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A Ilusão Biográfica Pierre Bourdieu

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182 Usos &ABUSOSDA HISTÓRIA ORAL
nam impossíveisde interpretar- nada tivessea acrescentar.Também
aqui,trata-setalvezde meraquestãode pontode vista:insistindona "gê-
nesesocialdas estruturascognitivas"e no aspecto"de incorporação,sob
formade disposições,de uma posiçãodiferencialno espaçosocial",deixa-
se vagaa atividadedosatores,concebidaunicamentecomoo resultadode
"incontáveisoperaçõesde Qrdenaçãopelasquais se reproduze se trans-
formacontinuamentea ordemsocial".19A noçãode apropriaçãosob for-
ma de "uma história social dos hábitose das interpretações,ligadosa
suasdeterminaçõesfundamentais(quesão sociais,institucionais,culturais)
e inseridosnas práticasespecíficasque os produzem",2opor mais impor-
tantee útil que seja,tambémdeixaem abertoo problemada relaçãoen-
tre indivíduoe grupo.Não se podenegarquehá um estilopróprioa uma
época,um habitusresultantede experiênciascomunse reiteradas,assim
comohá em cada épocaum estiloprópriode um grupo.Mas para todo
indivíduoexistetambémuma considerávelmargemde liberdadeque se
originaprecisamentedas incoerênciasdos confinssociaise que suscitaa
mudançasocial.Portantonão podemosaplicaros mesmosprocedimentos
cognitivosaosgrupose aos indivíduos;e a especificidaçledasaçõesde ca-
da indivíduonão podeser consideradairrelevanteou não pertinente.Pois
o risco,não banal,é subtrairà curiosidadehistóricatemasquejulgamos
dominarplenamente,mas que aindacontinuamlargamenteinexplorados:
por exemplo,a consciênciade classe,ou a solidariedadede grupo,ou ain-
da os limitesda dominaçãoe do poder.Os conflitosde classificações,de
distinções,de representaçõesinteressamtambémà influênciaque o grupo
socialmentesolidárioexercesobrecadaum dosmembrosqueo compõem,
alémde revelaremas margensde liberdadee de coaçãodentrodasquais
se constitueme funcionamas formasde solidariedade.Creio que, nessa
perspectiva,a biografiapoderiapermitirum examemaisaprofundadodes-
ses problemas.
19Bourdieu,Pierre.La noblessed'État.Grandesécolesetespritdecorps.Paris,Minuit, Le sens
commum,1989.p. 9.
20 Chartier,1989:21.
Capítulo 13
A ilusão biográfica*
Pierre Bourdieu
I)
A história de vida é uma dessasnoçõesdo sensocomum
queentraramcomocontrabandono universocientífico;inicialmente,sem,.
muito alarde,entr~os etnólogos,depois,mais recentemente,com estar-
dalhaço,entreos sociólogos.Falarde históriade vida é pelo menospres-
supor- e isso não é pouco- que a vida é uma históriae que,como
no título de Maupassant,Umavida, uma vida é inseparavelmenteo con-
junto dos acontecimentosde uma existênciaindividual concebidacomo
umahistóriae o relatodessahistória.É exatamenteo que diz o sensoco-
mum,isto é, a linguagemsimples,quedescrevea vida comoum caminho,
umaestrada,umacarreira,comsuasencruzilhadas(Hérculesentreo vício
e a virtude),seusardis,até mesmosuasemboscadas(Jules Romainsfala
das"sucessivasemboscadasdos concursose dos exames"),ou comoum
encaminhamento,isto é, um caminhoque percorremose que deve ser
percorrido,um trajeto,uma corrida,um cursus,uma passagem,uma via-
gem, um percursoorientado,um deslocamentolinear, unidirecional(a
"mobilidade"),que tem um começo("umaestréiana vida"), etapase um
fim, no duplo sentido,de términoe de finalidade("ele fará seucaminho"
significaele terá êxito, fará uma bela carreira),um fim da história.Isto
é aceitartacitamentea filosofia da históriano sentidode sucessãode
* Bourdieu,Pierre. L'illusion biographique.Actesde Ia Rechercheen SciencesSociales(62/
63):69-72,juin 1986.
