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Nossos conceitos gerais sao ainda instaveis e imperfeitos. Cr •io sinceramente que e por esfor~os conjugados, mas vindo de dire~o • opostas, que nossas ciencias, psicol6gicas, sociol6gicas e hist6ricas, po derao urn dia tentar uma descri~ao dessa penosa hist6ria. E creio qu essa ciencia, o sentimento da relatividade atual de nossa razao, e qu I 1l vez ha de inspirar a melhor filosofia . Permitam-me concluir dt• modo. 344 Psicologia e sociologia Quarta parte , , , EFEITO FISICO NO INDIVIDUO DA IDEIA DE MORTE SUGERIDA PELA COLETIVIDADE* Australia, Nova Zelfindia 1. Defini~ao da sugestao coletiva da ideia de morte II. Tipos de fatos australianos III. Tipos de fatos neozelandeses e polinesios I o "" /01111101 de Psychologie Normale et Pathologique, 1926. Comunicac;ao apresen- 1 .I 1do• dl" Psicologia. 345 ) 0 estudo sabre as rela<;5es da psicologia e da sociologia1 era inteira- mente de metoda. Mas urn metoda s6 se justifica se ele abre urn cami- nho, f.L<l8o8o<;, se e urn meio de classificar fatos ate en tao rebeldes a classifica<_;:ao. Ele s6 tern interesse se tiver urn valor heuristico. Passe- mas portanto ao trabalho positivo e mostremos q~e, por tnis de algu- mas asser<;5es que me permiti, havia fatos, em particular os que mas- tram a liga<;ao direta, no homem, do fisico, do psicol6gico e do moral, isto e, do social. Eu vos indiquei que, num numero muito grande de sociedades, uma obsessao pela ideia de morte, de origem puramente social, sem ne- nhuma mistura de fatores individuais, era capaz de tamanhas devasta- <;5es mentais e fisicas, na consciencia e no corpo do individuo, que ela provocava sua morte em pouco tempo, sem lesao aparente ou conhecida. E vos prometi apresentar documentos, uma demonstra<_;:ao e, se nao uma analise, ao menos uma proposi<;ao de analise. Aqui estao eles, abertos ao debate e submetidos a vossa critica. Mas, antes, definamos o problema. I. journal de Psychologie, 1924: 892. Cf. Terceira parte, supra. 347 ) 1. Defini~ao da sugestao coletiva da ideia de morte Nao confundiremos esses fatos com aqueles, no entanto vizinhos, ou- trora confundidos com eles sob o nome de Tanatomania. 0 suicidio e com freqiiencia, nas sociedades que vamos estudar, o resultado de uma obsessao do mesmo genero; a maneira como o individuo, em certos es- tados de pecado ou de magia, multiplica seus atentados a propria vida, em particular entre os Maori, manifesta essa sugestao persistente. Esta pode ter, portanto, exatamente as mesmas formas, so que tern conse- qiiencias diferentes no sistema de fatos que vamos descrever. 1 Pois, nes- se caso, a vontade e o ato brutal de matar-se intervem. A influencia do social sobre o fisico conta com uma mediacrao psiquica evidente; e a pro- pria pessoa que se destroi, e 0 ato e inconsciente. A ordem dos fatos de que irei vos falar e, de nosso ponto de vista, e para a nossa demonstracrao, muito mais impressionante. Trata-se de casas de morte causada brutalmente, de forma elementar, em numerosos individuos, mas simplesmente porque eles sabem ou ere em ( 0 que e a mes- ma coisa) que viio morrer. Entre esses ultimos fatos, porem, e conveniente separar aqueles em que essa crencra e esse saber sao- ou pod em ser- de origem individual. Veremos em seguida que, nas civilizas:oes consideradas, eles muitas ve- zes se confundem com os que examinamos de forma mais precisa. No entanto, e claro que, se o individuo esta doente e acredita que vai mor- rer, mesmo se a doen<;a e causada, segundo ele, pela feiti<;aria de urn ou- tro ou por pecado proprio (de cometimento ou de omissao ), podemos afirmar que a ideia da doens:a e 0 "meio-causa" do raciocinio conscien- te e subconsciente. 1. Alguns casos desse genero serao encontrados no born catiilogo de informa~oes africanas de Steinmetz 1907. Ver, em particular, os suicidios por perda de prestigio, freqiientes ainda entre n6s e na China, e que foram tao numerosos na Antigiiidade. 349 J Portanto, consideraremos somente os casas em que o sujeito que morre nao se ere ou nao se sabe doente, e apenas por causas coletivas pre- cisas julga-se em estado proximo da morte. Esse estado coincide geralmen- te com uma ruptura de comunhao, seja por magia, seja por pecado, com as fon;as e coisas sagradas cuja presenc;:a normalmente o sustenta. A consciencia e en tao invadida por ideias e sentimentos que sao totalmen- te de origem coletiva, que nao revelam nenhum distU.rbio fisico. A ami- lise nao chega a perceber nenhum elemento de vontade, de escolha ou de ideac;:ao voluntaria da parte do paciente, ou mesmo de distU.rbio men- tal individual, exceto a propria sugestao coletiva. 0 individuo acredita- se enfeitic;:ado ou julga-se em pecado, e morre por essa razao. Eis portan- to o tipo de acontecimentos aos quais restringimos nosso exame. Outros fatos, de suiddio ocasionado ou de doenc;:a motivada pelos mesmos es- tados de pecado ou de enfeitic;:amento, sao evidentemente menos tipicos. Ao complicar assim nosso estudo por uma circunscric;:ao tao detalhada, tornamo-lo mais simples, mais impressionante e mais demonstrativo. Esses fatos sao bern conhecidos em numerosas civilizac;:6es, ditas inferiores, mas parecem raros ou inexistentes nas nossas. 