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Universidade de São Paulo Departamento de Ciência Política Projeto de Pesquisa 2008/2010 Rogério Bastos Arantes http://lattes.cnpq.br/6438633094553520 Agosto de 2008 Resumo O presente projeto tem como objetivo principal examinar as relações entre Constitucionalismo e Democracia, em perspectiva comparada. Em linha de continuidade com estudos anteriores, conduzidos em parceria com Cláudio Gonçalves Couto, este projeto apresenta os elementos teóricos principais que orientam a pesquisa – especialmente a metodologia de análise constitucional que logramos desenvolver nos últimos anos – bem como estabelece os objetivos mais específicos de investigação para o triênio 2008/2010. O eixo teórico principal e que articula as frentes de trabalho associadas ao projeto diz respeito aos diferentes perfis constitucionais adotados pelas novas democracias e o papel específico desempenhado pela constituição no funcionamento cotidiano de regimes democráticos, de suas instituições políticas e judiciais. A perspectiva comparada tem ocupado lugar central nessa análise, e vem sendo desenvolvida pari passu aos avanços obtidos nos planos da pesquisa empírica e do modelo teórico mais geral. Cumpre destacar que o projeto tem sido apoiado pelo CNPq (por meio dos editais universais de 2003 e 2006), já propiciou experiencia de Iniciação Científica a 7 alunos de graduação (nos cursos de Ciências Sociais, Relações Internacionais e Direito) e resultou em publicação de capítulos de livros e de artigos em periódicos de ampla circulação. Um destes trabalhos recebeu da Associação Brasileira de Ciência Política o prêmio “Olavo Brasil de Lima Junior” pelo melhor artigo de Ciência Política e Relações Internacionais publicado no biênio 2006-2008.1 1Foi ele: COUTO, Cláudio G. & ARANTES, Rogério B. “Constituição, governo e democracia no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 21, n. 61, 2006. Outros títulos são: ARANTES, Rogério B. & COUTO, Cláudio G.“Constitución o Políticas Públicas? Uma evaluación de los años FHC.” In Vicente PALERMO (comp.) Política brasileña contemporánea. De Collor a Lula en años de transformación. Instituto Di Tella e Siglo XXI, 2003.ARANTES, Rogério Bastos. “Constitutionalism, the Expansion of Justice and the Judicialization of Politics in Brazil”. In: Rachel SIEDER; Line SCHJOLDEN; Alan ANGELL. (Org.). The Judicialization of Politics in Latin America. 1 ed. New York: Palgrave Macmillan, 2005, p. 231-262. ARANTES, Rogério B. & COUTO, Cláudio G. “A Constituição sem fim” in Sérgio PRAÇA & Simone DINIZ, S. (orgs) Vinte anos de Constituição. São Paulo: Paulus, 2008. 2 1. Introdução e delimitação do modelo teórico: Polity, Politics e Policy.2 As relações entre constitucionalismo e democracia remontam ao pensamento político clássico e sempre despertaram muita atenção entre os analistas políticos (Holmes, 1988b; Ackerman, 1988 e 1991; Waldron; 1999). Sob regimes democráticos de feição liberal, as constituições adquiriram papel central na organização do Estado e na limitação do poder político. No século XX, no bojo dos processos de ampliação do Estado e de suas funções sociais, as constituições de perfil liberal-democrata também sofreram modificações importantes e passaram a incorporar novas funções e novas metas relativas ao funcionamento do Estado de Bem-Estar Social. Em que pesem esse longo desenvolvimento das relações entre constitucionalismo e democracia e um amplo conhecimento jurídico e político já existente sobre o mesmo, não chegamos a elaborar modelos teóricos mais precisos sobre as diferentes dimensões do processo político e as relações recíprocas entre o nível constitucional, o jogo político propriamente dito e a produção e implementação de políticas de governo. Esta seção se destina a delimitar nosso tema de pesquisa, justamente a partir da formulação teórica de um modelo de análise das constituições vis-à-vis as demais dimensões do sistema político.3 Que papéis têm, nos regimes democráticos constitucionais, as regras do jogo político, a competição pelo poder e as decisões concretas de governo? Embora cada uma destas dimensões seja