Buscar

mauss_ideia de morte

Prévia do material em texto

Nossos conceitos gerais sao ainda instaveis e imperfeitos. Cr •io 
sinceramente que e por esfor~os conjugados, mas vindo de dire~o • 
opostas, que nossas ciencias, psicol6gicas, sociol6gicas e hist6ricas, po 
derao urn dia tentar uma descri~ao dessa penosa hist6ria. E creio qu 
essa ciencia, o sentimento da relatividade atual de nossa razao, e qu I 1l 
vez ha de inspirar a melhor filosofia . Permitam-me concluir dt• 
modo. 
344 Psicologia e sociologia 
Quarta parte 
, , , 
EFEITO FISICO NO INDIVIDUO DA IDEIA DE 
MORTE SUGERIDA PELA COLETIVIDADE* 
Australia, Nova Zelfindia 
1. Defini~ao da sugestao coletiva da ideia de morte 
II. Tipos de fatos australianos 
III. Tipos de fatos neozelandeses e polinesios 
I o "" /01111101 de Psychologie Normale et Pathologique, 1926. Comunicac;ao apresen-
1 .I 1do• dl" Psicologia. 
345 
) 
0 estudo sabre as rela<;5es da psicologia e da sociologia1 era inteira-
mente de metoda. Mas urn metoda s6 se justifica se ele abre urn cami-
nho, f.L<l8o8o<;, se e urn meio de classificar fatos ate en tao rebeldes a 
classifica<_;:ao. Ele s6 tern interesse se tiver urn valor heuristico. Passe-
mas portanto ao trabalho positivo e mostremos q~e, por tnis de algu-
mas asser<;5es que me permiti, havia fatos, em particular os que mas-
tram a liga<;ao direta, no homem, do fisico, do psicol6gico e do moral, 
isto e, do social. 
Eu vos indiquei que, num numero muito grande de sociedades, 
uma obsessao pela ideia de morte, de origem puramente social, sem ne-
nhuma mistura de fatores individuais, era capaz de tamanhas devasta-
<;5es mentais e fisicas, na consciencia e no corpo do individuo, que ela 
provocava sua morte em pouco tempo, sem lesao aparente ou conhecida. 
E vos prometi apresentar documentos, uma demonstra<_;:ao e, se nao uma 
analise, ao menos uma proposi<;ao de analise. Aqui estao eles, abertos ao 
debate e submetidos a vossa critica. Mas, antes, definamos o problema. 
I. journal de Psychologie, 1924: 892. Cf. Terceira parte, supra. 
347 
) 
1. Defini~ao da sugestao coletiva 
da ideia de morte 
Nao confundiremos esses fatos com aqueles, no entanto vizinhos, ou-
trora confundidos com eles sob o nome de Tanatomania. 0 suicidio e 
com freqiiencia, nas sociedades que vamos estudar, o resultado de uma 
obsessao do mesmo genero; a maneira como o individuo, em certos es-
tados de pecado ou de magia, multiplica seus atentados a propria vida, 
em particular entre os Maori, manifesta essa sugestao persistente. Esta 
pode ter, portanto, exatamente as mesmas formas, so que tern conse-
qiiencias diferentes no sistema de fatos que vamos descrever. 1 Pois, nes-
se caso, a vontade e o ato brutal de matar-se intervem. A influencia do 
social sobre o fisico conta com uma mediacrao psiquica evidente; e a pro-
pria pessoa que se destroi, e 0 ato e inconsciente. 
A ordem dos fatos de que irei vos falar e, de nosso ponto de vista, 
e para a nossa demonstracrao, muito mais impressionante. Trata-se de 
casas de morte causada brutalmente, de forma elementar, em numerosos 
individuos, mas simplesmente porque eles sabem ou ere em ( 0 que e a mes-
ma coisa) que viio morrer. 
Entre esses ultimos fatos, porem, e conveniente separar aqueles em 
que essa crencra e esse saber sao- ou pod em ser- de origem individual. 
Veremos em seguida que, nas civilizas:oes consideradas, eles muitas ve-
zes se confundem com os que examinamos de forma mais precisa. No 
entanto, e claro que, se o individuo esta doente e acredita que vai mor-
rer, mesmo se a doen<;a e causada, segundo ele, pela feiti<;aria de urn ou-
tro ou por pecado proprio (de cometimento ou de omissao ), podemos 
afirmar que a ideia da doens:a e 0 "meio-causa" do raciocinio conscien-
te e subconsciente. 
1. Alguns casos desse genero serao encontrados no born catiilogo de informa~oes africanas 
de Steinmetz 1907. Ver, em particular, os suicidios por perda de prestigio, freqiientes ainda 
entre n6s e na China, e que foram tao numerosos na Antigiiidade. 
349 
J 
Portanto, consideraremos somente os casas em que o sujeito que 
morre nao se ere ou nao se sabe doente, e apenas por causas coletivas pre-
cisas julga-se em estado proximo da morte. Esse estado coincide geralmen-
te com uma ruptura de comunhao, seja por magia, seja por pecado, com 
as fon;as e coisas sagradas cuja presenc;:a normalmente o sustenta. A 
consciencia e en tao invadida por ideias e sentimentos que sao totalmen-
te de origem coletiva, que nao revelam nenhum distU.rbio fisico. A ami-
lise nao chega a perceber nenhum elemento de vontade, de escolha ou 
de ideac;:ao voluntaria da parte do paciente, ou mesmo de distU.rbio men-
tal individual, exceto a propria sugestao coletiva. 0 individuo acredita-
se enfeitic;:ado ou julga-se em pecado, e morre por essa razao. Eis portan-
to o tipo de acontecimentos aos quais restringimos nosso exame. Outros 
fatos, de suiddio ocasionado ou de doenc;:a motivada pelos mesmos es-
tados de pecado ou de enfeitic;:amento, sao evidentemente menos tipicos. 