0 que lhes confere urn carater social ainda mais marcado; pois eles dependem evi- dentemente da presenc;:a ou da ausencia de urn certo numero de institui- c;:oes e de crenc;:as precisas desaparecidas do leque das nossas: a magia, as interdic;:6es ou tabus etc. Mas, embora numerosos e conhecidos nesses povos, eles ainda nao foram submetidos- creio eu- a urn estudo psico- l6gico e sociol6gico urn pouco profundo. Bartels2 e StolP citam urn born numero deles, mas os confundem com os outros e nao vao alem da cole- ta de fatos tornados dos povos mais diversos. Contudo, seus livros sao suficientes para dar uma boa ideia da difusao desse tipo de fatos na hu- manidade. Quanta a n6s, procedamos mais metodicamente; concentre- mos nosso estudo em dais grupos de fatos de dois grupos de civilizac;:6es: uma, a mais inferior possivel ou a mais inferior conhecida: a australiana; a outra, ja bastante evoluida e que certamente passou por vicissitudes, e ados Maori, malaio-polinesios da Nova Zelandia. Limitar-me-ei a uma escolha de fatos nas compilac;:6es que constituimos, o falecido Hertz e eu.4 Teria sido facil multiplicar as comparac;:6es; em particular na Ameri- 2. Medizin der Naturvi:ilker (I89p0-1 J) . 3. Suggestion und Hypnotismus in der Viilkerpsycho- logie (1894). 4. Hertz examinara admiravelmente a maior parte dos documentos publicados sabre a Nova Zelandia antes da guerra. Ele preparava urn grande trabalho sabre 0 > 3 50 Jdeia de morte ca do Norte, na A.frica,5 fatos do mesmo genera sao freqiientes , tendo sido inclusive bern descritos pelos velhos autores. Mas e prefedvel con- centrar nossa atenc;:ao em duas especies de fatos vizinhos, no entanto bastante afastadas uma da outra para que a comparac;:ao seja possivel, e das quais conhecemos bern as naturezas, bern como o funcionamento em si e em relac;:ao ao meio social e ao individuo. U rna breve descric;:ao das condic;:6es mentais, fisicas e sociais em que se elaboram casas desse tipo nao e inutil. Fauconnet\ por exemplo, a prop6sito da responsabilidade em sociedades diversas, e Dur~heim, a prop6sito de numerosos fatos religiosos australianos, como o ntual fu- nerario e outros/ descreveram bern OS impulsos violentOS que animam os grupos, os medos e as reac;:6es violentas a que eles podem se expor. Mas essas dominac;:6es totais das consciencias individuais, engendradas no grupo e pelo grupo, nao sao as unicas. As ideias entao elaboradas se mantem e se reproduzem no individuo sob a pressao permanente do grupo, da educac;:ao etc. A menor ocasiao elas desencadeiam devastac;:6es e superexcitam asforc;:as. A intensidade dessas ac;:6es do moral sabre o fisico e tanto mais no- tavel na medida em que este, nesses povos, e mais forte , mais rude e mais animal do que entre n6s. E urn fato de observac;:ao corrente, da et- nografia australiana e de muitas outras, que o corpo do indigena possui uma espantosa resistencia fisica. Seja por causa da ac;:ao do sol e da vida no estado de nudez completa ou quase completa, seja por causa da bai- xissima septicidade do ambiente e dos instrumentos antes da chegada dos europeus, sej a por causa de certas particularidades dessas rac;:as sele- cionadas precisamente por esse genera de vida (em particular, pode ha- ver em seus organismos elementos fisiol6gicos, soros e outros, diferen- tes dos das rac;:as mais fracas, elementos que Eugene Fischer comec;:ou a > pecado e a expiafO.O nas sociedades inferiores, cuja introdw;ao foi publicada (~evue de l'H~ toire des Religions, 1921) e cujo restante, reescrito por mim, espero poder pubhcar, grac;as as admiraveis notas e a importantes fragmentos que restam de uma grande obra. Ele deparava com essa questao a prop6sito da noc;ao de pecado mortal. Tomei a liberdade de servir-me dessa documentac;ao. Eram fatos que me interessavam a prop6sito de pesquisas sobre a on- gem da crenc;a na eficacia das palavras na Australia, e, sobre esse ponto, meu exame da pu- blicac;ao etnografica sobre os indigenas australianos e igualmente bastante completo. No en- tanto indicarei em detalhe apenas urn pequeno numero de descric;oes, dificeis de encontrar, deix;ndo de !ado os autores conhecidos. 5. Ex. Casalis, Basulos: 269. 6. La Responsabiliti (1920). 7. Formas elementares da vida religiosa (1912). 351 l pesquisar ainda com pequeno sucesso ), seja qual for a causa, o fa to e que, mesmo em rela<;ao aos negros africanos, o organismo do australia- no distingue-se por espantosas faculdades de recupera<;ao. A parturien- te retorna de imediato a suas ocupa<;6es, poe-se a caminhar ap6s algu- mas horas; incisoes formidaveis na carne cicatrizam com rapidez; em algumas tribos, uma puni<;ao usual consiste em enfiar uma lamina na coxa da mulher ou do homem; fraturas de hra<;o sao rapidamente cura- das com talas simples. Todos esses casos contrastam singularmente com outros acontecimentos. Urn indivfduo e ferido, mesmo levemente; ele nao tern nenhuma chance de se restahelecer se acredita que a lan<;a esta enfeiti<;ada; outro quehra algum memhro, e s6 se restahelecera rapida- mente no dia em que tiver feito as pazes com as regras que violou, e as- sim por diante. 