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Direito Penal Brasileiro RAUL ZAFFARONI E NILO BATISTA Metodologia Jurídico Penal

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perdidas, Bs. I\s., 1990.
150
~ 8. METODOLOGIA JURÍDICO-PENAL
l. Método e dogmáticajllrídica
1. O direito penal é um saber jurídico; método significa caminho; ocami.
nho para alcançar um saber jurídico deve ser Jurídico. O método jurídico é
fundamentalmente de interpretação da lei e esta se expressa em palavras (lin-
guagem escrita). Possui um objetivo prático - que é orientar as decisões
jurisdicionais - e, portanto, alcança tal objetivo influenciado pela concepção
geral acerca de tais decisões. Deriva daí que o método sempre esteja condicio-
nado pelo modelo de estado ao qual o saber jurídico serve, ou seja, sua escolha
é precedida por uma decisão política fundamental. Quando o Poder Judiciário
se limita a executar as leis, em função de um ordenamento disciplinar da socie-
dade no marco de um estado verticalizado de forma militar, é suficiente um
saber jurídico baseado na interpretação puramente gramatical (como a exegese
no estado bonapartista), que faz da lei hierarquicamente inferior uma espécie de
fetiche'; quando o Poder Judiciário constitui um instrumento nas mãos de uma
facção governante que não ubserva sequer suas próprias decisôes prévias. não
há método, c sim meras racionalizações jurídicas da vontade arbitráriaomnírnoda
do governo (estado de pulícia); se, entretanto, o Poder Judiciário se encarrega
efetivamente da produção racional de decisões, no quadro de uma Constituição
republicana por cuja supremacia lhe caiba velar, o método se orienta na direção
da construção de um sistema (estado constitucional de direito). Mesmo dentro
do modelo napoleônico, contudo. o recurso à exegese é insuficiente, apresentan-
do-se apenas como o primeiro passo de uma interpretação útil, fracassando desde
logo perante as leis gramaticalmente equívocas ou contraditórias. sem contar com
o fato de que a linguagem jamais é totalmente unívoca. Por isso, é claro que o
direito não é objeto de interpretação senão fnlto dela, ou seja, de uma variável que
não depende apenas da legislação mas, sobretudo, da atividade doutrinária e
jurispnldcncial2, que nunca é asséptica ou inocente a respeito do poder.
2. Qualquer método, para ser jurídico, requer uma análise exegética (e
também histórica e genealógica) da lei e uma posterior construção explicativa.
Em suma, trata-se da necessidade de construir um sistema, isto é, de formar um
conjunto organizado que enlace seus elementos. É, aproximadamente. o que se
Doracto. Pedro. El duecha y sw' sacerdotes, p. 43. Sobre a escola da e.'(cgese. Coelho. Luiz
Fernando. Lógica Jurídica c lnlcrprd:lçào das Leis. Rio, 1979. cd. Forense. pp. 88 s<;,.
Guaslini. Riccardo _ Rebuffa. Giorgio. na Introducciún a Tarcllo, Giovanni, p. 16.
151
conceitual para prover segurança jurídica, sem prejuízo de que muitas vezes a
dogmática nem sequer tenha permitido tal previsibilidade.
5. Aquela função de prover segurança jurídica não se satisfaz com uma
mera previsibilidade das decisües: segurallçajurídica não é segurança de res-
postall. Tuuo uependerá de qual resposta segura se trate, pois o estado ele
polícia costuma oferecer certa segurança de respostal2, embora o positivo ncs-
ses casos pode ser precisamente eludi-la. Não é tampouco sul1ciente a constrll-
çâo conceilual para que O discurso jurídico garanta segurança jurídica. Uma
construção conceitual especulativa, elaborada em função de dados legais e da-
dos da realidade selecionados para não desvirtuá-la, racionalizando deste modo
qualquer exercício do poder punitivo. mas que omita ser guiada por um sentido
político (que não se pergunte para que serve) não é capaz de prover segurança
4. Já se observou que o saber jurídico-penal (direito penal) tem por objeto
a segurança jurídica (aqui entendida como a dos dircitos ou bens jurídicos de
toda a população) ao propor üs agências jurídicas que operem otimizando scu
exercício de poder para controlar, limitar e reduzir o poder das agências de
criminalização primária e secullll~í.ria. Assim, tut.clará os bens jurídicos de (Od3
a população diante de UIIl poder que, de outro modo, seria ilimitado (na forma
do estado de polícia) e acabaria no caos que o artigo 60, ~ 4°da Constituição da
República quer evitar; deste [lOgulo, a segurança jurídica, mais que segurança
por meio do direito, seria a segurança do próprio direitos. Esta percepção do
direito penal se esquiva à crítica que considera que o projeto político e social da
modernidade frustrou-se por não resolver o problema da violência, por identil1-
car o direito como racionalização da violência9, respondendo ao famoso para-
doxo de Radbruch: ml0 um direito penal melhor. mas sim algo melhor que ()
direito penallu. Um direito penal melhor é aquele que reduz o poder punitivo,
abrindo assim espaço para modelos cficazes de solução de conflitos, quc serão
sempre algo melhor que o poder punitivo.
faz desde que os glosadoresinauguraram o saber jurídico-penal3 , rccordando-
se como primeira definição jurídica do delito aquela formulada por Tibério
Deciano4, e que se expressa com", metalinguagcm manifesta desde o século
XIXs ;.com a chamada dogmática jurídica, consistente na decomposição do•
texto legal em elementos simples de conteúdo reconhecido (dogmas), com os
quais, em seguida, se procede à construção de uma teoria interpretativa, que
deve corresponder a três regras básicas: a) completitude lógica, quer dizer, que
não seja interiormente contraditória. Esta regra será violada, por exemplo, por
uma teoria que considere uma mesma circunstância eximente e atenuante, sem
compatibilizar os critérios (sem distinguir os casos onde exime de pena e onde
simplesmente a atenua). porque equivale a dizer que alguma coisa é c não é ao
mesmo tempo: b) compatibilidade legal, ou seja, que não possa imotivadamente
postular decisões contrárias à lei. Tal regra não deve ser entendida qual servilis-
mo exegético para com a letra da lei penal subordinada: a construção deve
considerar, antes de mais nada, a Constituição e o direito internacional dos
Direitos Humanos; a compatibilização deve privilegiar a lei constitucional e
internacional; c) harmoni£ljurídica, também chamada de lei da estéticajurfdi-
ca6, segundo a qual a construção deve ser simétrica, não porém artiticiosa OLl
amaneirada, c mostrar certa grâce c/li nalure/. Esta regra não se impõe tão
absolutamente quanto as duas anteriores, mas sua observância é altamente cun-
veniente. Uma teoria que admita faltar em um pressuposto o que é necessário
em outro, e procure sair deste impasse inventando equivalentes eventuais em
cada oportunidade, não respeita essa regra.
3. Afirma-se que a dogmática jurídica "estabelece limites e constrói con-
ceitos, possibilita lima aplicação do direito penal segura c previsível e subtrai
essa aplicação da irracionalidadc, da arbi[rariedade e da improvisação"7. O
certo, porém, é que não basta a previsibilidade das decis6es ncm a conslruçâo
A rigor. a modernidade jurídica começa no século XII, com a renovação do direito justiniâneo.
cC Pereira dos Santos, Gérson, Do passado ao jutllro em direito penal, p. l7; Rüping, fi.,
Grulldriss, p. 33; Morillas Cueva, Lorenzo, MelOdología y cieflcia penal. p. 13; Piano
Mooari. Vincenzo, Dogma/ica e illlerpre/al.iolle, p. 13; Legemlre, Pierre, em Derecho y
psicoanálisi.~, p. 131 55.
Seu Trac/ollu Criminalü (1590) dizia que "delito é () fato dito ou escrito de um homem,
por dolo nu por culpa, proibido peia lei vigente sob ameaça de pena, que nenhuma justa
causa pode escusar" (d. Schaffstein, Friedrich, La ciencia ellropea, p. 112).
Jhering, Rudolf von, L'esprit du Droit Romain, 1.m, p. 26 $S.; Pasini, Dino, Etl.l'ayo sobre
lhering; Wolf. Erik, Grosse Rechlsdenker, p. 616 $S.; completa informaçãu em Agustín
Squella (org.), lheri"g y la lucha por el derecho.
Sobre ela, Jhering, L 'esprit du Droit Romai", 1. fIl, p. 69.
Cf. Girnhcrnat Ordcig. Enrique, em Problemas ac/uales de las Ciencias Penales y de la
filosoFa dei DerecllO, p. 495 ss.
152
"
"
Radbruch. Gustav, llllrod/ICcicJlI, p. 39; contrapõe-se à lese que sustenta a proteção dos
hens jurídicos assinalados pelo legislador, e ao conseqilentc debate com aqueles que
postulam a tutela de valores étic(Hociais, que se resolvia pela visão dominante atribuin-
do uma suposta dupla função protetora (ussim, Wcsscls, p. 2; f••.tezger-Blei, pp. 116.7,
I\tezger, Modeme Wege, p. 2t 5S.: llaulrI:J.lln, pr. 13-14: Bockelmann, p. 53 5S.: Mayer,
H., p. 20; Stratenwerl, p. 28 5S.).
Mcssner, Claudio, em D[)Ut>, 1/94, p. 51 ss.
Radbruch, Gustav, El lwmbrc t'T1 el derecho, p. 69.
A respeito do conceito ohjetivo de segurança ~ do sentimento de segurança jurídica,
Carrara, Programma, n° 103; Carrnignani, EJemeflfQ, n° 124.
Cf. L6pez de Oilate, Flavio, La certeza dei derecJlO, p. 16 J.
153
jurídica. por mais previsíveis que sejam as decisões jurisdicionais que ela pro-
puser. A velha jurispntdência de conceitos seria o paradigma de semelhante
construção e sua crítica não é novã'3 . Por outro lado, há também construções
concel\uais autoritárias e totalitárias, feitas sob medida para estados de polícia,
embora illgumas pareçam rudimentares, questionáveis portanto em sua consi-
deração corno saber jurídico.
