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Sociedade Disciplinar e Sociedade de Controle

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“Sociedade Disciplinar e Sociedade de Controle: o papel da Rede nas Relações de Poder e na Organização.”
A Sociedade Disciplinar e suas Ferramentas e a Sociedade de Controle e suas Novas Ferramentas
A Sociedade Disciplinar se constitui de poderes transversais que se dissimulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento. A Sociedade de Controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo virtualização junto às redes de informação.
No ambiente de trabalho, as mudanças nos modelos de gestão refletem a mudança no modelo de sociedade. Quando passamos da modernidade para a contemporaneidade, podemos inferir mudanças na forma como se organizam as relações de poder.
As relações que eram antes permeadas pela hierarquia, vigilância, autoridade e centralização do poder, passam a trabalhar sob uma perspectiva descentralizadora, onde a participação de todos é, não só esperada, como estimulada pelos núcleos que gerenciam os processos de gestão. A obediência cega, que evita o conflito, o questionamento, o embate, dá lugar a um processo educativo e inclusivo, que além de gerar nas organizações o sentimento de pertencimento à instituição, também gera o senso de responsabilidade, posto que se todos participam da gestão, a responsabilidade é de todos. Um reflexo, talvez, da própria democracia, uma forma de governo que marca, em grande parte do globo, o nosso tempo.
Além da participação nas decisões e a divisão das responsabilidades, há a perspectiva da impossibilidade de controle centralizado. Os espaços de convivência são muitos, múltiplos e com configurações plurais e infinitas. E além dos espaços físicos, hoje vivemos sob a perspectiva de um espaço virtual que influencia as relações e os julgamentos fora dele. A vigilância entre pares, nova forma de controle da sociedade, é fortalecida com a criação de uma rede virtual alimentada pela vaidade, culminando na disputa pelo poder, transpassada pela dificuldade que o ser humano tem de lidar com a própria solidão.
Se tomarmos como premissa que a Sociedade de Controle é uma evolução da Sociedade Disciplinar, podemos afirmar que a criação da rede virtual e seus desdobramentos (mercado, relações, novos modos de subjetivação) é um marco histórico. E hoje é um dos ambientes onde as relações de poder se estabelecem com facilidade, rapidez e alcance incontroláveis. A própria rede é detentora de um poder ainda incalculável. Só de pensarmos na possibilidade de acordarmos em uma determinada manhã sem a rede, podemos imaginar o caos que se instalaria em todas as esferas da sociedade.
Analítica do Poder, o Estado e a Rede
A proposta de Foucault para uma análise das relações de poder nega a necessidade de disputas baseadas em uma oposição binária: dominados e dominadores. Segundo Foucault (1979, apud MAIA, Tempo Social, 1995, p. 87) “Deve-se, ao contrário, supor que as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca, procedem as redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série, convergências, desses afrontamentos locais.” A partir daí, não há como negar que as organizações advindas das relações pelas redes sociais constituem a expressão máxima desta ideia. Manifestações políticas que surgem em pequenas comunidades e que, através da possibilidade de comunicação ilimitada, tomam corpo e ganham uma proporção gigantesca, buscando alianças em outras comunidades, grupos, e que através da transversalidade conseguem fortalecer a própria rede, retroalimentando-se. Um dos exemplos mais consistentes é a chamada “Primavera Árabe”. Além do enorme alcance para a mobilização e organização das pessoas em manifestações contra os governos, a publicação de imagens e relatos na rede impede o segredo. É o controle entre pares na esfera das nações. A opinião pública pesa, e a pressão social exercida na rede hoje pode ser mais poderosa que um exército. O Estado, expressão máxima da organização disciplinadora, resiste, mas acaba por ser dissuadido, influenciado, transformado em outro tipo de Estado, a partir desta nova configuração do poder da sociedade.
A Rede dentro da Organização e a Organização dentro da Rede
A influência das redes sociais nas organizações ultrapassa os limites da vida individual e chegam até sua representação no mercado. O sujeito que participa de um processo seletivo para trabalhar em uma empresa tem sua imagem perante a sociedade avaliada de acordo com investigações na rede. O consumidor final do produto da empresa é consultado para fins de melhorias no produto final com o auxílio da rede. A empresa é avaliada pelo candidato a uma vaga com base em dados colhidos na rede. Por isso, quando falamos que a disciplina (base sob a qual se edificou a Sociedade Disciplinar) foi interiorizada neste novo modelo (Sociedade de Controle), não há como negar que as relações de poder na sociedade contemporânea ganham, no espaço virtual, condições de expressão máxima desta nova configuração de exercício do poder. Este é exercido fundamentalmente por três meios globais absolutos: o medo, o julgamento e a destruição. Tudo o que você faz, diz ou escreve está exposto à ser publicado na rede e usado contra você.
Em contrapartida, tudo o que você faz, diz ou escreve, pode ser publicado e usado a seu favor. O projeto de Foucault também abandona uma visão tradicional do poder onde sua atuação se baseia fundamentalmente em aspectos negativos: proibindo, censurando, interditando, reprimindo. Segundo ele (1979, apud MAIA, Tempo Social, 1995, p. 86) “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”. É neste sentido que as redes sociais ganham força, adeptos, e fomentam diversos tipos de usos. A rede ganha poder. Mas, ao mesmo tempo, para o indivíduo, ela também pode ser um espaço de criação, de subjetivação, de criação imagética. E é um espaço de resistência do sujeito, onde ele é capaz de lutar contra o que o esmaga. Apesar dos pesares, a Rede é um espaço de vida para o sujeito, para o coletivo e para a organização. Apesar de deter todo este poder, é só por conta da liberdade de seus usuários que nela existe todo o potencial de revolta, revisitando novamente o fundamento da projeto de Foucault, e justificando uma análise cada vez mais profunda de sua representação nas configurações das relações sociais na contemporaneidade.