184
Usos & ABUSOSDA HISTÓRIA ORAL
acontecimentoshistóricos,Geschichte,queestáimplícitanumafilosofiada
histórianosentidoderelatohistórico,Historie,emsuma,numateoriado
relato,relatodehistoriadorou romancista,indiscerníveissobesseaspecto,
notadamentebiografiaou autobiografia.
Sempretenderserexaustivo,pode-setentarextrairalgunspres-
supostosdessateoria.Primeiramente,o fatode quea vidaconstituium
todo,umconjuntocoerentee orientado,quepodee deveserapreendido
comoexpressãounitáriade uma"intenção"subjetivae objetiva,de um
projeto:a noçãosartrianade "projetooriginal"somentecolocade modo
explícitoo queestáimplícitonos"já","desdeentão","desdepequeno"etc.
dasbiografiascomunsou nos"sempre"("sempregosteide música")das, 1'-
. "históriasdevida".!Essavidaorganizadacomoumahistóriatranscorre,se-....
gundoumaordemcronológicaquetambémé umaordemlógica,desde
I umcomeço,umaorigem,noduplosentidodepontodepartida,deinício,
mastambémdeprincípio,derazãodeser,decausaprimeira,atéseutér-
I mino,quetambémé um objetivo]O relato,sejaelebiográficoou auto-
\ biográfico,comoo do investigadoque"seentrega"a um investigador,
propõeacontecimentosque,semteremsedesenroladosempreemsuaes-
tritasucessãocronológica(quemjá coligiuhistóriasdevidasabequeos
investigadosperdemconstantementeo fio da estritasucessãodo calen-
dário),tendemou pretendemorganizar-seemseqüênciasordenadasse-
-""gundo relaçõesinteligíveis.O sujeito e o objeto da biografia(o
investigadore o investigado)têmde certaformao mesmointeresseem
aceitaro postuladodosentidodaexistêncianarrada(e, implicitamente,de
qualquerexistência).Semdúvida,cabesuporqueo relatoautobiográfico
sebaseiasempre,ou pelomenosemparte,na preocupaçãode darsen-
tido,de tomarrazoável,de extrairumalógicaao mesmotemporetros-
pectivae prospectiva,umaconsistênciae umaconstância,estabelecendo
relaçõesinteligíveis,comoa do efeitoà causaeficienteou final,entreos
estadossucessivos,assimconstituídosemetapasde um desenvolvimento
necessário.(E é provávelqueesseganhode coerênciae de necessidade
estejana origemdo interesse,variávelsegundoa posiçãoe a trajetória,
I que os investigadostêmpelo empreendimentobiográfico.1 Essapropensão
a tomar-seo ideólogode sua própriavida, selecionando,em funçãode
uma intençãoglobal,certosacontecimentossignificativose estabelecendo
1 Ver Muel-Dreyfus, E Le métier d'éducateur.Paris, Minuit, 1983.
f
L
A ILUSÃO BIOGRÁFICA 185
entreelesconexõesparalhesdar coerência,comoas queimplicaa sua fi
instituiçãocomocausasou,commaisfreqüência,comofins,contacoma
cumplicidadenaturaldobiógrafo,que,a começarporsuasdisposiçõesde
profissionaldainterpretação,só podeserlevadoa aceitaressacriaçãoar-
tificialde sentido.