6. O objetivo atribuído ao saber jurídico-penal não é produto do método,
mas sim pressuposto delel4• O método é o caminho e este se constrói para
chegar a algum destino. O direito penal, neste sentido, é teleológico: trata-se de
um saber com um destino político definido de antemão, que pode ser garantidor
(limitador) ou autoritário (supressor de limites), funcional quanto ao estado de
direito ou ao estado de polícia. A construção jurídico-penal não tem outro re-
curso senão escolher de uma maneira consciente seu objetivo, pois. em caso
contrário. não sabe o que constrói, porque não esclarece previamente para que
serve e. por conseguinte, ignora a que lugar conduz: o discurso penal lllllOritá.
rio é irracional por seus objetivos, mas aquele que pretende ser politicamente
neutro é irracional por seu método construtivo, sem preju{zo de que possa
acabar /lOautoritarismo e ainda que mio ()Jaça.
7. Os objetivos políticos foram legislativamente Illoldados desde o século XIX:
Feuerbach sustentava que o.direito penal- através dos tipos - tutelava direilOs subje-
tivos, em oposição ao bonapartismo, que lhe concedia a tutela do direito objelivo,
entendido como vOJ1lade do estado, da lei ou - o que é pior - do legislador. A vontade
do estado ali da lei é algo tão misterioso quanto seu esp(rjto; a do legislador pode ser
entendid.l como uma ficção, como a dos projetislas ou a do legislador histórico. A
primeira, por 1150 passar mesmo de ficção, não existe; os projetistas são tantos que é
muito difícil averiguar qual foi sua vontade, se é que ela exjstiu~ a do legislador
hislórico é reconhecível. às vezes, se foi expressa nos fundamentos dados (exposições
de motivos). As exposições de motivos constilllCITlUIlldado histórico que não deve ser
desprezado como parte da análise da lei, mas que não vincula o intérprete's.
I' A crítica originária tocou ao próprio Jhering, Der ZU'eck im Redu. Considera-se o antece-
dente da chamada "jurisprudência de iOlcrcsses" (cf. Recil5cn5 Siches, Luis. Panorama. p.
268 >S.).
l~ Sohn: a necessidade de um ponto de partida cxtralegal para iniciar a cadeia argumentativa.
Bacigalupo. Enrique. em DDDP. n° 2, 1983, p. 259.
I' Cf. infra, ~ 10, IV. Cf. Florez de Quinones. ~1.C.R., Valor yfunci6n de las exposici(Jnes
de motivos en las nonnas jllridicas, Santiago de Compostela. 1972, ed. Un.S.Comp.
154
8. lf inevitável que o direito penal se assente sobre uma decisão pré-
dogmática (ou pré-sistemática) para construir Os conceitos sistemáticos, de
acordo com wn selllido (objeth'o político), não só como resultado de uma de-
dução, como também porque, empiricamentc, a própria história do direito penal
demonstra que tanto se pode teorizar para preservar os espaços sociais de liber-
dade do estado de direito ou para reduzi-los - conforme o modelo do estado de
polícia - quanto se pode construir conceitos de segurança cujo objeto cOITesponda
aos direitos das pessoas ou à autoridade corp~rativa do estado, ou seja, para
consolidar o estado de direito ou para destruí-lo. A/llllciolla/idade politica dos
conceitos jurídicos é só um dado ôntico; o sistema pode assumi-la e expressá-
la, tornando-a mamfesta, mas se não Ofizer a única coisa que consegue é
deixá-la latellle.
9. Não é possível negar que há usos relativamente perversos do método
dogmático. Sua aplicação estritamente linlitada às leis clássicas (completitude
lógica c compatibilidade legal), a restrição de dados para interpretar, reduzin-
do-os aos normativos (dever ser), a refutação de dados do ser ou sua seleção
arbitrária e a incorporação de dados do dever ser corno se procedessem da rea-lidade (confusão dos planos normativo e ôntico) permitem construções
especulativas conceituais que possibilitam a imposição de penas a fatos que não
são ações nem são lesivos; que todo resultado seja considerado previsível; que
de todo comportamento se deduza insurgência quanto a um valor jurídico; que
todo vulnefÜvel seja tido como perigoso; que rodo dissidente seja considerado
inimigo do estado ou da sociedade; que toda lesão seja vista como censurável;
ou ainda que toda censura alcance a máxima entidade.
10. Todas essas racionalizações (falsas aparências de racionalidade) fo-
ram historicamente construídas em forma de sistema. Prova disso é que, sal vo
uma minoria (uKielerscllllle), os penalistas alemães restantes continuaram traba-
lhando com método dogmático sobre a legisração penal nacional-socialista'6•
método também usado pelo fascismo17 • que se colocou a serviço da segurança
nacional em nosso continente'8 e que hoje, potencializando o estado de polícia,
atende aos esforços de uma absolutização da chamada segurança cidadã com
teorias de prevenção gcraL Tais racionalizações autoritárias legitimam o poder
punitivo, começando por legitimar toda a criminalização primária de uma manei-
ra acrítica. Para cumprir essa função política, seu ponto de partida teórico é uma
confusão dos planos normativo e fático: o requisito republicano, segundo o qual o
I!> v. Mezger. Edmund, em ZStW, 57, p. 675 ss.
n Saltelli, Carlo, em Conferenze in tema di legislaz;one fascista, p. 99 55.
11 Bayardo Bengoa, Fernando. Dogmática jurídico-peneI!.
155
legisladorde\'e ser racional, transmutll-sc naficção de que o legislador é racio-
nall'). Partindo dessa ficção, a doutrina penal se impõe como tarefa construir um
sistema que legitima todas as crimin~lizações primárias decididas em função de
políticit(; e maiorias conjunturais, sacrificando os dados da realidade que pel1ur-
bam ali obstaculizam sua elaboração. Deste modo, obteve-se um grau tão refina-
do de racionalização que é possível explicar, nos termos dessa sistemática perversa,
qualquer decisão criminalizante, por mais absurda e arbitrária que seja20 .
11. O princípio republicano de governo impõe que seus atos sejam raeioM
nais21, mas ncm sempre eles são tudo o que de~'emser. A chave superadora está
em construir um sistema no qual as decisiJes jurisdicionais sejam racionais,
descarrando os atos legislativos, total ou parcialmente, quando sita
irracionolüJlldefor irredwivel, isto é,formulando uma propOSladogmática que
assegure ()avanço do principio republicano e não seu próprio definhamento.
12. A perversão na aplicação do método dogmático não é uma conseqii-
ência da construção conceitual de um sistema, mas sim do sentido com que se
constrói esse sistema (o para quê do mesmo), que fracassa quando ele é subme-
tido ~Iservidão de umei'lado legal de direito em lugar de convertê-lo em instru-
mento de um estadu cunstitucional de direito. O estado legal de direito pode
não ser autoritário, mas sempre corre o risco de sê-lo como conseqüência da
onipotência legislativa, tendente a clamar por um sistema dogmático servil e
incondicional que sacrifique a realidade pela pretensa vOllladedo legislador. A
sistem:uização não tem outro efeito senão cvitar contradições internas da teoria,
transferindo para toda a construção um componente teórico, que sení autoritá-
rio ou limitador segundo a prévia função política atribuída ao sistema de COfllM
preensão que se constrói (teleologia construtiva).
lI. Necessidade de construir 1lI1l sistema
1. O direito penal deve programar o exercício do poder jurídico como um
diqlteque contenha o estado de polícia, impedindo que afogue o estado de direito.
Entretanto, as águas do estado de polícia se encontram sempre em um nível supe-
19 Cf. Pereira de Andrade, Vem Regina, Dogmática e sistema penal, p. 66.
:{J Cf. SchUnem3.nn. Bernd. Cnnsideraciones críticas. p. 51; Pereira de Andrade, Vem Regina.
[)ogmática e sistema penal.
!I Sobre níveis t: critérios de racionalidade (lingUística, jurídicoMformal, pragmática.
tekolcígica, ética). Nozick. Robert, lA rzalUrale;:l1.de la raciollalidad; García, José FerM
nando. l.a raciollalidad en política y cn ciellcias sociales; Atienza, Manuel, Tras la
justicia, p. 199 5S.
156
riar, de modo que ele tende a ultrapassar o dique por transbordamento. Para evitar
isso, deve o dique dar passagem a UfiUl quantidade controlada de poder punitivo.
fazendo-o de modo seletivo,filtrando apenas a torrente menos irracional e redu-
zindo slIa turbulência, mediante um complicado sistema de comportas 'lue impeça
a ruptura de qualquer lima delas e que, caso isto ocorra, disponha de outras que
r~assegurem a contenção. O direito penal deve opor ao poder punitivo lima
seletividade com sinal trocado, conligurando perante ele umacofllraMseletividade.
A proposta de uma constante contrapuls50 jurídica ao poder punitivo do estado
policial, como um unfinished, impurta atribuir al) juiz penal a função de um pcrM
sonagcm trágico22, cujas decisões nunca aparecerão como completamente
satisfatórias, porque deve opor toda a sua resistência ao poder punitivo. O poder
punitivo que ameaça transbordar do dique é aquele habilitado pelas leis com fun-
ções punitivas latentes ou eventuais. A respeito, porém, do poder punitivo que as
leis penais manifestas habilitam, daquele que é menos irracional, não pode fechar-
lhe completamente a passagem, embora deva envidarcsforços para que seja aberM
ta só quando esliverem ultrapassadas as comportas dos sucessivos momentos
processuais (ele as entreabre com o processo, as abre com a prisão preventiva,
determina a quantidade que deixa passar com a sentença c controla a que passa
durante a execução) e estiver legalmente comprovado que em todos eles ocorre
um pressuposto onde a racionalidade do poder está menos comprometida.
2. Nesse percurso. as hidráulicas penal e processual penal devem coinci-
dir, a fim de permitir que as comportas só possam ser ultrapassadas pelo poder
punitivo que não apresentar sinais de irracionalidadc. Ao fim do percurso, che-
ga-se à criminalizaçii.o secundária formal de lima pessoa, o que em termos
jurídico-penais pressupõe duas grandes linhas de comportas seletiva.~';a) a
primeira impede a passagem do poder punitivo quando os presi'u{Jostos para
requerê-lo li agência judicial não estão dados; b) a segunda indica o modo como
a agência judicial deve responder a esse rcquerimenro. A primeira é chamada de
teoria do delito, e a segunda de teoria da responsabilidade penal.
