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E-book ELEMENTOS DO ESTADO O objetivo deste e-book é que o aluno aprenda os “Elementos do Estado Moderno”, tema obrigatório da disciplina de Teoria Geral do Estado e suplementar para Direito Constitucional. OBSERVAÇÕES ÚTEIS: *Direitos autorais reservados. Proibida a reprodução, ainda que parcial, sem autorização prévia (Lei n. 9.610/98). Ficha técnica E-book produzido por: Ronaldo Bastos www.ronaldobastosjr.com.br contato@ronaldobastosjr.com.br E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 2 INTRODUÇÃO O objetivo deste e-book é que o aluno aprenda os “Elementos do Estado Moderno”, tema obrigatório da disciplina de Teoria Geral do Estado e suplementar para Direito Constitucional. Esse material possui, além de texto, três videoaulas, cujos links serão expostos no início de cada capítulo. “Elemento” designa a composição de algo. Assim, podemos dizer que a disciplina dos “elementos do Estado” diz respeito às partes que compõe um Estado e que, sem uma delas, não podemos chamar algo de “Estado”. Se tomarmos a definição de Weber (1988, p. 506) para o Estado, é visível como ela envolve os seus três elementos tratados neste e-book: “O Estado é aquela comunidade humana (POVO, primeiro elemento) que, dentro de determinado território (segundo elemento), reclama para si o monopólio da coação física legítima (SOBERANIA, terceiro elemento)”. Dividimos este e-book em três capítulos. O capítulo I trata do emento “humano” do Estado, o povo; o capítulo II trata do elemento “físico” do Estado, o território; e o capítulo III trata do elemento “político” do Estado, a soberania. Espero que aproveite. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 3 CAPÍTULO I – POVO Link da videoaula: https://goo.gl/coEYf7 Vou começar pelo elemento humano do Estado: o “povo”. Povo é o conjunto de indivíduos ligados por um vínculo jurídico permanente a um (ou, excepcionalmente, a mais de um) Estado, participando da vontade desse ente e do exercício do seu poder soberano, sendo comumente reconhecido pelo nome de cidadãos, razão pela qual é possível, para sintetizar, definir o povo como o “conjunto de cidadãos do Estado”. Aspectos objetivos e subjetivos do povo Jellinek (1954) faz uma distinção entre os aspectos objetivo e subjetivo do povo. Pelo aspecto objetivo, o povo é objeto da atividade estatal, enquanto que pelo aspecto subjetivo o povo é sujeito do poder público, através da abstração da qual ele é elemento, o Estado. A consequência é que, pelo aspecto objetivo, a relação entre o Estado e o povo é de subordinação; por exclusão, a relação entre os indivíduos é de coordenação. No primeiro caso, em razão da sujeição, os indivíduos seriam sujeitos de deveres, e no segundo, sujeito de direitos. Evidentemente, esta é uma questão de ênfase do publicista alemão, na medida em que tanto o indivíduo possui direitos em relação ao Estado quanto deveres em relação aos outros indivíduos. Aprofundando um pouco mais, posso, com Dallari (1995, p. 85), traçar três consequências do vínculo jurídico entre o Estado e o povo: (i) exigência de atitudes NEGATIVAS, pois a subordinação de indivíduos é disciplinada pelo direito, impedindo o Estado de ir além de certos limites, como ocorre com a separação dos poderes ou com o estabelecimento de garantias individuais; E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 4 (ii) exigência de atitudes POSITIVAS, uma vez que o Estado é obrigado a agir para proteger e favorecer o indivíduo, como ocorre com a segurança pública ou com a prestação de serviços de saúde ou educação; e (iii) exigência de atitudes de RECONHECIMENTO, pois em certas circunstâncias há indivíduos que agem no interesse do Estado e este é obrigado a reconhecê-los como órgãos seus, como ocorre com servidores públicos efetivos (p. ex., juízes e auditores) ou com os cidadãos (na condição de eleitores ou jurados). Povo vs. População Povo não se confunde com população. A população representa a quantidade total de indivíduos que vivem dentro de certos limites territoriais de um país, o que inclui os nacionais e os estrangeiros, o que implica em dizer que quando falamos em população estamos tratando de um conceito quantitativo. Já o povo se trata de um conceito qualitativo, na medida em que, para ser considerado enquanto tal, é necessário possuir um vínculo jurídico permanente com o Estado, que o direito constitucional comparado denomina de nacionalidade. Povo vs. Nação É preciso, entretanto, ter cuidado com as denominações, já que, embora o direito constitucional comparado tenha consagrado o termo “direito de nacionalidade” para estabelecer o povo do Estado, o conceito de povo também não se confunde com o de nação. A nação é formada por um grupo de indivíduos que se sentem pertencentes a um ideal que é criado em razão de origem, história, língua e aspirações comuns, cujo ápice pode desembocar na ideia de nacionalismo ou de patriotismo. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 5 A consequência é que podemos ter várias nações convivendo dentro de um mesmo Estado ou uma mesma nação espalhada por diversos Estados. De fato, como exemplifica Azambuja, “o Império Austro-húngaro até o fim da guerra europeia de 1914-1918 era um Estado que compreendia o POVO austro-húngaro; não existia, porém, a NAÇÃO austro-húngara, pois aquela população, de origem e aspirações tão diversas, não se sentia unida por nenhum laço comum”. De outro lado, “Os poloneses, pela origem e identidade de interesses, costumes e ideias, foram há séculos uma nação bem caracterizada. No entanto, as vicissitudes históricas têm frequentemente desmembrado a nação polonesa entre vários Estados” (AZAMBUJA, 2008, pp. 36-37). Mas esses são apenas dois exemplos dentre vários. De minha parte, penso nos judeus. A nação judia não tinha um Estado até 1948, do mesmo modo que a nação cigana não o tem até hoje, embora essa não seja uma reivindicação pública. De outro lado, nações africanas foram divididas e, em alguns casos, ao serem colocadas em um mesmo Estado foram forçadas a constituírem o mesmo povo, o que necessariamente potencializou os conflitos que observamos naquele continente, embora isto não explique os problemas africanos completamente. Na América Latina, Estados como Bolívia e Equador estabeleceram em suas constituições mais recentes que são plurinacionais, isto é, compostos por um povo pertencente a várias nações. Diz o preâmbulo da constituição da Bolívia (2009): En tiempos inmemoriales se erigieron montañas, se desplazaron ríos, se formaron lagos. Nuestra amazonia, nuestro chaco, nuestro altiplano y nuestros llanos y valles se cubrieron de verdores y flores. Poblamos esta sagrada Madre Tierra con rostros diferentes, y compreendíamos desde entonces la pluralidad vigente de todas las cosas y nuestra diversidad como seres y culturas. Así conformamos nuestros pueblos, y jamás comprendimos el racismo hasta que lo sufrimos desde los funestos tiempos de la colonia. El pueblo boliviano, de composición plural, desde la profundidad de la historia, inspirado en las luchas del pasado, en la sublevación indígena anticolonial, en la independencia, en las luchas populares de liberación, en las marchas indígenas, sociales y sindicales,en las E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 6 guerras del agua y de octubre, en las luchas por la tierra y territorio, y con la memoria de nuestros mártires, construimos un nuevo Estado. Povo vs. Raça/Etnia Aproveitando que o trecho mencionou o racismo dirigido aos “povos” originários da América Latina, é preciso registrar, por fim, que povo também não se confunde com raça ou etnia, conceitos mais atrelados à ideia de nação, embora esta – a raça, assim como a língua ou a religião – não constitua um fator essencial para a constituição da nação, cujo fator essencial é a identidade histórica, a tradição comum (AZAMBUJA, 2008, p. 39), como vimos acima. Em síntese, o povo é o elemento humano do Estado cujo conceito não se confunde com o de população, nação, raça ou etnia. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 7 CAPÍTULO II – TERRITÓRIO Link da videoaula: https://goo.gl/vmrvXN O elemento físico do Estado é o “território”. O território é a base espacial onde o Estado exerce o seu poder coercitivo sobre pessoas e coisas. Materialmente, o território é constituído pela “terra firme” (que envolve o solo, o subsolo e as águas internas – rios, lagos e mares internos), pelo espaço marítimo (que envolve o mar territorial, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental) e o espaço aéreo. Existem alguns diplomas normativos que regulam essas questões específicas sobre o território, como a própria constituição, na parte em que explicita os bens da União (CF, art. 20); a Convenção de Montego Bay sobre Direitos do Mar (CNUDM) e a Lei n. 8.617/93, que efetivou a referida Convenção; a Lei n. 6.634/79 e o Decreto n. 84.064/90, que tratam da faixa de fronteiras; além de uma série de convenções que regulam o espaço aéreo, como a Convenção de Varsóvia (1929) e a Convenção de Chicago (1994). Fronteiras A primeira questão que eu queria abordar é sobre as fronteiras. Azambuja (2008, p. 56) classifica as fronteiras em naturais e artificiais, sendo as primeiras aquelas compostas por rios, montanhas e outros acidentes geográficos, e as últimas por linhas geométricas ou geodésicas assinaladas por marcos divisórios. A defesa da soberania