera. Com o Zé Medeiros foi a mesma coisa. Eu estava numa praia fazendo um filme do Fernando Cony Campos14. O Zé Medeiros começou a dar uma peruada na câmera e eu disse: “Zé, entra aqui e faz. Você vai ver que não tem nenhum problema maior”. Ele ficou encantado, ficou mexendo de um lado para o outro também. Quer dizer, eram pessoas que já eram grandes fotógrafos, mas não tinham experiência de cinema. De modo que foi só um empurrãozinho... Não fui professor do Barreto nem do Zé Medeiros. Eles teriam saído sozinhos fazendo aquilo. Mas o fato é que existia essa coisa de bater um papinho comigo porque achavam que alguma experiência eu já tinha. Então, sempre era útil. E aí quando chegou o Ricardo Aronovich foi realmente muito importante, sobretudo para a relação do fotógrafo com a produção. Não é? O nível da exigência da sua lista de material de iluminação. “Por que agora vocês todos estão com mania de rico? Todo o mundo virou Ricardo Aronovich aqui?” Como se só o Ricardo tivesse direito a fazer boa fotografia, porque tinha direito a arco e não sei o que mais. Bom, isso até hoje a gente escuta. Esse papo não mudou. Esse papo continua o mesmo. “Pô, mas não dá para você fazer com um pouquinho menos? Tem três... dois mil... Aquela ranhetice com o aluguel do material. Enfim, aí o Tony Rabatoni, aliás eu gostava muito daquele filme que ele fez, acho que era do Roberto Farias, aquele em que o Reginaldo apareceu. Depois me disseram que era do Roberto Farias, mas não era não15. Depois ele fez o filme do Ruy Guerra também, Os Cafajestes. 14 Provavelmente Morte em Três Tempos, de 1964. 15 O filme em questão é Selva Trágica (1964), de Roberto Farias. A fotografia entretanto não é do Tony Rabatoni, mas sim do José Rosa.* *É provável que se trate, na verdade, do filme Cidade Ameaçada, de 1960 – já que Mário Carneiro menciona um filme anterior a Os Cafajestes, que é de 1962. [Guinefort] 29 E fez Barravento, também. É. Em Barravento a gente sente exatamente a diferença que tem entre uma pessoa que tem uma formação mais clássica de fotografia de cinema. O uso de rebatedores, o contraste reduzido entre luz e sombra. O uso de óleo na pele dos negros pra dar brilho umas coisas assim que ficam muito artificiais hoje em dia quando você vê. Dá uma impressão de que você está vendo teatro amador. Tem um lado que ficou muito mais amadorístico do que os amadores. O que eu acho engraçado é que as novas gerações estão incorporando todas as coisas de novo. Estão fazendo uma volta. Está voltando tudo de novo. Eles adoram as coisas brilhantes. Eu acho que isso aí faz parte um pouco também dessa vontade de utilizar todos os recursos existentes. E de você lutar contra a maneira de ver anterior: se era assim, vamos fazer assado. Então, é uma certa reação contra o que se fazia. Mas o Cinema Novo tinha isso um pouco também. É, mas não com relação aos filmes do Humberto Mauro, por exemplo, que tinham uma fotografia muito simples, muito eficiente. Mesmo os fotografados pelo Edgar Brazil. Zequinha Mauro sempre foi um fotógrafo muito simples, muito eficiente também. O Zequinha Mauro está vivo ainda? Está. Outro dia mesmo eu estive lá no escritório dele. Ele mantém aquele escritório, vai lá de vez em quando. Eu encontrava com ele lá na Embrafilme, na Fundação. Ele ainda vai lá sempre. Tem até um rapaz que está fazendo um filme sobre ele. Zequinha é uma figura muito importante nesse período dessa 30 transição. Porque o Zequinha fez os últimos filmes do Mauro. Fez muitos filmes para o INC16. Então, ele é um pouco o elo perdido entre a velha geração que passou pelos estúdios mas não ficou muito marcada. O filme colorido Deixa eu fazer uma pergunta pra provocar você: Qual foi a mudança para o pintor Mário Carneiro com a chegada do filme colorido? Eu comecei a usar a cor em 1953. Filmei a cores no Boneca. E pelo fato de já fazer pintura, a cor esteve sempre muito