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1 DOMINGO NO PARQUE: NOTAS SOBRE SOCIABILIDADES DE JOVENS HOMOSSEXUAIS EM ESPAÇOS PÚBLICOS Marcelo Perilo1 RESUMO: Neste texto, discuto sobre sociabilidades de jovens homossexuais em espaços públicos em contextos de lazer. Sendo assim, a partir de minha etnografia junto a um grupo de garotos e garotas em um parque na cidade de Goiânia (Brasil), verifico como elas e eles elaboram um ambiente propício para encontros e convivência entre namorados do mesmo “sexo” e amigos sem que para isso necessitem atrelar tais condutas e relações a estabelecimentos comerciais, como boates e bares. Destaco ainda como alguns jovens articulam estratégias para frequentar o parque e como, simultaneamente, administram a visibilização de seus afetos e condutas eróticas pela cidade. PALAVRAS-CHAVE: sexualidade; jovens; sociabilidade; espaço público Este texto é oriundo de minha pesquisa de mestrado no Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás, no Brasil. Verifico as sociabilidades de jovens2 homossexuais3 em um parque público na cidade de Goiânia4 considerando seus encontros para convivência entre amigos e namorados. Sendo assim, a partir de uma abordagem etnográfica, busco compreender como os jovens se apropriam desse local, além das implicações de suas condutas e performances no espaço público. O local em questão é intitulado pelos jovens pelo nome de Área Fértil. Trata-se de um ambiente no perímetro do parque Vaca Brava, em Goiânia, sendo que a ocupação que os garotos e garotas realizam ocorre nas tardes e noites de cada domingo. Durante os encontros semanais, cerca de 40 a 60 jovens compartilham conversas com pessoas 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás, Brasil. gymp3@hotmail.com 2 As categorias etárias apresentadas conformam um conjunto relacional, sendo “criança” e “adulto” seus polos (Lowenkron, 2008). Assim, aciono “jovens” e demais termos de maneira contingencial as discussões apresentadas neste texto. 3 Ao utilizar homossexualidades e categorias correlatas, tais como homoerotismos ou homossociabilidades, busco problematizar o dualismo homo/heterossexual enquanto referencial teórico (Carrara; Simões, 2007). 4 Goiânia é a capital da província de Goiás, situada no centro do Brasil. A cidade têm 1 milhão e 300 mil habitantes e está a 200 km de Brasília, a capital do país. Está entre as regiões metropolitanas mais densamente povoadas do Brasil. Assim como em demais centros urbanos no país, principalmente a partir da década de 1990, foram criados na cidade um conjunto estabelecimentos comerciais geralmente destinados ao público homossexual masculino, como bares, boates, saunas e cinemas pornôs, sendo apenas bares e boates acessíveis a lésbicas e, dentre esses, um número ainda mais restrito acessível a travestis e transexuais. Dessa maneira, registra-se que na cidade os lugares para encontro e convivência entre homossexuais ocorrem eminentemente em ambientes comerciais e fechados. 2 conhecidas e também têm um ambiente favorável para que possam flertar, além de demonstrar afeto por meio de beijos e abraços junto a seus namorados do mesmo “sexo”. Nesse local foi constituído um ambiente propício a encontros e convivência em contextos de lazer, sendo que os jovens que o frequentam passaram a ocupar um território na cidade para além de onde suas práticas e condutas seriam previstas e, inclusive, toleradas. Considerando esses aspectos destacados, no próximo tópico reflito brevemente sobre os espaços para sociabilidade entre homossexuais no Brasil, em seguida apresento mais detidamente a Área Fértil e, então, analiso as implicações da ocupação deste ambiente na cidade. Coaduno como antropólogo José Magnani (2005; 1996) quando sugere que a busca de significados para os trânsitos de sujeitos nas cidades reflitam “como os diferentes atores sociais se apresentam no espaço urbano, circulam por ele, usufruem seus equipamentos e, nesse processo, estabelecem padrões de troca e encontro no domínio público” (Magnani, 2005: 202). O interesse pela alteridade na cidade deve se fundamentar não