nacional, entretanto, impõe uma fiscalização não só das fronteiras, mas dos seus arredores, espaço denominado tecnicamente de “faixa de fronteira”, que é entendido como a linha interna de 150km de largura paralela à linha divisória do território nacional (Lei n. 6.634/79, art. 1º). Como é nesta região que ocorre a cooptação da população para o tráfico internacional de drogas e outros delitos E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 8 transnacionais, além de ser fundamental à estratégica de defesa nacional, várias atividades são vedadas nesta região, como a concessão e alienação de terras públicas (Lei n. 6.634/79, art. 2º, I), posse e propriedade de terras particulares por estrangeiros (art. 2º, V), instalações de indústrias que interessam à segurança nacional (art. 2º, III), bem como instalação de empresas que se dediquem à exploração de recursos minerais ou colonização (art. 2º, IV), dentre outras proibições. Mas as fronteiras não são apenas aquelas situadas em “terra firme”. Quanto ao ambiente marítimo, estudos geopolíticos desenvolvidos pela Marinha brasileira vêm consolidando o conceito de “Amazônia Azul”, que se refere ao espaço marítimo que cerca as nossas fronteiras e que, por esta razão, também possuem uma importância decisiva para a soberania nacional e para o desenvolvimento econômico do país. Chama-se, inclusive, de “Amazônia Azul” justamente porque ela teria biodiversidade e recursos naturais a serem explorados similares aos encontrados na região amazônica e, por encontrar-se em ambiente oceânico, foi-lhe atribuída o adjetivo “azul”. Inclusive, o Congresso Nacional, pela Lei n.º 13.187/2015, instituiu o dia 16 de novembro como o Dia Nacional da Amazônia Azul. Nessa data, em 1994, passou a vigorar internacionalmente e para o Brasil, pelo Decreto n.º 1.530/95, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), que estabeleceu novos conceitos de direitos e deveres dos Estados nos espaços oceânicos. Além do solo e das águas, também é território do Estado o espaço aéreo, estudado pelo chamado “Direito Internacional Aéreo” ou “Aeronáutico”, que possui como principais convenções as que seguem: Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional – Convenção de Varsóvia (1929), regulamentada pelo Decreto 20.704, de 24/22/1931; Convenção sobre Aviação Civil Internacional – Convenção de Chicago (1994), regulamentada pelo Decreto 21.713, de 27/08/1946; e Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional – Convenção de Montreal (1999), regulamentada pelo Decreto 5.910 de 27/11/2006. A regra geral é que as aeronaves de propriedade de Governo só poderão sobrevoar livremente os territórios dos Estados aos quais pertençam e áreas internacionais. Já as aeronaves civis poderão E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 9 sobrevoar livremente os territórios dos Estados aos quais pertençam, àqueles Estados das quais possuam tratado que verse sobre a matéria e áreas internacionais. Modos de aquisição do Território Passo agora para um tema fundamental, que são as formas pelas quais o Estado adquire território: (i) ocupação; (ii) acessão; (iii) cessão; e (iv) prescrição. A ocupação ocorre quando o Estado se apropria de uma res nullius, isto é, um território que não pertence a nenhum outro Estado e, a partir daí, passa a exercer soberania sobre ele. A acessão é um acréscimo de território ocasionado por um fato natural, como a ação de rios e mares. O mais comum é que ela seja de ordem natural, como aquela ocasionada por aluvião, avulsão, formação de ilhas etc. Mas também é possível que seja artificial, após a construção de diques ou quebra-mares pelo ser humano. A cessão ocorre com a transferência de território mediante acordo entre Estados. Neste ponto, é preciso mencionar a questão da alienação do território. Em razão do território ser objeto de ação soberana do Estado ele também é objeto de direitos deste, de modo que é possível ao Estado alienar parte do seu território. Exemplos são os territórios comprados pelos Estados Unidos da França (Louisiana), do México (Novo México e Arizona) e do Império Russo (Alasca), bem como o território negociado entre o Brasil e a Bolívia (Acre). É possível também a troca de territórios, como sucedeu pelo Tratado de Limites de 1970, onde foram transferidos 2,702.9 acres (10,938 km²) do território mexicano para os EUA, e em troca os EUA cederam 2,087.87 hectares (8,4493 km²) para o México. Por fim, a prescrição ocorre com o domínio efetivo, ininterrupto e sem contestação do território por um longo prazo de duração, que indique uma renúncia tácita do seu antigo soberano. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 10 A questão da extraterritorialidade Uma outra questão a ser trabalhada é a relativa à extraterritorialidade. A jurisdição estatal alcança espaços localizados fora do seu território, mas que são considerados como se fossem extensão do territórioestatal, ainda que, de fato, não o sejam (PORTELA, 2018, p. 188). São exemplos as aeronaves e embarcações militares onde quer que estejam, as aeronaves e embarcação privadas situadas em águas ou no espaço aéreo internacionais, as missões diplomáticas e consulares, bem como os artefatos espaciais e bases militares. O próprio Código Penal trata desses casos: CP, art. 5º, parágrafo único, § 1º – Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto- mar. O conceito de extraterritorialidade está imerso em uma confusão generalizada. Apesar deste nome, eles são considerados “como se fossem” território nacional, embora não o sejam juridicamente. Basta ver a dicção utilizada pelo código penal: “consideram-se como extensão do território nacional…”. Na verdade, todos os locais mencionados no dispositivo legal não são atingidos pela legislação dos países onde estão situados em razão de um costume internacional, que hoje está codificado e que é chamado de imunidade de jurisdição, e não por ser território nacional dentro do território de Estado estrangeiro. É o instituto da imunidade de jurisdição que, nos termos da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas (1961) e consulares (1963), fundamenta as prerrogativas de diplomatas e cônsules que estejam a serviço dos seus países em embaixadas e consulados situados em território estrangeiro. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 11 Natureza jurídica da relação do Estado com o território As teorias em relação à natureza jurídica da relação do Estado com o seu território se dividem em duas vertentes. A primeira vertente defende que a relação é de propriedade. Os publicistas vinculados a esta corrente sustentam que o Estado exerce domínio sobre o território, ainda que parcela dele esteja desocupada, e, por consequência, possuem poder sobre as pessoas que nele se encontram. Laband vai dizer que se trata de “direito real de natureza pública”. Já Bourdeau, embora defenda a impossibilidade de se considerar esta relação como direito de propriedade, defende que se trata de um “direito real institucional”. Esta vertente, no entanto, não consegue explicar a questão da extraterritorialidade, onde o Estado possui domínio sobre as pessoas que estão em uma parcela do território que não lhe pertence, como embaixadas, consulados, navios de guerra etc. Como vimos anteriormente, estes locais são considerados como se fossem territórios do Estado, sem o serem efetivamente; o domínio é fundamentado no instituto da imunidade de jurisdição. Esta vertente também não explica como particulares podem ter direito de propriedade se o território também pertence ao Estado, isto é, como supor dois direitos de propriedade incidindo sobre o mesmo objeto. Já a segunda vertente defende que a relação é de império, isto é, trata-se de um poder sobre as pessoas e, através desse poder, o Estado exerce poder sobre o território. Esta é a posição de Jellinek e, segundo Dallari (1995, p. 75), é sob esta teoria que se justifica que as invasões de território são consideradas ofensivas à personalidade jurídica do Estado, e não violação de direito real. Esta vertente também não está isenta de problemas. Como alerta Azambuja (2008, p. 65), se o Estado exerce poder diretamente sobre as pessoas e apenas reflexamente sobre o território, como explicar o poder que o Estado exerce sobre os trechos desabitados do território. Do mesmo modo, como justificar juridicamente as vendas, permutas e cessões gratuitas de partes do território a outro Estado. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 12 Penso que uma explicação da natureza jurídica da relação do Estado com o seu território deva ser realizada através de uma teoria eclética, que ainda não foi formulada pelos publicistas e que eu ainda não tive tempo de parar para pensar. De todo modo, não vejo muitas implicações práticas nestas imprecisões teóricas. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 13 CAPÍTULO III – SOBERANIA Link da videoaula: https://goo.gl/pm2kvN O elemento político do Estado e o mais importante, embora seja o que mais se transformou desde o seu surgimento, é a “soberania”. Embora seja um conceito conhecido dos medievais, a sua significação moderna surgiu por volta do século XVI e indica, filosoficamente, o supremo poder (summa potestas), e politicamente o poder de um Estado instituir a sua ordem jurídico-política, poder este que está acima de qualquer outro e não admite limitações, salvo as postas por ele próprio. Existem uma série de teóricos que trabalharam ao longo da história o conceito de soberania. O jurista francês Jean Bodin foi o primeiro teórico a sistematizar este conceito. Bodin conceitua a soberania como um poder supremo, absoluto, ilimitado e incontrastável do Estado, que é imprescindível à sua própria existência enquanto organização política. De todas as características trabalhadas por Bodin (2011), eu destacaria as seguintes: Una (não existe mais de um poder supremo em um determinado âmbito territorial); Indivisível (não pode ser dividida em sua essência, sob pena de deixar de existir, embora seu exercício possa ser distribuído); Imprescindível (os atos do Estado originam relações jurídicas que se transferem de geração em geração e vigoram até serem alterados); e Inalienável (não pode ser cedida ou transferida). Sobre esta última característica, da inalienabilidade, cabe mencionar que ela foi desenvolvida particularmente por Jean-Jacques Rousseau a partir do conceito de “vontade geral”, base da doutrina democrática da soberania popular. Para Rousseau (2005, p. 32), a vontade geral consiste na soma das distintas frações do poder político pertencentes a cada indivíduo que é membro de determinada comunidade e constituem, E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 14 em conjunto, a vontade geral de todos os membros do Estado nas questões político-decisórias. A vontade geral, pois, é uma diretiva suprema, constituinte do contrato social, segundo a qual o corpo político seria formado por cada membro, como parte indivisível do todo, e é partir desta participação que, abstratamente, pode-se chegar à ideia de soberania (popular, no caso de Rousseau). Mas, ao contrário do que possa parecer, a vontade geral não se tratava de uma mera soma aritmética de interesses particulares; na verdade, ela seria formada pelos pontos comuns das vontades individuais (ROUSSEAU, 2005, p. 41). Assim, embora seja possível a existência de interesses particulares remanescentes que separem os homens, a fundação da sociedade só poderia ser concretizada pela harmonia dos interesses (idem, p. 39). A vontade geral, pois, seria o resultado da identificação de certos interesses comuns e quem detivesse o poder apenas representaria esta vontade racionalmente construída. É por isso que a soberania, para Bodin, e fundamentalmente para Rousseau nunca poderia ser alienada; seria comoalienar a vontade geral, ato que careceria de legitimidade (idem). O máximo que se poderia fazer era transmitir o exercício do poder, e não a vontade. No entanto, a diferença entre os dois autores é notória. Enquanto Bodin sustentava que a soberania pertenceria ao monarca (legibus solutus, superiorem non recognoscens), Rousseau defendia que ela pertenceria ao povo, e isso possui consequências no conteúdo da soberania, como veremos mais à frente. Com a Revolução Francesa, porém, surgiu um novo conceito, o de SOBERANIA NACIONAL, que seria um “ponto de equilíbrio”, tanto teórico quanto prático, entre as duas perspectivas: ao mesmo tempo que impedia a volta das monarquias absolutistas (como queria Bodin) não permitia um excessivo poder popular (como queria Rousseau). Tendo como maior representante Joseph Sieyès (2014), a ideia de soberania nacional identificava a nação com os interesses daqueles que sustentavam economicamente a sociedade e, no entanto, estavam excluídos politicamente. Isto porque o Conselho de Estado francês (os “Estados Gerais”) era dividido em três estados: o primeiro era ocupado pela nobreza, o segundo pelo clero e o último por diversos grupos sociais, que constituíam a maioria E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 15 da sociedade e eram liderados pela burguesia. O problema era que, para efeito das decisões políticas, cada “estado” tinha apenas um voto, independentemente da quantidade de indivíduos que o integravam. Assim, como nobreza e clero sempre se uniam em torno dos seus privilégios, a maioria da população não conseguia ter os seus pleitos atendidos. Assim, em razão do “terceiro estado” sustentar economicamente a sociedade e ser constituído pela maioria do povo francês, na verdade, diz Sieyès, o “terceiro estado” representava racionalmente toda a nação, e se o ordenamento jurídico assim não reconhecia, ele era injusto e desrespeitava os direitos naturais de um povo de conduzir o seu próprio destino. O pleito prático de Sieyès era que na Reunião dos Estados Gerais os votos fossem contabilizados individualmente, e não por “estado”, pois só assim o interesse nacional poderia ser concretizado. A influência da ideia de soberania nacional foi notória e pode ser vista em um dos principais documentos jurídicos da época, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente” (Art. 