É significativoqueo abandonoda estruturado romancecomo
relatolineartenhacoincididocomo questionamentodavisãodavidaco-
moexistênciadotadadesentido,noduplosentidodesignificaçãoe dedi-
reção.Essaduplaruptura,simbolizadapeloromancede FaulknerO som
e a fúria,exprime-secomtodaa clarezanadefiniçãodavidacomoanti-
históriapropostapor Shakespeareno fim de Macbeth:"É umahistória
contadapor um idiota,umahistóriacheiade some de fúria,masdes-
providadesignificação".Produzirumahistóriadevida,tratara vidacomõT
umahistória,istoé, comoo relatocoerentede umaseqüênciade acon-\
tecimentoscomsignificadoe direção,talvezsejaconformar-secomuma
ilusãoretórica,umarepresentaçãocomumdaexistênciaquetodaumatra-
diçãoliterárianãodeixoue nãodeixade reforçar.Eis por queé lógico
pedirauxílioàquelesquetiveramquerompercomessatradiçãono pró- I
prio terrenode suarealizaçãoexemplar.Comodiz Allain Robbe-Grillet,"o
adventodo romancemodernoestáligadoprecisamentea estadescoberta:
o real é descontÍnuo,formadode elementosjustapostossemrazão,todos
elesúnicose tantomaisdifíceisde seremapreendidosporquesurgemde
modo incessantementeimprevisto,fora de propósito,aleatório".2
A invençãode um novo modo de expressãoliterária faz surgir
a contrarioo arbitrárioda representaçãotradicionaldo discursoroma-
nescocomohistóriacoerentee totalizante,e tambémda filosofiada exis-
tênciaque essaconvençãoretóricaimplica.Nada nos obrigaa adotara
filosofiada existênciaque,para algunsdos seusiniciadores,é indissociá-
vel dessarevoluçãoretórica;3mas, em todo caso,não podemosnos fur-
tar à questãodos mecanismossociais que favorecemou autorizama
experiênciacomumda vida como unidade e como totalidade.De fato,
como responder,sem sair dos limites da sociologia,à velha indagação
empiristasobrea existênciadeum eu irredutívelà rapsódiadas sensa-
2 Robbe-Grillet,A. Le miroir qui revient.Paris,Minuit, 1984.p. 208.
3 "'fudoisto é o real, isto é, o fragmentário,o fugaz,o inútil, tão acidentalmesmoe tão
Particularque todo acontecimentoali aparece,a todo instante,comogratuito,e toda exis-
tência,afinal, comoprivadada menorsignificaçãounificadora"(Robbe-Grillet,1984.).
186 Usos & ABUSOS DA HISTÓRIA ORAL
çõessingulares?Sem dúvida,podemosencontrarno habituso princípio
ativo, irredutívelàs percepçõespassivas,da unificaçãodas práticase das
representações(isto é, o equivalente,historicamenteconstituídoe por-
tantohistoricamentesituado,desseeu cuja existência,segundoKant, de-
vemospostularparajustificara síntesedo diversosensíveloperadana in-
tuiçãoe a ligaçãodas representaçõesnuma consciência).Mas essaiden-
tidadepráticasomentese entregaà intuiçãona inesgotávelsériede suas
manifestaçõessucessivas,de modo que a única maneirade apreendê-Ia
como tal consistetalvezem tentarrecuperá-Iana unidadede um relato
totalizante(comoautorizama fazê-Ioas diferentesformas,maisou me-
nos institucionalizadas,do "falar de si", confidênciaetc.).
O mundo social,que tende a identificara normalidadecom a
identidadeentendidacomo constânciaem si mesmode um ser respon-
sável,isto é, previsívelou, no mínimo,inteligível,à maneirade uma his-
tória bem construída(por oposiçãoà história contadapor um idiota),
dispõede todo tipo de instituiçõesde totalizaçãoe de unificaçãodo eu.
A maisevidenteé, obviamente,o nomepróprio,que,como"designadorrí-
gido",segundoa expressãode Kripke,"designao mesmoobjetoem qual-
quer universopossível",isto é, concretamente,sejaem estadosdiferentes
do mesmocamposocial (constânciadiacrônica),sejaem camposdiferen-
tes no mesmomomento(unidadesincrônicaalém da multiplicidadedas
posiçõesocupadas).4E Ziff, que defineo nomeprópriocomo"um ponto
fixo num mundoque se move"tem razãoem ver nos "ritosbatismais"a
fIDaneira necessáriade determinaruma identidade.50>oressaforma intei-
\
ramentesingularde nominaçãoque é o nome próprio, institui-seuma
identidadesocialconstantee durável,que garantea identidadedo indi-
víduo biológicoem todos os campospossíveisonde ele intervémcomo
1agente,istoé,emtodasassuashistóriasdevidapossíveis.É o nomepró-
lprio "Marcel Dassault",com a individualidadebiológicada qual ele re-
presentaa formasocialmenteinstituída,que asseguraa constânciaatravés
do tempoe a unidadeatravésdos espaçossociaisdos diferentesagentes
sociaisque são a manifestaçãodessaindividualidadenos diferentescam-
pos, o donode empresa,o dono de jornal, o deputado,o produtorde fil-
\ mes etc.; e não é por acasoque a assinatura,signumauthenticumque'-
4 VerKripke,S. La logiquedesnomspropres.Paris,Minuit, 1982;e tambémEngel,l? Identité
et référence.Paris,Pens, 1985.