0 maximo dessas a<;6es do moral sohre urn flsico desse genero e evidentemente ainda mais sensfvel nos casos em que nao ha ne- nhum ferimento e que se enquadram exclusivamente em nosso assunto. 0 campo de ohserva<;6es neozelandesas e igualmente fertil em fa- tos tfpicos, emhora os neozelandeses tenham organismos mais delicados e menos resistentes aos agentes flsicos do que os australianos. E urn lu- gar comum de sua etnografia, sohretudo antiga, antes da chegada da va- rfola e outras doen<;as dos europeus que os dizimaram, a ohserva<;ao de sua for<;a, de sua saude, da rapidez das cicatriza<;6es, das curas, quando o moral nao e atingido. Mas eles nos interessam de outros pontos de vis- ta. Os neozelandeses sao, como todos os malaio-polinesios, os mais ex- postos, entre os homens, a esses estados "panicos" . Todos ja ouviram falar do amolc malaio: homens (sao sempre homens), mesmo nos dias de hoje e mesmo nas grandes cidades, para vingar urn insulto ou a morte de urn dos seus, saem a matar quantas pessoas puderem, ate que eles pr6- prios sejam ahatidos. A humanidade neozelandesa e malaio-polinesia em geral e a terra de elei<;ao de emotividades desse genero. :E nela que Hertz, por uma acertada escolha, come<;ou a analisar esses efeitos espan- tosos dos mecanismos da consciencia moral. Os Maori em particular ) ) apresentam os pontos maximos de for<;a mental e flsica por causa moral e mfstica, e tamhem os pontos mfnimos de depressao pelas mesmas ra- zoes. No livro de Hertz se encontrarao detalhes dessa demonstra<;ao cujo interesse apenas indicamos. 3 52 Idiia de morte n. Tipos de fatos australianos Os australianos consideram como naturais as mortes que chamamos violentas. Urn ferimento, urn assassinato, uma fratura sao causas natu- rais. A vendeta desencadeia-se com menos for<;a contra o assassino do que contra o feiticeiro. Todas as outras mortes tern por causa uma ori- gem magica ou entao religiosa. 1 }ana Nova Zelandia sao OS aconteci- mentos de origem moral e religiosa que sugerem ao indivfduo a ideia dominante de que ele vai morrer, e mesmo os feiti<;os sao geralmente conhecidos como destinados sohretudo a fazer cometer urn pecado. Ao contrario, os fatos australianos apresentam-se em propor<;ao inversa. 0 numero de casos em que a morte e causada pela ideia de ela ser o resul- tado fatal de um pecado e- ao que sahemos- hastante raro, e encontra- mos somente urn pequeno numero deles, em sua maior parte relativos a crimes contra o totem, em particular seu consumo, 2 ou en tao a alimentos intevditos por classes de idade. Eis aqui dois casos hastante tfpicos des- tes ultimos, que Durkheim nao chegou a considerar.3 "Se urn jovem Wa- kelhure (mo<;a ou rapaz) come ca<;a proibida etc., ele adoece e provavel- mente definha e morre, soltando gritos da criatura em questao." E o espfrito dessa criatura que entrou nele e que o mata. 4 0 outro e urn caso ilustrativo5 que nos interessa mais. 0 sr. McAlpine empregava urn garo- 1. Levy-Bruhl estudou esses fatos varias vezes do ponto de vista da noc;:ao de causa (Fonc- tions mentales dans les socii tis inftrieures, 1910; e Mentalite primitive, 1922 ). 2. Colecionamos cuidadosamente esses fatos, Durkheim e eu. Uma enumerac;:ao deles sera. encontrada em Formas elementares da vida religiosa (1912: 84, n. 1-4; cf. p. 184, n. 2). Eles se verificam sobre- tudo nas tribos do Centro e do Sui, N arrinyeri, Encounter Bay Tribe etc. Esclarec;:amos que, no caso do tabu do Yunbeai (Mrs. Parker 1905: 20), este eo totem individual e nao o totem do cia. 3. Howitt 1904: 769. 4. Esse caso de obsessao e de possessao e tipico de nosso ponto de vista (cf. Samoa) e tambem do ponto de vista das relac;:oes entre o individuo e as forc;:as que podem tornar-se mas e substituir seu espirito pelo delas. 5. I d. ibid. 353 ) to Kurnai em I8)6-S7· Era urn negro forte e saudavel. Urn dia o encon- trou doente. Ele explica que tinha feito o que nao devia, tinha roubado uma femea de marsupial antes de ter a permissao de come-la. Os velhos haviam descoberto e ele sabia que nao cresceria mais. Deitou-se, por as- sim dizer sob o efeito dessa cren<;a, e nao voltou mais a se levantar, mor- rendo em tres semanas. Assim as causas marais e religiosas podem causar a morte tarnbem entre OS australianos, por sugestao. Este ultimo fato serve igualmente de transi<;ao com os casas de morte de origem puramente magica. Houve amea<_ra da parte dos velhos. Alias, como muitas mortes infligidas por magia decorrem de vendeta ou de puni<_roes6 decretadas em conselho e sao no fundo castigos, 0 individuo