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A tecnologia eletrônica é falha na demonstração de alterações citoplasmáticas e nucleares dos neutrófilos, e na identificação de cé- lulas imaturas da linhagem mieloide. O flag ImmGrans/bands qua- se só aparece quando as células imaturas fazem parte de quadro de leucocitose. A microscopia é indispensável para notar as alterações discutidas neste capítulo; como só é feita em casos que não passam na triagem arbitrária, muitas vezes não são notadas. ALTERAÇÕES REACIONAIS Granulações tóxicas: quando a granulocitopoese é continua- damente exigida, pela extensão e pela duração de um foco inflamatório, há encurtamento do estágio intermitótico e di- minuição dos prazos de maturação das células precursoras; os neutrófilos chegam ao sangue periférico com persistência da granu- lação primária, própria dos promielócitos, que deveria ter sido subs- tituída no processo pela granulação secundária específica. Ao contrá- rio dos grânulos secundários, delicados, puntiformes, de coloração lilás, os grânulos primários são grandes, ricos em enzimas e coram- se em roxo-escuro com os corantes básicos. Quando estão presentes nos neutrófilos, diz-se haver granulações tóxicas. É claro que o termo é impróprio; originou-se de uma época em que a elas se atribuía um injustificado sinal de doença séria e mau prognóstico. É verdade que exprimem duração e magnitude de um processo inflamatório, mas ex- primem igualmente o chamamento continuado à reserva granulocítica por situações inócuas, como o tratamento com corticoides, ou mesmo 270 Renato Failace & cais. fisiológicas, como a gravidez. O tratamento com filgrastim ou similares causa a aparição de granulações tóxicas abundantes e grosseiras. Vacuolização citoplasmática: vacúolos nos neutrófilos ocorrem pela exocitose de material fagocitado e do conteú- do de conglomerados de lisossomos. São frequentes em in- fecções; os neutrófilos vacuolizados podem mostrar-se degranulados. A conservação in vitro do sangue com EDTAcausa vacuolização, prin- cipalmente nos monócitos, mas também nos neutrófilos, daí a impru- dência de valorizá-Ia como sinal de infecção. Corpos de Dôhle: são áreas, na periferia dos neutrófilos, vistas como manchas lilases, nas quais houve liquefação do retículo endoplásmático. São difíceis de notar; são mais ní- tidas em lâminas de sangue sem EDTA. Corpos de Dôhle são vistos nos estados inflamatórios e infecciosos, particularmente notá- veis na pneumonia pneumocócica, na erisipela e após queimaduras. Às vezes, são notados na gravidez. São numerosos no tratamento com filgrastim e similares. Hipersegmentação nuclear: no sangue normal, predomi- nam os neutrófilos com 2 a 4 lóbulos nucleares. A presença de > 5% de neutrófilos com cinco ou mais lóbulos, ditos neu- trójilos hipersegmentados ou pleocariócitos, era denominada desvio à di- reita. Na primeira metade do século passado, foi modismo passageiro a tediosa contagem dos lóbulos para expressá-Ia em índices (de Ameth, de Vélez), supostamente correlacionados com a evolução de doenças infecciosas, principalmente a tuberculose. O próprio termo desvio à direita está em desuso. A presença de neutrófilos hipersegmentados é notada em: 1. Defeito genético autossômico dominante, raro, sem significação patológica. 2. Insuficiência renal crônica; desconhece-se a patogênese do achado, mas é comum e sem consequências clínicas. 3. Anemia ferropênica; é um achado inconstante e não-chamativo. 4. Neutrofilias de longa duração. 5. Tratamento com corticoides. 6. Hematopoese megaloblástica - os neutrófilos são de grande talhe e a segmentação tem aspecto bizarro. Alterações qualitativas dos neutrófilos 271 7. Síndromes mielodisplásicas e mieloproliferativas. 8. Tratamento com hidroxicarbamida. No sangue normal, podem ser vistos, raramente, neutrófilos grandes, com dois conjuntos de lóbulos nucleares, facilmente identifi- cados como tetraploides. São denominados polilobócitos. O tratamen- to com antiblásticos aumenta consideravelmente seu número. Neutrófilos com hipersegmentação nuclear bizarra, com aspecto de cacho de uvas, neutrójilos botrioides, costumam ser notados após queimaduras extensas ou intermações graves. Excesso de "drumsticks": o cromos somo X inativo das mu- lheres está normalmente representado em 1 a 3% dos neu- trófilos como uma projeção densa de cromatina em forma de gota ou extremidade de