S Ver Ziff, l? Semanticanalysis.lthaca,ComeUUniversityPress,1960.p. 102-4.
187
A ILUSÃO BIOGRÁFICA
autenticaessaidentidade,é a condiçãojundica das transferênciasde um
campoa outro, isto é, de um agentea outro,daspropriedadesligadasao
mesmoindivíduoinstituído.Comoinstituição,o nomepróprioé arrancado
do tempoe do espaçoe dasvariaçõessegundoos lugarese os momentos:
assimele asseguraaos indivíduosdesignados,para alémde todasas mu-
dançase todasas flutuaçõesbiológicase sociais,a constâncianominal,a
identidadeno sentidode identidadeconsigomesmo,de constantiasibi,
que a ordemsocialdemanda.E é compreensívelque,em numerososun~1
versossociais,os deveresmaissagradosparaconsigomesmotomema for-
ma de deverespara com o nomepróprio (que também,por um lado, é
sempreum nomecomum,enquantonomedefamt1ia,especificadopor um
prenome).O nomepróprioé o atestadovisívelda identidadedo seupor-
tadoratravésdos tempose dos espaçossociais,o fundamentoda unidade
de suassucessivasmanifestaçõese da possibilidadesocialmentereconhe-
cidade totalizaressasmanifestaçõesemregistrosoficiais,curriculumvitae,
cursushonorum,ficha judicial, necrologiaou biografia,que constituema
vida na totalidadefinita,pelo veredictodadosobreum balançoprovisório
ou definitivo."Designadorrígido", o nome próprio é a forma por ex:;