em uma perspectiva de exotização da diferença, mas pelo reconhecimento de experiências que, assim, podem “constituírem arranjos diferentes, particulares (...) de temas e questões mais gerais e comuns a toda a humanidade" (Magnani, 1996: 5), o que considero então como mote para as reflexões neste artigo. Sobre espaços de sociabilidades entre homossexuais O estabelecimento de áreas para encontros entre pessoas do mesmo “sexo” não corresponde a um fenômeno recente no Brasil. A existência de locais e roteiros para relações afetivo-sexuais entre homens no final do século XIX, a título de exemplo, fazia notória a Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro (Green, 2000). Além disso, no decurso do século XX distintos logradouros públicos, como ruas, praças e parques passaram a ser usufruídos por homossexuais para flerte e convivência em contextos de lazer (Green; Polito, 2008). Contudo, a assunção da homossexualidade e a visibilidade sobre práticas e condutas não-heterossexuais no Brasil foram carregadas de um caráter muito distinto a partir da década de 1990. As condições para o surgimento de locais para convivência em espaços públicos e em estabelecimentos comerciais passou por reconfigurações em todo o país, atingindo de maneira peculiar os grandes centros urbanos (FRANÇA; SIMÕES, 2005). Desde a década de 1980, quando se iniciou o processo de redemocratização após o último período ditatorial no Brasil, além do alarde sobre a epidemia de aids e a reestruturação do movimento de lésbicas, gays, travestis e transexuais (LGBT), um contexto distinto favoreceu que as práticas e vivências homossexuais se tornassem ainda mais visibilizadas. Tais processos, que têm relação com a ampliação dos diretos civis, modificaram o lugar social da homossexualidade no Brasil (Facchini, 2008). Como consequência desse momento de visibilização da homossexualidade, inúmeros serviços e produtos foram elaborados especificamente para gays e lésbicas, além de uma crescente demanda por políticas públicas e por marcos legais anti- discriminatórios. Ademais, a articulação de uma mídia segmentada, a efervescência de um mercado especializado e de um empresariado atento têm inserido as demandas referentes às vivências de LGBT nas pautas política, social e cultural do país. 3 Aliada a oferta de bens destinados a um determinado público, foram constituídos variados ambientes comerciais para sociabilidades entre pessoas do mesmo “sexo”. Esses locais foram expandidos e complexificados em abrangência e público-alvo. Contudo, mesmo com essa nova configuração de ambientes para interação entre homossexuais, a vulnerabilidade e intolerância ao público LGBT, principalmente daqueles indivíduos que demonstram afeto em público, está manifesta em relatos de assassinatos e demais modalidades de violência. Apesar de maior visibilidade, de um movimento social articulado nacionalmente e determinadas ações governamentais, a intolerâncias que atingem a população LGBT são inúmeras. Considerando a ampliação de estabelecimentos comerciais e privados que atendem ao público homossexual, ambientes como bares, saunas, cinemas e clubes de sexo podem se tornar locais privilegiados a quem busca segurança nas sociabilidades entre pessoas do mesmo “sexo” em contextos de lazer. Entretanto, além desses locais, também nota-se a ampliação de ambientes para encontro e convivência em público, como em praças, ruas e bosques. Considerando um expressivo número de trabalhos no Brasil que destacam interações e convivência entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em ambientescomerciais, como bares, saunas, cinemas pornô, boates e clubes de sexo, o propósito de minha pesquisa foi deslocar meu olhar desses estabelecimentos e, então, focar nas sociabilidade sem ambientes públicos. O que busco, portanto, o que busco verificar com relação à Área Fértil é como esse ambiente é elaborado por seus frequentadores e, ainda, o que o faz diferenciado no espaço urbano. A presença de jovens homossexuais em ambientes como o parque Vaca Brava para interações afetivo- sexuais e lazer impele à reflexão sobre