3. Não causa espécie o falo de que o direito penallcnha se detido para
elaborar a teoria do delito de modo sumamente refinado, em especial quanto à
aplicação do método dogmático, pois esta, COlllO sistema de filtros que permite
formular a indagação acerca dos pressupostos de uma resposta da agênciajurí-
dica habilitante do poder punitivo, constitui a mais importante concrcção da
função do direito penal a respeito do poder punitivo negativo ou repressivo,
habilitado pelas leis penais manifestas. Neste capítulo a dogmática jurídico-
penal alcançou seu desenvolvimento mais sutil, supcnlimcnsionado em relação
às demais questões do direito penal.
11 Dreher, Eduard, em Fest. f Bockelmanll, p. 45.
157
4. Dentro do esquema tradicional de discursos legitimantes do poder puni-
ti vO,pôs-se em discussdo li necessidade de um sistema, com diversos argumen-
tos e objetivos. Tendo em vista o deseH'Volvimento tão notório e desproporcionado
da teor~ do delito, não é de se estranhar que nesse assunto se confundam as
críticas ao próprio método e à dogmática com aquelas que se dirigem para
algumas específicas construções da teoria do delito.
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sllbjetivo, que não é tão rudimentar quanto se pretendc:27 nem muito direrent~ dos do
século passado europeu continellla! e daquele ainda hoje vigente na doulrina francesa.
Teóricos e legisladores de tradição:mglo-saxônica foram inOuenciados por legisladores
europeus continentais2M ,e as respectivas obras doutrinárüt'\ registram tal influência. As
comparações doutrinárias não são raras nas últimas décadas2Y , o que comprova a exis-
tência de um sistema, pois, de outro modo, seria impossível levá-Ias a cabo.
5. Hoje em dia tornaram-se históricas as críticas à construção do sistema de
compreensão proveniente da t.:scola de Kiel, ou melhor, do nacional-socialismo pe-
nai ativo e militante, que defendia um delito entendido como toralidade, reduzindo o
direito penal a pura decisão política. Estamos procurando demonstrar que a constru-
ção do sistema pressupõe uma decisão polÍlica pré-sistemática, ao contrário de urna
construção tradicional que, às vezes, a esquece e considera possível construir um
sistema que prescinda dessa decisão (como, por exemplo. a maior parte do
neokantismo); a Kielerschule tentou o caminho exatamente inverso: resolveu ficar
com a pura decisão polílica. É perfeitarnellle explicável: a decisão política irracional
em favor do estado de pulícia <.ksiste dt: oferect:r à agência judicial um programa
racional de decisões, não só desnecessário corno também incômodo e perturbador
para o estado de polícia!J.
6. Tão históricos quanto os esforços dos penalistas de Kiel são aqueles levados
a cabo pelos jus-filósofos da escola egológica argentina~~•.os quais não ostentavam
signo político manifesto, sendo duvidoso que, em alguns aspectos. correspondessem a
essa corrente de uma maneira ortodoxa. No caso da cgologia, as tentativas de aplicar
a teoria do direito em geral ao direito penal em particular não passaram de manifes-
tações isoladas. Do mesmo modo, os escassos ensaios baseados no ncokantismo de
Marburgo tampouco surtiram efeilo~j.
7. O entendimento do direito penal anglo-saxão (sobreludo britânico) conservaria
mais atualidade, como urna prova empírica das possibilidades de funcionamento de
uma agência judicial que oferece garantias. apesar de não dispor de um sistema teórico
de direito penal e especialmente do delito2(,. Trata-se de um posicionamenlo pouco
convincente. porquanto é basti:lOteclaro o fato de que ajurisprudência inglesa dispõe de
um sistema estruturado namens rea e no actus reus, quer dizer, de um sistema objetivo-
H Sobre o irracionalismo de Kiel, Morillas Cueva. Lorenzo, Metodología. p. 176.
Landaburu, Laureano, El delito como estfllClUra; Atülión, Enrique R., UI escuela penal
técnico-jurídica.
H v.. por ex., Klcin Quintana. Julio. EnsC/yo de una 1f!oría jurídica dei dereclio penal.
~ó Nino. Carlos $., Consideraciones sobre la dogmática; do mesmo. Algunos modelos
metodológicos de ciencia jurídit.:a.
158
. ,
8. OUlra venente crítica observa que a construção de um sistema pode prejudi-
car ajustiça quanto à solução de casos parriculares, redu7.ir as possibilidades de solu-
cionar problemas, chegar a decisões contdrias à política criminal ali incidir na
aplicação de conceitos excessivamc:nle abstratosJO, A rigor. esses defeitos não são
atribuíveis à existência de um sistema. mas às características particulares de alguns
sistemas. Merece especial menção a observação referente à política criminal: se, como
tal, se entende a dificuldade para levar alguma função manifcsta da pena at~ suas
últimas conseqüências, em um sistema quc o impede pela necessidade de não contra-
di7.er algum dado legal ou interno, além de que, às vezes, isso possa ser uma vallta.
gem e não um defeito (quando um limite impede a pretensão de impor tudo aquilo de
que a aspirada prevenção necessitaria), nos casOScontrários se trata de um defeito
também atribuível à construção do sistema e não fi sua mera existência. Se se constrói
um sistema partindo de uma pretensa função positiva do poder punitivo. e a medida
da pena que esta função indica não pode ser obtida porque a lei não o permite, deve
optar-se entre considerar inconstitucional a lei ou metodologicamente incorreta a
construção, por violar a regra da compatibilidade legal.
9. Outra objeção à sistematização do direito penal e especialmel1le do delito
poderia provir da chamada tópica ou pensamento problemático, que remonta a
Arislóteles, Cícero e Vico, e que consisle em argumentar favorável e contrariamente •.i
todas as possíveis soluções de cada caso em particular, até chegar a uma que suscite
consenso geral como manifestação de vontade comum (tal como Viehweg propôs em
famosa conferência de t 950)11. Além do fato de que o método traga poucas inova-
ções, pois é a base de qualquer gênero de propostas conciliatórias. conhecidas em
matéria de ofensas à honra há alguns séculos.l~, e de que <I solução por consenso seja
11 cr. ()desenvolvimento de Smith-lIogan; o conceito de merls rea em Cadoppi, Alberto .
Estralto dal Digesto; historicamente, Prentiss Bishop,1ncl. New Commelltaries; Stcphcn,
James Fitzjames, A history.
]~ Cf. Cudoppi, Alberto, em RIDPP, 3, 1992.
],. Por exemplo, Eser. Albin - F1cteher, George S., Rechtjertigung ulld Enrschuldigtmg.
_,O! Roxin, p. 214.
'I Viehweg, Theodor, Tópica y filosofia. Cf. [Jmbém sua tese ele livre-docência em Muni-
que, de 1953 (Vichweg, Theodor, Tópica e Jurisprudência, trad. Tércio Sampaio Perraz
1r., Brasília, 1979. ed. Imp. Nac.)
.'1~ Albergati, Fabio, Del modo di ridj~rre li pace l'inimicirie private.
159
tradicional em muitas culturas pré-hispânicas de nosso continente, é natural que o
âmbito onde a tópica tenha sido discutida mais amplamente seja o do direito civil, por
se tratar de um insumo retórico para à solução conciliatória de conflitos. Sua aplica~
ção aó'{lireito penal33 só é imaginável à medida que sejam adotados mecanismos de
diversion34 , nos quais os conflitos saiam do direito penal para serem resolvidos por
via conciliatória, mas enquanto tais conflitos se mantiverem dentro do modelo puni-
tivo lama-se impossível, porquanto a intervenção penal é incompatível com a conci~
liação, por tcr suprimido a vítima: não há qualquer possibilidade de consenso quando
uma das partes fica excluída do modelo e passa a ser substituída pelo poder, que
assume seu papel através de uma ficção.
10. As objeções que foram formuladas à construção de um sistema em direito
penal e à dogmática jurídico-penal em particular, especialmente no âmbiw da teoria
do delito. têm considerável consistência e não podem ser ignoradas, até porque a
sistematiza~'ão não cumpriu suas promessas35• Em boa medida, pode-se mesmo afir-
mar que o empenho sistemático facilitou a racionalização do poder punitivo c não
questionou sua função, bem como que a pluralidade de teorias pennitiu sustentar
soluções díspares e. portanto, proceder de modo arbitrário. Cabe imputar ao empenho
sistemático alguns equívocos, principalmente pelo mito do legislador racional, ins-
trumento teórico que lhe subtraiu [orça crítica3ó; a pretendida assepsia ideológica de
algumas construções ignorou que a ideologia é parte inevitável do discurso jurídic037;
certo uso do método propiciou comparações com a geomerria e a teologial~; freqüen-
temente incidiu.se num excesso de nonnativismo39 com formulações exclusivamente
abstratas40, o que por vezes lcvou.o a encerrar.se numa "jaula de Paraday'''Il; a defi-
ciência na integração dos postulados dos direitos humanos.J2. que ex ige uma séria
.1.1 Em sentido crítico c reivindicando a necessidade do sistema. Gimbernal Onleig, Enrique,
COIlCeplU y método. p. 105.
.\~ Sobre este conceito. Kury, Helmut.Luchenmüller. Hedwig, Diversioll; cf. RIDP. v. 54,
1983, nO 3-4.
.1~ Cf. Pereira de Andrade, Verti Regina, op. cit.
l(' Sobre este miro, Nino, Carlos S,mtiago, COl1sideraciones sobre ia dogmática jurídica.
l7 Kennedy, Duncall, Libertad y restricción enio decisiónjudicial; sobrc os difcrentes concei~
[OS da ideologia e sua história, Eagleton, Terry. Ideolog[a.