Postado há 4th December 2012 por Anne Lee Poeta
Sociedade Disciplinar
 	 
 	 
 	 
 	
 
Mudanças sociais ocorridas no séc. XVIII e XIX levaram a alterações do jogo do poder, que foi sendo gradativamente substituído pelo que Foucault denomina de sociedades disciplinares, as quais atingiram o seu apogeu no séc. XX. A passagem de uma forma de dominação a outra ocorreu quando a economia do poder percebeu ser mais eficaz e rentável “vigiar” do que “punir”.
 
Duas imagens, portanto da disciplina. Num extremo, a disciplina - bloco, a instituição fechado, estabelecido à margem, e toda voltada para funções negativas: fazer parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo. No outro extremo, com o panoptismo, temos a disciplina - mecanismos: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coersões subtis para uma sociedade que está por vir. O movimento que vai de um projecto ao outro, de um esquema da disciplina de excepção ao de uma vigilância generalizado, repousa sobre uma transformações histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamargrosso modo a sociedade disciplinar.
Foucault, (1997), pag:173
Coube às sociedades disciplinares organizar os grandes meios de confinamento, os quais tinham como objectivo concentrar e compor, no tempo e no espaço, uma forma de produção cujo efeito deveria ser superior à soma das partes. O indivíduo não cessava de passar de um espaço fechado ao outro: família, escola, fabrica, universidade e eventualmente prisão ou hospital.
A existência de mecanismos disciplinares é anterior ao período que Foucault denominou como sociedade disciplinar, mas antes existiam de forma isolada, fragmentada. O padrão de visibilidade das sociedades disciplinares projectou-se no interior dos prédios das instituições, que passaram a ser construídos para permitir o controle interno.
Foucault afirma que as instituições não têm essência ou inferioridade, nem são fontes de poder. São mecanismos operatórios práticos que fixam relações. Têm necessariamente dois pólos: aparelhos e regras. O pólo negativo compreende a táctica do poder em sujeitar e reprimir. O pólo positivo consiste em produzir, mobilizar tipos de forças que constituem o poder, provocando um corpo - a - corpo. Quanto mais poder conseguir produzir, mais deverá sujeitar e administrar. Nesse confronto retira-se um efeito útil, uma notável solução, diria Foucault: o aparecimento da disciplina. A disciplina dissocia o poder desse corpo - a - corpo e reduz o perigo da inversão de um equívoco dessa polarização.
Ao estudar o nascimento da prisão, Foucault observa que passou por três fases: primeiramente, nas sociedades soberanas, no séc.XVII, existe paralelamente a outras administrações de punição, como o manicómio e o asilo. Com a queda da soberania, a lei e o poder adquirem uma forma regular de administração, isto é, a sua transmissão e continuidade ganham nova forma, quando acontece a estatização da justiça penal.
Como Foucault observa a prisão não é então uma pena e direito, não fez parte do sistema penal dos séculos XVII e XVIII. Os legistas são perfeitamente claros a este respeito. Estes afirmam que, quando a lei pune alguém, a punição será a condenação à morte, a ser queimado, a ser esquartejado, a ser marcado, a ser banido, a pagar uma multa, etc. a prisão não é uma punição.
Quando o indivíduo perde o processo e é declarado culpado, deve uma reparação à sua vítima, isto é, exige-se do culpado a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano, a lei e o poder monárquico. Assim é que aparecem os mecanismos da multa, da condenação à morte, do esquartejamento, do banimento etc.
O segundo momento de consolidação da prisão ocorre no final do séc. XVIII e inicio do séc.XIX. É caracterizada pela reforma e reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da Europa e do mundo. Nesse momento, ao contrario do período anterior, a prisão passa a difundir-se em todas as direcções, por se efectuarem em alto grau as exigências do diagrama da disciplina, vencida, obviamente a má reprodução que vinha do seu papel precedente.
Foucault denomina esse período de sociedade disciplinar, pois traz como características essenciais a distribuição dos indivíduos em espaços individualizados, classificatórios, combinatórios, isolados, hierarquizados, capazes de desempenhar funções diferentes segundo o objectivo especifico que deles exige. Estabelece uma sujeição do individuo ao tempo, com o objectivo de produzir com o máximo de rapidez e eficácia.
A vigilância também se expressa como um dos seus instrumentos de controle, de maneira contínua, perpetua e permanente.
No âmbito do direito penal, passa-se a enunciar os crimes e os castigos que preconizam o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos, diferente daquela prevista no séc. XVIII, que visava tão somente a defesa da sociedade.
Ressalta Foucault que a prisão, nesse momento remete a palavras e conceitos completamente diferentes, como a delinquência e o delinquente, que exprimem uma nova maneira de enunciar as infracções, as penas e os sujeitos.
A terceira fase consiste na reforma penitenciária, pois destitui a prisão da sua exemplaridade, fazendo-a voltar ao estado de agenciamento localizado, restrito e separado.
As técnicas disciplinares serão substituídas pelo modelo técnico de cura e normalização. Funcionará como terapêutica da rectificação do individuo, e a sentença judicial será inscrita entre os discursos do saber, implicando num baixo grau de exigências do diagrama da disciplina.
Nesse estudo topológico de interrogar as formações históricas, Foucault descobriu uma engenharia que atravessa quase meio século, praticamente despercebida, enquanto estratégias ou táctica de poder. Aparece contudo, como uma mecânica de observação individual, classificatória e modificadora do comportamento, uma arquitectura formulada para o espaço da prisão, ou para outras administrações, tais como: a fabrica, a escola, o manicómio. Essa maquinaria era o Panóptico. 
O Panóptico é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que actualmente conhecemos – utopia que efectivamente se realizou. Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo. Vivemos numa sociedade onde reina o panoptismo.
Com o Panóptico vai-se produzir algo totalmente diferente. Não há mais inquérito, e sim vigilância e exame. O Panóptico teve uma tríplice função a vigilância, o controle e a correcção.