parte constitutiva do processo político na democracia, elas não têm o mesmo significado nem contribuem da mesma forma para o funcionamento do regime democrático. Se quisermos, portanto, compreender corretamente a dinâmica política real das democracias constitucionais, é indispensável verificar como regimes desse tipo são capazes de distinguir e articular essas três dimensões do arcabouço institucional básico e da dinâmica política. Em primeiro lugar, é importante considerar que regimes democráticos se distinguem em geral de regimes não democráticos pela presença de alguns elementos-chave, a saber: 1. o jogo político transcorre de acordo com regras preestabelecidas; 2. as eleições são periódicas e ocorrem por meio de sufrágio universal; 3. os mandatos dos eleitos são limitados tanto temporalmente como no que diz respeito ao alcance de suas decisões e ações; 4. a vontade majoritária da população prevalece nos limites das regras preestabelecidas; 5. a oposição é participante legítima do jogo e deve ter condições de chegar ao poder pelo voto popular; 6. os governantes são responsáveis perante o eleitorado; 7. os direitos civis clássicos de liberdade negativa são garantidos. 2 O modelo teórico que orienta o presente projeto, nesta e nas seções seguintes, foi desenvolvido em co-autoria com Cláudio Gonçalves Couto. Boa parte da proposta que aqui apresento será desenvolvida em parceria com o referido pesquisador. 3 Tal modelo vem sendo desenvolvido desde versões anteriores deste projeto de pesquisa e já foi apresentado e discutido em encontros acadêmicos na área de ciência política, tendo integrado nossas publicações mais recentes (COUTO & ARANTES, 2003, 2006; ARANTES, 2005; COUTO 2005) 3 Estes elementos estabelecem regras básicas do jogo político democrático, conformando o que há de essencial na estrutura constitucional de uma poliarquia. Na medida em que delineiam os contornos básicos do regime são, em princípio, condições paramétricas estáveis para o exercício do jogo político, não se confundido com este ou com seus resultados. Pelo fato de a estrutura constitucional conter tais parâmetros, é de se esperar que ela esteja baseada num amplo consenso dentre os diversos atores políticos (os jogadores), ao menos no que concerne a seus aspectos centrais; por outro lado, dado que se trata de um acordo básico, um pacto entre atores poliárquicos, é possível esperar que os dispositivos por ele estabelecidos tenham caráter não controverso, isto é, que não encerrem motivo de dúvida ou de disputa. Fixados os termos consensuais dessa estrutura constitucional básica, o relacionamento concreto entre atores políticos num regime democrático se dá em duas outras dimensões principais, mais visíveis e perceptíveis no dia-a-dia das democracias do que a primeira: 1. a competição política; 2. a decisão sobre questões governamentais. A competição política constitui o próprio jogo e nela estão implícitos os enfrentamentos, as disputas, as negociações, os acordos e as coalizões. Trata-se da dimensão dinâmica da realidade política, enquanto as condições paramétricas estáveis constituem a sua dimensão estática. Noutras palavras, o jogo político diz respeito à ação (e à interação), ao passo que as condições paramétricas dizem respeito à estrutura, no âmbito da qual ocorrem as ações (e interações). É também no âmbito desta competição que se definem, nos limites das regras estabelecidas, os que ganham e os que perdem, os que ocuparão os cargos públicos (eletivos ou não) e os que ficarão excluídos do poder, os aliados e os adversários etc. No entanto, além deste jogoque leva à definição de quem governa e de como se governa, há também a importante dimensão da tomada de decisões sobre as ações de governo, que constitui outra esfera particular do regime democrático. Tais decisões são elas próprias um objetivo e uma decorrência – ao mesmo tempo – do jogo político. Afinal, por que motivos competem os jogadores nas poliarquias? Para ocupar postos de poder e influência, em primeiro lugar, mas para definir políticas públicas, em segundo. Estas últimas, ao contrário das condições paramétricas estáveis, espera-se que sejam objeto