Ao complicar assim nosso estudo por uma circunscric;:ao tao detalhada, 
tornamo-lo mais simples, mais impressionante e mais demonstrativo. 
Esses fatos sao bern conhecidos em numerosas civilizac;:6es, ditas 
inferiores, mas parecem raros ou inexistentes nas nossas. 0 que lhes 
confere urn carater social ainda mais marcado; pois eles dependem evi-
dentemente da presenc;:a ou da ausencia de urn certo numero de institui-
c;:oes e de crenc;:as precisas desaparecidas do leque das nossas: a magia, as 
interdic;:6es ou tabus etc. Mas, embora numerosos e conhecidos nesses 
povos, eles ainda nao foram submetidos- creio eu- a urn estudo psico-
l6gico e sociol6gico urn pouco profundo. Bartels2 e StolP citam urn born 
numero deles, mas os confundem com os outros e nao vao alem da cole-
ta de fatos tornados dos povos mais diversos. Contudo, seus livros sao 
suficientes para dar uma boa ideia da difusao desse tipo de fatos na hu-
manidade. Quanta a n6s, procedamos mais metodicamente; concentre-
mos nosso estudo em dais grupos de fatos de dois grupos de civilizac;:6es: 
uma, a mais inferior possivel ou a mais inferior conhecida: a australiana; 
a outra, ja bastante evoluida e que certamente passou por vicissitudes, e 
ados Maori, malaio-polinesios da Nova Zelandia. Limitar-me-ei a uma 
escolha de fatos nas compilac;:6es que constituimos, o falecido Hertz e 
eu.4 Teria sido facil multiplicar as comparac;:6es; em particular na Ameri-
2. Medizin der Naturvi:ilker (I89p0-1 J) . 3. Suggestion und Hypnotismus in der Viilkerpsycho-
logie (1894). 4. Hertz examinara admiravelmente a maior parte dos documentos publicados 
sabre a Nova Zelandia antes da guerra. Ele preparava urn grande trabalho sabre 0 > 
3 50 Jdeia de morte 
ca do Norte, na A.frica,5 fatos do mesmo genera sao freqiientes , tendo 
sido inclusive bern descritos pelos velhos autores. Mas e prefedvel con-
centrar nossa atenc;:ao em duas especies de fatos vizinhos, no entanto 
bastante afastadas uma da outra para que a comparac;:ao seja possivel, e 
das quais conhecemos bern as naturezas, bern como o funcionamento em 
si e em relac;:ao ao meio social e ao individuo. 
U rna breve descric;:ao das condic;:6es mentais, fisicas e sociais em 
que se elaboram casas desse tipo nao e inutil. Fauconnet\ por exemplo, 
a prop6sito da responsabilidade em sociedades diversas, e Dur~heim, a 
prop6sito de numerosos fatos religiosos australianos, como o ntual fu-
nerario e outros/ descreveram bern OS impulsos violentOS que animam 
os grupos, os medos e as reac;:6es violentas a que eles podem se expor. 
Mas essas dominac;:6es totais das consciencias individuais, engendradas 
no grupo e pelo grupo, nao sao as unicas. As ideias entao elaboradas se 
mantem e se reproduzem no individuo sob a pressao permanente do 
grupo, da educac;:ao etc. A menor ocasiao elas desencadeiam devastac;:6es 
e superexcitam asforc;:as. 
A intensidade dessas ac;:6es do moral sabre o fisico e tanto mais no-
tavel na medida em que este, nesses povos, e mais forte , mais rude e 
mais animal do que entre n6s. E urn fato de observac;:ao corrente, da et-
nografia australiana e de muitas outras, que o corpo do indigena possui 
uma espantosa resistencia fisica. Seja por causa da ac;:ao do sol e da vida 
no estado de nudez completa ou quase completa, seja por causa da bai-
xissima septicidade do ambiente e dos instrumentos antes da chegada 
dos europeus, sej a por causa de certas particularidades dessas rac;:as sele-
cionadas precisamente por esse genera de vida (em particular, pode ha-
ver em seus organismos elementos fisiol6gicos, soros e outros, diferen-
tes dos das rac;:as mais fracas, elementos que Eugene Fischer comec;:ou a 
> pecado e a expiafO.O nas sociedades inferiores, cuja introdw;ao foi publicada (~evue de l'H~­
toire des Religions, 1921) e cujo restante, reescrito por mim, espero poder pubhcar, grac;as as 
admiraveis notas e a importantes fragmentos que restam de uma grande obra. Ele deparava 
com essa questao a prop6sito da noc;ao de pecado mortal. Tomei a liberdade de servir-me 
dessa documentac;ao. Eram fatos que me interessavam a prop6sito de pesquisas sobre a on-
gem da crenc;a na eficacia das palavras na Australia, e, sobre esse ponto, meu exame da pu-
blicac;ao etnografica sobre os indigenas australianos e igualmente bastante completo. No en-
tanto indicarei em detalhe apenas urn pequeno numero de descric;oes, dificeis de encontrar, 
deix;ndo de !ado os autores conhecidos. 5. Ex. Casalis, Basulos: 269. 6. La Responsabiliti 
(1920). 7. Formas elementares da vida religiosa (1912). 
351 
l 
pesquisar ainda com pequeno sucesso ), seja qual for a causa, o fa to e 
que, mesmo em rela<;ao aos negros africanos, o organismo do australia-
no distingue-se por espantosas faculdades de recupera<;ao. A parturien-
te retorna de imediato a suas ocupa<;6es, poe-se a caminhar ap6s algu-
mas horas; incisoes formidaveis na carne cicatrizam com rapidez; em 
algumas tribos, uma puni<;ao usual consiste em enfiar uma lamina na 
coxa da mulher ou do homem; fraturas de hra<;o sao rapidamente cura-
das com talas simples. Todos esses casos contrastam singularmente com 
outros acontecimentos. Urn indivfduo e ferido, mesmo levemente; ele 
nao tern nenhuma chance de se restahelecer se acredita que a lan<;a esta 
enfeiti<;ada; outro quehra algum memhro, e s6 se restahelecera rapida-
mente no dia em que tiver feito as pazes com as regras que violou, e as-
sim por diante. 0 maximo dessas a<;6es do moral sohre urn flsico desse 
genero e evidentemente ainda mais sensfvel nos casos em que nao ha ne-
nhum ferimento e que se enquadram exclusivamente em nosso assunto. 