que se ere enfeiti<;ado por essas deci- soes juridicas e tambem atingido moralmente, no sentido estrito da pa- lavra, e o conjunto dos fatos australianos nao esta tao distante do con- junto dos fatos maori como se poderia pensar. No entanto, trata-se normalmente de magia. Urn homem que se ere enfeiti<;ado morre, eis ai o fato brutal e inumeravel. Citemos alguns casas de observa<_rao, de pre- ferencia antigos e bern observados, geralmente durante acontecimentos precisos, ate mesmo por naturalistas e medicos. Backhouse/ antes de 184o, em Bourne Island, relata que urn homem se ere enfeiti<;ado, diz que morrera no dia seguinte e morre de fato. No distrito de Kennedy, em 1865, no estudo dos Eden,8 uma velha empregadairlandesa censura a uma empregada negra seu egoismo, dizendo-lhe: "Morreras logo por seres tao cruel". "A mulher ficou parada por urn minuto, suas maos cal- ram, empalideceu ... e, desesperada, sob o efeito das palavras, consumiu- se e, em menos de urn mes, morreu." Autores antigos relatam esses fatos de maneira mais geral. Austin, o explorador do distrito de Kimberley,9 em 1843, observa a surpreen- dente vitalidade dos negros e sua surpreendente e mortal fraqueza a ideia de que estao enfeiti<;ados. Segundo Froggitt, 10 urn naturalista, quando "urn negro sabe que isso (a feiti<;aria) foi feito contra ele, "he waste away with fright", "ele se consome de pavor". U m au tor diz ter ob- 6. Por exemplo, a descri~ao do Kurdaitcha aruma e loritja, em Strehlow 1915, IV, u : 2o; ma- gia por causa de luto, p. 34· Os casas de suiddio australianos sao raros. Strehlow nos diz, em dois momentos, que eles sao desconhecidos entre os Aruma e os Loritja. "Eles sao muito apegados a vida." 7. Blackhouse r843 : 105. 8. C. H. Eden r872: ll0-1!. 9. Publicado por Roth 1902b: 47, 49· 10. Froggitt 1888: 654. 3 54 Jdiia de morte servado, por volta de 1870, urn homem que declarou que morreria certo dia, e que morreu nesse dia "par puro poder imaginario" .11 0 evangeli- zador do norte de Victoria, reverendo Bulmer, e geralmente muito afir- mativo a prop6sito de certas tribos12 nas quais presenciou esses casas. N uma das tribos do Queensland com menos contato, o evangelizador afirma (e uma frase de "sabir" anglo-australiano? e urn fato?) que, se nao se achar contrafeiti<;o, "o sangue go bad (fica ruim) eo enfeiti<;ado morre". 13 Foram observados casos em que o individuo morre inclusive num momenta determinado. Noutros, bastante raros, que escapam a magia mas ainda assim pertencem ao social e ao religioso, quando ha obsessao por urn morto, isso tambem e assinalado. 0 mesmo Backhouse conta como urn negro de Molornbah morreu em dais dias, ap6s ter vista urn "palido" morto lhe dizer que ele morreria nesse tempo. 14 0 assassino do botanico Stevens, em 1864, morreu em urn mes, na prisao. 0 morto olhava para ele com desdem. 15 Uma lenda dieri- urn documento desse genera vale para n6s toda a observa<_rao -, perfeitamente transcrita, 16 conta como urn ancestral divino, o Mura Wanmondina, abandonado por sua triho, desejou morrer e morreu. Ele proprio se enfeiti<;ou pelo rita do osso ao fogo. Quanta mais ele sofria, mais se regozijava. Seu fim foi como ele desejava. 0 estudo da cura dessas obsessoes e dessas doen<_ras e tao demons- trativo quanta o de suas conseqiiencias mortais. 0 individuo fica curado se a cerimonia magica de exorcismo, se o contrafeiti<;o funciona, tao in- falivelmente quanta ele morre no caso contrario. 17 Dois observadores re- centes, urn deles medico, contam como se morre pelo "ossa de morto" entre os Wonkanguru, feiti<;o que lhes causa urn grande pavor. Se esse osso e encontrado, o enfeiti<;ado melhora; caso contrario, ele piora. "A medicina europeia nao inspira confian<_ra. Ela nada pode contra o feiti<;o, nao e da mesma categoria que ele." 18 Convem ler toda a hist6ria contada a Sir Baldwin Spencer, o grande fisiologista e antrop6logo, por urn dos velhos kakadu, urn certo Mukalakki. Jovem, ele comera por descuido a 11. H.-P., Au.stralian Blacks (Lachlan River), Au.stralian Anthropological journal Science of M. I. (I• serie, I): wo, col. r. 12. Bulmer s/d.: I3. 13. A. Ward I9o8 (observa~oes feitas com Hey, colaborador de Roth). 14. Blackhouse I843: IO) (cerca de I8)o). 15. L etters of Victo- rian Pioneers. 16. Siebert 1910: 47· 17. Newland, Parkingi, Roy. Geog. of S. Au.stralia, II : 126. 18. Aiston e Horne 1923: 150, 152. 355 J carne de uma certa serpente proibida em sua idade. U m velho percebe o fa to. "Por que comeste? Es urn homenzinho .. . ficaras muito doente", dis- se.19 Ele respondeu, muito assustado: "0 que! vou morrer?" Eo velho exclamou: "Sim, aos pouquinhos, morrer.". 