Segundo Foucault (1990), o poder é uma prática social e, por isso mesmo, é constituído historicamente e articula-se com a estrutura económica. O que Foucault chamou microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço de análise quanto ao nível que este se efectua. De acordo com a sua categorização, as sociedades e os seus respectivos regimes de visibilidade podem ser divididos em: sociedades de soberania, onde o rei ou senhor exercia o poder, por meio de uma vigilância externa e geral; sociedade disciplinar, na qual as instituições são um dos maiores dispositivos de visibilidade, principalmente com relação ao funcionamento dos operários institucionais; e sociedade de controle, veio substituir a sociedade disciplinar, na qual ocorre a implementação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação, ou seja, o exercício do poder à distancia.
Actualmente, encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento da sociedade disciplinar e assistimos à instalação de uma sociedade que controla à distância. Desse modo, a crise das instituições modernas representa a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. A lógica da sociedade disciplinar é analógico, ou seja, descontinua e diferenciada em cada confinamento, enquanto a da sociedade de controle é numérica e constante.
Sociedade de Controle
 	 
 	 
 	 
 	
 
A passagem da modernidade para a contemporaneidade ocasionou a mudança de um modelo de sociedade. De uma sociedade vista por Foucault como “Disciplinar”, para um modelo de sociedade identificada por Gilles Deleuze (1992) como de “controle”. Hoje, nós encontramo-nos num momento de transição entre um modelo e outro. Estamos a sair de uma forma de encarceramento completo para uma espécie de controle aberto e contínuo.
A chamada sociedade de controle é um passo à frente da sociedade disciplinar. Não que esta tenha deixado de existir, mas foi expandida para o campo social de produção. Segundo Foucault, a disciplina é interiorizada. Esta é exercida fundamentalmente por três meios globais absolutos: o medo, o julgamento e a destruição. Logo, com o colapso das antigas instituições imperialistas, os dispositivos disciplinares tornaram-se menos limitados. As instituições sociais modernas produzem indivíduos sociais muito mais moveis e flexíveis que antes. Essa transição para a sociedade de controle envolve uma subjectividade que não está fixada na individualidade. O indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas. Mesmo fora do seu local de trabalho, continuaa ser intensamente governado pela lógica disciplinar. 
A forma cíclica e o recomeço contínuo das sociedades disciplinares modernas dão lugar à modulação das sociedades de controle contemporâneas nas quais nunca se termina nada mas exige-se do homem uma formação permanente.
Enquanto a sociedade disciplinar se constitui de poderes transversais que se dissimulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo nomandismo que se expande junto às redes de informação.
Se nas sociedades disciplinares o modelo Panóptico é dominante, implica o observador estar de corpo presente e em tempo real a observar-nos e a vigiar-nos. Nas sociedades de controle esta vigilância torna-se rarefeita e virtual. As sociedades disciplinares são essencialmente arquitecturais: a casa da família, o prédio da escola, o edifício do quartel, o edifício da fábrica. Por sua vez, as sociedades de controle apontam uma espécie de anti-arquitectura. A ausência da casa, do prédio, do edifício é fruto de um processo em que se caminha para um mundo virtual. 
É importante perceber que na sociedade de controle, o aspecto disciplinar não desaparece, apenas muda a actuação das instituições. Os dispositivos de poder que ficam circunscritos aos espaços fechados dessas instituições passam a adquirir total fluidez, o que lhes permite actuar em todas as esferas sociais. Entre os princípios norteadores desta dinâmica, destaca-se a abolição do confinamento enquanto técnica principal.
As técnicas disciplinares originadas a partir do séc. XVIII destinavam-se a garantir que os indivíduos – por meio dos seus corpos – fossem submetidos a um conjunto de dispositivos de poder e de saber, baseados na vigilância permanente, na normalização dos seus comportamentos e na exposição a exames. Como forma de se produzir verdades sobre eles mesmos, essas práticas tinham como objectivo a extracção máxima das potencialidades e, portanto, as instituições como escolas, fábricas, hospitais – entre outros – cumpriam um papel fundamental na implementação desses mecanismos, com o objectivo de tornar os indivíduos dóceis.
É neste sentido que a noção de confinamento, amplamente utilizada a partir do séc. XVIII, norteadora do funcionamento desses estabelecimentos, deixou de ser a estratégia principal do exercício do poder. O controle ao contrário, ultrapassa a fronteira entre o público e o privado. Aqui, reside um dos aspectos fundamentais na construção da passagem da sociedade disciplinar para a de controle: há um processo de instauração da lógica do confinamento, em toda a sociedade, sem que seja necessária a existência de muros que separem o lado de dentro das instituições do seu exterior.
Há uma vigilância contínua, concretizada pela propagação das câmaras espalhadas por toda a parte: no comercio, bancos, escolas e até mesmo nas ruas. Isto traz a dimensão da sociedade auto-vigiada, idealizada por Jeremy Bentham, cujo Panóptico expressa a sua concepção arquitectónica. Uma vigilância intensificada pela disseminação de dispositivos tecnológicos de vigilância presentes até mesmo ao “ar livre”. Todos podem e querem espiar todos. Trata-se da reinvenção do Panóptico benthaniano que passa a actuar com o objectivo de transformar, de maneira extensiva e intensiva, os modos de viver, pensar e agir dos indivíduos.
Se a principal premissa da sociedade disciplinar era fazer com que o indivíduo modelasse o seu comportamento. A partir da possibilidade de estar a ser vigiado por alguém (inspector), essa perspectiva transmutou-se. O que presenciamos na sociedade de controle é que houve uma espécie de incorporação da disciplina. A tal ponto, que os indivíduos podem estar sob os efeitos dos dispositivos disciplinares, independente, da presença de algum tipo de autoridade investida de poderes capazes de impor os procedimentos de poder e de saber.
A sociedade de controle redimensiona e amplifica os pilares constituintes da sociedade disciplinar.