baqueta de tambor (drumstick). Esse apêndice nuclear não é visto em sangues masculinos; é identifi- cação segura do sexo da paciente à microscopia. Em pacientes femi- ninas com hipersegmentação nuclear pelas causas 6 a 8 supra citadas, há um excesso, às vezes chamativo, de neutrófilos com drumstick. Presença reacional de células mieloides imaturas: afora as doenças próprias da medula óssea (discutidas em capítulos próprios), células jovens, até mielócitos, são vistas no hemogra- ma como extensão do desvio à esquerda quando acentuado. Na neutrofilia da gravidez e do uso de corticoides, os mielócitos costumam estar presentes (1 a 5% na fórmula), mesmo sem haver um desvio escalonado; doses altas de corticoide (prednisona > 1,5 mg/ kg) causam neutrofilia com contagens que podem ultrapassar 25.000 leucócitos/ul, e constante mielocitose', Em pacientes graves, com anoxemia, são comuns neutrofilias consideráveis, com mielocitose e eritroblastemia. Nos pacientes agô- nicos, o quadro acompanha-se de trombocitopenia e evolui nas horas finais para neutropenia, com granulações tóxicas e vacuolização cito- plasmática, sugestiva de exaustão da reserva medular. Tumores disseminados na medula óssea causam hemo gramas igualmente alterados, até com presença de blastos; o mesmo ocorre com o uso de filgrastim ou lenograstim (ver Figuras 10.3 [E] e 10.6 [DJ, p. 213 e 216). * O termo mie/ocitose é um neologismo lógico criado pelo autor. 272 Renato Failace & cols. Reações leucoeritroblásticas, como as descritas, também são cha- madas leucemoides, por suscitarem a suspeita de leucemia mieloide, síndrome mieloproliferativa (esse aspecto é constante na mielofibro- se) ou displásica. A situação clínica e a evolução costumam ser su- ficientes para o diagnóstico diferencial; nos raros casos duvidosos, a coloração da fosfatase alcalina nos neutrófilos, a cito genética e o exame da medula óssea podem ser necessários. Inclusões fagocíticas: micro-organismos fagocitados às vezes são vistos no citoplasma de neutrófilos no decurso de infecções graves. Os mais comuns são: pneumococos, outros cocos Gram-positivos, meningococos, Candida, Ehr- lichia (nas zonas endêrnicas). A contaminação do sangue in vitro deve ser considerada quando são vistos micro-organismos em material con- servado, mesmo por poucas horas. Inclusões fagocíticas raras: eritrócitos (anemias hemolíticas au- toimunes, transfusões incompatíveis), plaquetas (púrpura tromboci- topênica autoimune), glóbulos de crioglobulina, melanina (no mela- noma disseminado), pigmento malárico. Células LE: são neutrófilos (ou monócitos) fagocitando restos nucleares de outras células (geralmente linfócitos), lisados por anticorpos antinucleares no lúpus eritematoso sistêmico (LES). Não são vistas no hemograma; formam- se in vitro, no sangue coagulado e estocado por algumas horas. São pesquisadas em concentrados de leucócitos obtidos por trituração do coágulo. Foram consideradas patognomônicas e indispensáveis ao diagnóstico do LES; como a pesquisa é artesanal, laboriosa e exige manipulação do sangue com risco de contágio de vírus, tomou-se in- compatível com um mundo automatizado e foi retirada dos critérios de diagnóstico do LES. Na opinião do autor, não há teste que a substi- tua como confirmação diagnóstica e critério de atividade do LES. DEFEITOS GENÉTICOS NOTADOS À MICROSCOPIA Anomalia de Pelger-Huet: é um defeito genético, autos- sôrnico dominante da segmentação dos neutrófilos, com presença apenas de bastonados e bissegmentados e sem significação patológica. Há enorme e constante desvio à es- querda, que é normal no caso particular do portador da anomalia. Alterações qualitativas dos neutrófilos 273 Se o laboratorista não notar a falta de neutrófilos com três ou mais lóbulos nucleares, não identificando a anomalia (o que é comum, pois muitos nem sabem da sua existência), o falso desvio à esquerda será interpretado como clinicamente significativo. A anomalia heterozigó- tica não é rara: um caso para 4.000 a 5.000 pessoas; nos raríssimos homozigotos, o hemo grama mostra neutrófilos maduros com núcleo redondo, parecido com o do mielócito; a homozigose também não tem expressão clínica. A anomalia de Pelger-Huêt, embora facilmente identifica da à microscopia, não é notada pelos contadores eletrônicos Coulter, Cell- -Dyn e Sysmex (experiência do autor). Só aparecerá no resultado dos hemogramas se a triagem