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Modelo assistencial de saúde no contexto intercultural: uma convergência de olhares Marcos Schaper Douglas Rodrigues Raquel Pacagnela Lavínia Oliveira 2 MODELO ASSISTENCIAL DE SAÚDE NO CONTEXTO INTERCULTURAL: UMA CONVERGÊNCIA DE OLHARES “Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda há. E esse sol só pode nascer dentro de nós”. O último voo do flamingo - Mia Couto Objetivo do tema Apresentar o conceito de modelo assistencial e, a partir de modelos diferentes, estimular a concep- ção de um modelo de saúde para a população indígena adequado a singularidade de cada local de trabalho. Introdução Como vimos anteriormente, a Atenção Básica à Saúde (ABS) no Brasil é norteada pelos princípios do SUS de acesso universal, equidade, integralidade e participação social. Configura-se assim como um dispositivo estratégico da atenção integral à saúde, que deve necessa- riamente estar articulado ao sistema nacional de saúde. A ABS, entretanto, é praticada em diferentes contextos, sendo múltiplos os fazeres que constituem os diversos modelos assistenciais em saúde. O que são Modelos Assistenciais em Saúde? O modelo assistencial diz respeito ao modo como são organizados e combinados os saberes e ins- trumentos utilizados nas práticas ou processos de trabalho em saúde, capazes de intervir nos pro- blemas de saúde individuais e coletivos. São relações entre as pessoas, seus saberes e fazeres, e as tecnologias envolvidas no trabalho. Um modelo assistencial não pode ser confundido com um padrão, trata-se de uma escolha que é construída em um determinado espaço de trabalho a partir de uma referência teórica e prática. A escolha por determinado modelo de atenção deve partir da identificação e análise dos problemas de saúde da população, bem como de seus determinantes condicionantes, buscando a saúde integral. Isto exige de nós, profissionais que atuamos no contexto da saúde indígena, uma reformulação dos modelos assistenciais que majoritariamente se constroem a partir da atenção focada na doença e no indivíduo doente. Pois, enquanto a biomedicina limita os conhecimentos sobre doença e cura aos processos biológicos, a medicina tradicional indígena tem outra compreensão “o significado da doença (nas sociedades indígenas) é construído através da lógica etiológica, e esta estende a pro- cura das causas para além do corpo físico, deslocando o significado da doença do plano biológico para os contextos cosmológicos, sociais e morais” (Langdon, 2005). 3 Encontro de mulheres: um espaço de diálogo intercultural na busca de en- tendimento e de estratégias de enfren- tamento dos problemas de saúde dos Xinguanos. Podemos situar os programas de saúde, tais como os preconizados pelo Ministério e Secretarias de Saúde, como ferramentas de inter- venção embutidas nos modelos assistenciais vigentes a serem aplica- das de forma vertical e uniformizante nos DSEIs de todo o país, em diferentes contextos interculturais? 1 - Tais programas conseguem enfrentar os problemas de saúde identificados? 2 - Será que a identificação dos problemas de saúde e seus determi- nantes a partir do paradigma da biomedicina é suficiente para o en- frentamento dos problemas específicos da população que eu cuido? Estas perguntas devem nos acompanhar quando pensamos um mo- delo de atenção/intervenção em saúde indígena. Em nossa experiên- cia, trazer um programa de saúde elaborado verticalmente, sem a necessária sensibilidade cultural, sem o olhar da especificidade, é o caminho mais curto para uma ação de enfrentamento não ter sucesso. Os Modelos Assistenciais no Brasil A história das políticas de saúde e dos modelos de atenção permite distinguir diversas formas de atuar da saúde pública. Dentre essas, destacam-se: as campanhas sanitárias da Primeira República; o modelo médico-assistencial privatista, com o desenvolvimento da medicina previdenciária nas déca- das de 1950 e 1960; e os programas especiais, vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, que se instauram diante da crise sanitária dos anos 70 do século passado (Paim, 2003). Como vimos na disciplina de políticas e organização dos serviços de saúde indígena, o modelo hege- mônico no Brasil sempre foi centrado na doença e nos estabelecimentos de saúde (hospitais, unidades de saúde, consultórios médicos e nos serviços de apoio