Como argumenta G. Deleuze, a passagem de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle, tem como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua virtualidade, para a tornar pura informação, parte dos dispositivos de vigilância e monitorização. Ao atribuir à imagem a potencialidade da informação, deslocamos a abordagem do campo de representação, passando a compreende-la enquanto a própria expressão dos acontecimentos. “Não creio que os media tenham muitos recursos ou vocação para captar um acontecimento. Primeiro, eles mostram com frequência o começo e o fim, ao passo que um acontecimento, mesmo breve, mesmo instantâneo prolonga-se” (Deleuze, 1992; Pág:198). Seja na cobertura de uma guerra, seja acompanhando as rotinas exibicionistas dos reality shows, as imagens que nos chegam parecem não se interessar mais pelo acontecimento, mas apenas em reafirmar o seu olhar omnipresente, sob o qual tudo se passa e nada passa despercebido.
Um fenómeno recente que tem chamado a atenção de diversos estudiosos é os referidos reality shows. Tais programas expõem os seus participantes a situações limites e dão margem a uma série de análises. Um bom exemplo disso é o Big Brother que surgiu em 1999, na Holanda e foi criado pela produtora Endemol, uma das maiores empresas de entretenimento da Europa. O nome Big Brother foi inspirado no livro “1984” do escritor inglês George Orwell. Neste livro, todos os habitantes de um país fictício são vigiados diariamente, por câmaras que funcionam como olhos do governo. O autor alerta para o perigo de estarmos a caminhar para uma sociedade controlada por câmaras. Passados pouco mais de cinquenta anos da publicação do romance de Orwell, o receio do totalismo cedeu lugar à sedução, através da invasão de câmaras em programas televisivos.
Em 2000, o programa Big Brother começou a ser exportado para outros países, como Alemanha, Espanha, Estados Unidos da América, Inglaterra, Portugal, Suiça, Suécia e Bélgica.
Desde o início das sociedades modernas, os meios de comunicação contribuíram decisivamente para a construção da subjectividade dos seres humanos. Sempre em sintonia com o surgimento e consolidação das sociedades capitalistas modernas, os meios de comunicação desenvolveram-se de forma espantosa. É impossível pensar o mundo contemporâneo, sem levar em conta o papel dos “mass media”. Um dos traços fundamentais deste mundo contemporâneo é exactamente o inesgotável fluxo de imagens e de conteúdos simbólicos, disponibilizados pelos meios de comunicação a um número cada vez maior de pessoas, e que de certa maneira, conformam a realidade, as relações sociais e a subjectividade individual.
A realidade do final do século exige cada vez mais que os sujeitos saibam lidar com uma imensa gama de informação que invadem diariamente a sua vida quotidiana, de uma forma desconhecida para as gerações precedentes. Lidar com o impacto deste fluxo acelerado de informações e, principalmente dar-lhe um significado, ou seja, interpretá-las integrando-as na sua visão do mundo, é hoje uma tarefa inevitável dos sujeitos modernos
(Guareschi, 2000, pág.43).
Uns dos aspectos a serem considerados no Big Brother são os valores implícitos no programa. Pode-se perceber estes valores através da sua estrutura e funcionamento, tais como: confinamento, vigilância, exclusão, fama, dinheiro, esforço, sorte, culto do herói, “salve-se quem puder”, negação do sofrimento psico-social, “cada um por si e Deus por todos”.
A vigilância, a fama e o confinamento são as características que conferem o carácter inédito do programa e ficam em maior evidência para o telespectador.
 
Vigilância
A pergunta que se faz é, o que ocorreu, para que saíssemos do horror da vigilância, para imergirmos na apoteose voyerista, de contemplar supostamente em tempo integral, um grupo de indivíduos exibicionistas confinadas num espaço marcado por câmaras e microfones?
O controle, na sociedade contemporânea, é exercido de modo “glamourizado”pela indústria cultural. Assim substituiu-se a guilhotina e a violência física por técnicas de controle social formadas dentro das ciências humanas e sociais, pela psicologia, psiquiatria e mais recentemente pelos meios de comunicação de massas. Em vez de usar a força física para fazer os corpos indóceis padecerem em razão de não se ajustarem, o que ocorre é tornar interna a ideológica exercida pelos meios de comunicação de massa, que produzem uma certa forma de ser, de viver, de pensar e de sentir.
A estratégia actual é construir subjectividades, de forma a que estas se enquadrem no modo de vida oferecido pela sociedade, pois de acordo com Foucault, o poder moderno exerce-se na produção e na repressão.
Hoje, os vigias do “Grande Irmão”, são todos os indivíduos, que auxiliados pela edição dos media ficam extasiados, fascinados diante da televisão, vigiando e controlando através dos votos (pois é um programa interactivo), os passos dos doze participantes anónimos. O que, antes era temido – o controle e o vigiar – e também o que era protegido – a privacidade e a intimidade – tornam-se objectos de fascínio. Isto evidencia-se no primeiro imperativo para participar do show de realidade – Big Brother - que é a imposição da restrição do privado.
Oferece-se aos participantes uma casa bem equipada em que se encontram 24 sobre 24 horas sob vigia, para que se tornem famosos, todavia, caso sejam excluídos e não ganhem o prémio máximo de cem mil euros, já tiveram a oportunidade de conquistar a fama. Troca-se desta maneira, a privacidade pela fama.
 A sociedade contemporânea é descrita por Debord (1994), como a sociedade do espectáculo, que substitui o lema “Penso logo existo”, por um outro ditado: “sou visto, logo existo” (Quinet, 2002). Ainda segundo este autor, a sociedade é dominada pelo olhar, que é omnividente sob diversas formas, que vão desde a proliferação dos programas televisivos de voyerismo e exibicionismo explícitos, até à difusão epidémica da vigilância, que multiplicam as câmaras encontradas a cada passo do indivíduo. Vive-se hoje, numa sociedade escópica que tem como espectáculo, a disciplina e controle. O olho que vigia e pune, é o mesmo que possibilita a fama.