.l~ Gardella, luan Carlos, em Encidopedia Jurídica Omeba, p. 230; Cerroni. Umberto,
Metndología y ciencia social. p. 112. Afirma-seque a idéia de sistema, estreitamente
vinculada à questão da certeza da fé no debate teológico, leria passado, no início do
século XVII, da astronomia e da teoria musical à teologia, à filosofia e à jurisprudência
(Luhmann, Niklas. Sistema Giuridico e Dogmafica Gillridica, trad. A. rcbbrajo, Bolo-
nha, 1978. ed. 11Mulino, p. 35) .
.1~ Küpper, Gcorg, Grenzen, p. 202; Creus, Carlos, em NDP, nO 1997/B, p. 609 S5.
40 Novoa Monrcal, Eduardo, La evolución deI derecho penal, p. 46; do mesmo; em DP, 1982,
p. 567 ss.
~l Schubanh, Manin, em ZStW. 1998, p. 827.
4~ Carvalho, Sala de. em DS-CDS, n° 4, 1997, p. 69 5S.
160
renovação clílica13; e, por fim. o empenho sistemático cos£Umaesquecl:r-se de que a
interpretação judicial das leis é um alOde compreensão de textos, e por is:-;oman.:ado
também pelas limitações. preconceitos, subjetivismos, rotinas e espontaneidade das
demais formas de compreensão4.1 •
11. Tais objeções propõem duas questões: a) a metodologia que permitill
a legitimação do poder punitivo será lÍtill}{lralimitá-lo, fIO momento de efetu-
ar sua deslegitimaçc70 como base de /Im direito penal moderador e redutor
dele? b) É possível construir um sistema a partir da des/egitifflaçâo do poder
punitivo? Cabe urna resposta afirmativa às duas perguntas. Respondcr ncgati-
v<tfficntc a essas perguntas implicaria assumir a mesma atitude da Kielerschi/le.
apenas de modo inverso: tratar-sc-ia dc substituir () sistema por lima decis50
política pura, só que em lugar de fazer a opção pelo estado de polícia, far-se-ia
pelo estado de direito. Tal tentativa provocaria lima ruptura do próprio estado
de direito: o estado de polícia tolera a substituição política (sendo, por dcfini.
ção, arbitrário - sua (mica coerência se dá através da vontade do poder, cuja
expressão mais elevada é o Führerprinzip)45, Illas não a tolera o estado de direi-
to, que impõe aos juízes decisões racionais. A circunstância de que o sistema
deva ser construído completando-se logicamente a partir de uma função Illode.
mdora não lhe tira o caráter de sistema: as contradições com soluções obtidas
por um sistema que apenas se constrói em busca de completitude lógica (supos-
tamente livre de qualquer funcionalidade política) serão inevitáveis e dificulta-
rão a discussão e comunicação entre teorias, mas este é o conhecido problema
da incomensurabilidade, dilema próprio da epistemologia geral c não do direito
penal cm particular46.
12. O desenvolvimento conceitual do direito penal- em particular, o rere.
rente à teoria do delito - constitui um esforço de raciocínio e pesquisa muito
peculiar dentro do campo jurídico. Quase todas as possibilidades sistemáticas
de construção, com díspares fundamentos tilosóficos, de teoria do conhccimcn.
to e de metas políticas foram exploradas. Refutar essa experiência e esse treina-
mento seculares, na tarefa de construir um direito penal exclusivamente redutor
do exercício do poder punitivo, seria mergulhar no eonsabido absurdo de pre-
tender descobrir o que todos conhecem e levaria a uma série de desatinos
.J.l Fernández Curr:lsquilla, Juan. em Actuaiidad Penal, n° 2, [995, p. 6955.
44 Hasscmcr. Winfricd. Crítica deI duecho penal de ho)', p. 42.
Ü Seu enunciado em frank. Hans, Im Angesicht des Galgens, p. 466; do mesmo.
Rechtsgnlfldlegung de.~ naziollal.mzialistischen Führerstaafes, pp. 11 e 39.
46 Fcycrabend. Paul K., Diálogo sobre el mêtodo.
16!
intuicionistas isolados e, sobretudo, inidôneos para a função prática do direito
penal (orientar as agências jurídicas do sistema penal). O direito penal se dissol-
veria numa crítica política sem serrlido prático'H. No fundo. seu resultado seria
legiti"mante através da neutralização da critica discursiva: a extrema
radicalízação política do discurso anula seus efeitos críticos. pois produz um
imobilismo impotente por incapacidade de mudar tudo a partir de uma prévia
redução a nada.Certamente isto não significa que haja um único sistema ou
constmção válidoS48 • pois o saber jurídico. que nesse aspecto não se distingue
dos demais saberes, sempre admite a elaboração de um sistema livre de contra-
dições, embora incompatível com outro que tampouco as contcnha
49
.
13. Para um direito penal entendido como filtro redutor da irraeionalidade
e da violência do poder punitivo. as comportas do dique penal que contiverem
as águas desse poder devem fazê-lo com inteligência. Descartado o impedimen-
to da passagem de toda a água (que levaria o dique à estagnação ou à ruptura),
ele não poderá permitir a passagem de qualquer água nem de qualquer forma:
sua quantidade, qualidade ~ forma de passar devem ser cuidadosamente pre-
determinadas. Se o poder punitivo é uma força irracional e o direito penal deve
dar passagem somente àquela parte dela que menos comprometa a racionalida-
de do estado de direito, a seleção penal deve ser racional, para compensar - até
onde puder - a violência seletiva irracional da torrente punitiva. Duas seleções
irracionais resultariam, pelo menos, numa soma de irracional idades, sem preju-
ízo de sua eventual potenciação. As comportas não podem opcrar esta seleção
inteligente se não se combinarem em forma de sistema, aqui entendido - ante a
equivocidade do vocábulo - em seu significado kantiano: "a unidade de diver-
sos conhecimentos, segundo uma idéia ", de modo que, a priori, se conheça o
âmbito de seus componentes e os lugares das partes50.
H O ensaio mais refinado para resolvê-lo a partir da teoria política é o uso altcrnativo do
direito; cf. Barcdlona. Pielro - Cotturri, Giuseppe. El estado y los juristas; também
Andrés Ibaõcz. Pcrfccto, PoUrica y jus/ida e/l el eJwdo capitalista. No Brasil, numa
clave insligante de pluralismo jurídico. cf. Bucno de Carvalho, Amilton, Direilo Allerna-
tivo em Movimento, Niterói, 1997. ed. Luam; do mesmo (dir.) Revista de Direito Alter-
nati .....o. S. Paulo. 1992, ed. Acadêmica. Cf. ainda Arruda Jr., Edmundo L., Introdução à
Sociologia Jurídica Altcm:lliva. S. Paulo. 1993. ed. Acadêmica; Wolkmer. Antônio Car-
los. Pluralismo Jurídico, S. Paulo, 1997, ed. Alfa Ômega.
H Cf. 1\..lunoz.Conde. Francisco. em Re~'.Penal. n" 5. 2000, p. 44 55.
4~ Cf. Price. H. H., Tmlh al!d Corregibility, p. 1955.
50 Kant. Kritik der reineI! Vcrmmft, 11,696.
162
IIl. Sistemas classijicatórios e teleológicos, dogmáticas
legitimantes e poder político e jurídico
I. Os sistemas de compreensão elaborados pelo direito penal podem ser
teleológicos ou classijicatóriosSI , segundo sua elaboração pressuponha uma
funcionalidade política e social ou se limite a simplesmente organizar, classifi-
car e hierarquizar elementos ou componentesS2 • Neste último caso, omitem toda
referência ao objeto que o saber penal busca, ou o subestimam, com o que sua
função fica latente. Embora a opção por um ou 'outro caminho pertença aos
teóricos, nem por isso se deve pensar que a aceitação de um ali de outro critério
depende apenas de uma decisão tc'órica desvinculada do poder. A esse respeito
nenhuma teoria conspirat6ria é verdadeira, sendo incabível imaginar que a dou.
trina se elabore diretamente por incumbência do poder. O êxito político de uma
sistematização (sua influência sobre as agências jurídicas) depende do poder,
porque o saber jurídico é aplicado, ou seja, é um saber posto a serviço das
agências jurídicas e estas preferem os sistemas de compreensão que sejam mais
úteis para seu próprio exercício, o que, por sua vez, depende da estrutura de
poder da agência jurídica e do estado. Os teóricos podem afastar-se dessas ne.
cessidaues, mas suas construções não terão êxito político - pelo menos imediato
_ porquanto as agências não as assumirão por resultarem disfuncionais para o
modelo decisório que a estrutura de poder na qual estão inseridas lhes impõe.
Na história do saber penal podem ser encontradas construções teóricas margi-
nais, algumas citadas como raridades, embora fossem inteligentes e de maior
valor científicoque outras, mas que não exerceram influência alguma sobre as
agências jurídicas, em viI1ude de não servirem ao exercício de poder na ocasião.
Outras vão adquirir importância em uma etapa histórica posterior à sua formu-.
lação: Beccaria c suas traduções não influíram sobre os tribunais, mas sim
sobre os políticos de seu tempo, pois a doutrina que as agências jurídicas daque.
le momento absorviam era a dos comentaristas das leis vigentes; Dorado r-.1ontero
não influiu tampouco sobre os juízes etc. Em geral. as que obtêm êxito - inclu-
sive político - conseguem isso através das agências ideológicas reprodutoras,
nas quais são treinados os futuros operadores das jurídicas.
2. Ensaiar um sistema de compreensão do direito penal para um estado
constitucional de direito não é a mesma coisa que ensaiá. lo para um estado
legal de direito. O segundo tenuerá a ser classificatório. porque suas agências
judiciais requerem organização que lhes permita resolver os casos sem deixar
de fora a racionalização dc toda e qualquer lei penal. Elas não enfrentam o
51 Cf. Jt:scheck.Wcigcnd, p. 204; Jakohs, p. 15S, nota 14.
5~ Assinalando sua origem nos p~lOdcctis(as. Rivacoba y Rivacoba. Manuel de. em I3FD,
UNED. n° 13. Madri, 1998.