como estes indivíduos agenciam sua sexualidade vinculada a determinados ambientes e roteiros na cidade. A Área Fértil O parque onde as garotas e os garotos constituem a Área Fértil tem cerca de dezoito mil m2 e está localizado em uma região de Goiânia característica por produtos, bens e serviços destinados a uma parcela da população com alto poder de consumo. Esse logradouro público é cercado por grandes edifícios residenciais, galerias comerciais e um dos maiores shoppings da cidade. Em contraste com a concentração de edifícios que o delimita, o parque é caracterizado por um denso bosque e o restante de sua área é preenchida por grama e árvores dispersas. Há pistas para caminhada e passeio, equipamentos para ginástica, um grande lago e a sede da administração – onde ficam os agentes da Guarda Municipal. O parque é atendido por várias linhas de transporte coletivo e é freqüentado por diversas pessoas e grupos, como punks, góticos e metaleiros, rockers. Os jovens da Área Fértil, em sua maioria, saem de bairros periféricos distantes do parque e, em vários casos, de cidades vizinhas a Goiânia. Seria possível identificar que as pessoas com quem convivi e dialoguei nesse ambiente em geral se caracterizarem por serem garotas e garotos adolescentes de estratos populares ou médio- baixos, negros ou pardos e moradores da periferia. Há um ponto o parque utilizado para o encontro das garotas e dos garotos da Área Fértil e que também serve como local estratégico de onde é deflagrado o processo de ocupação deste ambiente. A concentração dos jovens corresponde a uma região entre o bosque e a sede da administração do parque, um dos poucos trechos que não são 4 cobertos por grama e, portanto, não é privilegiado para quem queira sentar ou fazer piquenique. Exatamente neste local há cinco bancos dispostos em círculo em volta de uma árvore. A dinâmica de ocupação desse ambiente para a constituição da Área Fértil corresponde a uma sequencia de ocasiões. Os bancos que circulam a árvore comportam até quatro pessoas e são utilizados por quem deseja permanecer nesse local. Contudo, aos domingos, geralmente a partir das 14 horas, jovens começam a chegar ao parque e realizar o processo de ocupação desses assentos. As pessoas se aproximam em duplas ou grupos e, caso sozinhas, geralmente conhecem ou esperam encontrar alguém. A Área Fértil desperta a atenção de transeuntes no parque, pois, nas tardes e noites de domingo a aglomeração dos jovens é marcada por descontração, demonstração de afeto e expressões de gênero que borram uma coerência hegemônica suposta entre corpo, gênero e desejo (Butler, 2008). Uma situação que presenciei em um dos encontros aos domingos ilustra tal peculiaridade. Na ocasião, uma garota estava com cabelo curto, sandálias, bermuda jeans e blusa com estampa tipo indiana. Foi então que um garoto frequentador da própria Área Fértil a perguntou: “Você é menino ou menina?”. Como resposta, a garota levantou imediatamente sua blusa até exibir o sutiã. Esse tipo de postura e a confusão quanto a suas expressões de gênero das pessoas presentes não são casos isolados na Área Fértil. As fronteiras dessa região ocupada pelos jovens sofrem expansão e retração em virtude de eventos e situações no período em que elas e eles estão presentes no parque. Quanto mais distantes dessa região, menos “fértil” se torna tal área. Isso porque fora da concentração de jovens – demarcada na região dos bancos que circulam a árvore – há cada vez mais exposição a violências e agressões de pessoas e grupos intolerantes. Ainda assim, os jovens da Área Fértil também trafegam por outros locais, como o shopping em frente ao parque. À noite, um contraste pode ser percebido ainda mais explicitamente: enquanto a presença rarefeita de pessoas no restante do parque é marcante, na Área Fértil é notável grande concentração de garotas e garotos dissidentes. Quanto mais tarde, mais jovens aparecem; quanto mais escuro, mais pessoas; quanto mais imersos na penumbra, mais descontração e espontaneidade; quanto mais intensos, mais suscetíveis. Existem fronteiras simbólicas que distinguem