presente na minha vida. Desde os dezesseis anos que eu pintava uns quadrinhos aí. Já expunha no Salão de Arte Moderna, e era muito ligado à cor. Ia com o Iberê Camargo, em 48, olhar os museus, essa coisa toda. Eu sempre tive mais familiaridade com a cor do que a maioria das pessoas da minha geração. Mas quando eu peguei para fazer filmes em cor, evidentemente que a minha cultura cinematográfica maior ainda era em preto e branco. Eu achava a cor um pouco ostensiva demais no cinema. Um hiper-realismo desagradável. Um excesso de informações visuais. O Joaquim achava muita graça e dizia assim: “Será que eles não conhecem a lei fundamental de que quanto maior for o contraste de valor menor deve ser o contraste de cor? Isso é uma lei que qualquer pintor usa”. Você vê Matisse que é uma pintura no plano, não tem luz e sombra, aí as cores são todas chapadas. Você pode usar verde puro, muito cinza sempre no meio e aquilo ali segura porque não tem essa linguagem do branco e preto como Rembrandt usou, que é uma coisa mais de iluminação. As cores vão caindo e aí vai tendendo a ser quase uma coisa monocromática, com acentos de azul, de frios e quentes, mas tudo assim rebaixado. É muito difícil você pegar um pintor como El Greco que usa cores elevadas e contraste de valor. Mas isso é uma 16 Instituto Nacional do Cinema. Orgão federal criado em 1956 e subordinado ao 31 pintura mística. A luz sai de dentro. Não é uma pintura iluminada, é uma pintura iluminante, digamos assim. E eu andei olhando muitoestes pintores místicos. Vermeer, por exemplo, é um dos maiores iluminadores de todos os tempos. Mas no Vermeer a gente pensa que aquela luz é inventada. Não... o Vermeer desenhava exatamente o que ele via. A luz é uma maravilha, e ele já fazia uma pintura pré-impressionista. Então a gente tem que tomar muito cuidado com as cores. Ele conhecia essa lei fundamental, então quando ele abre a janela e entra aquela luz, tem uma lógica. O vestido está perfeitamente tonado. Enfim, era tudo mais ou menos organizado para não haver essa briga de contraste de cor e de contraste de valor dentro da imagem, que é o que provoca esse mal estar na maioria dos filmes americanos. Aqueles primeiros filmes americanos que usavam mais uma tecnologia do que uma técnica de já fotografar usando a cor. Agora isso mudou. Agora são primorosos. Mas ainda com uma tendência à direção de arte virar uma espécie de “recriação histórica”. Usar roupas ou então imitar pinturas não é. Pinturas em movimento. Não é bem por aí... Eu diria que o uso da cor ainda não foi muito bem desenvolvido no cinema. Tem muita coisa bastante interessante para se fazer ainda se a pessoa realmente ficar pensando em termos de cor dentro do cinema. Evidentemente eu nunca tive essa oportunidade. Eu fiz A Casa Assassinada17, que acho que ficou bom. A gente limitou muito também os campos. Era quase só o interior de casa. Tinha o Ferdy Carneiro, que era pintor também e foi um bom diretor de arte. E a gente evitou pelo menos cair nesses “abismos”. Não cair nessas bobagens do excesso. Depois o excesso aparece. Aparece a Carmem Miranda e eles falam que é “proposital”. Que queriam fazer uma “blague”. Uma espécie de piada visual sobre o nosso mau gosto. Então você usa os dois contrastes. Bota ela com um vestido verde, uma coisa vermelha, um turbante amarelo e Ministério da Educação e Cultura. 32 faz o kitsch, e aí bota um contraste violento de luz, e pronto: você tem uma estética kitsch. Inclusive o Almodóvar usava isso nos primeiros filmes dele. Eu não vi o último ainda, Carne Tremula18. Preciso ver... Mas enfim, eu acho que a cor dentro do cinema tem um campo todo a ser explorado. Mas eu nunca tive medo não. Mas então a sua transição do preto e branco para o colorido foi tranqüila? Foi, porque praticamente eu já estava fazendo isso antes. Então, não me assustei não. Eu era muito capaz de dizer: “Escuta, isso aqui não vai dar certo, por isso assim, assado”. Mas eu sabia porque eu estava dizendo aquilo. Eu agia mais como um diretor de arte antes de começar a fazer a fotografia. Eu tinha que fazer esse controle para poder dar, pra não sair uma “coisa”. Até hoje a gente tem que fazer... 