163
J
problema da constilUcionalidade das leis penais, porque não têm poder de deci-
são sobre o assunto. Este foi o quadro de poder condicionante da dogmática
jurídico-penal européia. que não t,nha experiência amadurecida de controle de
conslollucionalidadc até o fim da II Guerra Mundial.•
3. O elaborado sistema de compreensão do direito penal alemão se iniciou
no século XIX, a cargo de doutnnadores (como Binding, !>.1erkele os hegelianos)
que se esquivavam do problema da constitucionalidade e ilegitimidade das leis
penais, pois partiam do pressuposto de um estauo racional (~egislador racional)
e não suspeitavam da subsistência de um estado de polícia sob múltiplas rnásca-
ras5J. Seria natural que cnvidassem esforços para o aperfeiçoamento dos requi-
sitos de operatividade de um poder que consideravam substancialmente racionaL
O desenvolvimcnto de sistemas teóricos ncssas bases foi estimulado porque
cumpria uma clara função pragm{itica, como classificar elementos e oferecer
um método de análise, o que facilitava tanto o ensino do direito (treinamento de
futuros burocratas) quanto a atividade judicial nos casos concretos (exercício
do poder decisório). Essa função pragmática (ensino e decisão) potcncializou o
desenvolvimento le6rico do delito quando a tarefa judicial foi encomendada a
agências jurídicas burocratizadas e verticalizauas, às quais se chegava após um
longo treinamento acadêmicoH e que eram próprias de um estado legal de direito.
4. O privilégio da função pragmática do direito penal favoreceu a tcodên-
cia aos sistemas c1assificatórios, especialmente em teoria do delito55 • os quais
procuraram preferentemente a distinção e organização de características e ele-
mentos. sem contudo derivar sua sistemática de uma função política do direito
penal Oll de uma teoria da pena que a ela obedecesse, salvo quanto à ficção do
legislador racional, do qual obviamente jamais proviria qualquer arbitrarieda-
de. Por isso, pôde ser mantida uma vaga (eoria dissuasória da pena, com com-
ponentes ou limites rctributivos, somente para sustentar a função motivadora
das normas e o car:íter tutelar do direito penal como verdade dogmática56 .
5. É compreensível que essa sistemática tenha sido mais ou menos adota-
da em toda a Europa continental ou que outras similares se tenham desenvolvi-
do, ainda que cum menor perfeição e refinamento, em virtude das mais modestas
exigências das respectivas burocracias judiciais. Na realidade, o lIlodelo buro-
$1 Cf. Schmidt, Eberhard. Lu lI!)'Y los jlleces. p. 36.
$~ Cf. Simon, Dieter, Die Ullabhtingigkeit des RiclIlCTS. pp, 41-48; ROllSSelCI,Marcel, Hístoire
de la Magistrature.
~s Como tal pode considerar-se o sistema de Lis7.t.Deling, cf. Rox.in, loco cit.: cf. Tavares,
Juarez. Teorias do Delito, S. Paulo, 1980, ed. RT, pp 1755.
~" Cf. infra, ª 9. I.
164
crático de agência judicial. convertido em uma pirâmide em cuja cüspidc UIll
tribunal de cassação unificador de jurisprudência exercia um poder interno ho-
mogeneizante, começa na Prússia57 , mas depois se estende à França napolcônica
e dali a toda a Europa. O mudelo napoleônico de poder judicial, COmo burocra-
cia hierarquizada, piramidal c com carreira análoga à militar, é frulo da Revo-
lução Francesa que, por desconfiança de que os tribunais do ancien régime
recuperassem poders, olllOrgou ao tribunal de cassação instrtlmentos de con-
trole para evitar que os juízes se distanciassem das leis promulgadas pelo parla-
mento. Este foi o mais acabado modelo de estallo legal de direito. no qual os
juízes não dispõem de nenhuma faculdade de controle constituciunal da própria
lei59. Esgotada a utopia de juízes eleitos c leigos, qlll: aplicam códigos tão claros
que dispensam conhecimentos jUIídicos especiais, característica ela primeira etapa
daquela revolução60, Napoleão manteve o controle dos juízes pelo soberano (já
não mais () parlamento) através de um tribullal de cassação corno chefatura
hierárquica de uma forte burocracia piramidal de funcionários imensamente
adestrados na docilidade reprodutora dos critérios judicantes superiores61 . Es-
ses juízes europeus e seus tribunais superiores precisavam de sistemas
classificatórios, que lhes permitissem ordenar os critérios recebidos de seus su-
periores e ordenadamente enunciar os seus próprios critérios. A isso se deve o
êxito político desse gênero de elaborações, que entrou em crise juntamente com
o modelo de agências judiciais às quais se adequava, tendo em vista que tais
hurocracias judiciais desempenharam um detes{ável papel político nos mais
variados auturitarismos europeus de entreguerras62.
6. O estado constitucional de direito europeu é recente, pois o controle da
constitucionalidade das leis só se desenvolveu a partir do pós-guerra (na Ale-
manha, Itália, Áustria, Suíça, Espanha, Grécia, Portugal), tendo em vista que
os raros ensaios anteriores nesse sentido haviam fracassado juntamente com os
sistemas políticos que os estabeleceram (na Áustria, Checoslováquia c na então
57 Cf. Picardi, Nicola. em 11l.Hiciay cle!wrrollo democrlÍtico ell ItaUa y Amtfrica Latilla. p.
279 SS.
H Sobre a arbitrariedade dos juízes do antigo regime e a reação gerada. Azevedo de, Plaulo
Faraco. Aplicação do direiro, p. 113.
59 Accattatis, Vincenzo. em Questiolle Giwaizia. 4, 1989. p. Iss.
(,(J A rigor. nenhum juiz assume ser apenas a boca da lei; cf. Bachoff. Olto,lue'ces y cOfwilllcfán,
p.23.
61 Sobre as const=qüências políticas desla estrutura. Masson. Gérard. Lesjuges etle pOlH'oir.
<'>2 Cf. Hannover, Heinrich - Hannovcr. Elisabeth. Politische 1llSliz /918-/933; Guarnieri.
Carla. Magistratura e politica ill /talia. p. 87; Papa. Emília R., em Questione Giusrjzia.
1987, p. 705 ss.; Cano Bueso, luan, l.a po/itica judicial dei régime'n de Franco (1936.
/945); Baslida. Francisco 1., lueces y franquismo; Grame, James A. C.. El cotllrol
jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes; Tocora. Fernando. Contml comtilll.
ciollol y Verechos Humanos.
165
República Espanhola)" no período de entre-guerras, a começar pela Áustria,
na OktoberverJass,mg de 1921, por inspiração de Kelsen. A novidade conduziu
a que se discuta, até hoje. se a ftlnção das cortes constitucionais européias é
polít,-ca ou judicial64 • A tradicional oposição entre O controle centralizado (mo-
delo austríaco). no qual o tribunal invalida a norma legal inconstitucional erga
amnes. e o cOlllrole difuso (modelo 1l011e-americano), no qual o tribunal invali-
da a norma legal inconstitucional no caso concreto. restou superada no Brasil, a
partir da Constituição da República de 1988, por um amplo mecanismo de
controle misto, no qual convivem o controle centralizado (atravésda ação dire-
ta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal) e o controle
difuso (através da argüição de inconstitucionalidade da norma legal aplicável
ao caso concrelO, que pode ser formulada perante qualquer juiz ou tribunal)6s .
O surgimento do controle da constitucionalidade das leis, visto pelo prisma das
leis penais, gerou conscqüências importantes, particularmente na Itália, onde a
crítica constitucional à lei tem sido muito vecmente. porém só recentemente a
doutrina brasileira passou a incorporar tal crítica66, antes impedida pela forte
influência da sistematização proveniente do estado legal de direito europeu.
7. A doutrina inglesa teve um desenvolvimento diverso, pois seu êxito
social dependeu de outra história de poder e de outra estrutura e proveniência
h.l Cf. Capelletti. p. 70 SS.; Mirkinc-Guetzévitch. Boris. Las rlllevas constituciones deI mt/fl-
do: Fix Zamudio, Iléctor. Los tribullales constituci01lale.\' y los derechos humanos.
M Ferrajoli, Luigi, Derechos y garantias, p. 27, rrisa que na atualidade to"daa teoria política
e jurídica se interroga acerca da conciliação da supremacia constitucional e do princípio
democrático, com atenção no controle constitucional judicial. Sobre isso também Ferreres
ComelJas, Víctor, .lI/súcia constitucional y democracia; Gargarella. Roberto. La justicia
jrent£' al xobiemo; Hlibcrlc, Pctcr, ilerme1lêutica constitucional; Moreso. José Juan, Úl
indeterminació1l dd derecho y la interpretaciôll de la constitución. p. 233 55.: Nino,
Carlos S, Fundamentos de derccho constitucional, p. 673 ss.
h~ Antes da proclamação da República, seria impensável um controle da eonstitucionalidad~
das leis, de vez que "3 sanção imperial cxpungia-as de qualquer vício"(Jacques, Paulino,
Curso de Direito COllstituciollal, Rio, 1962, ed. Forense, p. 174). A primeira Constitui.
ção republicana admitia o controle de leis estaduais, e foi a lei nO 221, de 1894, que
autorizou abstivcsscm~se os tribunais de aplicar leis "manifestamente inconstitucionais".
A partir da Constituição de 1934 roi o princípio expressamente reconhecido. Cf. Silva,
José Aronsu da, Curso de Direito Constitucional Positivo, S. Paulo. ed. RT, pp. 49 ss:
Hastas, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, 5_ Paulo, 1989, ed. Saraiva. pp.
32355; r-.loro, Sérgio Fcrnando, Legislação Suspeita'! Curitiba. 1998. ed. Juruá: ampla
notícia bibliográfica em Barroso. Luís Roberto, Con~li[uição da República Federativa do
Brasil Anotada, S. Paulo, 1998, ed. Saraiva, p. 216.