pessoas no parque. Compreender os limites e territórios dos grupos presentes nesse logradouro público é um elemento importante para todas as pessoas, sendo que desrespeitar esses códigos pode ocasionar conflitos. Isso ocorreria, por exemplo, caso duas pessoas do mesmo “sexo” se beijassem em um local no parque que não fosse a Área Fértil. Ou poderia ocorrer também algum incômodo às pessoas da Área Fértil quando da presença de alguém estranho às condutas e performances dos jovens ali presentes. Ademais, podem ocorrer situações onde fatores externos interferem na concentração dos jovens e prejudica sua interação, os flertes, os contatos entre amigos. Uma dessas ocasiões pode ser ilustrada pela intervenção de um grupo de homens não frequentadores da Área Fértil aparentando serem em geral mais velhos. Eles pareciam saber que lá se encontram garotas que flertam com outras garotas, além dos garotos que fazem o mesmo com seus companheiros do mesmo “sexo”. Além disso, talvez poderia ser reprovável para esses homens as performances de gênero daqueles ali localizados. O grupo de forasteiros era composto por dez homens, que chegaram parodiando os jovens, mas logo saíram. Posteriormente, esse grupo de forasteiros retornou à Área Fértil e aproximaram-se de um garoto sentado em um dos bancos quando, em rápido 5 movimento, um desses homens acertou o rosto do jovem. Houve bastante tensão e todos correram. Alguns garotos, inclusive aquele agredido, recorreram à sede da administração do parque onde estavam alguns agentes da Guarda Municipal, membros da segurança pública relacionados à prefeitura da cidade. Os jovens gritavam indignados denunciando a falta de segurança no local. O agredido bradava intempestivamente: “Olha aqui o roxo em minha cara. Eles me bateram, não foi um beijo!”. Outro: “Eles esperaram a gente apanhar para ir atrás”. Após esse episódio, alguns jovens saíram do parque e ou se deslocaram para outras áreas regiões deste logradouro público. A maioria dos garotos insistiu e continuaram presentes no ponto de concentração da Área Fértil. Após alguns minutos a incômodo foi substituído em virtude do restabelecimento da peculiar interação que é possível verificar nesse ambiente. O número de jovens presentes no momento de maior expansão da Área Fértil, ou seja, no período noturno, pode chegar a cerca de sessenta jovens. Em meados de 22 horas quase todas as pessoas saem do local e quando se ausentam por completo da Área Fértil os jovens também o fazem em duplas e grupos, raramente sozinhos. Eles não necessariamente retornam a suas casas, podendo recorrer a outros lugares onde poderiam continuar em contato com amigos e paqueras. Além do mercado Não há como precisar quando foi iniciada a aglomeração desses jovens no parque, contudo, o que efetivamente mobiliza a análise é verificar como garotas e garotos realizam uma ocupação periódica deste ambiente para sua convivência. Destaco então o trecho de um diálogo que estabeleci via MSN5 com Elaine6, uma das frequentadoras da Área Fértil. Essa interação foi estabelecida após nos conhecermos no parque e durante a troca de mensagens falávamos as condições paraque as garotas e garotos se reúnam neste ambiente. Marcelo: Como você soube da Área Fértil? Elaine: Eu frequento há uns 5 anos, desde meus 16 anos. Marcelo: Entendi! Mas, me diz, você freqüenta há 5 anos o parque, certo? Elaine: Sim. Marcelo: Então, desde quando começou aquele tipo de organização das meninas e meninos perto dos bancos? Elaine: Há muito tempo atrás. Lá é um lugar que achamos para esconder dos héteros e ter calma. Marcelo: Eu não conhecia o lugar nesse tempo que você falou. Elaine: É porque lá pra frente as pessoas ficam rindo e discriminando. Aí, lá foi um lugar melhor. Em suas afirmações, Elaine indica alguns elementos importantes para a compreensão sobre a constituição da Área Fértil enquanto um espaço de sociabilidade. Uma primeira característica é que, como ambiente localizado em um parque público, a 5 Trata-se de um software para interações on line, sendo o MSN um dos mais utilizados para esse fim. 6 Em função de princípios éticos, os nomes próprios que constam neste texto estão modificados, portanto, não correspondem àqueles utilizados pelas/os jovens. 