A fama parece ainda ser inseparável de um outro vínculo: a dor de se ter de separar do privado, da vida rotineira, para se lançar rumo a ser objecto do olhar do outro, desgarrado e desenraizado da sua forma de ser.
Esta sociedade escópica impõe uma existência vinculada à visibilidade, e consequentemente à celebridade, mas por outro lado, amplia cada vez mais a vigilância e o controle sobre cada indivíduo. Quase já não é possível sair de casa sem nos depararmos com os dizeres “sorria, você está a ser filmado”. Verdade ou mentira, não importa, pois a frase faz existir um olhar invisível pousado no indivíduo. A instância desse olhar atribuído ao outro, é chamado por Freud de superego, que tem como um dos seus atributos vigiar e punir o indivíduo. A sociedade escópica, ao utilizar esta estrutura subjectiva, multiplica os seus dispositivos de vigilância electrónica e transforma-nos todos em objectos vistos e controláveis. A transparência, passa assim, a ser um ideal.
 
 Confinamento: 
Um dos meios utilizados pelos “mass media” para apresentar o programa “Big Brother” como um show de realidade, é afirmar que o confinamento deve traduzir sentimentos verdadeiros, pois não dá para protelar nem para recalcar emoções ou indisposições com os companheiros de cela. Na verdade, o confinamento sob esta perspectiva mantém uma tensão. De um determinado ponto de vista, poderia ser considerado um grande engano, pois como consta nas regras do programa os participantes são vigiados 24 horas por dia. Mas, “as pessoas uma vez observadas pela câmara começam a fazer poses, construindo uma real e própria encenação (Sodré, 1994, pág.36). “A partir desta fase, a real e própria encenação pode ser entendida como idealizada.
Portanto, de outro ponto de vista, o desejo pela fama entendido “como a construção da auto imagem pela projecção de uma imagem para os outros” (Coelho, 1999), já produz uma amputação da subjectividade trazendo como um dos resultados, o impedimento de accionar instâncias psíquicas superiores.
Assim, o que se mostra, não é fingimento ou teatro, pois a subjectividade sem a restrição da lei basta para se conformar as regras impostas pelo programa, e representar a sua identidade ideal, já capturada e ávida pela fama. Portanto, a vigilância já é um confinamento que determina uma forma de ser, uma vez que, sob vigilância, no palco, com os holofotes que potencializam a fama, há a transmutação de um ser pensante para um ser de origem. É bom lembrar, que a situação dos participantes dos reality shows, expostos a uma câmara 24 horas por dia, e cientes de que a sua performance vai desembocar na sua exclusão ou permanência, tanto pelos seus parceiros como pelos telespectadores, são os elementos que confirmam a prisão do ser.
Uma das propostas do Big Brother é a de transformar a privacidade em espectáculo. Importa salientar, que o que é apresentado na tela, não é a privacidade nua e crua de ninguém, pois a direcção do programa selecciona alguns fragmentos de seu interesse. A partir disto, a intimidade é construída com música de fundo que sublinham ou criam climas, maquinados com lentes inusitadas que transformam o banal em inusitado. A intimidade exposta, é limitada não só pelas mudanças de comportamento já produzidas, via mudanças de valores da sociedade espectacular, regida pelos princípios do mercado, pelas regras do programa, como também elos recursos dos mass media.
O vencedor é o que padroniza um modelo de ser na cultura actual. É aquele que perde a intimidade e a identidade, aquele que se afasta dos seus e se submete a uma experiência de “prisão – show”, é julgado e sentenciado a cada comportamento e apresenta maior tolerância à privação. Enfim, aquele que muito perde, e no final é referenciado como vitorioso.
 A visibilidade “total” a que se submete um cidadão hoje em dia pode ser uma armadilha. A nossa sociedade vem criando cada vez mais uma condição de transparência dos seus participantes e, muitas vezes, estamos reivindicando para sermos modernos, a visibilidade ampliada, como um direito, de alguns que permanecem na obscuridade e à margem da história recente ou num passado considerado longínquo.
No entanto, convém lembrar que somos nós os produtores e produtos desta sociedade que criámos. Não somos simples marionetas deste jogo de forças, mas co-autores no nosso silêncio, na “naturalidade” com que encaramos este estado das coisas.
O controle da Sociedade Disciplinar
Na sociedade disciplinar, somos marionetes da opressão do poder estabelecido, que nos manipula politicamente conforme as suas conveniências. A opressão dessas sociedades foi descrita nas narrativas literárias de Aldous Huxley e George Orwell
Renato Nunes Bittencourt
Shutterstock
Na sociedade disciplinar, somos marionetes da opressão do poder estabelecido, que nos manipula politicamente conforme as suas conveniências. A opressão dessas sociedades foi descrita nas narrativas literárias de Aldous Huxley e George Orwell
Divulgação
Imagem do reality show de grande apelo popular, Big Brother, uma adaptação inglória da obra de Orwell, distorcendo o efeito repressor da sociedade de controle sobre a subjetividade humana
Pensemos numa sociedade na qual todos nós fossemos vigiados intermitentemente por um grande olhar onisciente, o Panóptico, que não deixaria escapar nenhum detalhe das nossas ações. Nesse sistema, sequer existiria o termo 'privacidade', pois todas as informações seriam consideradas de domínio público. O Panóptico representa analogamente a manifestação social do olhar onisciente de Deus, que conhece de antemão o íntimo de todas as coisas. Trata-se da manifestação mais pura do controle exercido pela sociedade disciplinar, regulamentando as ações, determinando padrões de gosto e modelos de conduta que devem ser seguidospela massa social. Os organizadores desse dispositivo acreditariam que pela instauração desse grande sistema de observação das ações individuais os grandes problemas sociais seriam banidos definitivamente do âmbito "civilizado".