66 Cr. Luisi. Luiz. Os Princípios ConstilUcionais Penais, P. Alegre, 1991, ed. Fabris;
Cemicchiaro, I.uiz Vicente - Costa Jr., Paulo Jose, Direito Pena na Constituição, S. Pau-
lo, 1990. ed. RT; Shccaira, Sérgio Salomão - Corrêa Júnior, Alceu, Pena e Constituição,
S. Paulo, 1995. cd. RT; Ribeiro Lopes. Maurício Antõnio, Teoria Constitucional do Di-
reilo Penal, S. Paulo. 2000. cd. RT.
166
das agências jurídicas. Na Grã-Bretanha, o saber acadêmico tem reduzida in~
fluência sobre o exercício do poder das agências jurídicas. Isto se deve ao fato
de que, há séculos, as nobrezas locais foram submetidas ao poder central da
monarquia e, depois, iniciou-se uma longa disputa entre o poder real e o do
parlamento. Nessa contenda, o parlamento se declarou onipotente ao ponto de,
revelando seus próprios preconceitos de gênero, ter Lord Holt dito que ele "po-
deria fazer até coisas que fossem algo ridículo: poderia fazer com que Malta
estivesse na Europa, poderia fazer de uma mulher conegedora ou juíza de paz.
contudo não poderia mudar as leis da natureza, como fazer de uma mulher um
homem ou de um homem uma mulher. O tribunal supremo integrou-se à câmara
alta e os advogados se incumbiram da formação dos candidatos ajuízes, que o
pmlcr político deve escolher entre aqueles treinados e habilitados pelas corpora-
ções de advogados, razão pela qual estes últimos sempre se opuseram à forma-
ção de uma burocracia judicial61 . Devido a essa dinâmica do poder, o sistema
do saber penal inglês com êxito político possui características rudimentares, de
vez que, baseado na prática jurisprudencial, não admite o exercício de um poder
acadêmico forte, tendo em vista que osjuízes são mais adestrados nos escritóri-
os de advocacia do que nas universidades_
8. Essa tradição um tanto rudimentar foi útil aos Estados Unidos, que
jamais a abandonaram, porque quando substituíram o sistema inglês por outro,
no qual os juízes controlavam os legisladores (exatamente de modo inverso ao
francês revolucionário e ao napoleônico), as forças políticas não permitiram
tampouco que os juízes fossem recrutados por uma burocracia corporativista,
mas cuidaram ciosamente de sua designação através de critérios partidários6!.
9. Entre nós, até o advento da Constituição da República de 1988, adotou-
se o modelo proveniente dos Estados Unidos, no qual os juízes exercem um
controle de constitucionalidade difuso, de acordo com a Carla de Virgínia, que,
no pólo oposto à Revolução Francesa, criou um poder judicial com capacidade
de controle sobre o legislativo69 e um poder judicial recrutado partidariamente,
Em que pese a óbvia influência da doutrina constitucional norte-americana so-
bre nossos professores na matéria, nossa doutrina penal foi importada da Euro-
h! Cf. Birch, Anthony H., British System ofGovernmetlt: Yardlcy, D.C.M., Inlrotiuctiofl to
British COllstiwtionaI Law, p. 61 ss.; Hartley, T.e. - Griffith. J.A.G.,Govemmellt and
Law, p. 174 SS.; em especial, Griffith, J.A.G.,Gilldici e politica in Inghilterra. Para a
declaração de Lord lIoll. Wilson. O. M., D., Digesro de la le)' parlamentMia, p. 19.5.
6lI Cf. Chase, Harold \V.. Federal Judges: theappoiming process: Simon, Paul. cmJudicafljre.
70, 1986, p. 55; Morenilla Rodríguez, 10sé Maria, La orgalliz.ilción de los tribunales;
Sutton, 1.5 .. ,\merican Government, p. 135 ss.
Ml Davis, M.I-I., em The Journal ofComparative Law. 1987, p. 559 55.
167
"
pa continental, onde o controle de constitucionalidade era desconhecido nem se
propunha a legalidade da lei, mas havia apenas uma sistematização
classificatória organizadora de elOO1entos que facilitassem o ensino c as deci-
sões. i?or conseguinte, entre nós, as fontes da doutrina penal provêm das elabo-
rações c1assificatórias próprias dos estados legais de direito e foram inseridas
em um saber jurídico para agências que, constitucionalmente, corresponderiarn
a um estado constitucional de direito. Tal fenômeno se explica em grande parte
pela peculiar disparidade entre o modelo de estado constitucionalmente progra-
mado e o realizado, de fato, durante todo °período das repúblicas olig::írquicas
latino-americanas.
10. Posteriormente, nosso continente sofreu diferentes formas de
autoritarismo político, que frontalmente mantiveram separados o estado real c o
estado programado nos lcxtus fundamentais. No discurso penal foram recepci-
onados sistemas de compreensão provenientes de países europeus submetidos a
longas ditaduras, nas quais a doutrina se adequava aos controles sobre a vicia
acadêmica e às necessidades das burocracias judiciais que se refugiavam no
culto à lei, como UllllllCio de defender-se das arbitrariedades ainda piores que
podiam advir de qualquer tentativa de separar-se dela e sob o risco de que se
pudesse perder, inclusive, a mera segurança da resposta. Isso obteve êxito soci-
al e político cm nosso continente, dominado por inúmeras formas de autoritarismo
que proporcionavam, ainda, menores garantias do que os estados legais de di-
reito dos países europeus. Tanto ali quanto aqui, o discurso c1assificatório ser-
viu, às vezes, de defesa mínima contra a arbitrariedade. Apesar desses eventuais
efeitos posilivos, não se pode ignorar a respectiva pobreza ideológica c sua
funcionalidade para um modelo de estado que não é o constitucional.
11. É possível argumentar que os sistemas teleológicos (que assumem uma
função política expressa)podem ser elaborados também para servir a agências de
estados autoritários. A isso cabe responder com três argumentos: a) é vcrdade que os
estados policiais podem assumir ~iscursos penais com sistemática teleológica, mas
não é menos verdadeiro o fato de ser mais funcional para eles não se valerem de
qualquer ~istema, porque desse modo podem exercer mais amplamente seu arbítrio.
A lógica de poder do estado policial é escassamente compatível com uma tcolcologia
sistemática; por conseguinle, 1I0S estados de poUcia os sistemas de compreensc7o
teleológicos sãu comillge1ltes, enquantu nos estados constitucionais de direito slio
necessários: h) a correção de um sistema de compreensão não depende de que seja ele
meramente teleológico, mas sim de qual a função que lhe é atribuída em sua teleologia:
da circunstância de que alguns estados policiais possam, funcionalmente. optar por
objetivos sistemáticos irracionais nlio se deve deduzir a conveniência de suprimir ou
evitar os objetivos, mas sim a de estabelecer objetivos racionais,' c) a pretensão de
168
evitar a decisão política anterior à construção do sistema implica ensaiar lima siste-
mática que, de qualquer maneira, terá uma função política, ainda que latente: o resul-
tado não pode ser outro senão () aumento dos riscos de maiores incoerências ideológicas
e de prestação inconsciente de serviços políticos aberrantes.
12. A doutrina classificatória, que pretende legitimar toda a legislação penal a
partir da ficção da racionalidadc imanente ao legislador. lambém tem limites que a
cultura lhe impõe: era própria do século XIX c começo do XX.l:'om códigos mais ou
menos estáveis e reduzida legislação penal eXlrav.agante, mas quando () legislador
incorre em uma descodific~lÇão enorme c contraditória - como acontece na atualidadt:
- a falsidade da ficção é evidente e ninguém se atreve a propô~la seriamcnte. Eis o
efeito das elaborações legislativas conjunturais, que dificultam sucessivamente a la-
refa codificadora e interpretativa. A pretensão de criar corpos legisl:llivos completos
e não-contraditórios - o anelo do movimento codificador do século XIX - entra em
choque com o protagonisl11o p.:ulamcntar qUl: im::rernenta as contradições c lacunas
legislativas e banaliz~i a legislação penal. Traia-se de um epifenômeno (lIcgativo) de
outro (positivo). que é o protagonismo parlamentar na democracia representativa.
Daí, a máxima importância de um sistema teleológico orientado para a redução e
contenção do poder punitivo ~ para a decidida assunção do controle de
constitucionalidade das leis penais, como um meio de neutralizar o epifenômeno ne-
gativo e reforçar o fenômeno positivo.
13. Quanto à preferência dos estados policiais por uma metodologia irracional
e a refutação de qualquer dogmálica, é ulTlaqu~stão d~ grau. Ao tempo cm que, na
Itália fascista, tolerava-se UITI tecnicismo jurídico não apenas desvinculado, mas qua.
se inimigo da filosotia7U• o nazismo rejcitava o mesmo ensaio desenvolvido por Ileck11 ,
visando uma construção metodológica neutra para chegar a urna ciência jurídica livre
da filosofia. Em 1935 foi convocado o famoso acampamento de Kitzeberg, reunindo
os jovens do partido nazista. quase todos professores em Kiel, de onde originou-se a
Kielerscllllle, cujos expoentes fomm Georg Dahm (reitor de Kiel entre 1935 c 1937)
e Friedrich Schaffstein em direito (len,,\, Karl Lan::nzem tilosolia jurídica e leoria do
estado, E. R. Huber em direilo constilucional e Michaclis, Siebert c \Vicacker em
direito civil. Uinder, Larcnz, ForsthofT e Sieberl dirigiram ataques à pretensão de
70 V. o tecnicismo jurídico de Anuro Rocco, em RDPP, 1910, p. 497 5S.; sobre iSlO, De
Marsico. Alfredo. Pe"alisti ita/iani, p. 63 5S.; Maggiorc, Giuscppe, ArtllrtJ Uocco y eI
método técnico.juridico; Manz.ini. Vinccnw. Tratado, I. p. 11; ilaratta a1riblll ri Antolisci
a reação realista frente a esta corrente (Baralla. Ales5andro, em RlfU, 1~72. p. 49).
embora a reação tclcológica próxima ao realismo de Welzel tenha correspondido li £11,:[[iol
(cf. Morillas Cueva, Lorenzo. Metod%gía, pp. 179 e 187); cf. Marioi, Gaetano, Gillseppe
Hettiol. Dirilto penalc come filosofia. Sobre realismo e idealismo jurídicos. desde outra
perspectiva. Ross. Alf. Sobre el derecho y la justicia. p. 63 ss.