20 Quinze anos mais tarde, Mukalakki sentiu-se mal. Urn velho medico-feiticeiro perguntou-lhe: "0 que comeste?". E.9tao ele recorda e conta a antiga aventura. "E isso, hoje morrer'' / 1 responde o doutor indigena. Ele sentiu-se cada vez pi or durante a jornada. . -am precisos tres homens para segura-lo. 0 espirito da serpente havia se enrolado em seu corpo e de tempo em tempo saia- lhe pela testa, silvava em sua boca etc. Era terrivel. Foram ate bern longe para buscar uma ilustre reencarnac;:ao de urn celebre medico-feiticeiro, chamado Morpun. Este chegou a tempo, pois as convulsoes da serpente e de Mukalakki eram cada vez mais horrorosas. Ele mandou as pessoas embora, olhou em silencio Mukalakki, viu a serpente mistica, pegou-a, colocou-a numa bolsa magica, levou-a embora para sua terra, onde a pos num poc;:o dizendo-lhe que ali ficasse. Mukalakki "sentiu-se imensamen- te aliviado. Transpirou abundantemente, dormiu e ao amanhecer estava restabelecido ... Se Morpun nao tivesse ido la para extrair a serpente, ele teria morrido. Somente Morpun tinha poder para fazer isso etc.". WhitnelF relata, sobre tribos igualmente do norte (noroeste, des- ta vez), que os "larlow" (santuarios e cerimonias dos totens) tern virtu- des curativas desse genero ... eficazes mesmo sobre o espirito de crianc;:as pequenas. No fundo, trata-se de manifestar e de restabelecer a comu- nhao com a coisa sagrada essencial. Assim, o dieri que se ere enfeitic;:ado salva-se ao entoar o canto sagrado de seu cia, de seu antepassado, a mura-wima,23 e mesmo o canto de urn certo antepassado tornado inven- civeJ.24 Urn canto de origem crista miscigenada, relatado por Bulmer25 e composto no enterro de urn negro convertido, dizia que ele estava pro- tegido da morte por ser "cheered by your helping spirit". U m dos melho- res etn6grafos do centro australiano26 ap6ia a interpretac;:ao de Guyon e de Howitt a prop6sito das cerimonias do Mindari (iniciac;:ao e propicia- c;:ao) e dos rituais de contramagia e de intichiuma. 0 sentido destes era mostrar aos homens que eles estavam em paz com o mundo inteiro. 19. Spencer 1914: 349-50. 20. Vemos aqui a impreca<;ao refor<;ar a san<;ao fisico-moral do tabu. 21. Repeti<;ao da impreca<;ao. 22. Whitnell 1904: 6. 23. Siebert 1910: 46, col. 2. 24. Canto do Wodampa, id. ibid.: 48, col. 1. 25. Bulmer s/ d.: 43· 26. Worsnop (que infelizmen- te pouco escreveu) I 886, 11. 356 Idiia de morte Essas mentalidades estao completamente impregnadas pela crenc;:a na eficacia das palavras, no perigo dos atos sinistros. Elas tambem estao infinitamente preocupadas com uma especie de mistica da paz da alma. E e assim que a confianc;:a na vida se perde definitivamente ou readqui- re seu equilibrio por meio de urn auxiliar, magico ou espirito protetor cuja natureza e ela propria coletiva, como 0 e tambem a ruptura de equilibrio. 357 111. Tipos de fatos neozelandeses e polinesios Estas descris;oes sao igualmente uma especie de tras;o comum da etno- grafia dos Maori e de toda a Polinesia. U m de seus melhores conhece- dores, Tregear, 1 voltou com freqiiencia ao assunto. A resistencia flsica dos Maori e extraordiml.ria e famosa. Talvez ela nao exceda a de nossos antepassados de dois mil anos atras. No entanto, as cicatrizas;oes eram extraordinarias. Tregear cita casos notaveis: por exemplo, o de urn ho- mem que viveu ate uma idade avans;ada sem mandibula, que lhe fora arrancada por urn obus em 1843. Essa resistencia contrasta fortemente com a fraqueza em caso de doens;a causada por pecado ou por magia, mesmo sem gravidade num ou noutra. 0 velho e excelente autor Jarvis Havaii descreve nestes termos o estado assim provocado: a conseqiien- cia do enfeitis;amento e a morte "por falta de a petite de viver") por es- pirito de ''fatal despondency" [ abatimento fatal], por "pura apatia". 2 U m proverbio das ilhas Marquesas dizia,antes da chegada dos europeus: "Somos pecadores, morreremos". U rna alternativa domina toda a consciencia, sem meio-termo. De urn lado, a fors;a fisica, a alegria, a so- lidez, a brutalidade e a simplicidade mental; de outro, a excitas;ao sem limite e sem tregua3 do luto, do insulto, ou entao a depressao, igualmen- te sem limite e sem tregua, e sem transis;ao, a lamentas;ao sobre o aban- dono, o desespero, e por fim a sugestao da morte.4 Newman5 considera que esta afeta inclusive a taxa de mortalidade. "Sem duvida nenhuma ) numerosos maori morrem de pequenas indisposis;oes, simplesmente 1. Tregear,].P.S., v. 2: 71, 73; 1904: 20-ss. 2. Havaii: 20, 191: "want exertion to live" . 3. Que pode chegar ate ao homicidio ou ao suicidio, diz Colenso, ver mais adiante. 4. Resumo da descri<;ao dessa mentalidade por Colenso (documento recolhido em cerca de 1840), in Tran- sactions of the New-Zealand lnstit:ute, I: 380. 5. Newman, "Causes leading to the extinction of the Maori", Transactions, XIV: 371. 358 Ideia de morte porque, atacados, nao lutam contra a doens;a, nem tentam resistir a seus danos, mas enrolam-se em seus cobertores e deitam-se precisamente para morrer. Parecem nao ter mais fors;a de alma, e seus amigos olham para eles sem escuta-los, sem fazer nada, aceitando a sorte deles como se fosse necessaria." Em todo caso, os pr6prios maori classificam assim as causas de suas mortes:6 a) morte pelos espiritos (violas;ao de tabu, magia etc.); b) morte na guerra; c) morte por decadencia natural; d) morte por acidente ou suiddio.7 E eles atribuem a primeira dessas cau- sas a maior importancia. 