17 Adaptação do romance homônimo de Lúcio Cardoso, dirigida em 1970 por Paulo César Saraceni. 18 1998. Fotografia de Affonso Beato. 33 É, tem que fazer porque senão o sujeito fica sem cabeça, a roupa some no fundo, acontece o diabo. Vão acontecer milhares de coisas, e até o último momento você tem que estar de olho. Agora realmente eu acho que ainda está um pouco aquém a utilização que o cinema pode fazer com o uso da cor. Eu conversei muito isso com o Glauber lá na França, da última vez que encontrei com ele. A gente parou em frente de um desses cartazes de cinemão, era uma mulher falando com um homem, um meio debruçado sobre o outro. O Glauber olhou aquilo e disse: “Vê se pode isso ainda ser o cinema de hoje. Uma imagem dessa. Mário Carneiro, está na hora de você fazer um filme usando a sua experiência de artista, de pintor. Tem que desvincular esse negócio, tem que partir para uma outra jogada”. E, de fato, quando ele fez o último filme dele A Idade da Terra, ele me chamou para fazer o filme. Aí Pedrinho19 estava lá em casa, eu estava lançando Gordos e Magros, na época, então não podia aceitar e sugeri: “Está aqui o Pedrinho, que é muito bom nesse negócio de filtro”. Ele ficou muito impressionado porque eu tirei o filtro para fazer o Di Cavalcanti. Não tinha luz nenhuma. Eu disse: “Vai ficar meio roxo, mas eu vou tirar, vai ficar ótimo. Vou fazer sem o 85”. Eu usei só uma lente 28, bem aberto. Ele disse: “Pô! Do cacete!” Aquelas coisas do Glauber, não é... Então ele me dizia isso: “Você tem que criar um outro tipo de imagem”. Agora, quando eu vejo a computação... A computação te dá praticamente uma paleta completa para você fazer o que você quiser da imagem. O problema do cinema é que ele é todo ainda movido por um realismo literário. Ele é tirado de livros, é tirado de histórias. O que rege o cinema é a história. A história tem que ser bem contada, ter começo meio e fim. Mas essa noção estética propriamente, que vem da cor, do uso da cor, é uma coisa que o mundo de hoje está um pouco afastado. Se usa muito em comercial de uma maneira assim um pouco primária. Para chamar a atenção. 19 Pedro de Moraes. Diretor de Fotografia carioca. Fotografou Gordos e Magros, dirigido por Mário em 1976, e também Os inconfidentes (1972) e Guerra conjugal 34 Mas não para uma coisa requintada. Existem alguns cineastas – por exemplo, aquele russo Tarkovski. É um excelente colorista nos seus filmes. Faz filmes muito belos do ponto de vista estético. Embora a Rússia tenha toda aquela tradição neo-realista terrível. Mas ele sabia das coisas. Outro, o que fez aquela trilogia, o Kieslovski. Eu gosto daqueles filmes dele. São três fotógrafos diferentes. Cada um é um fotógrafo. É, eu gosto muito também das coisas que o Nykvist... O uso de cor do Bergman. Geralmente são pessoas que trabalham com contraste baixo, daí eles terem um bom resultado de cor. Porque o sol mais baixo no horizonte já te permite um uso de cor mais abrangente sem você ficar muito preocupado. Aqui, por exemplo, você sai no sol brasileiro, você está com 8 diafragmas entre a luz e a sombra! É um inferno. E isso não vai mudar, nosso clima é esse20. Se quiser amansar isso, fazer fotografia tipo Almendros. Final de tarde. Duas horas de tarde, duas horas de manhã... No meio do dia faz uns planinhos de interior. Acaba ficando uma coisa cansativa, porque parece que só há duas iluminações aqui na terra: Quando o sol nasce e quando o sol se põe. Eu gosto de também ousar. Luzes bem violentas. Quando eu fiz A Batalha dos Guararapes dava aquela sombra negra mesmo. E você tem que assumir a sombra negra, porque