3°). Entender essa evolução é importante porque a soberania sai de uma conceituação exclusivamente política (Bodin e, em certa medida, Rousseau e Sieyès) para uma conceituação jurídica. De fato, com Bodin a soberania expressava a eficácia do poder, sendo coerção pura, não admitindo confrontações, o que implicava em que a questão da legitimidade não era considerada. Lembre-se que Bodin criou a teoria do “direito divino dos reis”, que em uma síntese apertada indicava que como a legitimidade do governo monárquico era obtida de deus, sendo o rei o seu maior representante na terra, o povo tinha apenas que se submeter às ordens régias, na medida em que o rei prestava contas apenas à deus, e não ao povo. Por outro lado, Rousseau defendia que a soberania, na verdade, se originava do povo, isto é, em uma racionalidade obtida por decisões majoritárias, o que evidentemente desconsiderava o que as minorias pensavam. Sieyès, em pensamento similar ao de Rousseau, embora seja mais elitista, vai sustentar que a nação é representada por aqueles indivíduos que, excluídos politicamente, sustentam economicamente o Estado. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 16 Apesar de Rousseau e Sieyès mencionarem que a vontade geral e a nação eram consequências racionais dos direitos naturais, podemos dizer que elas são exemplos, juntamente com Bodin, de doutrinas políticas da soberania, que com o tempo cederam espaço para concepções jurídicas, como explica Dallari (1995, p. 98): Uma concepção puramente jurídica leva ao conceito de soberania como o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito. Como fica evidente, embora continuando a ser uma expressão do poder, a soberania é poder político utilizado para fins jurídicos. Partindo do pressuposto de que todos os atos dos Estados são passíveis de enquadramento jurídico, tem-se como soberano o poder que decide qual a regra jurídica aplicável em cada caso, podendo, inclusive, negar a juridicidade da norma. A soberania pode ser dividida em interna e externa. Como vimos, internamente a soberania se refere a um poder de supremacia sobre pessoas, bens e relações jurídicas dentre de um determinado território, com respeito aos direitos fundamentais. Por outro lado, externamente a soberania consiste na igualdade jurídica entre os Estados, bem como a independência de um Estado em relação a outro, não podendo os mais poderosos ofender a soberania interna dos Estados mais vulneráveis. Como, porém, nem sempre esse respeito ocorreu, o direito internacional passou a defender princípios como o da autonomia dos Estados e da não-intervenção, que foram consagrados na Carta das Nações Unidas. O art. 2º, 4 da Carta da ONU diz que “Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado…”, e o art. 2º, 7 estabelece que “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução”. Por outro lado, como alguns Estados apresentavam risco de ofensa à integridade política de outros Estados, o direito internacional previu exceções ao princípio da não-intervenção, para possibilitar a chamada legítima defesa. O art. 51 da Carta da ONU diz que “Nada na E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 17 presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas…”. Contrariamente a este dispositivo, os Estados argumentam que esperar um ataque militar para só assim poder atacar não é razoável, principalmente com as armas de destruição em massa atuais, razão pela qual esta norma deveria ser flexibilizada. O problema é que tal prática pode gerar abusos, como se viu, por exemplo, na doutrina da “legítima defesa preventiva”, capitaneada pelos EUA. De fato, foi com base na doutrina da “legítima defesa preventiva” que, após os ataques terroristas de 11 de setembro, foi implementada a “guerra contra o terror”, chamada por George W. Bush de “Estratégia de Segurança Nacional” (National Security Strategy). Esse documento dispõe que o objetivo prioritário americano, no que concerne à segurança nacional, é destruir todas as organizações terroristas e que, para isso, os Estados Unidos não hesitarão em agir sozinhos para exercer seu direito de autodefesa, agindo preventivamente contra tais terroristas, para impedi-los de fazer o mal contra o povo americano (UNITED STATES OF AMERICA, 2002, p. 5-6). O argumento central do Estado americano – mas não só dele – é que, como eu já mencionei, com as armas de destruição em massa não é razoável exigir que os Estados esperem ser atacados para só depois iniciarem umcontra-ataque. Uma outra exceção ao princípio da não-intervenção ocorre quando os Estados não respeitavam os direitos fundamentais dos seus cidadãos, que é chamado pela doutrina de cumprimento do dever legal e tem