0 sistema dessas crens;as e portanto o mesmo que na Australia. S6 que os resultados, e portanto a intensidade das crens;as, se distribuem de outro modo. Sao as nos;oes puramente morais e religiosas que dominam. 0 encantamento e o feitis;o desempenham assim o mesmo papel que na Australia, mas a moralidade do polinesio, rica, tortuosa, no en tanto bru- tal e simples em suas revolus;oes ou por seus efeitos, e a causa da maio- ria das mortes. Em todo caso, eis aqui alguns fatos que provam a conti- nuidade desses dois tipos. Em primeiro Iugar, embora o totemismo polinesio seja bastante humilde, sobretudo na Nova Zelandia, ele deixou justamente tras;os como meio de representar certas causas de morte. Em Tonga,8 particu- larmente, Mariner coma que urn homem que comeu tartaruga proibida teve o figado aumentado e morreu por causa disso. Mas e sobretudo nas ilhas Samoa que os tabus ( totemicos) violados se vingam. 0 animal ab- sorvido fala, age no interior, destr6i o homem, come-o e ele morre.9 Ma- riner conta10 de que maneira uma mulher ( espirito) persegue o espirito de urn jovem chefe. 0 tohunga [feiticeiro] lhe diz que ele morreria em dois dias, e ele morre. Noutros lugares, e urn deus monstro que morre enfeitis;ado. 11 As mortes em conseqiiencia de urn pressagio sao igual- mente freqiientes. 12 6. Elsdon Best, in Goldie, "Maori Medical Lore", Trans. N.-Zeallnst., v. 37: 3; cf. v. 38: 221. 7. Ve-se que eles nao cometem o erro de confundir suicidio e depressao mortal. Mas tam- pouco devemos buscar nessas divis6es - recolhidas entre os te6logos da tribo de Tuhoe - uma precisao que elas nao possuem. Assim, ferimentos recebidos na guerra sao tambem conseqiiencias de uma magia ou de urn pecado. 8. Mariner & Martin 1817, n: 133 . 9. (Cren- <;as de Salevao, principalmente.) Turner, 1884: 50, 51. Na Nova Zelandia, a ideia parece apli- car-se apenas as san<;6es do culto do lagarto. Goldie, loc.cit.: 17. 10. Mariner & Martin 1817, I: 109, HI. 11. (Mito ngai tahu.) H.-T. (de Croiselles), in].P. S. , v. 10, 73 · 12. Elsdon Best 1898: 13 . Sobre essas mortes, essas obsess6es etc. , ver White 1864; Goldie, loc.cit.: 7· 359 ) Mas e essencialmente a morte por "pecado mortal" que e freqiien- te, sobretudo em terra maori. Alias, a expressao e deles. As inumeras descri<;6es sao geralmente muito circunstanciadas e com muitas alter- nativas mitol6gicas: a alma fica pesada; ela esta presa, atada em cordas, fios e n6s; ela se ausenta; ela e pega; ela nao e 0 unico espirito que ha- bita 0 corpo; ela tern urn vizinho que a persegue; ou entao e ferida por urn animal ou uma coisa que invade o corpo ou que invade ela propria. Todas essas express6es sao certamente familiares ao neurologista e ao psic6logo, mas encontram aqui urn emprego amplo, seguro, tradicional e individual. Convem, no entanto, nao abstrair demais o efeito de sua causa. Os Maori tern urn senso refinado de moral e de escrupulo. Hertz fez uma bela analise desses mecanismos complicados e tipicos, da qual extraimos duas indicas:oes: a morte por magia e muito freqiientemente concebida e geralmente s6 e possivel em conseqiiencia de urn pecado previo. In- versamente, a morte por pecado nao e geralmente senao 0 resultado de uma magia que fez pecar. 13 Adivinhas:ao, pressagio, espiritos (" aitu", "atua") pod em tambem se misturar ao acaso. 14 Sao verdadeiros males de consciencia que provocam os estados de depressao fatal/ 5 eles pr6prios causados por essa magia de pecado que faz que o individuo se sinta cul- pado, induzido a culpa. 16 Por sorte, dispomos do trabalho de urn medi- co sobre esse conjunto de fatos. 0 dr. Goldie, auxiliado por urn dos melhores etn6grafos, Elsdon Best, elaborou sobre eles uma teoria, in- clusive comparativa. 17 0 capitulo intitula-se: "Melancolia fatal com des- 13. Sobre o makulu, magia, eo pahunu, pecado provocado, ver Tregear 1904: 201. 14. Tribos de Tuhoe. E. Best 1898: 119-ss. Se o "atua", o espirito auxiliar, nao e mais forte, ele "waste away" [se dissipa) . 15. Sabre o whakapahuna, fazer pecar, ver Best (Tuhoe), "Maori Magic", 19mb: 81; 1902: 52, fazer que "a consciencia agarre" o enfeiti<;ado. 16. Sabre o "fazer pecar" ("whakahehe"), ver Shortland 18)4: 20. 17. Goldie, "Maori Medical Lore": 78, 79· Compa- ra<;oes tomadas de Andrew Lang 1887 (Atkinson, sobrinho de Andrew Lang, sabre urn caso canaque; Fison e urn informante de Howitt, sobre casas em Fiji e na Australia; Codrington, sobre a Melanesia). Goldie serve-se (p. 8o) do termo tanatomania e diz que o numero de ca- sos e imenso. No Havai, urn magico, a quem urn europeu dissera que tambem era feiticeiro, morreu de fraqueza. Nas ilhas Sandwich (Havai), em 1847, par ocasiao de uma epidemia, multidoes sucumbiram, nao apenas pela doen<;a, mas pelo pavor e por essa fatal melancolia. Essa epidemia foi chamada Okuu, porque as pessoas entregaram a ela (okuu) suas almas e morreram. Em Fiji, do mesmo modo, em casos de epidemia, as pessoas tornam-se incapazes de salvar-se e de salvar as outras; dizem que estao "taqaya" , esmagadas, desesperadas, apa- voradas, e abandonam toda a esperan<;a de viver. 