0 campo de ohserva<;6es neozelandesas e igualmente fertil em fa-
tos tfpicos, emhora os neozelandeses tenham organismos mais delicados 
e menos resistentes aos agentes flsicos do que os australianos. E urn lu-
gar comum de sua etnografia, sohretudo antiga, antes da chegada da va-
rfola e outras doen<;as dos europeus que os dizimaram, a ohserva<;ao de 
sua for<;a, de sua saude, da rapidez das cicatriza<;6es, das curas, quando 
o moral nao e atingido. Mas eles nos interessam de outros pontos de vis-
ta. Os neozelandeses sao, como todos os malaio-polinesios, os mais ex-
postos, entre os homens, a esses estados "panicos" . Todos ja ouviram 
falar do amolc malaio: homens (sao sempre homens), mesmo nos dias de 
hoje e mesmo nas grandes cidades, para vingar urn insulto ou a morte de 
urn dos seus, saem a matar quantas pessoas puderem, ate que eles pr6-
prios sejam ahatidos. A humanidade neozelandesa e malaio-polinesia em 
geral e a terra de elei<;ao de emotividades desse genero. :E nela que 
Hertz, por uma acertada escolha, come<;ou a analisar esses efeitos espan-
tosos dos mecanismos da consciencia moral. Os Maori em particular ) ) 
apresentam os pontos maximos de for<;a mental e flsica por causa moral 
e mfstica, e tamhem os pontos mfnimos de depressao pelas mesmas ra-
zoes. No livro de Hertz se encontrarao detalhes dessa demonstra<;ao 
cujo interesse apenas indicamos. 
3 52 Idiia de morte 
n. Tipos de fatos australianos 
Os australianos consideram como naturais as mortes que chamamos 
violentas. Urn ferimento, urn assassinato, uma fratura sao causas natu-
rais. A vendeta desencadeia-se com menos for<;a contra o assassino do 
que contra o feiticeiro. Todas as outras mortes tern por causa uma ori-
gem magica ou entao religiosa. 1 }ana Nova Zelandia sao OS aconteci-
mentos de origem moral e religiosa que sugerem ao indivfduo a ideia 
dominante de que ele vai morrer, e mesmo os feiti<;os sao geralmente 
conhecidos como destinados sohretudo a fazer cometer urn pecado. Ao 
contrario, os fatos australianos apresentam-se em propor<;ao inversa. 0 
numero de casos em que a morte e causada pela ideia de ela ser o resul-
tado fatal de um pecado e- ao que sahemos- hastante raro, e encontra-
mos somente urn pequeno numero deles, em sua maior parte relativos a 
crimes contra o totem, em particular seu consumo, 2 ou en tao a alimentos 
intevditos por classes de idade. Eis aqui dois casos hastante tfpicos des-
tes ultimos, que Durkheim nao chegou a considerar.3 "Se urn jovem Wa-
kelhure (mo<;a ou rapaz) come ca<;a proibida etc., ele adoece e provavel-
mente definha e morre, soltando gritos da criatura em questao." E o 
espfrito dessa criatura que entrou nele e que o mata. 4 0 outro e urn caso 
ilustrativo5 que nos interessa mais. 0 sr. McAlpine empregava urn garo-
1. Levy-Bruhl estudou esses fatos varias vezes do ponto de vista da noc;:ao de causa (Fonc-
tions mentales dans les socii tis inftrieures, 1910; e Mentalite primitive, 1922 ). 2. Colecionamos 
cuidadosamente esses fatos, Durkheim e eu. Uma enumerac;:ao deles sera. encontrada em 
Formas elementares da vida religiosa (1912: 84, n. 1-4; cf. p. 184, n. 2). Eles se verificam sobre-
tudo nas tribos do Centro e do Sui, N arrinyeri, Encounter Bay Tribe etc. Esclarec;:amos que, 
no caso do tabu do Yunbeai (Mrs. Parker 1905: 20), este eo totem individual e nao o totem 
do cia. 3. Howitt 1904: 769. 4. Esse caso de obsessao e de possessao e tipico de nosso ponto 
de vista (cf. Samoa) e tambem do ponto de vista das relac;:oes entre o individuo e as forc;:as 
que podem tornar-se mas e substituir seu espirito pelo delas. 5. I d. ibid. 
353 
) 
to Kurnai em I8)6-S7· Era urn negro forte e saudavel. Urn dia o encon-
trou doente. Ele explica que tinha feito o que nao devia, tinha roubado 
uma femea de marsupial antes de ter a permissao de come-la. Os velhos 
haviam descoberto e ele sabia que nao cresceria mais. Deitou-se, por as-
sim dizer sob o efeito dessa cren<;a, e nao voltou mais a se levantar, mor-
rendo em tres semanas. 
Assim as causas marais e religiosas podem causar a morte tarnbem 
entre OS australianos, por sugestao. Este ultimo fato serve igualmente de 
transi<;ao com os casas de morte de origem puramente magica. Houve 
amea<_ra da parte dos velhos. Alias, como muitas mortes infligidas por 
magia decorrem de vendeta ou de puni<_roes6 decretadas em conselho e 
sao no fundo castigos, 0 individuo que se ere enfeiti<;ado por essas deci-
soes juridicas e tambem atingido moralmente, no sentido estrito da pa-
lavra, e o conjunto dos fatos australianos nao esta tao distante do con-
junto dos fatos maori como se poderia pensar. No entanto, trata-se 
normalmente de magia. Urn homem que se ere enfeiti<;ado morre, eis ai 
o fato brutal e inumeravel. Citemos alguns casas de observa<_rao, de pre-
ferencia antigos e bern observados, geralmente durante acontecimentos 
precisos, ate mesmo por naturalistas e medicos. Backhouse/ antes de 
184o, em Bourne Island, relata que urn homem se ere enfeiti<;ado, diz 
que morrera no dia seguinte e morre de fato. No distrito de Kennedy, 
em 1865, no estudo dos Eden,8 uma velha empregadairlandesa censura 
a uma empregada negra seu egoismo, dizendo-lhe: "Morreras logo por 
seres tao cruel". "A mulher ficou parada por urn minuto, suas maos cal-
ram, empalideceu ... e, desesperada, sob o efeito das palavras, consumiu-
se e, em menos de urn mes, morreu." 