a razão da derrota dos holandeses foi a roupa inadequada. Um absurdo. No verão de Pernambuco eles usando roupa de flanela com um chapelão e armadura. Depois, no filme, não tinha outra opção, porque não tínhamos luz bastante para compensar e eles se moviam o tempo todo. Depois, as marcações do Paulo Thiago... Acontecia que com a fumaça muito forte, de repente você via dois portugueses brigando. “Cadê os Holandeses? Os holandeses foram pra lá...” Não era fácil. Aconteciam coisas do arco da velha... Mas isso não tem nada a ver com a cor. A cor é um assunto (1973), ambos de Joaquim Pedro de Andrade. 35 que ainda precisa ser aprofundado. Eu acho que a luz brasileira, ela tem esse alto contraste evidentemente. O Chico Bóia, quando fez aquela novela Pantanal na Rede Manchete21, foi a primeira vez que deram liberdade para um diretor de fotografiadizer aonde ele queria que fosse filmado o plano. O plano era sempre o mesmo: as mulheres vão cair n'água nuas. Então olha; o sol vai se pôr ali. Você bota a câmera aqui e vai dar um contra-luz ali. As duas estão muito bonitinhas, a gente primeiro filma aqui, depois filma debaixo dágua... Sempre a mesma coisa. Mas essa luz deu um efeito assim de Brasil. Então, para o pessoal que vê novela da Globo, tem toda aquela cenografia, a luz fica muito “estúdio” demais. Depois eles vão para o exterior e não ousam. Há sempre uma grande preponderância de qualquer coisa, menos da imagem. Tudo é superior à imagem. Lá na Globo o som é superior à imagem. Se o som quiser botar boom na frente da sua luz você é obrigado a tirar a luz. Você está fazendo sombra no rosto do ator. Eu dei dois pontapés no cara do som e mudei logo a lei. “Agora a lei mudou! Pô! Seu Mário é maluco! É. Sou maluco, mas não vai botar essa vara em cima da minha luz não, porque entra no pé!”. Não é possível: com tanto lugar pra botar essa vara. Bota por baixo. Se vira. Não é assim não... Mas essas hierarquias, essas coisas atrasam a vida também. Você sente que a televisão veio do rádio. Não deixou de ser um instrumento auditivo. A imagem entra como uma ilustração mais ou menos elaborada. Mas o que comanda tudo é a grande gritaria da briga pelo poder entre dois mau caráter terríveis. Hoje não sai disso. Então o destino está muito ingrato para quem faz novela, porque realmente o campo de ação é muito pequeno. 20 Mário Carneiro se enganava... Nosso clima está mudando, não necessariamente para melhor. [Guinefort] 21 1990. [Guinefort] 36 Fotografando dentro da realidade de produção do cinema brasileiro Mas Mário, você acha que você abriu mão de muitas coisas nos filmes, coisas que você queria ter feito e não fez? A produção te atrapalhou muito? Porque eu li uma coisa do Joaquim, em algum lugar, dizendo que você tinha uma consciência muito grande da importância dos filmes e que você de bom grado abria mão e isso teria te prejudicado em alguns momentos. Não, Eu fiz filmes as vezes com recursos abaixo do mínimo indispensável. Houve filmes em que no último plano não havia mais luz. Tinha só uma cruzeta de luz. Aí o diretor chorava. Eu não vou dizer quem era, mas todo mundo sabe, foi o Domingos de Oliveira em Todas as Mulheres do Mundo. “Pô! Eu tenho que filmar isso. Então vamos fingir que é uma festa de aniversário, a gente acende o bolo e essa cruzeta vai entrar na mão de alguém pra tirar fotografias e eu vou filmando atrás, porque é a única maneira de se fazer isso”. Aí o Eli Azeredo, que vivia se catando para falar mal, disse que eu não tinha me dado conta da importância do filme do Domingos de Oliveira, que tinha maltratado a imagem. Que o último plano tinha sido feito de uma maneira descuidada. Ah! Teve disso no jornal é? Teve. Evidentemente com relação a alguns filmes eu dizia: “Bom, esse filme não vai poder ter uma qualidade assim... Mas, se é muito importante você fazer, vamos fazer assim. Não vai ganhar prêmio nenhum. Vai ficar