celênciada imposiçãoarbitráriaque operamos ritos de instituição:a
nominaçãoe a classificaçãointroduzemdivisõesnítidas, absolutas,indi-
ferentesàs particularidadescircunstanciaise aos acidentesindividuais,no
fluxo das realidadesbiológicase sociais.Eis por que o nomepróprionão
pode descreverpropriedadesnem veicular nenhumainformaçãosobre
aquiloquenomeia:comoo queele designanão é senãoumarapsódiahe-
_terogêneae disparatadade propriedadesbiológicase sociaisem constante\
mutação,todasas descriçõesseriamválidassomentenos limitesde um es-I
tágio ou de um espaço.Em outraspalavras,ele só pode atestara iden-
tidadeda personalidade,como individualidadesocialmenteconstituída,à
custade uma formidávelabstração.Eis o que evocao uso inabitualque\
Proust faz do nomepróprio precedidodo artigo definido ("o Swann de\
BuckinghamPalace","a Albertinade então","a Albertinaencapotadados
diasde chuva"),rodeiocomplexopelo qual se enunciamao mesmotempo
a "súbitarevelaçãode um sujeitofracionado,múltiplo"e a permanênciaI
para além da pluralidadedos mundosda identidadesocialmentedeter-
minadapelo nomepróprio.6 I
6 Nicole, E. Personnageet réthoriquedu nom. Poétique,46:200-16,1981.
...J
188 Usos & ABUSOS DA HISTÓRIA ORAL
í Assim o nome próprio é o suporte(somostentadosa dizer a
substância)daquiloque chamamosde estadocivil, isto é, desseconjunto
de propriedades(nacionalidade,sexo, idade etc.) ligadas a pessoasàs
quaisa lei civil associaefeitosjurídicos e que instituem,sob a aparência
de constatá-Ias,as certidõesde estadocivil. Produtodo rito de institui-
ção inauguralque marcao açessoà existênciasocial,ele é o verdadeiro
objetode todosos sucessivosritos de instituiçãoou de nominaçãoatra-
I vésdosquaisé construídaa identidadesocial:essascertidões(emgeral
públicase solenes)de atribuição,produzidassob o controlee com a ga-
rantiado Estado,tambémsão designaçõesrígidas,isto é, válidasparato-
dos os mundos possíveis,que desenvolvemuma verdadeiradescrição
oficial dessaespéciede essênciasocial, transcendenteàs flutuaçõeshis-
tóricas,que a ordemsocial institui atravésdo nomepróprio;de fato,to-
das repousam sobre o postulado da constância do nominal que
pressupõemtodos os atestadosde nominação,bem como, mais generi-
camente,todos os atestadosjurídicos que envolvemum futuro a longo
prazo, quer se trate de certificadosque garantemde forma irreversível
uma capacidade(ou uma incapacidade),de contratosque envolvemum
futuro longínquo,como os contratosde créditoou de seguro,quer de
I sançõespenais,toda condenaçãopressupondoa afirmaçãoda identidade
para além do tempodaqueleque cometeuo crime e daqueleque sofre
\
1 o castigo.7
Tudo leva a crer que o relatode vida tendea aproximar-sedo
modelooficial da apresentaçãooficial de si, carteirade identidade,ficha
de estadocivil, curriculumvitae,biografiaoficial, bem como da filosofia
da identidadeque o sustenta,quantomais nos aproximamosdos inter-
rogatórios oficiais das investigaçõesoficiais - cujo limite é a investigação
judiciáriaou policial-, afastando-seao mesmotempodas trocasíntimas
entrefamiliarese da lógicada confidênciaque prevalecenessesmercados
protegidos.As leis que regema produçãodos discursosna relaçãoentre
7 A dimensãopropriamentebiológicada individualidade- queo estadocivil apreendesob
a formade descriçãoe fotografiade identidade- estásujeitaa variaçõessegundoo tempo
e o lugar, isto é, os espaçossociaisque lhe dão uma basemuito menossegurado que a
meradefiniçãonominal.(Sobreasvariaçõesda hexiscorporalsegundoos espaçossociais,
ver Maresca,S. La réprésentationde Ia paysannerie;remarquesethnographiquessur le tra-
vail de réprésentationdes dirigeantsagricoles.Actesde ZaRechercheen SciencesSociaZes,
38:3-18,mai 1981.)
A ILUSÃO BIOGRÁFICA
189
m
umhabituse ummercadoseaplicama essãformaparticulardeexpressãoqueé o discursosobresi; e o relatode vidavaria,tantoemsuaforma
quantoemseuconteúdo,segundoa qualidadesocialdomercadono qual
é oferecido- a própriasituaçãodainvestigaçãocontribuiinevitavelmente
paradeterminaro discursocoligido.Maso objetodessediscurso,istoé,
a apresentaçãopúblicae, logo,a oficializaçãode umarepresentaçãopri-
vadade suaprópriavida,públicaou privada,implicaum aumentode
coaçõese decensurasespecíficas(dasquaisassançõesjurídicascontraas
usurpaçõesdeidentidadeou o porteilegaldecondecoraçõesrepresentam
o limite).E tudolevaa crerqueasleisdabiografiaoficialtenderãoa se
impormuitoalémdassituaçõesoficiais,atravésdospressupostosincons-
cientesda interrogação(comoa preocupaçãocoma cronologiae tudoo
queé inerenteà representaçãodavidacomohistória)e tambématravés
dasituaçãode investigação,que,segundoa distânciaobjetivaentreo in-
terrogadore o interrogadoe segundoa capacidadedoprimeiropara"ma-
nipular"essarelação,poderávariardesdeessaformadocedeinterrogatório
oficialqueé, geralmentesemqueo saibao sociólogo,a investigaçãoso-
ciológicaaté a confidência- através,enfim,da representaçãomaisou
menosconscientequeo investigadofaráda situaçãode investigação,em
funçãode sua experiênciadiretaou mediatade situaçõesequivalentes
(entrevistade escritorcélebreou de político,situaçãode exameetc.),e
queorientarátodoo seuesforçode apresentaçãode si, ou melhor,de
produçãode si.