360 Jdeia de morte fecho rapido" 0 As pessoas "querem para si a morte" ("will to death"). 18 Eis alguns fatos que ele cita. 0 doutor (depois Sir) Barry Tuke conhe- ceu urn individuo de boa saude, de constitui<;ao herculea. Ele morreu em menos de tres meses por causa dessa "melancolia". Urn outro, de aparencia excelente, e "seguramente sem nenhuma lesao das visceras toracicas", "perdeu o gosto da vida"; disse que ia morrer e morreu em dez dias. N a maio ria dos casos estudados por esse medico, o periodo foi de dois ou tres dias. Outros fatos sao hist6ricos, registrados por Shortland, por Taylor etc. Aconteceram em publico. A bordo do barco do gov~rnador, o velho chefe Kukutai, quando viu o cabo Norte e a falesia, porta do Pais dos Mortos, ofereceu sacrificios as almas, lans:ando ao mar roupas brancas, primeiro dos tripulantes e inclusive dos ministros, depois as suas pr6- prias; "sua prostras:ao foi tal que todos temeram por seus dias". Mas permitam-me apresentar, alem desses fatos concretos, docu- mentos literarios maori. Urn canto celebre, o da filha de Kikokko, relata hem os sentimentos dodoente. 19 Sol brilhante, ainda estds no ciu, Avermelhando com teus raios o cume de Pukihinau. Fica ainda a{, Sol, fiquemos juntos! ... Ai, nada podes dizer, amiga (mae)! Whir (Deus da guerra e dos castigos) decidiu assim, Ele cravou seu machado em me us ossos e os desarticulou, Estou partido como um galho que o golpe Arrancou de seu tronco e que, ao cair, Num estalo, se fez em pedafOS ... etc. .. . Eu o fiz. Trouxe para mim essa morte que vern de Deus (Hertt). E agora aqui, como esquecida, Estou privada de todo amparo, Emagrecida, abandonada. (Segundo Hertz, hem melhor.) Exausta pelo sofrimento ("sem alma 'J, De meu corpo, (oprimida, exaurida) 18. Goldie op.cit.: 77, 8r. 19. A c6pia por Goldie (p. 79) nao se compara nem ao texto com- plete, nem a tradus:ao de C. 0 . Davis 1855: 192 (texto), p. 191 (versao), nem sobretudo a que Hertz preparou. Goldie omite o apelo - muito euripidiano- ao sol. I Deito-me para morrer. (Hert{, bern melhor: "por isso o corpo volta-se para morrer '') 20 Eis a conclusao do dr. Goldie: Essa tendencia fatalistica tiio freqiientemente observada ... e que leva a morte ap6s um intervalo de depressiio mais ou menos Iongo, de profunda depressiio e fa!ta de vontade de viver, deve-se aos efeitos de um temor supersticioso que age sabre um sistema nervoso particularmente suscetivel (p. JJ) ... Penso que ninguim tentou explicar a ra{iiO da morte devida a essa cun·osa for- ma de melancolia. 0 vulgo supiJe que a v{tima 'se entrega a morte ", mas niio podemos seriamente atribuir taf desfecho Jataf a forfa de VOntade do sefvagem. A caracteristica principal do espfrito maori i sua instabilidade. Seu equiHbrio mental esta a merce de mil incidences cotidianos, ele i 0 joguete de circunstan- cias exteriores. Como seu cirebro niio foi submetido a uma cultura morale in- telectual prolongada e met6dica, Jalta aquele balanceamento mental caracte- ristico dos povos altamente civili{ados. Ele i incapa{ de governar-se. Chorara e rira pelas ra{iJes mais futeis; explosiJes de alegria e de triste{a podem desa- parecer num instance .. . (Goldie cita aqui numerosos exemplos). Nesse curiosa estado mental chamado a "histeria do Pacifico", o paciente, ap6s um perfodo preliminar de depressiio, fica subitamente excitado, pega uma faca ou uma arma e precipita-se atravis da aldeia, golpeando codas as pessoas que encontra, causando danos sem jim, ati cair, exausto. Se niio en- contrar uma Jaca, ele pode irate a falisia, lanfar-se no oceano e nadar varias milhas ati que o salvem ou se ajOgue. Essa excitafiio histirica violenta i co- mum a codas as ilhas, assim como o estado oposto de depressiio subita e pro- funda ... Segue a descrifiiO dos resultados lamentaveis de uma sessiio esp{rita reali{ada depois de funerais. Uma das )ovens irmiis ouve o esp{rito do morto, excita-se, prostra-se, decide segui-lo e mata-se em poucas horas. Portanto, num povo que i assim altamente emocional, cujo cirebro se acha num estado de equil£brio instavel, sujeito a uma excitafiiO excessiva ou a uma profunda melancolia; num povo que niio tern medo da marie, no qual 0 instinto de preservafiio da vida i espantosamente Jraco, que i profundamen- te supersticioso, que atribuipoderes malijicos ilimitados aos de uses e aos Jei- ticeiros malignos, quando alguim que possui essas caracterfsticas mentais 20. ~m outro canto descreve a obsessao do animal implantado na carne, desta vez por mag1a. 362 Jdeia de morte num grau acentuado se convence de que i v{tima de um deus poderoso ou de um tohunga (feiticeiro), o choque nervoso excessivo torna todo o