por finalidade proteger os nacionais de outros países que se encontram em países violadores de convenções internacionais. Esta intervenção, chamada de “intervenção por humanidade”, é tida como legítima quando se verifica um comportamento ativo de um Estado, objeto da intervenção, em relação a determinado grupo ou população. Esta “intervenção por humanidade” adianta algumas das práticas que posteriormente seriam incentivadas pela ONU e intensamente debatidas, como a questão da solidariedade internacional. A sua legitimidade está no fato de que ela serve de proteção às normas do direito internacional, a exemplo dos direitos humanos. Inclusive, em 2005 as Nações Unidas, após a Cúpula Mundial da ONU, lançaram a Iniciativa R2P (Responsability to Protect – Responsabilidade E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 18 por Proteger), que visa atribuir aos Estado a responsabilidade de proteger pessoas sob sua jurisdição contra grandes atrocidades (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2006). Segundo o documento, caso algum Estado descumpra as suas obrigações de proteger a sua própria população, a comunidade internacional, por meio da ONU, terá a responsabilidade de empregar os meios pacíficos necessários para prevenir as consequências perversas da ação estatal contrária às normas do direito internacional, agindo sempre, porém, de acordo com os capítulos VI e VII da Carta da ONU. Assim, também na soberania externa houve um deslocamento de uma soberania exclusivamente política, onde o Estado era inteiramente livre para regular as relações com outros Estados, chegando-se a aceitar o direito de declarar guerra e de anexar território do Estado que fosse derrotado, para uma soberania político-jurídica, que promoveu uma conciliação entre a SOBERANIA irrestrita do Estado nacional com as regras do Direito Internacional, não provenientes de qualquer autoridade superior (BARACHO, 1987, p. 21). Esta conciliação, no entanto, não deixa de ser problemática, visto que “a ênfase na soberania do Estado implica sacrifício maior ou menor do ordenamento internacional e, vice-versa, a ênfase no âmbito internacional se faz com restrições de grau variável aos limites da soberania estatal” (BONAVIDES, 2016, p. 123). Por fim, o processo de globalização vem promovendo novas configurações na esfera jurídica interna e externa de cada Estado. Isto advém principalmente das dinâmicas do comércio internacional, que na busca por quebrar as barreiras de circulação de bens, capitais, serviços e pessoas exigiu dos Estados a abdicação de atos típicos de soberania, como o controle da política tributária, fiscal e financeira para facilitar processos de integração, que são de diferentes tipos e graus de profundidade, podendo ir da “união aduaneira”, passando por “áreas de livre comércio” e “mercado comum”, até chegar na “união econômica e monetária”. Exemplos desses blocos econômicos são o NAFTA (Área de Livre- comércio da América do Norte), o MERCOSUL (Mercado Comum do Sul, que não é ainda um mercado comum, mas pretende sê-lo) e a UNIÃO EUROPEIA E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 19 (que é um mercado comum avançado), não existindo atualmente nenhum bloco que se enquadre como união econômica e monetária. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 20 REFERÊNCIAS AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 4 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Globo, 2008. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Regimes políticos. São Paulo: Resenha Universitária, 1987. BODIN, Jean. Os seis livros da República: livro primeiro. São Paulo: Ícone Editora, 2011. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2016. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 98. JELLINEK, Georg. Teoría generale del Estado. Buenos Aires: Ed. Albatroz, 1954. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 1674, do Conselho de Segurança. Disponível em: http://www.who.int/hiv/universalacess2010/worldsummit.pdf. PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de direitos humanos e direito comunitário. 10 ed. Rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2018. ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 32. SIEYÈS, Joseph. A constituinte burguesa. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014. WEBER, Max. Gesammelte politische Schriften. 5. ed. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1988, p. 506. E-book “Elementos do Estado”, produzido por Blog Ronaldo Bastos <https://ronaldobastosjr.com.br/loja/> 21 Ficha técnica E-book produzido por: Ronaldo Bastos www.ronaldobastosjr.com.br contato@ronaldobastosjr.com.br
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