Autores antigos relatam esses fatos de maneira mais geral. Austin, 
o explorador do distrito de Kimberley,9 em 1843, observa a surpreen-
dente vitalidade dos negros e sua surpreendente e mortal fraqueza a 
ideia de que estao enfeiti<;ados. Segundo Froggitt, 10 urn naturalista, 
quando "urn negro sabe que isso (a feiti<;aria) foi feito contra ele, "he 
waste away with fright", "ele se consome de pavor". U m au tor diz ter ob-
6. Por exemplo, a descri~ao do Kurdaitcha aruma e loritja, em Strehlow 1915, IV, u : 2o; ma-
gia por causa de luto, p. 34· Os casas de suiddio australianos sao raros. Strehlow nos diz, em 
dois momentos, que eles sao desconhecidos entre os Aruma e os Loritja. "Eles sao muito 
apegados a vida." 7. Blackhouse r843 : 105. 8. C. H. Eden r872: ll0-1!. 9. Publicado por 
Roth 1902b: 47, 49· 10. Froggitt 1888: 654. 
3 54 Jdiia de morte 
servado, por volta de 1870, urn homem que declarou que morreria certo 
dia, e que morreu nesse dia "par puro poder imaginario" .11 0 evangeli-
zador do norte de Victoria, reverendo Bulmer, e geralmente muito afir-
mativo a prop6sito de certas tribos12 nas quais presenciou esses casas. 
N uma das tribos do Queensland com menos contato, o evangelizador 
afirma (e uma frase de "sabir" anglo-australiano? e urn fato?) que, se 
nao se achar contrafeiti<;o, "o sangue go bad (fica ruim) eo enfeiti<;ado 
morre". 13 
Foram observados casos em que o individuo morre inclusive num 
momenta determinado. Noutros, bastante raros, que escapam a magia 
mas ainda assim pertencem ao social e ao religioso, quando ha obsessao 
por urn morto, isso tambem e assinalado. 0 mesmo Backhouse conta 
como urn negro de Molornbah morreu em dais dias, ap6s ter vista urn 
"palido" morto lhe dizer que ele morreria nesse tempo. 14 0 assassino do 
botanico Stevens, em 1864, morreu em urn mes, na prisao. 0 morto 
olhava para ele com desdem. 15 Uma lenda dieri- urn documento desse 
genera vale para n6s toda a observa<_rao -, perfeitamente transcrita, 16 
conta como urn ancestral divino, o Mura Wanmondina, abandonado por 
sua triho, desejou morrer e morreu. Ele proprio se enfeiti<;ou pelo rita 
do osso ao fogo. Quanta mais ele sofria, mais se regozijava. Seu fim foi 
como ele desejava. 
0 estudo da cura dessas obsessoes e dessas doen<_ras e tao demons-
trativo quanta o de suas conseqiiencias mortais. 0 individuo fica curado 
se a cerimonia magica de exorcismo, se o contrafeiti<;o funciona, tao in-
falivelmente quanta ele morre no caso contrario. 17 Dois observadores re-
centes, urn deles medico, contam como se morre pelo "ossa de morto" 
entre os Wonkanguru, feiti<;o que lhes causa urn grande pavor. Se esse 
osso e encontrado, o enfeiti<;ado melhora; caso contrario, ele piora. "A 
medicina europeia nao inspira confian<_ra. Ela nada pode contra o feiti<;o, 
nao e da mesma categoria que ele." 18 Convem ler toda a hist6ria contada 
a Sir Baldwin Spencer, o grande fisiologista e antrop6logo, por urn dos 
velhos kakadu, urn certo Mukalakki. Jovem, ele comera por descuido a 
11. H.-P., Au.stralian Blacks (Lachlan River), Au.stralian Anthropological journal Science of M. 
I. (I• serie, I): wo, col. r. 12. Bulmer s/d.: I3. 13. A. Ward I9o8 (observa~oes feitas com 
Hey, colaborador de Roth). 14. Blackhouse I843: IO) (cerca de I8)o). 15. L etters of Victo-
rian Pioneers. 16. Siebert 1910: 47· 17. Newland, Parkingi, Roy. Geog. of S. Au.stralia, II : 126. 
18. Aiston e Horne 1923: 150, 152. 
355 
J 
carne de uma certa serpente proibida em sua idade. U m velho percebe o 
fa to. "Por que comeste? Es urn homenzinho .. . ficaras muito doente", dis-
se.19 Ele respondeu, muito assustado: "0 que! vou morrer?" Eo velho 
exclamou: "Sim, aos pouquinhos, morrer.". 20 Quinze anos mais tarde, 
Mukalakki sentiu-se mal. Urn velho medico-feiticeiro perguntou-lhe: 
"0 que comeste?". E.9tao ele recorda e conta a antiga aventura. "E isso, 
hoje morrer'' / 1 responde o doutor indigena. Ele sentiu-se cada vez pi or 
durante a jornada. . -am precisos tres homens para segura-lo. 0 espirito 
da serpente havia se enrolado em seu corpo e de tempo em tempo saia-
lhe pela testa, silvava em sua boca etc. Era terrivel. Foram ate bern longe 
para buscar uma ilustre reencarnac;:ao de urn celebre medico-feiticeiro, 
chamado Morpun. Este chegou a tempo, pois as convulsoes da serpente 
e de Mukalakki eram cada vez mais horrorosas. Ele mandou as pessoas 
embora, olhou em silencio Mukalakki, viu a serpente mistica, pegou-a, 
colocou-a numa bolsa magica, levou-a embora para sua terra, onde a pos 
num poc;:o dizendo-lhe que ali ficasse. Mukalakki "sentiu-se imensamen-
te aliviado. Transpirou abundantemente, dormiu e ao amanhecer estava 
restabelecido ... Se Morpun nao tivesse ido la para extrair a serpente, ele 
teria morrido. Somente Morpun tinha poder para fazer isso etc.". 