6 Área Fértil não existe senão por iniciativa e articulação de seus próprios frequentadores e, portanto, nunca sem eles. Além disso, considerando que tal espaço é constituído aos domingos, justamente em dia onde se percebe maior presença de pessoas e heterogeneidade de grupos no parque Vaca Brava, “esconder” e ter “calma” na colocação de Elaine podem soar paradoxais com o que se percebe no logradouro público em questão. Contudo, a garota oferece uma reflexão bastante coerente com relação aos usos daquele espaço. Considerando os espaços públicos que essas garoas e garotos poderiam utilizar na cidade, a predileção pela Área pode ser compreendida a partir da colocação de um garoto: “A homofobia aqui é menos tensa”. Essa afirmação é peculiar, pois sinaliza que mesmo no parque esses garotos não estão isentos de problemas por conta das implicações de sua presença no local, contudo, estes encontros ainda são viáveis por que elas e eles insistem em uma ocupação reiterada deste espaço a cada domingo. Sendo assim, as disputas com outros grupos e frequentadores do parque não se torna um impedimento, mas um limite para elaboração da Área Fértil em um logradouro público já bastante frequentado e valorizado na cidade. A apropriação desse logradouro público possibilita que alguns jovens em questão não estejam limitados a frequentar apenas estabelecimentos comerciais para suas sociabilidades em contextos de lazer. Dessa forma, pode-se compreender outro aspecto das colocações de Elaine no trecho da conversa destacado acima quando a garota fala sobre “esconder dos héteros e ter calma”, o que nos remete ao caso de Andréia, uma de minhas principais interlocutoras. A garota morava em um bairro da região metropolitana. Na Área Fértil, Andréia geralmente se envolvia com outras garotas, mas ocasionalmente namorava ou se envolvia também com homens. Apesar de ser assídua no parque e geralmente estar acompanhada de garotas com quem caminhava de mãos dadas e beijava, Andréia adotava uma postura que pode auxiliar à compreensão de alguns limites e condições para a demonstração de afeto e para a assunção da homossexualidade em público. No contexto de seu bairro, distante do parque, Andréia convivia com seus vizinhos e com colegas do colégio público onde estudava e nesses ambientes promovia uma espécie de administração do segredo acerca de sua sexualidade, ou seja, buscava manter um sigilo sobre o fato de ter namoradas. Uma das estratégias de Andréia era utilização de um anel que representaria algum compromisso afetivo, inclusive com alguns namorados que tinha paralelos aos demais relacionamentos com mulheres. A seus pais e vizinhança, Andréia compartilhava apenas o contato que tinha com garotos, sendo que apenas em outros bairros que frequentava na cidade e mais explicitamente na Área a garota se permitia flagrar em trocas de carícias com suas companheiras. Dessa forma, o caso de Andréia permite compreender outra relação entre segredo e revelação sobre a homossexualidade, posto que com tal situação é possível identificar distintas posturas de algumas pessoas no caso da ocupação de espaços públicos para sociabilidade, tais como a Área Fértil. A garota, assim como outras colegas também presentes no parque, apesar de promoverem uma intensa visibilização de seus afetos neste logradouro público, procura promover um sigilo sobre suas relações com garotas frente a outras pessoas e outras redes que mantém em regiões distintas nas cidades. Em lugar de um ocultamento da homossexualidade em boates, bares e outros estabelecimentos comerciais, nesse caso o próprio espaço público é o local onde se pode cultivar esse tipo de segredo, ainda que tais interações entre Andréia e suas companheiras ocorram no período vespertino. 