diagnóstico) do modelo médico-assistencial privatista, que tem suas origens na assistência filantrópica e na medicina liberal. Valoriza a tecnologia e a assistência médica individual, ordenada pela “demanda espontânea” de cada cidadão, disputando espaços e recursos com ações de saúde coletiva com inspirações sanitaristas como campanhas, pro- gramas de saúde e vigilância epidemiológica. A prática clínica desse modelo é baseada no paradigma da Medicina Científica ou Biomedicina, volta- do para assistência corpo doente em seus aspectos individuais e biológicos, centrado no profissional médico. Como vimos na disciplina de antropologia “o conhecimento científico nasceu da prática e dela se distanciou, numa visão reducionista da saúde. Destacam-se os aspectos biológicos e as ações concentram-se no indivíduo, que é cada vez mais fragmentado frente a especialização extrema, per- dendo o olhar sobre o todo” (Mendonça, 2009). Você assistiu ao vídeo inicial sobre História das Políticas de Saúde no Brasil? Seria interessante assisti-lo de novo (ou pela primeira vez), pensando agora como as políticas de saúde, interesses econômicos e movimentos sociais determinam os modelos assistenciais. A partir da crise do modelo médico-assistencial privatista (deflagrada por sua pouca efetividade, alto custo, iniquidade e pelo reconhecimento da saúde como um direito, cidadania e dever do es- tado, que culminou com a criação do SUS em 1988), ficou evidente a necessidade de proposição e 4 utilização de novos modelos assistenciais, alternativos ao modelo hegemônico, que incorporassem métodos, técnicas e instrumentos provindos da epidemiologia, do planejamento e das ciências sociais. No início da década de 90, tem início propostas de reorientação do modelo assistencial na direção do atendimento universal, de forma integral e eficaz. Inicia-se um período em que a saúde passa a ser tratada, do ponto de vista da política oficial, não mais como resultado de uma intervenção espe- cializada e isolada sobre fatores de risco biomédicos, mas como produto social, resultante de fatores econômicos, políticos, culturais e ideológicos. Propostas como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e o Programa de Saúde da Família (PSF) são dessa fase. Alguns modelos alternativos avançaram nessa concepção. São exemplos a Vigilância da Saúde, Cidades Saudáveis, Programação em Saúde e a Defesa da Vida (Coelho, 2008). O apoio matricial em saúde objetiva assegurar retaguarda especializada às equipes e pro- fissionais encarregados da atenção a problemas de saúde da comunidade. Trata- se de uma metodologia de trabalho complementar àquela prevista em sistemas hierarquizados, a saber: mecanismos de referência e contra referência, protocolos e centros de regulação. O apoio matricial pretende oferecer tanto retaguarda assistencial quanto suporte técnico pedagógico às equipes de referência. Depende da construção compartilhada de diretrizes clínicas e sanitárias entre os componentes de uma equipe de referência e os especialistas que oferecem apoio matricial. Essas diretrizes devem prever critérios para acionar o apoio e definir o espectro de responsabilidade tanto dos diferentes integrantes da equipe de referência quanto dos apoiadores matriciais (Campos & Domitti, 2007). Desta forma, apoio matricial e equipe de referência são, ao mesmo tempo, ar- ranjos organizacionais de uma metodologia para a gestão em trabalho em saúde, objetivando ampliaras possibilidades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintas especialidades e profissões (Coelho, 2008). Pensando um modelo de atenção diferenciado para a saúde indígena - Experiências do Projeto Xingu - Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina – UNIFESP O modelo de atenção à saúde proposto pela equipe do Projeto Xingu da UNIFESP, em diversas realida- des e territórios, é produto de uma longa caminhada e da participação de diferentes atores, que busca dar respostas aos principais agravos resultantes do processo histórico e social do contato entre índios e colonizadores, priorizando ações intersetoriais e o envolvimento crescente das populações indígenas. É norteado para a construção de um novo diálogo intercultural que valoriza a cidadania, em contraste às relações historicamente marcadas pelo paternalismo e dependência. Utiliza tecnologia leve, que é o encontro entre profissional de saúde e usuário permeado por relações de interação e subjetividade, que possibiliza produzir acolhimento, vínculo e responsabilização. Ainda sobre as tecnologias, as leve-duras compõem os protocolos assistenciais padronizados, voltados para as doenças prevalentes ou para gru- pos de risco. Neste modelo, ainda estão a vigilância da saúde e o apoio matricial à equipe local. 