aí, mas você tem alguma coisa para mostrar. Para tentar melhorar no próximo”. Eu cheguei a fazer alguns filmes que me desagradaram fazer. Mas eu achava mais desagradável dizer não do que sofrer uns arranhões na minha, sei lá... na minha trajetória, digamos assim. Depois, eu acho que sempre existe uma maneira de você botar aquele plano com um enquadramento que você evite 80% dos defeitos e fica uma coisa razoável. Não vai ficar uma maravilha, mas fica razoável. Então, baseado um pouco nessa mania de grandeza, que talvez 37 eu tenha, um excesso de auto-confiança ou qualquer coisa assim, eu cometi erros graves. Alguns que eu dizia assim: “Pô, como é que deixei passar isso aí?” Mas é assim. Se não, não tinha filme. Depois, quando você começa, você dá um dedo e o cara pega a mão. Esse é que é o problema grave quando você decide afrouxar um pouco. Se profissionalmente você abriu uma brecha, essa brecha vira um rombo. E as pessoas não têm respeito. O mesmo respeito que você está tendo com ele, não tem reciprocidade. Então eles preferem te derrubar e irem os dois a pique. Depois que eu aprendi isso eu nunca mais deixei passar não. Isso durou um periodozinho da minha vida em que houve um cansaço natural do cinema novo com relação a mim. Eles passaram a chamar outros fotógrafos, para mudar um pouco o olhar inclusive, o que é uma coisa perfeitamente razoável. E eu passei também a fazer filmes menos interessantes, com pessoas menos dotadas para fazer cinema, mas que tinham seus filmes para fazer. Eu precisava ganhar a minha vida, e vamos lá. E aí o respeito e a educação não eram os mesmos. E não tinham cultura também, para estar julgando o erro que estavam cometendo. Isso existe quando você tem algum critério. Não é? Se você não tem critério nenhum, tanto faz. Às vezes você afunda... E O Viajante? Como é que foi O Viajante? Eu não vi o filme. Foi legal? De Porto das Caixas ao Viajante, é uma trilogia, não é? É uma trilogia: Porto das Caixas, A Casa Assassinada e O Viajante. Não sei se chega a ser uma trilogia porque cada filme foi feito com diferença de dez anos, com relação ao outro. Quer dizer: O Porto das Caixas foi feito em 62, A Casa Assassinada foi em 70, oito anos depois, e esse agora, vinte anos22. Então, muita coisa mudou. Mas o Lúcio Cardoso continua o mesmo. O Lúcio Cardoso que é uma maneira de ser hiper-dramatizada, e uma poesia um pouco desvairada, um pouco operística. São sempre figuras muito fora de um 38 realismo. Eu acho que nesse filme a Marília Pera está muito bem. Tem coisas que eu acho menos boas. Mas aí Paulo César é uma pessoa que tem um grande talento para mover, para fazer movimento. Não é? E ao mesmo tempo ele falha em algumas bobagens, porque ele tem uma generosidade talvez excessiva. Quer botar um amigo, quer botar não sei o quê. Então ele presta umas homenagens. E as vezes isso diminui o filme sem você perceber. E depois perde a importância. Alguma pergunta mais? A luz brasileira Eu fiquei animado com a coisa da luz brasileira. A gente estava falando de cor antes também. Vamos tentar desenvolver um pouco mais. Porque a luz e a cor brasileira elas têm uma especificidade brasileira. Elas têm um alto-contraste de cor. Porque geralmente a paisagem brasileira tem cor de barro avermelhado e as árvores verdes. Então, é um contraste de cor de duas primárias, vermelha e verde. Isso, somado a esse contraste de valor que vai até oito diafragmas, cria assim momentos em que fica muito difícil você domar um pouco essa imagem. Então você tem que assumir um pouco essa imagem. Como é que você assume essa imagem? Alguns pintores brasileiros – por exemplo, o grande paisagista brasileiro, que foi muito tempo diretor da Escola de Belas Artes. Esqueci o nome dele23. Ele não foge da raia. Tem aquelas paisagens de Petrópolis. Mas ele sempre procurou lugares onde a luz era mais amena. Petrópolis, Correias. E procurou também iluminações matinais, ou então entardeceres. Poucos pintores foram para a luz violentíssima como o Pancetti. Pancetti ia para a praia do Arraial do Cabo pintar. Mas a luz do Pancetti já era 22 Na verdade, quase 30. [Guinefort] 23 Provavelmente o entrevistado esteja se referindo a João Batista da Costa (1865- 1926). 