A definição do Panóptico como um instrumento direcionado para o controle das ações individuais fora adotada por Jeremy Bentham, no seu projeto de inserção dessa cadeia de controle social sobre as instituições europeias do período incipiente da Revolução Industrial, como forma de obter o máximo domínio sobre as disposições individuais, evitando-se a criminalidade e as revoltas contra a ordem estabelecida. A formulação do Panóptico é um pretenso projeto utópico, cuja instauração resolveria definitivamente o problema da segurança da sociedade urbana, exigindo assim a supressão da intimidade de cada indivíduo. Analisado criticamente, o Panóptico representa uma distopia social, pois o seu objetivo se realizaria mediante o controle intrínseco do comportamento humano, gerando em cada indivíduo o florescimento do medo pela ameaça de punição.
A crítica sobre a natureza opressora do foi retomada contemporaneamente por Foucault em Vigiar e punir, através da explicitação dos mecanismos de imposição de poder que se encontram subjacentes na prática de controle social por meio da observação contínua dos indivíduos. Esse sistema coercitivo de fiscalização social pelo olhar se dá nos presídios, nas fábricas, nos espaços religiosos e nas escolas, preconizando a adequação e submissão incondicional do indivíduo às regras imperativas estabelecidas, tornando os corpos dóceis (Vigiar e punir, p. 127). A sociedade de controle exerce a domesticação dos impulsos singulares humanos, desmobilizando qualquer projeto de revolta. Para Foucault, ao enfraquecer as resistências individuais, o poder legal suprime pela raiz toda voz de dissensão diante das manifestações de arbitrariedade (A verdade e as formas jurídicas, p. 103).
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O controle da Sociedade Disciplinar
Na sociedade disciplinar, somos marionetes da opressão do poder estabelecido, que nos manipula politicamente conforme as suas conveniências. A opressão dessas sociedades foi descrita nas narrativas literárias de Aldous Huxley e George Orwell
Renato Nunes Bittencourt
Arquivo Pessoal
Imagem personificada do Big Brother na versão cinematográfica de 1984 de Michael Radford
A educação disciplinar do corpo individual é o meio que favorece a transformação da vida humana em força produtiva canalizada para objetivos práticos que proporcionam resultados concretos e úteis para a sua sociedade. O sistema Panóptico coíbe intimamente toda inclinação destoante das individualidades em relação às normas rigorosamente impostas, estabelecendo a adoção de comportamentos uniformes aos que se encontram imersos nessa realidade vigiada. A estrutura do Panóptico, conforme esclarece Zygmunt Bauman, seria, segundo os critérios coercitivos da ordem política estabelecida, uma arma eficaz contra a diferença, a opção e a variedade dos comportamentos e dos valores (Globalização, p. 58). O controle social gera o nivelamento dos indivíduos, calando o desenvolvimento criativo das suas singularidades. Quanto mais medíocre, tanto melhor para a "paz pública".
O elemento mais absurdo desse mecanismo de controle reside na ideia de que o bem-estar que o indivíduo deseja obter somente pode ser conquistado através da supressão de sua liberdade pessoal, pois é a flexibilidade das suas ações que motivam as circunstâncias que prejudicam a estabilidade social. A aspiração utópica pela estabilidade social corre o risco de se tornar uma distopia. Como Erich Fromm expressa em texto que serve de 'Posfácio' para 1984, de George Orwell, as utopias negativas expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem moderno assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança e esperança do homem pós-medieval (p. 369). Pode a natureza humana ser modificada de tal maneira que o homem esqueça seu desejo de liberdade, dignidade, integridade; pode o homem esquecer que é humano? (p. 370).
Arquivo Ciência & Vida
Jeremy Bentham (1748-1832), o idealizador do Panóptico
O advento dos grandes regimes totalitários no séc. XX responde de forma afirmativa tal indagação, e esse problema foi retratado pelas distopias literárias de Aldous Huxley e George Orwell, que descrevem o embate entre a aspiração existencial pela liberdade em suas inúmeras expressões, e o uso desmedido do controle disciplinar da sociedade. Para Huxley, a organização é indispensável, pois a liberdade só surge e tem sentido dentro de uma comunidade auto-regulamentada de indivíduos que colaboram livremente. Porém, mesmo que seja indispensável, a organização pode também ser fatal. A organização em excesso transforma em autômatos homens e mulheres, suprimindo o espírito criador e elimina a própria possibilidade de liberdade (Regresso ao admirável mundo novo, 38-39).
Orwell, por sua vez, em 1984 retrata uma sociedade rigidamente controlada por câmeras onipresentes que monitoram as ações individuais da população, reprimindo ações consideradas impróprias para a manutenção da ordem estabelecida. As relações sexuais entre os indivíduos das castas superiores são prescritas. A única abertura para a sexualidade residia na prostituição dos "proletas" que o Partido permitia tacitamente, pois era uma forma de dar vazão aos impulsos que não eram adequadamente reprimidos, circunstância similar ao projeto civilizatório da sociedade cristã, em que o sexo com prostitutas preservava a ordem familiar. O projeto do Partido era eliminar todo prazer no ato sexual. A pulsão sexual era perigosa para o Partido, que a utilizava em interesse próprio (1984, p. 161). Tal dispositivo é um grande mecanismo para a ampliação do grau de tensão psíquica da massa, que, impedida de gozar e satisfazer os seus desejos, reprime os seus instintos e se aliena das suas capacidades transformadoras, tornando-se infeliz e submissa diante da autoridade de uma ideologia política vazia, que usa palavras de ordem e da manipulação de informações para concretizar o seu poder totalitário. "Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força" (1984, p. 14).