5 Frente a eventuais conflitos entre os enfoques clínicos e causais da biomedicina e a medicina tradicio- nal, a postura dos profissionais é sempre a da negociação e nunca uma postura de imposição da visão biomédica sobre o entendimento tradicional do processo de adoecimento e cura. 1 - O que é considerado problema de saúde para nós, também é visto como problema de saúde para os índios? 2 - Buscando esta resposta, como deve ser feito o levantamento e a priorização de problemas? Em nossa experiência, tal levantamento é realizado junto com as comunidades e as ações de preven- ção e intervenção sobre esses problemas são organizadas de acordo com a complexidade de cada caso e a realidade local. As ações são formuladas de maneira coletiva, buscando o envolvimento de vários segmentos sociais – mulheres, agentes indígenas de saúde, auxiliares de enfermagem indígenas, lideranças, professores, profissionais da medicina tradicional e conselheiros. Prevalecem sistemas dis- tintos de etiologia, prevenção e cura de doenças, havendo uma grande preocupação tanto dos índios quanto da equipe de saúde em manter o diálogo intercultural como forma de melhor compreender as necessidades de saúde dos vários povos. Não há fórmula pronta. O que funciona bem em um território ou etnia pode não ser o mais ade- quado para outras configurações de território, e de diferentes relações de contato com a nossa sociedade. O importante é ousar, enfrentar as limitações das propostas verticais e uniformizantes, reconhecer as limitações do modelo biomédico e da centralização das práticas nos médicos e nos estabelecimentos de saúde. Juntamente com os usuários indígenas, é possível construir, processualmente, o modelo de atenção mais adequado a cada situação, num esforço sistemático para reformular a prática atual, ainda for- temente impregnada pelo modelo biomédico dominante. Alguns caminhos aqui apontados como o trabalho em equipe, a interdisciplinaridade, a coordenação do cuidado, o acolhimento, integralidade, a atenção centrada na pessoa, a clínica ampliada e o apoio matricial são fundamentais nessa tarefa. A equipe de referência é aquela que tem por responsabilidade participar da condução de um caso individual, familiar ou comunitário. Essa participação objetiva ampliar as possibilidades de construção de vínculo entre profissionais e usuários. O termo responsabilidade de condu- ção refere-se à tarefa de encarregar-se da atenção ao longo do tempo, ou seja, de maneira longitudinal, à semelhança do preconizado para equipes de saúde da família na atenção básica (Campos & Domitti, 2007) ou para as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI). Segundo Merhy (2004), quanto maior a composição das caixas de ferramentas (entendida como o conjunto de saberes que se dispõe para a ação de produção dos atos de saúde) utilizadas para a conformação do cuidado pelos trabalhadores de saúde, individualmente ou em equipes, maior será a possibilidade de se compreender o problema de saúde a ser enfrentado, e maior a capacidade de enfrentá-lo de modo adequado, tanto para o usuário do serviço quanto, para a própria composição dos processos de trabalho. O cuidado produzido terá como resultado uma maior defesa da vida do usuário, maior controle dos seus riscos de adoecer ou de agravar seu problema de saúde, e de con- tribuir para o desenvolvimento de ações que permitam a produção de um maior grau de autonomia da relação do usuário no seu modo de estar no mundo. 