39 completamente assim chapada. Ele não tinha primeiros planos. Algumasfigurinhas aqui e ali. Então ele fazia a pintura no plano, embora com profundidades dadas por uns cinzas nas areias que são extraordinários, nos azuis do mares, e estamos conversados. Mas não há essa sensação de uma profundidade dada pelo volume. É uma pintura praticamente bidimensional. Muito pouco primeiro plano. Quando ele usa primeiros planos, são os quadros de quando ele estava em Campos do Jordão. Sem sol. Então ele bota uma árvore em primeiro plano, mas ele evita sempre essa ilusão. Mas essa foi sempre uma difícil de encarar, não é? Essa luz, com toda a cultura européia... Essa luz todo mundo evitou. Inclusive Manet24, quando esteve aqui no Brasil. Ele passou por aqui. Tentou pintar, fez algumas coisas, algumas aquarelas, mas dizia: “Esse é um país muito difícil de ser pintado, eu não consigo pegar essa luz daqui”. Você não acha que o preto e branco consegue reproduzir mais este tipo de luz do que o colorido? Exatamente. Porque o alto contraste sendo branco e preto o que acontece? Resulta muito melhor quando você dá uma prioridade ao contraste de luz, de valor. Então você fica com a oportunidade de ter branco e preto, e você deixa a cor como se fosse um complemento: as vezes mais adequado, as vezes menos. Mas a sua estrutura de quadro fica sendo regida pelo contraste de luz e sombra. É muito melhor esse resultado do que você tentar amansar um pouco as sombras botando rebatedor, botando arco. Acaba que você suja esses pretos, mas não consegue dar aquela transparência da luminosidade européia, que é uma luz suave. Então você suja uma coisa e não consegue utilizá-la direito. Ao passo que quando você enfrenta de fato: “Não, eu vou 40 fazer assim: Qual é o maior contraste que tem aqui? É o céu. Vou fazer a minha exposição pelo céu. 22, pô 32! Quem está muito no escuro? Vou jogar um pouquinho de luz ali, acolá e pronto”. Dá um resultado muito melhor do que você deixar o céu ficar branco, lavado, enfim, qualquer coisa. Eu lembro que tive essa discussão com você, Mário, há trinta anos atrás. E eu defendendo o oposto: “Pô, Mário, eu tenho que ficar com o azul do céu? Não dá para estourar um pouquinho?” Essa conversa foi na praia. Na praia de Ipanema. Não, por causa desse problema. Porque quando você vai fazer Vidas Secas você tem que fazer aquilo mesmo. Você tem que expor pelo rosto do ator e deixar o céu estourar. Porque é o sol que está mandando. Expondo pelo céu, você pode até clarear um pouco essa imagem. Ela está toda exposta. Você tem esses valores escuros, esses valores claros. Mas se você der uma clareadinha ela não vai ficar com aquele granulado. Embora pareça até, você está sub-expondo. Você está fazendo uma sub- exposição quase que geral e só esta expondo pelo céu e pelas luzes mais altas. Mas agüenta melhor do que se você tentar expor pela pele. Bom, aí tem que ver aonde entram os atores. Porque quando tem ator, aí você tem realmente que “castigar” os atores. Eu me lembro, quando fui fazer o Memorial de Maria Moura lá na Globo, o Manga chegou lá e queria fazer um plano em que ela sai debaixo de um alpendre com aquele chapéu de cangaceira, e pega a luz no rosto. E aquilo vai indo pra um plano mais próximo dela. É um movimento de carrinho. Eu fiz um outro carrinho com um Maxi-Brute de 12. O carrinho vai indo, o Maxi-Brute vai indo... E aí o Manga foi ficando apoplético e gritava assim: “É o plano da minha vida! Estou sentindo ela sair. Mais um pouco. E eu disse: “Ô Manga, esse Maxi-Brute já deve estar queimando a Glória Pires”. “Deixa queimar a Glória Pires. Está lá! É o plano que eu quero! Obrigado Glorinha, obrigado!” Ela ficou com essas doze lâmpadas de 1000 watts a um 24 Edouard Manet veio ao Brasil em 1850, embarcado como grumete. 