sistema nervoso "paretic" [parecico}; ele niio oferece resiscencia ao estado de estupor que entiio ocorre; o indiv{duo se absorve em si e se fixa na idiia da enormi- dade de seu pecado e do carater desesperado de seu caso; ele i a v{tima sem esperanfa de uma melancolia de ilusiio, ilusiio todo-poderosa que o submer- ge: ele ofendeu os deuses e morrera. Ele esquece o interesse das coisas exte- riores; o estado m6rbido i centrali{ado de uma forma inteiramente aguda; a depressiio nervosa i grande, ha perda de energia fisica, e essa depressiio se- cundaria estende-se gradualmente a todos os 6rgiios; as funfi5es vitais se de- primem, o corafiiO se deprime, os m!tsculos involuntarios se entorpecem, e fi- nalmente produ{-se uma completa "anergia" ou a morte. 0 esp{rito privado de equil£brio sucumbe sem combate a violencia do choque de um medo su- persticioso invasor. (p. 79-8z). Submeto essa conclusao simplesmente a vossa reflexao. Em sua lingua- gem envelhecida do ponto de vista medico, ela tern sua importancia, e seu valor certamente devera permanecer. Alias, a extensao desses fatos dificilmente seria exagerada. Cita- mos apenas urn numero muito pequeno dos que conhecemos. Para ter- minar, vejamos urn dos fatos mais consideraveis e tragicos, o dos Mo- riori das ilhas Chatham, conquistados pelos Maori em 1835 e reduzidos a apenas 25 homens dos 2000 que eram. Shand, seu interprete, conta como eles foram transportados para a Ilha do Sui, e o que disseram seus conquistadores: 21 Os Maori di{iam: "Niio i o numero dos que matamos que os redu{iu assim. Depois de te-los tornado como escravos, os encontravamos com freqiiencia mortos, de manhii, em suas casas. Era a infrafiiO a seu proprio tabu que os ma- tava (a obrigafiiO de faf.er atos que dessacrali{aYam seu tabu). Eles eram um povo muito tabu ". E conhecemos o famoso texto de J 6 22 que corresponde ainda tao pro- fundamente a tantas mentalidades que dizemos anormais, mas que nao o eram nessas civilizac;6es: 21. Shand,J.P.S., v. 3: 79· 22. J6, xxxn, 16 a 21, Biblia, Ed. Ave ·Maria. I Entao Deus abre o ouvido do homem e o assusta pel as suas aparifoes /. .. para salvar sua alma do Josso e sua vida da seta mortifera. / Pela dor tambim o homem em seu leito i instruido, quando todos os seus membros sao agitados, / quando recebe o alimento com desgosto e ja nao pode suportar as iguarias mais deliciosas; /sua carne some aos olhares, seus membros emagrecidos se desva- necem; /sua alma aproxima-se da sepultura e sua vida daqueles que estao mortos. * * * Esses sao OS fatos. Dispenso-vos de toda discussao psicopatologica e neuropatologica. Todas as testemunhas, inclusive medicos, dizem que nao ha nenhuma lesao aparente nesses casas, ou algum mal sensivel a auscultas;ao etc. Nao sei. Observas;oes seriam necessarias. Talvez pudes- seis suscita-las. Enquanto sociologo, basta-me indicar, conforme vos havia prome- tido, uma dires;ao na qual encontrei numerosos exemplos normais, ou pelo menos freqiientes em sua anormalidade. Trata-se de urn genera de fatos que, no meu entender, deveriam ser estudados com urgencia, aqueles em que a natureza social reencon- tra muito diretamente a natureza biologica do homem. Esse medo pani- co que desorganiza tudo na consciencia, ate mesmo o que chamamos o instinto de conservas;ao, desorganiza sobretudo a propria vida. 0 elo psicologico e visivel, solido: a consciencia. Mas ele e fragil; o individuo enfeitis;ado ou em estado de pecado mortal perde todo o controle de sua vida, toda escolha, toda independencia, toda personalidade. Alem disso, esses fatos figuram entre aqueles fatos "totais" que, penso, devem ser estudados. A consideras;ao do psiquico, ou melhor, do psico-organico, e insuficiente aqui, mesmo para descrever 0 complexo inteiro. A consideras;ao do social e necessaria. Inversamente, a simples consideras;ao desse fragmento de nossa vida que e nossa vida em socie- dade nao basta. V e-se aqui de que modo o "homo duplex" de Durkheim se situa com mais precisao, e de que modo podemos considerar sua du- pla natureza. Por fim, desse duplo ponto de vista, do estudo da totalidade da consciencia e da totalidade da conduta, penso que esses fatos sao interes- santes. Eles opoem essa"totalidade" daqueles que chamamos impro- priamente primitivos, a "dissocias;ao" caracteristica dos homens que so- 364 Idiia de morte tindo nossas pessoas e resistindo a coletividade. A instabi lidadt• mos, sen d M . , · ' 1 de todo 0 carater e da vida de urn australiano ou e urn aon_ VISIVl' • Essas "histerias" coletivas ou individuais, como as chamava amda , 1- die, nao sao mais, entre nos, senao casas hospitalares ou de_ homens rus- ticos. Elas formam a ganga da qual, lenta~ente, nossa sohdez moral se separou. f f Para terminar, quero ainda mencionar que esse_s atos ~on 1rm~m e ampliam a teoria do suicidio anomico que Durkhe1m expos num hvro modelar de demonstras;ao sociologicaY 23. 0 suicidio [1 897).
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