7 O trajeto de Andréia pela cidade permite certa eficácia em sua gestão do segredo, pois o bairro onde reside e as demais pessoas que conhece estão distantes dessa região onde mantém seus relacionamentos com garotas. Outro aspecto importante a ser considerado é a razão para que esses encontros ocorram no parque onde há a Área. Como tal logradouro público está situado numa área central e nobre da cidade, há talvez mais incentivos às demonstrações de afeto e às performances de gênero entre esses garotos e garotas. Isso porque nestes ambientes a polícia e demais agentes de segurança pública podem ser mais permissivos ou menos agressivos, posto que essa região da cidade é inclusive mais segura. Quando esses jovens retornam a seus bairros a relação com a polícia e as possibilidades de denúncia por possíveis abusos podem ser precárias. O parque público como local para a assunção da homossexualidade versus o bairro distante como local para o segredo permite que os jovens da Área não tenham que utilizar os estabelecimentos comerciais como uma condição para o ocultamento de suas performances e afetos. Assim, as matinês e outros ambientes relacionados ao mercado em que venham a frequentar esses garotos e garotas são mais alguns dos locais elegíveis para que convivam entre amigos e também tenham acesso a encontros com namorados. Então, é preciso considerar que mesmo em um ambiente em público, em algum nível opera uma a modalidade de regulação de suas vidas onde há um jogo entre o ocultamento e a revelação de suas condutas eróticas mediante cada um dos contextos e situações em que estão inseridos. Como destaca Eve Sedgwick, “mesmo num nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas” (2007: 22). O armário, como dispositivo de regulação da vida social, exige algum tipo de administração de uma vida “dupla” (Misklolci, 2007). No caso de Andréia e de algumas pessoas da Área, o que se segreda nos bairros passa a ser exposto no contexto do logradouro público, o que demanda que essas jovens lidem com alguns problemas, como a violência. Ainda que busque uma administração do segredo, o mesmo surge como um potencial incentivo para que Andréa seja assídua na Área e não tenha suas experiências espaciais interditadas do espaço público (Silva, 2009). Como não estão necessariamente dentro de ambientes comerciais e, portanto, provisoriamente protegidos por tal estrutura e segurança, a ameaça de represálias por parte de transeuntes, além de efetivas agressões físicas sofridas, são situações às quais as pessoas na Área precisam ter em conta quando freqüentam o parque. Outro caso importante a ser refletido diz respeito às posturas de Paulo e seus trânsitos na cidade. O garoto em questão é morador de um bairro na periferiada Goiânia e o conheci em um encontro entre alguns conhecidos da Área Fértil que foi organizado por Andréia. Paulo não ocultava de sua família e de colegas o seu interesse por relações com outros homens e buscava se organizar para evitar possíveis represálias ou agressões em função disto. O garoto utilizava dos encontros na Área para investir em roupas, maquiagem e acessórios que não correspondiam àqueles que utilizava cotidianamente, como bermuda e camiseta. Então, em alguns domingos Paulo chegava ao parque trajando vestido, salto alto, bolsa e batom, além de uma peruca lisa que encobria seu cabelo curto e crespo. Quando o garoto comparecia dessa forma no parque era reconhecido pelo nome de Priscila e por meio dessa montagem, Paulo permite a identificação de outra peculiaridade dos encontros na Área, ou seja, a reunião de pessoas com os mais variados 8 estilos e, ainda, onde há um ambiente permissivo a potenciais experimentações e trânsitos com relação a performances de gênero e aos investimentos corporais. Ao menos nas experiências de Paulo e de outras jovens na Área, a possibilidade de investimento em outras estéticas e em outra relação com seu próprio corpo não necessariamente dependem de ambientes comerciais para que se consumem. Ademais, mesmo que nas matinês ou demais ambientes que esses jovens possam frequentar haja o chamativo da segurança, o valor da entrada e a dificuldade de consumir os produtos oferecidos nestes espaços podem ser barreiras consideráveis. Espaço público e sexualidade Enquanto uma das diferenças que distinguem as garotas e garotos da Área Fértil