Heek. Philipp. 8egrifjbi/dung Ulld Interessejurisprudenl..
169
I!-----
Heck no sentido de uma ciência jurídica livre de filosofian. O normativismo vazio e
formal foi varrido por um direita natural degradado e torpe, cujo máximo corifeu foi
CarJ Schmitt: o pensamento jurídico Jlolkisch considera a lei sobretudo como jonna
não iSQiada, e sim no contexto de u~a ordem cujo pensamento básico é slIpralegal.
pois su~ essência tem raízes 110 costume e na concepção jurídica do povo7J •
IV. A sistemática teleológica do direito penal limitador
1. Não é possível prescindir-se de um sistema conceitual na elaboração de
um direito penal que almeje cumprir alguma função dentro de um modelo de
estado de direito, por ser inadmissível que a irracional idade seja fonte de um
saber que aspira a uma função racional. O sistema demanda uma decisão polí-
tica prévia que lhe permita sua c01lstrução teleológica baseada em uma função
manifesta, porque, do contrário, seria igualmente irracional (um caminho sem
objetivo), violeotaria a realidade (ao pretender que seus conceitos não tenham
função política, apenas porque não a expressam) c, além do mais, seria politica-
mente negativo (pretenderia servir para qualquer objetivo, incluindo os do esta-
do de polícia). Mesmo porém com todas essas precauções não se garante um
sistema teleológico racional, pois tudo dependerá do contcúdo da meociooada
decisão, isto é, da função manifesta que lhe seja atribuída. No estado constitu-
cional de direito o objetivo do direito penal deve ser a segurança jurídica, ame-
açada pelo exercício ilimitado do poder punitivo. Segumnçajurídica é a segurança
dos bens jurídicos de toda a população. São bens jurídicos aqueles que possibi-
litam ao ser humano sua realização como pessoa, ou seja, sua existência como
coexistência, o espaço de liberdade social no qual pode escolher c realizar sua
própria escolha. O direito penal deve construir um sistema que permita às agênci-
as jurídicas um exercício racional de seu poder para conter o poder punitivo, o
qual, estruturalmente, tende para um exercício ilimitado e arrasador de todo espa-
ço social. Tal objetivo, que representa a decisão política anterior à construção do
sistema, deve reger completamente sua elaboração e sua efic.ícia contentara de-
penderá do cumprimento de vários requisitos metodológicos.
2. O sistema deve, adequadamente, levar em conta o objeti vo prático do
saber jurídico-penal (oferecer paradigmas decisórios para as agências jurídi-
cas) no sentido político de potcncialização de seu próprio poder controlador, de
contenção do poder punitivo, de reforço do estado de direito e de redução do
estado de polícia. Nesse sentido, o método (caminho) e o objetivo (meta)
n Rüthers, Bernd. E"lartetes Redu. Recluslehren utld Kronjl/rislen im Driuen Reich.
TI Schrrutt, ear1. Über die drei Anen des rechlswissenschajtlichen Dl'nkens: Rüthcrs, Bernd, op.
cit., p. 27.
170
condicionam-se reciprocamente. Não é estática nem bucólica essa construção,
mas si rn permanentemente dinâmica, tensa c contraditória.
3. O poder do estado de polícia (poder punitivo) jamais será erradicado
pelo direito penal: a discussão entre abolicionistas e minimalistas1-l diz respeito
a mudelos diversos de sociedade e de estado cuja realização dependerá de outros
fatores, mas nunca do poder do discurso jurídico-penal, que não pode determi-
nar semelhantes mudanças radicais. Conseqüentemente, o que corresponde ao
direito penal, como saber aplicado ao vigente" modelo de poder do estado de
direito, o qual se acha em tensão constante com o estado de polícia, é tão-
somente propor sistemas decisórios para essarealidade de poder.
4, O requisito fundamental uo sistema, para o cumprimento de tal função,
deve ser o respeito à regra da compatibilidade legal, como lei básica construti-
va, proveniente dos primórdios de explicitação da dogmáticajurídica7j . O obje-
tivo do sistema requer que a regra da compatibilidade legal seja observada
priorizando as leis de máxima hierarquia (as constitucionais e intemacionais?6.
Embora isso pareça óbvio, não o será quando considerarmos que os operadores
das agências juridicas c das reprodutoras discursivas foram treinados a partir
de teorias oriundas de países que não conheciam essa hierarquia legal.
5. Quando os penalistas liberais do século XIX tinham de criar suas teorias. iam
em busca da filosofia ou da razão como fonte do direito, pois não dispunham de leis
positivas sobre a<; quais assentar suas construções (daí os inumeráveis equívocos do
chamado direito natllralliberal). Basta observar as disposições das leis fundamentais
daquele século para comprovar a pobreza de seuS princípios77• Hoje em dia. contudo,
tais princípios estão positivados nacionalmente nas constituições e internacionalmente
(regional e universalmente) no direito internacional, porquanto a segunda lei da
dogm:í.tica,que em momento algum podia significar a submissão do discurso à servidão
de um legislador onipotente, agora inverteu seu signo e implica a limitação do poder do
legislador conjuntural em função du estabelecido pelo legislador constitucional e inter-
naciomtl.
6. O sistema do direito penal será um meio ou ferramenta a ser empregado
contra um poder que pressionará, de vez que, estruturalmente, está condiciona.
H Cf. bibliografia citada em £11 busca de /cu penas perdidas, p. 32 5S. e 68 SS.
H Jhering. L'csprit du LJroit Romain, 1. m, p. 61.
1~ Cf. Ferrajoli. Luigi. Derechos :~'garantia.'i. p. 26.
11 Cf. Darestc. ER., Les cOrlsrirwions madernes; a Constituição do impêrio alemão de 1871
(L I, p. 151 ss.); a lei constitucional austríaca de 1867 (1. I. p. 391 sS.); o estalUto funda.
mental italiano de: 1848 (t. I. p. 599 55.).
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do a expandir-se de modo ilimitado. Suafimção há de ser sempre de contradi-
ção: por conseguinte, sua cOlIstruçliodeve ser dialética.
O estado de polícia deve ser cOntido e reduzido por etapas; a partir de cada
preten'são de abertura do exercício do poder punitivo, o direito penal deve opor-
lhe uma resistência. Da pretensão e de sua resistência resultará uma síntese à
qual, por sua vez, o direito penal deve opor uma nova resistência. O discurso de
contenção deve sempre antecipar-se ao exercício de poder das agências jurídi-
cas, de modo que estas permanentemente contem com um novo elemento de
resistência para alcançar urna nova síntese menos habilitante quanto ao poder
punitivo. Assim, o direito penal deve exercer seu poder discursivo levando em
consideração que os princÍpios limitadores do poder punitivo não sào estáti-
cos. mas sim de formulaçdo e realização progressiva.
7. A deslegitimução tio poder punitivo -mediante uma teoria negativa OLI
agnóstica da pena, bem como mediante a comprovação empírica ou fática de
que sua forma de exercício sempre implica um certo grau de violação dos prin-
cipias constilUcionais e internacionais - leva à consideração de que o poder
punitivo é sempre exercido de modo irracional. A racionalidade contentara do
direito penal reside em saber estabelecer intensidades de irracional idade, para
habilitar discursivamente a passagem da menor quantidade possível de poder
puniti vo, extraído dentre suas manifestações com o menor nível de ilTacionalidade.
O discurso que promove tal contenção pode ser formulado de duas maneiras: a)
em termos puramente políticos e assistemáticos ou conjunturais (como o uso
alternativo do direitof!<, com o conseqüente risco de que o próprio discurso
redutor, em certa conjuntura, ofereça argumentos para a irracionalidade gros-
seira constante do item seguinte; b) ou como um discurso sistemático elaborado
cle modo progressivo e redutor. Esta última opção requer cancelas teóricas su-
cessivas, em cada uma das quais o discurso habilite o trânsito de menor poder
punitivo e de menor intensidade irracional, ou seja, de maior respeito aos prin-
cípios constitucionais e internacionais limitadores. Tal progressão redutora não
pode ficar exposta às conjunturas do poder, porque em um estado totalitário o
discurso penal pareceria correto se se limitasse a impedir a tortura e habilitasse
o restante do poder punitivo. Ao contrârio, a progressão redutora deve ser
racional e irnpulsionar a própria consciênciajurfdica universal, baseando-se
no mais redutor dos direitos penais comparáveis para expandi-la, Essa racio-
nalidade redutora, que permite ao discurso fugir da conjunturalização fática, a
qual, com facilidade, se converte em racionalização, é alcançada por meio de
sua dialética interna, como única introdução discursiva da polarização entre
7~ Barcellona, Pietro, L'usu alternativo deI diriuo.
172
direito penal e poder punitivo (ou, o que é a mesma coisa: estado de direito e
estado de polícia).
8, A constante tensão com o inevitável estado de polícia impõe cssa cons-
trução dialética e, portanto, dinâmica, como condição de eficácia do direito
penal, entendido como instrumento para o aperfciçoamcnlO do estado de direi-
to, que alcança sua maior força C0ll10 estado constitucional de direito (quando
supera o precário estado legal de direito, que não o preserva uas maiorias polí-
ticas conjunturais) e que. por conseguinte, requer ullla fortc justiça constitucio-
nal: wn sistema de compreensão do direi/() pellal que cumprir tais requisitos
representa um indispensável apêndice do direito cUlIst;wciunal.