Para Huxley, em sua propaganda, os ditadores atuais limitam-se, na maioria das vezes, à repetição, supressão e racionalização - repetição de estribilhos que devem ser aceitos como verdades, supressão de fatos que eles pretendem sejam ignorados, desencadeando e racionalizando paixões que podem ser aplicadas aos interesses do partido e do Estado (Regresso ao admirável mundo novo, p. 57). Mantendo-se em constante tensão, a população se deixa controlar por discursos retóricos de grande impacto afetivo, e os líderes adquirem sobre a massa uma autoridade paternal. Orwell destacou tal dispositivo em 1984, ao representar em diversos momentos da narrativa a dedicação diária aos minutos de ódio contra os inimigos públicos, seções cotidianas em que havia a catarse de todos os afetos reprimidos. A figura de Goldstein servia de bode expiatório simbólico para o descarregamento das emoções odiosas contidas na subjetividade de cada indivíduo. Por outro lado, a onipresente imagem carismática do "Grande Irmão" servia de amparo existencial e psicológico para a massa, que lhe devotava sentimentos análogos ao da devoção religiosa. Orwell, ao elaborar essa visão angustiante da era do controle individual através do registro onisciente de todas as ações, enunciou importantes questões sobre o mecanismo ideológico da sociedade de controle, e de que maneira ela exerceria uma profunda modificação na forma pela qual o indivíduo constitui a sua existência.
Arquivo Ciência & Vida
Planta da estrutura do Panóptico projetado por Bentham permitiria a um vigilante observar a todos sem que estes possam saber se estão sendo observados. Tal dispositivo se aplicaria nos presídios, nas escolas, nos hospitais, nas fábricas, nos quartéis, em todas as estruturas sociais seguidoras de rigorososregimes de disciplina
A OUTRA VERDADE
Outra circunstância que demonstra o projeto político de se aproveitar ideologicamente da ignorância das massas consiste no empobrecimento do vocabulário: a criação da "Novilíngua", em que a literatura clássica estava a ser retraduzida e adaptada à filosofia do Partido, e da "Novafala", que visava eliminar todas as palavras consideradas ambíguas e "excessivas", numa espécie de mecanização dos discursos, sendo a única no mundo cujo vocabulário encolhe a cada dia, e sua finalidade é estreitar o âmbito do pensamento (1984, p. 68). Quanto menor a quantidade de palavras de um vocabulário, menor a possibilidade discursiva dos indivíduos e, por conseguinte, mais pobre se torna o campo semântico da coletividade social. "O Grande Irmão está de olho em você" (1984, p. 12).
Tal palavra de ordem é uma espécie de secularização da crença na onisciência divina, que conhece todas as nossas ações melhor do que nós mesmos. Com o desenvolvimento da televisão e o avanço técnico que possibilitava a recepção e a transmissão simultâneas por intermédio do mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim. A distopia de 1984 problematiza uma questão crucial para a compreensão do direito legal pela liberdade de opinião e expressão: torna-se ato criminoso mesmo a disposição de resistência e contrariedade ao regime ditatorial, ainda que não haja uma manifestação pública de tal comportamento. Pensar contra a ideologia do regime é passível de punição, o que na obra de Orwell recebe o nome de "crime de pensamento", e o perigo mais letal era se falar algo subversivo enquanto dormia (1984, p. 82).
Quando Winston é torturado pela elite do Partido, há uma situação paradigmática do modelo de opressão que é imposta pela ideologia ditatorial: a noção de verdade se modifica de acordo com os interesses do poder. O'Brien faz um sinal com a mão e indaga a Winston quantos dedos ele vê, e a resposta, baseada na evidência, é "quatro". Entretanto, não é essa a resposta que o Partido deseja ouvir, e assim o protagonista recebe uma nova dose de tortura. A realidade existe apenas na mente do Partido, que é coletiva e imortal. Tudo o que o Partido reconhece como verdade é a verdade. É impossível ver a verdade se não for pelo olhar do Partido. Se o Partido quiser que 2 mais 2 sejam 5, assim o será. A mensagem transmitida é que, se convir ao ideário da opressão, mesmo as evidências mais indubitáveis se tornam passiveis de falsificabilidade. É a dominação total da vida individual, em que o agir, o pensar e o viver devem ser submetidos aos parâmetros heterônomos do poder dominante. Só interessa o poder em si, o poder pelo poder, o poder puro (1984, p. 307-308).
O consumo de drogas e a sexualidade desenfreada são instrumentos utilizados de forma perspicaz pelos mantenedores dos regimes autoritários, minando a capacidade política de contestação. A ingestão de drogas e as práticas do "sexo líquido" são talvez manifestações modernas da antiga política do "Pão e Circo"
Uma vez que tudo pode ser falsificado, a questão da manipulação das informações adquire importância primordial para a consolidação da tirania. Dominada pela ditadura da informação, a população perde a capacidade de se mobilizar politicamente, agindo conforme a autoridade moral da publicidade e seus recortes na realidade. Orwell destaca tal tema em decorrência do uso político da propaganda, e como ela pode mudar os rumos dos acontecimentos históricos. O maior grau da manipulação dos fatos em 1984 se ocorre ao se fazer acreditar que a Oceânia estava em guerra contra a Eurásia, quando em verdade era contra a Lestásia. Tal procedimento não é um sinal de desorganização política e militar da ditadura em vigor, mas justamente a capacidade de desestabilizar radicalmente toda a compreensão das massas acerca da realidade.
A sociedade distópica do controle total sobre a individualidade transmite, mediante os seus manipulados meios de comunicação, apenas simulacros informativos para a população, fazendo com que esta creia que as informações transmitidas são "reais". No Admirável mundo novo, constatamos uma negação da verdade e a possibilidade de se manipulá-la, conforme a sentença solene: "a história é uma farsa". A distopia de Huxley apresenta outra faceta da sociedade de controle/disciplinar, mas surpreendentemente complementar aos traços terríveis apresentados por Orwell em 1984; se nesta obra existe a repressão aos impulsos sexuais com uma finalidade política, na sociedade distópica de Huxley as práticas sexuais são incentivadas pelo Estado, em preferencial as casuais, pois todo vínculo duradouro entre os parceiros é compre-endido como algo tolo e prejudicial. Sexo para procriação é algo perigoso para o bem-estar social, pois o risco de nascerem crianças biologicamente indesejáveis é imenso. O sexo é um fim em si mesmo, e deve-se obter o máximo de relações sexuais, numa espécie de mega hedonismo moralmente legitimado. "Nunca deixe para amanhã o prazer que pode ter hoje"(Admirável mundo novo, p. 153).