WhitnelF relata, sobre tribos igualmente do norte (noroeste, des-
ta vez), que os "larlow" (santuarios e cerimonias dos totens) tern virtu-
des curativas desse genero ... eficazes mesmo sobre o espirito de crianc;:as 
pequenas. No fundo, trata-se de manifestar e de restabelecer a comu-
nhao com a coisa sagrada essencial. Assim, o dieri que se ere enfeitic;:ado 
salva-se ao entoar o canto sagrado de seu cia, de seu antepassado, a 
mura-wima,23 e mesmo o canto de urn certo antepassado tornado inven-
civeJ.24 Urn canto de origem crista miscigenada, relatado por Bulmer25 e 
composto no enterro de urn negro convertido, dizia que ele estava pro-
tegido da morte por ser "cheered by your helping spirit". U m dos melho-
res etn6grafos do centro australiano26 ap6ia a interpretac;:ao de Guyon e 
de Howitt a prop6sito das cerimonias do Mindari (iniciac;:ao e propicia-
c;:ao) e dos rituais de contramagia e de intichiuma. 0 sentido destes era 
mostrar aos homens que eles estavam em paz com o mundo inteiro. 
19. Spencer 1914: 349-50. 20. Vemos aqui a impreca<;ao refor<;ar a san<;ao fisico-moral do 
tabu. 21. Repeti<;ao da impreca<;ao. 22. Whitnell 1904: 6. 23. Siebert 1910: 46, col. 2. 24. 
Canto do Wodampa, id. ibid.: 48, col. 1. 25. Bulmer s/ d.: 43· 26. Worsnop (que infelizmen-
te pouco escreveu) I 886, 11. 
356 Idiia de morte 
Essas mentalidades estao completamente impregnadas pela crenc;:a 
na eficacia das palavras, no perigo dos atos sinistros. Elas tambem estao 
infinitamente preocupadas com uma especie de mistica da paz da alma. 
E e assim que a confianc;:a na vida se perde definitivamente ou readqui-
re seu equilibrio por meio de urn auxiliar, magico ou espirito protetor 
cuja natureza e ela propria coletiva, como 0 e tambem a ruptura de 
equilibrio. 
357 
111. Tipos de fatos neozelandeses e polinesios 
Estas descris;oes sao igualmente uma especie de tras;o comum da etno-
grafia dos Maori e de toda a Polinesia. U m de seus melhores conhece-
dores, Tregear, 1 voltou com freqiiencia ao assunto. A resistencia flsica 
dos Maori e extraordiml.ria e famosa. Talvez ela nao exceda a de nossos 
antepassados de dois mil anos atras. No entanto, as cicatrizas;oes eram 
extraordinarias. Tregear cita casos notaveis: por exemplo, o de urn ho-
mem que viveu ate uma idade avans;ada sem mandibula, que lhe fora 
arrancada por urn obus em 1843. Essa resistencia contrasta fortemente 
com a fraqueza em caso de doens;a causada por pecado ou por magia, 
mesmo sem gravidade num ou noutra. 0 velho e excelente autor Jarvis 
Havaii descreve nestes termos o estado assim provocado: a conseqiien-
cia do enfeitis;amento e a morte "por falta de a petite de viver") por es-
pirito de ''fatal despondency" [ abatimento fatal], por "pura apatia". 2 U m 
proverbio das ilhas Marquesas dizia,antes da chegada dos europeus: 
"Somos pecadores, morreremos". U rna alternativa domina toda a 
consciencia, sem meio-termo. De urn lado, a fors;a fisica, a alegria, a so-
lidez, a brutalidade e a simplicidade mental; de outro, a excitas;ao sem 
limite e sem tregua3 do luto, do insulto, ou entao a depressao, igualmen-
te sem limite e sem tregua, e sem transis;ao, a lamentas;ao sobre o aban-
dono, o desespero, e por fim a sugestao da morte.4 Newman5 considera 
que esta afeta inclusive a taxa de mortalidade. "Sem duvida nenhuma 
) 
numerosos maori morrem de pequenas indisposis;oes, simplesmente 
1. Tregear,].P.S., v. 2: 71, 73; 1904: 20-ss. 2. Havaii: 20, 191: "want exertion to live" . 3. Que 
pode chegar ate ao homicidio ou ao suicidio, diz Colenso, ver mais adiante. 4. Resumo da 
descri<;ao dessa mentalidade por Colenso (documento recolhido em cerca de 1840), in Tran-
sactions of the New-Zealand lnstit:ute, I: 380. 5. Newman, "Causes leading to the extinction 
of the Maori", Transactions, XIV: 371. 
358 Ideia de morte 
porque, atacados, nao lutam contra a doens;a, nem tentam resistir a seus 
danos, mas enrolam-se em seus cobertores e deitam-se precisamente 
para morrer. Parecem nao ter mais fors;a de alma, e seus amigos olham 
para eles sem escuta-los, sem fazer nada, aceitando a sorte deles como 
se fosse necessaria." Em todo caso, os pr6prios maori classificam assim 
as causas de suas mortes:6 a) morte pelos espiritos (violas;ao de tabu, 
magia etc.); b) morte na guerra; c) morte por decadencia natural; d) 
morte por acidente ou suiddio.7 E eles atribuem a primeira dessas cau-
sas a maior importancia. 