9. Contra um sistema elaborado na medida da l'ullçàu atribuída milita a corrcll-
te que nega que os juízes possam exercer esse controle, seguindo as test:s de Curl
Schmiu ao tempo de Weirnar7'), baseadas no fato de que os juízes não têm origcm
democrática nem treinamento político. A origem democrática dos juízes é um dado
conjuntural e rnodificável, mas muito mais importante do que a origem é a natureza
da função: uma função é democrática - qualquer que seja a origem do funcionário que
a desempenha - quando se torna indispensável à sustentação da democracia. E, nesse
caso, ela o é, pois tem a incumbência de nada menos do que a preservação dos direitos
das minorias (com o que é preservado O das maiorias para mudar de opinião). Por
isso, as decisões dos juízes não devem sempre coincidir com a vontade das maiorias
conjunturaisllU, ao contrário do que preconizava o pensamcnto v01kisch, curiosamente
revitalizado neste aspecto pela demagogia penal dos úlitmos anos. Quanto à afirma-
ção de que os operadores judiciais carecem de treinamento político, ela é falsa: os
juízes integram um poder do estado e não hú poder estiJtal que não scja político (o
inverso implica confundir político com partidário). É possível que Schmitl, ao rd"c-
rir-se a uma magistratura burocnílica, sem poder de controle de constitucionalidade _
considerada quase um ramo a mais da administração, dentro de um esquema de divi-
são de funções e não dc poderes - pudesse valer-se desse argumenlo, com mais razão
do que outros, mas ante uma magistralura constitucionalmentc encarregada de julgar
a racionalidade das leis em função de um sistema de controle difuso, tal argumenlo
carece de sentido. Pelo mesmo trajeto deslocam-se aqucles que argulllent3m que os
operadores das agências judiciais usurpariam o poder dos legisladores rcprcsenrantes
do povo: nada autoriza os legisladores a usurparem o poder dos constituintes nem o
da consciência jurídica universal. Em último e degr<ldadodiscurso, esgrime-se a dita-
dura dos jllÍzes, ameaçando com algo que nunca existiu e que somente é invocado
79 Sobre este período de Carl Sehmiu: Bendersky, Joseph W., Carl Schmiu, teorico dei Reich:a resposta de fIans Kclscn neste debate:iQuién debe ser el defensor de la Constitución?
!lO Cf. Slory,losé, Poder Judicial de los Estados Unidos de América, p. 9 S5.; González Caldcrón.
Juan A., Lajunciónjudicial en la constirución aJgentina, p. 52.
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quando o poder jurídico perturba outras agências e lhes dificulta expandir seu poder
mais além do pennitido pela lei supremaS! .,
v. o sistema e o respeito ao mundo (die Welt)
I. Todo sistema de compreensão elaborado pelo direito penal de conten-
ção, limitador ou liberal, deve reconhecer que os conflitos para os quais projeta
decisões e as conseqüências da criminalização, cujo avanço propõe habilitar,
são produzidos em um mundo físico c em uma realidade social protagonizada
pela interação de pessoas dotadas de um psiquismo que dispõe de suas respec-
tivas estruturas, e que tudo isso é real, ôntico, existe no mundo dessa maneira
e não de outra'g2. Por isso, o sistema deve admitir que, quando o legislador se
refere a algum dado do mundo, não pode inventá-lo, mas sim deve respeitar
elementarmente sua onticidade83 . Pouco importa que o impossível o seja por
razões físicas ou sociais: em qualquer caso não pode ser considerado juridica-
mente possível, sob pena de incorrer em um autismo discursivo ou em uma
ataviada ficção. Não é surpreendente que, a partir do autoritarismo, sejam de-
fendidas as ficções jurídicas". Um direito penal como discurso, que aspire a
alguma eficácia, em qualquer sentido que seja, não pode esquivar-se a um alto
grau de integração com as ciências sociaiss.s .
2. Este debate que, há algumas décadas, se centrava no conceito de ação e
se estendia no máximo até a restante teoria do delito, deve abarcar agora lodo o
sistema do direito penal. Sem prejuízo de voltar a desenvolver alguns de seus
aspectos na teoria do delito, em razão de ser a sede teórica de suas conseqüên-
cias mais debatidas, é necessário antecipar aqui a perspectiva metodológica
geral válida para todo o sistema de compreensão do direito penal.
3. A chamada teoria das estruturas lógico-reais ou lógico-objetivasll6 foi fruto do
pós-guerra, que tentava conter a onipotência legislativa c, por conseguinte, integrou u
conjunto de teonas à procura desse objetivo que: apela para a natureza das coisas e
~. Sustentado na França para opor-se ao conlrole de constitucionalidade (Lambert, Edouard,
Le gOllvemement dex jllges). foi utilizado nos Estados Unidos na década seguinle.
8l Sobre a incotporação dos dados sociais. Bustos R:nnin:z, £1 poder penal dei estado, !lom.
a Ui/de Kaufmann, p. 133; Silva Sánchez. Jesús.María. Aproximación. p. 334.
81 Todo conccilo normalivo requer uma mínima plau5ibilidade empírica (cf. Fianuaca.
Giovanni. em DDDP, 1987. 2, p. 243 55.).
Sol Schmiu. Carl. cm Diriuo e Cultura. Roma. J 991. p. 65 ss.. afirmava que a validade das ficçiks
depende de sua utilidade; Rayardo nt=ngoa. femando. Dogmática juddico penal, p. 28.
8S Fiandaca. Giovanni, em DDDP, 1987,2. p. 243 S5.
&li Welzel, Hans. Abhandilmgen; Radbruch. Gustav, em Rechrsphilo.wphie.
174
abarca também algumas tendências jus-naturalistas1l7• Não se pode afirmar que a teo-
ria das estruturas lógico-objetivas seja jus-naturalista, exceto para aqueles que consi-
derarem ser jus-naturalismo qualquer limitação ao legislador. Por isso. falou-se de
um jus-naturalismo negativo dessa teoria8S• que não pretendia estabelecer o que deve
ser o direito. mas sim delimitar o que não é direito. Todo o movimento onde essa
teoria se acha inscrita constitui uma tentativa de contenção da potência legislativa,
própria do período de horror do pós-guerra. A teoria das estruturas lógico-objetivas
pretende que o legislador esteja vinculado ao mu~do quando mencionar qualquer
conceito e. por conseguinte. deverá respeitar a ordem do mundo, sob pena de ineficá-
cia legislativa, salvo quando violentar estruturas lógico-objetivas fundamentais, corno
aquela que instaura a idéia de pessoa, caso que redundará num puro exercício de
poder~9 . O abandono dessa teoria pela doutrina posterior a \Velzel deve chamar a
arençâo'l(). É verdade que não existe um conceito ôntico de ação humana e que, nesse
sentido, O finalismo incorreu em um excesso de onticidade91 ~ no entanto, em lugar de
corrigir tal excessO e ampliar o critério de respeito às estruturJ..'i do mundo, expandindo-
o na direção dos demais aspectos do sistema. optou-se por arquivá-lo. A dúvida. que
não é possível dissipar, pelo menos no momento, é se o discurso não lerá percebido que
essa expansão colocava em crise não apenas a estrutura teórica do delito, mas sua pró-
pria totalidade, pal1icularmenre quando fosse imposto o respeito às estruturas do mun-
do na teoria das penas.
4. O re.~l}eito às estnlturas reais do mundo é um(l condiçc1o de qualquer
direito que pretenda ter alguma eficácia. A primeira estrutura real que o siste-
ma de compreensão do direito penal deve respeitar é a incorporação do dado
ôntico de que seus conceitos são sempre funcionais: a funcionalidade política
dos conceitos jurídicos não é uma opção, ou seja, algo que pode, ou não, ser
escolhido, mas sim tais conceitos são politicamente sempre funcionais. A única
coisa que a construção de um sistema que não expressa sua funcionalidade
consegue omitir é aquela funcionalidade manifesta, sem, contudo, lograr supri-
31 Sobr~ ~Sle paTlOr<lIna, flaratta, Alessandro, em Amwrio bibliografico di Filosofia dei
Diritla, p. 227 SS.; do mesmo, em Die omoiogische Hegriindung des Recltts; também em
Fest. f Erik Woif. p. 137 ss.: em ARSP. 1968. L1V-3. p. 325; em AnnaUi deUa Facoltã
Giuridica, Università degli Sludi di Camerino, p. 39 S5.; Garz.6n Valdez. Ernesto, Derecho
y "natllrale:,ll de las cosas "; Recasens Siches. Luis, Experiencia jurídica. naturaleza de
la cosa y lógica ..raumable".
aR Engisch. Karl. ,\uf der SI/che nach der Gerechtigkeit. 1971, p. 240; um século antes.
Tobias B<lrreto dizia que não hâ um direito natural, senão uma "lei natural do direito"
(Introdução. p. 38).
~v We17.el.em Fest. f. Scllaf!stein.
W Sobte sua vigência. com reivindicação da sistemática tinalista desde uma "postura fraca".
Serrano Maillo. Alfonso. £n5a)'0 sobre el derecho penal como ciencia. p. 172 55.
91 Cf. infra. S 27.
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mir a latente. Para cumprir a função manifesta atribuída, a primeira coisa que o
sistema de compreensão do direito penal deve respeitar são os dados da realida-
de social em relação ao exercício""tlo poder punitivo: no que tange a este, não
podc\)perar com dados sociais falsos, porque ao romper ou sonegar as estrutu-
ras da realidade do mundo não chegará a cumprir a função atribuída, mas qual-
quer outra. Ninguém pode mudar algo sem respeitar sua estrutura real. Em
nível individual, uma ruptura com as estruturas da realidade do mundo é um
fenômeno patológico grave. Embora conceitos individuais não possam ser li-
vremente transferidos para f1mbitos coletivos, é bem provável que, nesse senti-
do, pelo menos, eles exponham um indício de situação crítica.
5. Quando a função política se evidencia e impõe a construção dialética de
um discurso que responda ~llcnsão permanente na qual essa função deverá ser
realizada, em luta constante contra o poder do estado de polícia, tal falO estará
fornecendo um indicador fundamental que deve operar como viga-mestra de sua
mClOdologia: (l absoluta proihiçl1o de incorporar dados falsos sobre o exercí-
cio de poder que deve ser reduzido. Tais dados são justamente aqueles provin-
dos de disciplinas que operam com a verificação92 • Toda estratégia se preocupa,
antes de mais nada, em obter o maior volume possível de informações a respeito
da força que deverá enfrentar c scu êxito, em grande parte, dependení do realis-
mo com que incorpore e processe tudo isso.
Não faltam J.lllOrcs que negam inclusive a univer:-;afidade das proposições de lOdas as
ciências

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