em relação ao restante do parque e da cidade, a sexualidade é regulada por um dispositivo de poder que não necessariamente reprime, mas disciplina como, quando e onde certas práticas são exercitadas (Foucault, 1988). O local destinado a condutas e performances como aquelas dos garotos da Área é então o lugar da invisibilidade e da discrição, o que se concretiza quando a possibilidade de existência e convivência de quem não corresponde a tais discursos é alijada dos ambientes públicos. A reflexão sobre esse dispositivo em Foucault (1988) advém do exercício do autor em destacar a centralidade da sexualidade nas sociedades ocidentais contemporâneas. O autor identifica que no decurso dos séculos XVIII e XIX foram criados mecanismos que fizeram proliferar discursos e dispersarem saberes sobre sexualidade. Ocorre que junto a tais discursos, uma série de instituições e conhecimentos passaram a advogar a verdade sobre o sexo e sobre o que passaria a ser identificado como práticas salutares, legais e não pecaminosas. Foucault sinaliza então que, além de leis ou saberes específicos, foi constituído um dispositivo da sexualidade, que pode ser entendido como um amálgama de discursos, instituições, leis, o dito e o não dito que acabam por regulamentar a vida em sociedade por meio da sexualidade. Compactuando com o autor, Guash e Osborne (2003) também identificam que há mecanismos – explícitos ou não – que regulam o desejo erótico. “O sexo não se julga apenas, administra-se” (Foucault, 1988: 31). Considerando a existência de dispositivos que insistem na manutenção da homossexualidade ao âmbito do privado e, simultaneamente, reforçam a heterossexualidade como permissível e anunciável em público (Duque, 2009), a Área Fértil caracteriza-se como uma exceção. Entretanto, ainda que haja uma iminente violência e demais inconvenientes, talvez esse ambiente possa ser um local privilegiado para as pessoas que os frequentam justamente porque em outros locais seu acesso pode ser indesejável ou inviabilizado. Questionar quem e sob que condições é necessário negociar essa ocupação de logradouros públicos a partir dos casos desses jovens permite identificar que essa permanência em regiões como a Área Fértil não corresponde necessariamente a uma intencionalidade por parte dos garotos e garotas ou um ideal expresso em suas narrativas. Em lugar de pensar que essas sociabilidades em público são uma escolha para esses jovens, tendo a pensar que a ocupação do espaço público lhes permite o usufruto de um maior espectro de sociabilidade que implica em acesso a outros lugares e instâncias para além do mercado (Duque, 2009). A ocupação periódica do parque traz à tona os deslocamentos que essas garotas e garotos vêm estabelecendo na cidade e, por conseguinte, ressignificado fronteiras e 9 limites para sua sociabilidade. Os frequentadores desses locais estimulam sua transformação, multiplicam seus usos e significados e, assim, tornam a cidade em produto de sua interação (Magnani, 2005). O instigante não são seus encontros e interações em si, senão como, quando e onde ocorrem. Amparados por uma vertiginosa transformação do lugar social da homossexualidade no país (Facchini, 2008), esses jovens então protagonizam um processo de mudança social. Bibliografia BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. CARRARA, Sérgio; SIMOES, Júlio Assis. In: Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. In: Cadernos Pagu. Jan./June, no. 28. 2007. DUQUE, Tiago. Montagens e desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção das travestilidades na adolescência. Dissertação de Mestrado. São Carlos: UFSCAR, 2009. FACCHINI, Regina. Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. Tese de doutorado: Universidade Estadual de Campinas, 2008. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. FRANÇA, Isadora Lins; SIMÕES, Júlio Assis. Do “gueto” ao mercado. In: GREEN, James & TRINDADE, Ronaldo. Homossexualismo em São Paulo e Outros Escritos. São Paulo. Editora UNESP, 309-336, 2005. GREEN, James N. Além do Carnaval. 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