0 sistema dessas crens;as e portanto o mesmo que na Australia. S6 
que os resultados, e portanto a intensidade das crens;as, se distribuem de 
outro modo. Sao as nos;oes puramente morais e religiosas que dominam. 
0 encantamento e o feitis;o desempenham assim o mesmo papel que na 
Australia, mas a moralidade do polinesio, rica, tortuosa, no en tanto bru-
tal e simples em suas revolus;oes ou por seus efeitos, e a causa da maio-
ria das mortes. Em todo caso, eis aqui alguns fatos que provam a conti-
nuidade desses dois tipos. 
Em primeiro Iugar, embora o totemismo polinesio seja bastante 
humilde, sobretudo na Nova Zelandia, ele deixou justamente tras;os 
como meio de representar certas causas de morte. Em Tonga,8 particu-
larmente, Mariner coma que urn homem que comeu tartaruga proibida 
teve o figado aumentado e morreu por causa disso. Mas e sobretudo nas 
ilhas Samoa que os tabus ( totemicos) violados se vingam. 0 animal ab-
sorvido fala, age no interior, destr6i o homem, come-o e ele morre.9 Ma-
riner conta10 de que maneira uma mulher ( espirito) persegue o espirito 
de urn jovem chefe. 0 tohunga [feiticeiro] lhe diz que ele morreria em 
dois dias, e ele morre. Noutros lugares, e urn deus monstro que morre 
enfeitis;ado. 11 As mortes em conseqiiencia de urn pressagio sao igual-
mente freqiientes. 12 
6. Elsdon Best, in Goldie, "Maori Medical Lore", Trans. N.-Zeallnst., v. 37: 3; cf. v. 38: 221. 
7. Ve-se que eles nao cometem o erro de confundir suicidio e depressao mortal. Mas tam-
pouco devemos buscar nessas divis6es - recolhidas entre os te6logos da tribo de Tuhoe -
uma precisao que elas nao possuem. Assim, ferimentos recebidos na guerra sao tambem 
conseqiiencias de uma magia ou de urn pecado. 8. Mariner & Martin 1817, n: 133 . 9. (Cren-
<;as de Salevao, principalmente.) Turner, 1884: 50, 51. Na Nova Zelandia, a ideia parece apli-
car-se apenas as san<;6es do culto do lagarto. Goldie, loc.cit.: 17. 10. Mariner & Martin 1817, 
I: 109, HI. 11. (Mito ngai tahu.) H.-T. (de Croiselles), in].P. S. , v. 10, 73 · 12. Elsdon Best 
1898: 13 . Sobre essas mortes, essas obsess6es etc. , ver White 1864; Goldie, loc.cit.: 7· 
359 
) 
Mas e essencialmente a morte por "pecado mortal" que e freqiien-
te, sobretudo em terra maori. Alias, a expressao e deles. As inumeras 
descri<;6es sao geralmente muito circunstanciadas e com muitas alter-
nativas mitol6gicas: a alma fica pesada; ela esta presa, atada em cordas, 
fios e n6s; ela se ausenta; ela e pega; ela nao e 0 unico espirito que ha-
bita 0 corpo; ela tern urn vizinho que a persegue; ou entao e ferida por 
urn animal ou uma coisa que invade o corpo ou que invade ela propria. 
Todas essas express6es sao certamente familiares ao neurologista e ao 
psic6logo, mas encontram aqui urn emprego amplo, seguro, tradicional 
e individual. 
Convem, no entanto, nao abstrair demais o efeito de sua causa. Os 
Maori tern urn senso refinado de moral e de escrupulo. Hertz fez uma 
bela analise desses mecanismos complicados e tipicos, da qual extraimos 
duas indicas:oes: a morte por magia e muito freqiientemente concebida 
e geralmente s6 e possivel em conseqiiencia de urn pecado previo. In-
versamente, a morte por pecado nao e geralmente senao 0 resultado de 
uma magia que fez pecar. 13 Adivinhas:ao, pressagio, espiritos (" aitu", 
"atua") pod em tambem se misturar ao acaso. 14 Sao verdadeiros males de 
consciencia que provocam os estados de depressao fatal/ 5 eles pr6prios 
causados por essa magia de pecado que faz que o individuo se sinta cul-
pado, induzido a culpa. 16 Por sorte, dispomos do trabalho de urn medi-
co sobre esse conjunto de fatos. 0 dr. Goldie, auxiliado por urn dos 
melhores etn6grafos, Elsdon Best, elaborou sobre eles uma teoria, in-
clusive comparativa. 17 0 capitulo intitula-se: "Melancolia fatal com des-
13. Sobre o makulu, magia, eo pahunu, pecado provocado, ver Tregear 1904: 201. 14. Tribos 
de Tuhoe. E. Best 1898: 119-ss. Se o "atua", o espirito auxiliar, nao e mais forte, ele "waste 
away" [se dissipa) . 15. Sabre o whakapahuna, fazer pecar, ver Best (Tuhoe), "Maori Magic", 
19mb: 81; 1902: 52, fazer que "a consciencia agarre" o enfeiti<;ado. 16. Sabre o "fazer pecar" 
("whakahehe"), ver Shortland 18)4: 20. 17. Goldie, "Maori Medical Lore": 78, 79· Compa-
ra<;oes tomadas de Andrew Lang 1887 (Atkinson, sobrinho de Andrew Lang, sabre urn caso 
canaque; Fison e urn informante de Howitt, sobre casas em Fiji e na Australia; Codrington, 
sobre a Melanesia). Goldie serve-se (p. 8o) do termo tanatomania e diz que o numero de ca-
sos e imenso. No Havai, urn magico, a quem urn europeu dissera que tambem era feiticeiro, 
morreu de fraqueza. Nas ilhas Sandwich (Havai), em 1847, par ocasiao de uma epidemia, 
multidoes sucumbiram, nao apenas pela doen<;a, mas pelo pavor e por essa fatal melancolia. 