Divulgação
Cena do filme V de Vingança, que retrata uma Inglaterra governada por um regime totalitário controlador do sistema de informações. A obra enuncia o paradoxo existente entre a efetivação da estabilidade social à custa das liberdades pessoais dos indivíduos
Poderíamos pensar que tal liberalismo sexual seria exemplo de uma sociedade progressista, onde cada indivíduo teria a possibilidade de dar vazão aos seus impulsos libidinais. Porém, o controle social garantido por tal mecanismo ideológico é tão rigoroso como o descrito em 1984, especificamente pela sutileza em que o domínio sobre a subjetividade é exercido. Não existe a repressão violenta do estado policial, mas a população é mantida alienada pela classe dirigente pelo poderoso estímulo sexual e pelo consumo de soma, um narcótico do prazer sem efeitos colaterais. Seu efeito mágico é apregoado pelo slogan: "Com um centímetro cúbico de Soma esvai-se o sentimento lúgubre" (Admirável mundo novo, p. 148). Nesse mecanismo de libertação dos tormentos existenciais se oculta um potente mecanismo de controle social. Como argumenta Huxley: "Um ditador poderia, se assim o desejasse, empreender essa droga para fins políticos. Poderia evitar a agitação política transformando a química cerebral dos súditos, e fazer, dessa maneira, que se contentassem com a sua condição social" (Regresso ao admirável mundo novo, p. 109
Trata-se de uma sociedade obscurantista que vive à base de entorpecentes e de uma sexualidade desenfreada como meio de se fugir do vazio existencial. O excesso de situações prazerosas, proporcionada pelo Estado, enfraquece a capacidade de resistência dos indivíduos, criando neles uma dependência psicofisiológica em relação aos recursos propiciadores de prazer. Toda infelicidade pode ser solucionada pelo ato sexual e pelo consumo de drogas, e quando a tristeza voltar a aflorar no ânimo, basta tomar novas doses dos dois "entorpecentes".
Os valores dessa sociedade são inversos aos da conservadora era vitoriana. O verdadeiro ato imoral é o de se permanecer com o mesmo parceiro, e não a troca constante de parceiros. A explicação é que os sentimentos de exclusividade e de família são prejudiciais para a sociedade, gerando uma estreita canalização dos impulsos e da energia (Admirável mundo novo p. 79). Cada indivíduo pertence a todos, e essa ruptura com o milenar modelo familiar exclui da subjetividade a ideia de apego a um ente querido, gerando então uma ausência de laços duradouros entre os indivíduos.
Arquivo Ciência & Vida
Redação da Rádio Canadá, em Montreal, 1944. Existe a "verdade" enunciada pelo discurso jornalístico? De que modo a mídia manipula informações de interesse público em favor da manutenção da sociedade disciplinar?
Outra situação distópica imaginada por Huxley consiste na transmissão de informações para as crianças durante o sono (hipnopedia), em especial a educação moral, que jamais deve ser racional (Admirável mundo novo p. 60). Para a casta diretora, tal técnicafavoreceu a criação da maior força moralizante e socializante de todos os tempos (Admirável mundo novo, p. 63). Não há civilização sem estabilidade social, não há estabilidade social sem estabilidade individual (Admirável mundo novo, p. 82).
Outro grande ponto em comum que podemos encontrar nas grandes distopias literárias de Huxley e Orwell consiste na demonização da leitura e dos livros. No Admirável mundo novo são proibidos os livros, poesias, textos sagrados. O problema ideológico consiste na antiguidade de tais obras, e de que maneira elas tratam de um mundo ainda desorganizado, decadente. Nada é pior para o "bem-estar" social do que a literatura tradicional, pois esta apresenta um caráter sujo, corruptor da condição humana e do status quo da elite no poder. A motivação de repressão aos livros é nítida: a leitura favorece a reflexão, logo, a politização do indivíduo e sua capacidade de transformar a sociedade, questionando a arbitrariedade do poder. O projeto iluminista de a racionalidade conduzir o homem cai por terra na era da insana sociedade disciplinar, com o seu porvir distópico ameaçando a sanidade de nossa controlada "paz" social.
Tanto Huxley como Orwell terminam as suas obras descrevendo a derrota do projeto libertário do homem diante da máquina opressiva da ordem estabelecida. John, o "Selvagem", se suicida ao constatar amargamente a perdição desse insano mundo disciplinar, e Winston, que intimamente odiava o "Grande Irmão" e tudo aquilo que ele representa, passa a amá-lo após ser "reeducado" pelo Partido. Apesar do desfecho terrível dessas obras, o que os autores pretendem demonstrar é a ideia de que toda pretensa "estabilidade social" não substitui a aspiração humana pela singularidade e pela sua capacidade de viver intensamente conforme os seus próprios projetos, mesmo que isso resulte na decadência individual. Com efeito, destruição pior está na vida humana se tornar fantoche de interesses políticos alheios.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Globalização - As conseqüências humanas. Trad. de Marcus Penchel. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1999
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Trad. Tomas Tadeu da Silva. Belo Horizonte. Ed. Autêntica, 2000
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. de Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro. Nau Editora, 1999
_________. Vigiar e punir. Trad. de Ligia M. Pondé Vassalo. Petrópolis. Ed. Vozes, 1984 HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Trad. de Lino Vallandro e Vidal Serrano. Rio de Janeiro. Ed. Globo, 2009
________. Regresso ao admirável mundo novo. Trad. de Eduardo Nunes Fonseca. Belo Horizonte. Itatiaia, 2000 ORWELL, George. 1984. Trad. de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo. Companhia das Letras, 2009 [Incluído ainda o Posfácio de 1961 de Erich Fromm para a obra.]
Renato Nunes Bittencourt é Doutorando em Filosofia do PPGF-UFRJ/Bolsista do CNPq

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