A análisecríticadosprocessossociaismalanalisadose maldo-
-- minadosque atuam,semo conhecimentodo pesquisadore com sua
cumplicidade,na construçãodessaespéciede artefatosocialmenteirre-
preensívelque é a "históriade vida" e, em particular,no privilégiocon-
cedidoà sucessãolongitudinaldos acontecimentosconstitutivosda vida
consideradacomo história em relaçãoao espaçosocial no qual eles se
realizamnão é em si mesmaum fim. Ela conduzà construçãoda noção
de trajetóriacomo série de posiçõessucessivamenteocupadaspor um
mesmoagente(ou um mesmogrupo) num espaçoque é ele próprioum
devir,estandosujeito a incessantestransformações.Tentar compreender
umavida comouma sérieúnica e por si suficientede acontecimentossu-
cessivos,sem outro vínculo que não a associaçãoa um "sujeito"cuja
constânciacertamentenão é senãoaquelade um nomepróprio,é quase
tão absurdoquantotentarexplicara razão de um trajetono metrôsem
levar em conta a estruturada rede, isto é, a matriz das relaçõesobje-
190 Usos & ABUSOSDA HISTÓRIAORAL
tivas entre as diferentesestações.Os acontecimentosbiográficosse de-
finem como colocaçõese deslocamentosno espaçosocial, isto é, mais
precisamentenos diferentesestadossucessivosda estruturada distribui-
ção das diferentesespéciesde capitalque estãoemjogo no campocon-
siderado.O sentidodos movimentOsque conduzemde uma posiçãoa
outra (de um postoprofissionala outro,de umaeditoraa outra,de uma
diocesea outra etc.) evidentementese define na relaçãoobjetivaentre
o sentidoe o valor,no momentoconsiderado,dessasposiçõesnum es-
paço orientado.O que equivalea dizer que não podemoscompreender
uma trajetória(isto é, o envelhecimentosocialque, emborao acompanhe
de forma inevitável,é independentedo envelhecimentobiológico) sem
que tenhamospreviamenteconstruídoos estadossucessivosdo campono
qual ela se desenroloue, logo, o conjuntodas relaçõesobjetivasqueuni-
ram o agenteconsiderado- pelo menosem certo númerode estados
pertinentes- ao conjuntodosoutrosagentesenvolvidosno mesmocam-
po e confrontadoscom o mesmoespaçodos possíveis.Essa construção
prévia tambémé a condiçãode qualqueravaliaçãorigorosado que po-
demoschamarde superfíciesocial,como descriçãorigorosada persona-
lidade designadapelo nome próprio, isto é, o conjunto das posições
simultaneamenteocupadasnum dado momentopor uma individualidade
biológicasocialmenteinstituídae que agecomosuportede um conjunto
de atributose atribuiçõesque lhe permitemintervir como agenteefici-
ente em diferentescampos.8
A necessidadedessedesviopela construçãodo espaçoparecetão
evidentequandoé enunciada- quem pensariaem evocaruma viagem
semter umaidéiada paisagemna qual ela se realiza?- queseriadifícil
8 A distinçãoentreo indivíduoconcretoe o indivíduoconstruído,o agenteeficiente,é du-
plicadapela distinçãoentre o agente,eficientenum campo,e a personalidade,comoindi-
vídualidadebiológicasocialmenteinstituídapela nominaçãoe dotadade propriedadese de
poderesque lhe asseguram(em certoscasos)uma superfíciesocial,isto é, a capacidadede
existir como agenteem diferentescampos.Isso suscitanumerososproblemasnormalmente
ignorados,notadamenteno tratamentoestatístico;assim,por exemplo,as investigaçõessobre
as "elites"escamoteiama questãoda superfíciesocialao caracterizaros indivíduosem po-
siçõesmúltiplaspor uma de suaspropriedadesconsideradadominanteou determinante,in-
cluindo o dono de indústriaque é tambémdono de jornal na categoriados donos etc. (o
que implica,entreoutrascoisas,eliminardos camposde produçãoculturaltodos os pro-
dutorescuja atividadeprincipalse situa em outroscampos,deixandoescaparassimcertas
propriedadesdo campo).
A ILUSÃO BIOGRÁFICA 191
compreenderque não se tenha impostode imediatoa todosos pesqui-
sadores,se não soubéssemosque o indivíduo,a pessoa,o eu, "o mais in-
substituíveldos seres", como dizia Gide, para o qual nos conduz
irresistivelmenteuma pulsãonarcísicasocialmentereforçada,é tambéma
maisreal, em aparência,das realidades,o ensrealissimum,imediatamente
entregueà nossaintuiçãofascinada,intuituspersonae.
fi

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