Essa epidemia foi chamada Okuu, porque as pessoas entregaram a ela (okuu) suas almas e 
morreram. Em Fiji, do mesmo modo, em casos de epidemia, as pessoas tornam-se incapazes 
de salvar-se e de salvar as outras; dizem que estao "taqaya" , esmagadas, desesperadas, apa-
voradas, e abandonam toda a esperan<;a de viver. 
360 Jdeia de morte 
fecho rapido" 0 As pessoas "querem para si a morte" ("will to death"). 18 
Eis alguns fatos que ele cita. 0 doutor (depois Sir) Barry Tuke conhe-
ceu urn individuo de boa saude, de constitui<;ao herculea. Ele morreu 
em menos de tres meses por causa dessa "melancolia". Urn outro, de 
aparencia excelente, e "seguramente sem nenhuma lesao das visceras 
toracicas", "perdeu o gosto da vida"; disse que ia morrer e morreu em 
dez dias. N a maio ria dos casos estudados por esse medico, o periodo foi 
de dois ou tres dias. 
Outros fatos sao hist6ricos, registrados por Shortland, por Taylor 
etc. Aconteceram em publico. A bordo do barco do gov~rnador, o velho 
chefe Kukutai, quando viu o cabo Norte e a falesia, porta do Pais dos 
Mortos, ofereceu sacrificios as almas, lans:ando ao mar roupas brancas, 
primeiro dos tripulantes e inclusive dos ministros, depois as suas pr6-
prias; "sua prostras:ao foi tal que todos temeram por seus dias". 
Mas permitam-me apresentar, alem desses fatos concretos, docu-
mentos literarios maori. Urn canto celebre, o da filha de Kikokko, relata 
hem os sentimentos dodoente. 19 
Sol brilhante, ainda estds no ciu, 
Avermelhando com teus raios o cume de Pukihinau. 
Fica ainda a{, Sol, fiquemos juntos! 
... Ai, nada podes dizer, amiga (mae)! 
Whir (Deus da guerra e dos castigos) decidiu assim, 
Ele cravou seu machado em me us ossos e os desarticulou, 
Estou partido como um galho que o golpe 
Arrancou de seu tronco e que, ao cair, 
Num estalo, se fez em pedafOS ... etc. 
.. . Eu o fiz. Trouxe para mim essa morte 
que vern de Deus (Hertt). 
E agora aqui, como esquecida, 
Estou privada de todo amparo, 
Emagrecida, abandonada. (Segundo Hertz, hem melhor.) 
Exausta pelo sofrimento ("sem alma 'J, 
De meu corpo, (oprimida, exaurida) 
18. Goldie op.cit.: 77, 8r. 19. A c6pia por Goldie (p. 79) nao se compara nem ao texto com-
plete, nem a tradus:ao de C. 0 . Davis 1855: 192 (texto), p. 191 (versao), nem sobretudo a que 
Hertz preparou. Goldie omite o apelo - muito euripidiano- ao sol. 
I 
Deito-me para morrer. (Hert{, bern melhor: "por isso o corpo volta-se para 
morrer '') 20 
Eis a conclusao do dr. Goldie: 
Essa tendencia fatalistica tiio freqiientemente observada ... e que leva a morte 
ap6s um intervalo de depressiio mais ou menos Iongo, de profunda depressiio e 
fa!ta de vontade de viver, deve-se aos efeitos de um temor supersticioso que 
age sabre um sistema nervoso particularmente suscetivel (p. JJ) ... 
Penso que ninguim tentou explicar a ra{iiO da morte devida a essa cun·osa for-
ma de melancolia. 0 vulgo supiJe que a v{tima 'se entrega a morte ", mas niio 
podemos seriamente atribuir taf desfecho Jataf a forfa de VOntade do sefvagem. 
A caracteristica principal do espfrito maori i sua instabilidade. Seu equiHbrio 
mental esta a merce de mil incidences cotidianos, ele i 0 joguete de circunstan-
cias exteriores. Como seu cirebro niio foi submetido a uma cultura morale in-
telectual prolongada e met6dica, Jalta aquele balanceamento mental caracte-
ristico dos povos altamente civili{ados. Ele i incapa{ de governar-se. Chorara 
e rira pelas ra{iJes mais futeis; explosiJes de alegria e de triste{a podem desa-
parecer num instance .. . (Goldie cita aqui numerosos exemplos). 
Nesse curiosa estado mental chamado a "histeria do Pacifico", o paciente, 
ap6s um perfodo preliminar de depressiio, fica subitamente excitado, pega 
uma faca ou uma arma e precipita-se atravis da aldeia, golpeando codas as 
pessoas que encontra, causando danos sem jim, ati cair, exausto. Se niio en-
contrar uma Jaca, ele pode irate a falisia, lanfar-se no oceano e nadar varias 
milhas ati que o salvem ou se ajOgue. Essa excitafiio histirica violenta i co-
mum a codas as ilhas, assim como o estado oposto de depressiio subita e pro-
funda ... Segue a descrifiiO dos resultados lamentaveis de uma sessiio esp{rita 
reali{ada depois de funerais. Uma das )ovens irmiis ouve o esp{rito do morto, 
excita-se, prostra-se, decide segui-lo e mata-se em poucas horas. 
Portanto, num povo que i assim altamente emocional, cujo cirebro se acha 
num estado de equil£brio instavel, sujeito a uma excitafiiO excessiva ou a 
uma profunda melancolia; num povo que niio tern medo da marie, no qual 0 
instinto de preservafiio da vida i espantosamente Jraco, que i profundamen-
te supersticioso, que atribuipoderes malijicos ilimitados aos de uses e aos Jei-
ticeiros malignos, quando alguim que possui essas caracterfsticas mentais 
20. ~m outro canto descreve a obsessao do animal implantado na carne, desta vez por 
mag1a. 