6 Na construção do modelo de atenção, devemos nos preocupar fundamentalmente com a lógica da produção social da saúde, que deve ser centrada no sujeito social, nas famílias e comunidades, visan- do enfrentar de forma mais efetiva a complexidade do trabalho na saúde indígena, caracterizada pela heterogeneidade cultural e pelas diferentes relações de contato dos povos indígenas com a socie- dade não indígena. Somam-se a isso as dificuldades logísticas, a dispersão territorial da população e a alta rotatividade das equipes de saúde. Não existe doença e sim adoecimento. A atenção deve ser centrada nas pessoas e nas comunidades. Conflitos entre as visões do processo de adoecimento e cura existentes entre equipes e comunida- des e as dificuldades para o trabalho interdisciplinar, entre outras, demandam um desenho no qual o trabalho dos diferentes profissionais da equipe multidisciplinar de saúde se misturam e são recons- truídos. Enfim, pode-se pensar em construir um modelo pautado na incorporação de preceitos e fer- ramentas de vários outros existentes, pois há mais convergências do que divergências nesse campo. Dentro de uma mesma lógica de organização dos serviços de saúde, diferentes formas e diferentes lógicas assistenciais podem ser desenvolvidas. A construção do modelo de atenção diferenciada à saúde indígena pode beber da lógica da vigilância à saúde, das ações programáticas e de movimentos como a humanização e as redes de cuidado, tendo como argamassa a produção do cuidado e um grande compromisso com a defesa da vida dos indígenas. A Vigilância da Saúde, todavia, propõe a incorporação de novos sujeitos, extrapolando o con- junto de profissionais e trabalhadores de saúde ao envolver a população organizada, o que corresponde à ampliação do objeto, que abarca, além das determinações clínico-epidemioló- gicas no âmbito individual e coletivo, as determinações sociais que afetam os distintos grupos populacionais em função de suas condições de vida. Nessa perspectiva, a intervenção também extrapola o uso dos conhecimentos e tecnologias mé- dico-sanitárias e inclui tecnologias de comunicação social que estimulam a mobilização, a orga- nização e atuação dos diversos grupos na promoção e na defesa das condições de vida e saúde. A proposta de Vigilância da Saúde transcende os espaços institucionalizados do sistema de serviços de saúde, e se expande a outros setores e órgãos de ação governamental e não go- vernamental, envolvendo uma trama complexa de entidades representativas dos interesses de diversos grupos sociais. Em síntese, a Vigilância da Saúde apresenta sete características básicas: a) Intervenção sobre problemas de saúde (danos, riscos e/ ou determinantes); b) Ênfase em problemas que requerem atenção e acompanhamento contínuos; c) Operacionalização do conceito de risco; d) Articula- ção entre ações promocionais, preventivas e curativas; e) Atuação intersetorial; f) Ações sobre o território; g) Intervenção sob as forma de operações. (Teixeira, Paim & Vilasbôas, 1998) 7 Referências bibliográficas Campos GWS,Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública. 2007; 23(2):399-407. Coelho IB. Formas de Pensar e Organizar o Sistema de Saúde: Os modelos assistenciais em saúde. In: Campos GWS, Guerrero AVP (Orgs). Manual de Práticas de Atenção Básica: saúde ampliada e com- partilhada. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 96-131. Langdon EJ. Construção sociocultural da doença e seu desafio para a prática médica. In: Baruzzi RG, Junqueira C (Orgs). Parque Indígena do Xingu: Saúde, Cultura e História. São Paulo: Terra Virgem; 2005. p.115-33. Mendonça SBM. Reflexões sobre a relação intercultural no campo da saúde indígena: uma introdu- ção. Curso de Especialização em Saúde Indígena na Modalidade a Distância. São Paulo: UNIFESP/ MEC; 2009. Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Ver-SUS: Cadernos de textos. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. p. 73-92. Paim JS. Saúde: política e reforma sanitária. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva; 2002. Paim JS. Vigilância à Saúde: tendência de reorientação de modelos assistenciais para a promoção da saúde. In: Czeresnia D (Org). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 161-74. Teixeira CF, Paim JS, Vilasbôas AL. SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde. Bahia: IESUS; 1998. Infectologista da UNIFESP em um momento assistencial e de en- sino durante uma busca ativa de Tuberculose. Sujeito social é um ser em constante interação com os outros ho- mens e com seu meio, transformando- o e sendo transformado por ele. , isto é, um protagonista da ação de saúde que se constrói. Este homem é, ao mesmo tempo, sujeito, ator social, protagonista e objeto da ação, aquele que se submeterá às intervenções. (Matumoto, Mishima & Pinto, 2010)
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