41 metro do rosto dela. Ficou queimada como se tivesse pegado um sol firmíssimo. Eu disse: “Você me desculpe, mas com tanto detalhe fico enlouquecido...” Mas você tem que fazer certas maluquices mesmo, porque senão... Eu fiz um filme lá no Nordeste com o Marcus Moura25. A gente tinha esse problema terrível. Eles queriam nos interiores que pelas janelas você visse as praias. Todo o exterior perfeitamente exposto. Aí então eu tive que levar HMI de 8000 Watts para o interior. Arrebentava mesmo. O interior ficava cheio de luz. Você não vê. Parecia que aquilo fôra engolido pela luz de fora, de uma maneira que os atores ainda estão um pouco silhuetados. Com toda essa carga de luz terrível. Então, realisticamente é um desafio cujo limite é a própria sobrevivência do ator com relação à carga de luz que você usa. Porque não tem como você fazer. O sol é terrível. Bota aqueles buterflys gigantescos. Aí você amansa um pouco, mas ainda tem muita luz. Projetos em andamento E agora. Você está fazendo algum filme? O que está rolando? 25 Iremos a Beirute (1998). [Guinefort] 42 Agora eu estou fazendo o roteiro de um vídeo sobre a Anabella Geiger. Depois vou para São Paulo fazer um sobre Geraldo de Barros, que é um pintor concretista. Você vai dirigir ou fotografar? Não, nesse eu vou fazer a fotografia. Eu vou dirigir o daqui do Rio. A direção é de um suíço. Michel Kur26, que é casado com a filha do Geraldo de Barros, Fabiana, que mora na Suíça. É um filme muito interessante. O Geraldo de Barros, além de pintor, também foi fotógrafo. Fotógrafo experimental. Já no fim da vida, ele teve um derrame e ficou meio paralisado. Então ele pegava tudo quanto era sobra de negativo e com uma tesourinha montava, fazendo imagens super interessantes. E, além disso, ele também foi designer, fazia móveis. E era uma pessoa assim com grande capacidade de organização social. Criou uma firma chamada Unilabor em que os empregados todos tinham interesse na empresa. Era uma pessoa assim socialista, tentando fazer uma indústria no Brasil. Evidentemente deu com os burros n'água de uma certa maneira, porque o Banco do Brasil aí corta o crédito. Mas é um filme bastante interessante. Estou fazendo também o 500 Almas do Joel Pizzini, que é complicado pra burro. Esse é um filme difícil, porque é com os índios Guatós no meio lá daquele Pantanal. A gente sai de lancha às cinco horas da manhã, pra chegar às sete e meia no local. O sol já está alto, porque lá é rápido. Depois, você passa o dia inteiro malhando mesmo, e volta lá pelas cinco, quando a luz já esta começando a cair. São rios cheios de piranhas, e agora apareceu uma piranha nova que tem um metro e tanto e pesa vinte e poucos quilos. Apareceu outro dia uma fotografia da “Maxi-piranha”. Vem do sul. Com essas inundações, ela foi 26 Na verdade, Michel Favre. O filme intitulou-se Geraldo de Barros – Sobras em obras. [Guinefort] 43 chegando lá. Então, a gente já fez 26 horas desse filme. Esse material está muito bonito. Consegui uma coisa bonita porque usei quatro emulsões: 500, 200, 100 e 50 ASA. Esse de 50, o Eastman 7245, é o que melhor resiste ao sol terrível que tem lá. Os índios vão ficando até cegos. O excesso de luz é de tal ordem que uma série de doenças de olhos se manifestam ali. Mas são uns índios incrivelmente elegantes. As mulheres têm uma beleza... Mulheres de 80 anos. Fazem um gesto assim, puxando o cabelo... São muito femininas, incríveis. Têm uma capacidade de sedução tão grande que são usadas como iscas para atrair os índios inimigos, os Guaicurús. E as menininhas dessa tribo são inacreditáveis... de uma beleza fantástica. Fiz vários
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