362 Jdeia de morte 
num grau acentuado se convence de que i v{tima de um deus poderoso ou de 
um tohunga (feiticeiro), o choque nervoso excessivo torna todo o sistema 
nervoso "paretic" [parecico}; ele niio oferece resiscencia ao estado de estupor 
que entiio ocorre; o indiv{duo se absorve em si e se fixa na idiia da enormi-
dade de seu pecado e do carater desesperado de seu caso; ele i a v{tima sem 
esperanfa de uma melancolia de ilusiio, ilusiio todo-poderosa que o submer-
ge: ele ofendeu os deuses e morrera. Ele esquece o interesse das coisas exte-
riores; o estado m6rbido i centrali{ado de uma forma inteiramente aguda; a 
depressiio nervosa i grande, ha perda de energia fisica, e essa depressiio se-
cundaria estende-se gradualmente a todos os 6rgiios; as funfi5es vitais se de-
primem, o corafiiO se deprime, os m!tsculos involuntarios se entorpecem, e fi-
nalmente produ{-se uma completa "anergia" ou a morte. 0 esp{rito privado 
de equil£brio sucumbe sem combate a violencia do choque de um medo su-
persticioso invasor. (p. 79-8z). 
Submeto essa conclusao simplesmente a vossa reflexao. Em sua lingua-
gem envelhecida do ponto de vista medico, ela tern sua importancia, e 
seu valor certamente devera permanecer. 
Alias, a extensao desses fatos dificilmente seria exagerada. Cita-
mos apenas urn numero muito pequeno dos que conhecemos. Para ter-
minar, vejamos urn dos fatos mais consideraveis e tragicos, o dos Mo-
riori das ilhas Chatham, conquistados pelos Maori em 1835 e reduzidos 
a apenas 25 homens dos 2000 que eram. Shand, seu interprete, conta 
como eles foram transportados para a Ilha do Sui, e o que disseram seus 
conquistadores: 21 
Os Maori di{iam: "Niio i o numero dos que matamos que os redu{iu assim. 
Depois de te-los tornado como escravos, os encontravamos com freqiiencia 
mortos, de manhii, em suas casas. Era a infrafiiO a seu proprio tabu que os ma-
tava (a obrigafiiO de faf.er atos que dessacrali{aYam seu tabu). Eles eram um 
povo muito tabu ". 
E conhecemos o famoso texto de J 6 22 que corresponde ainda tao pro-
fundamente a tantas mentalidades que dizemos anormais, mas que nao o 
eram nessas civilizac;6es: 
21. Shand,J.P.S., v. 3: 79· 22. J6, xxxn, 16 a 21, Biblia, Ed. Ave ·Maria. 
I 
Entao Deus abre o ouvido do homem e o assusta pel as suas aparifoes /. .. para 
salvar sua alma do Josso e sua vida da seta mortifera. / Pela dor tambim o 
homem em seu leito i instruido, quando todos os seus membros sao agitados, / 
quando recebe o alimento com desgosto e ja nao pode suportar as iguarias mais 
deliciosas; /sua carne some aos olhares, seus membros emagrecidos se desva-
necem; /sua alma aproxima-se da sepultura e sua vida daqueles que estao 
mortos. 
* * * 
Esses sao OS fatos. Dispenso-vos de toda discussao psicopatologica e 
neuropatologica. Todas as testemunhas, inclusive medicos, dizem que 
nao ha nenhuma lesao aparente nesses casas, ou algum mal sensivel a 
auscultas;ao etc. Nao sei. Observas;oes seriam necessarias. Talvez pudes-
seis suscita-las. 
Enquanto sociologo, basta-me indicar, conforme vos havia prome-
tido, uma dires;ao na qual encontrei numerosos exemplos normais, ou 
pelo menos freqiientes em sua anormalidade. 
Trata-se de urn genera de fatos que, no meu entender, deveriam 
ser estudados com urgencia, aqueles em que a natureza social reencon-
tra muito diretamente a natureza biologica do homem. Esse medo pani-
co que desorganiza tudo na consciencia, ate mesmo o que chamamos o 
instinto de conservas;ao, desorganiza sobretudo a propria vida. 0 elo 
psicologico e visivel, solido: a consciencia. Mas ele e fragil; o individuo 
enfeitis;ado ou em estado de pecado mortal perde todo o controle de sua 
vida, toda escolha, toda independencia, toda personalidade. 
Alem disso, esses fatos figuram entre aqueles fatos "totais" que, 
penso, devem ser estudados. A consideras;ao do psiquico, ou melhor, do 
psico-organico, e insuficiente aqui, mesmo para descrever 0 complexo 
inteiro. A consideras;ao do social e necessaria. Inversamente, a simples 
consideras;ao desse fragmento de nossa vida que e nossa vida em socie-
dade nao basta. V e-se aqui de que modo o "homo duplex" de Durkheim 
se situa com mais precisao, e de que modo podemos considerar sua du-
pla natureza. 
Por fim, desse duplo ponto de vista, do estudo da totalidade da 
consciencia e da totalidade da conduta, penso que esses fatos sao interes-
santes. Eles opoem essa"totalidade" daqueles que chamamos impro-
priamente primitivos, a "dissocias;ao" caracteristica dos homens que so-
364 Idiia de morte 
tindo nossas pessoas e resistindo a coletividade. A instabi lidadt• 
mos, sen d M . , · ' 1 
de todo 0 carater e da vida de urn australiano ou e urn aon_ VISIVl' • 
Essas "histerias" coletivas ou individuais, como as chamava amda , 1-
die, nao sao mais, entre nos, senao casas hospitalares ou de_ homens rus-
ticos. Elas formam a ganga da qual, lenta~ente, nossa sohdez moral se 
separou. f f 
Para terminar, quero ainda mencionar que esse_s atos ~on 1rm~m e 
ampliam a teoria do suicidio anomico que Durkhe1m expos num hvro 
modelar de demonstras;ao sociologicaY 
23. 0 suicidio [1 897).

Continue navegando