arbitrária exigir microscopia (por anemia, leucocitose, etc.) ou se houver pedido específico desta. A anomalia está fadada ao esquecimento. Nas síndromes mielodisplásicas (frequentemente) e mieloproli- ferativas (raramente), pode haver um defeito da segmentação dos neutrófilos que lembra a anomalia genética, inclusive com formas homozigóticas; os neutrófilos acometidos são ditos "pelgeroides" (pelger-like) . Anomalia de Alder-Reilly: pode ser um defeito recessivo raro da granulação dos neutrófilos, sem significação pato- lógica, ou fazer parte do quadro das doenças de Tay-Sachs, Batten-Spielmeyer-Vogt, ou das mucopolissacaridoses (sín- drome de Hurler e similares). Há uma granulação roxo-escura nos neutrófilos, semelhante às granulações tóxicas, mas mais abundante e grosseira; pode estar presente, também, em eosinófilos e monócitos. Anomalia de May-Hegglin: é um raro defeito domi- nante. Os neutrófilos mostram estruturas semelhantes a corpos de Dõhle; há plaquetas gigantes e trornbocitope- nia. Salvo certa suscetibilidade a hemorragias, os porta- dores são assintomáticos. Síndrome de Chediak-Higashi: é um grave defeito gené- tico recessivo, incomum, mas visto pelo autor várias vezes. O gene defeituoso está em lq42-45 e codifica uma proteína anômala. Há neutropenia e deficiência funcional dos neu- trófilos, pancitopenia progressiva, deficiência imunológica, albinismo oculocutâneo, alterações neurológicas e morte prematura. O hemo- grama mostra leucócitos com granulações gigantes, decorrentes da coalescência de lisossomos, coradas em vermelho ou pardo-escuro. 274 Renato Failace & cais. Anomalia de Jordan: é um raríssimo defeito recessivo, devido à de- ficiência genética de carnitina. Os neutrófilos e precursores têm gotas de lipídio no citoplasma, que se dissolvem e deixam vacúolos. Síndrome de Brandalise: nesse defeito, ainda mais raro, há grandes inclusões de actina no citoplasma dos granulócitos. DEFEITOS GENÉTICOS SEM ALTERAÇÃO MORFOLÓGICA Deficiência de mieloperoxidase: é um defeito genético dominante, cuja prevalência de 1/2.000 na população foi notada com a introdu- ção dos contadores eletrônicos Technicon (agora Advia/Siernmens), que identificam os neutrófilos pela coloração da mieloperoxidase. Hemogramas feitos em outras máquinas não evidenciam o defeito. A lentidão no extermínio das bactérias pelos neutrófilos deficientes não se acompanha de suscetibilidade a infecções bacterianas. A mie- loperoxidase, entretanto, é fundamental para o extermínio de certas cepas de Candida e Aspergyllus; muitos pacientes sofrem de micose disseminada. Doença granulomatosa crônica: nesse defeito recessivo ligado ao sexo (os pacientes são hemizigotos masculinos), os neutrófilos são incapazes de exterminar germes produtores de catalase. Há infecções graves, repetidas, e alta mortalidade na infância. O hemo grama não é esclarecedor; há neutrofilia reacional às infecções. O diagnóstico era feito pelo teste do nitro-blue-tetrazolium; foi substituído recen- temente pela citometria em fluxo, com marcação dos neutrófilos por di-hidrorrodamina, que fluoresce quando oxidada. Variantes genéticas mais benignas que a doença granulomatosa clássica foram recentemente descritas; em alguns casos, o defeito foi notado só na idade adulta. ATIVAÇÃO E EXAGERO FUNCIONAL DOS NEUTRÓFILOS A ativação dos neutrófilos por estímulos externos transforma-os em potentes defensores biológicos, capazes de quimiotaxia e fagoci- tose. Uma evidência laboratorial do estado de ativação poderia ter significado clínico, correlacionando-se com uma resposta inflamatória sistêrnica ou com infecção bacteriana. O teste do nitro-blue-tetrazo- Alterações qualitativas dos neutrófilos 275 lium não se mostrou adequado para evidenciá-Ia e foi abandonado. A medida nos neutrófilos, por citometria em fluxo, da expressão do CD64 (receptor Fc de alta afinidade), está sendo usada para esse fim, com algum sucesso inicial. A ativação persistente, por outro lado, pode causar dano teci- dual pela liberação de agentes ativos e indução de cito quinas. É pos- sível que faça parte da patogênese das seguintes situações clínicas: dano miocárdico pós-perfusão, febre do Mediterrâneo, síndromes de Behçet e de Sweet. Anti-inflamatórios e drogas que interfiram na função dos neutrófilos (colchicina, corticoides) podem ser úteis para evitá-Ias ou tratá-Ias.
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