de disputa, e não de um amplo consenso; também é de se esperar que, da mesma forma, tenham caráter controverso. Enquanto a primeira dimensão constitui a base para o jogo político, esta última representa seus resultados concretos, produzidos em meio ao conflito e à controvérsia. E da mesma maneira como este jogo se desenrola limitado pela estrutura constitucional, o alcance dos resultados também está limitado por essa estrutura – o que não significa dizer que seja predeterminado por ela.4 4 Numa perspectiva mais filosófica e menos institucional do que a nossa, SARTORI analisa a questão do consenso na democracia também em três níveis, do mais básico ao mais superficial: 1. o nível básico diz respeito ao consenso sobre valores supremos (tais como a liberdade e a igualdade) que habitam a cultura política; 2. o nível procedimental de consenso concerne às regras do jogo político; é indispensável ao funcionamento da democracia; e 3. o nível programático do processo político, marcado pela discussão sobre governos específicos e suas políticas públicas, âmbito no qual o consenso, se houver, está em permanente tensão e ajuste decorrentes do debate acerca das ações políticas concretas. Noutras palavras, o terceiro nível está mais para o dissenso (que não ameaça o edifício institucional da democracia se o consenso procedimental estiver consolidado) do que para o consenso. Cf. G. SARTORI (1994: 127-32). Stephen HOLMES (1988b), por sua vez, faz referência aos “comprometimentos prévios” que são criados pelo ordenamento constitucional. 4 À falta de termos apropriados e claramente diferenciados na língua portuguesa para distinguir cada uma dessas três dimensões da realidade política, podemos – recorrendo ao inglês – chamá-los, pela ordem em que foram apresentados acima, de polity, politics e policy. A polity corresponde à estrutura paramétrica estável da política e que, supõe-se, deve ser a mais consensual possível entre os atores; a politics é o próprio jogo político; a policy diz respeito às políticas públicas, ao resultado do jogo disputado de acordo com as regras vigentes5. O quadro 1 resume a natureza e as características principais destas três dimensões do processo político democrático. Quadro 1 Natureza das dimensões ideais do processo político democrático DIMENSÃO NATUREZA DENOMINAÇÃO CARACTERÍSTICA FORMAL CARACTERÍSTICA SUBSTANTIVA Normatividade Constitucional Regras Gerais do Jogo Político (Estrutura) Polity Pacto entre os diversos atores políticos Generalidade Embates e Coalizões Políticas Jogo Político Politics Relacionamento dinâmico entre os atores políticos Conflito e/ou Cooperação Normatividade Governamental Resultados do Jogo Político (Conjuntura) Policy Vitória/Derrota de diferentes atores políticos Especificidade Não trataremos aqui da dimensão dinâmica do processo democrático, a politics, para concentrarmos nossas atenções na hierarquia normativa que distingue o pacto constitucional (polity) de decisões governamentais (policy). As normas constitucionais definem a estrutura do sistema político, fixando suas condições gerais de funcionamento. Por isto, caracterizam-se por maior generalidade, definindo os pressupostos básicos do jogo político, assim como os limites deste e de seus resultados. Num regime poliárquico, o ideal seria que tal normatividade decorresse de um pacto entre os atores políticos, sendo estipulada da forma mais consensual possível. A exigência de consenso quanto a essa dimensão deveria ser alta justamente para evitar que a Constituição, com seu caráter de maior permanência, refletisse a vitória isolada de alguns setores da sociedade sobre outros, consagrando seus interesses particulares de forma perene e colocando-os fora do alcance do jogo político futuro. A pactuação consensual de princípios constitucionais implica na normatização dos interesses comuns aos diversos setores da sociedade, ou, no máximo, dos interesses particulares inegociáveis, sem cuja garantia o convívio pacífico e a competição política leal entre os diversos setores sociais e políticos seriam ameaçados6. Por definir 5 Decidimos recorrer a esta terminologia pelo fato de que a utilização de termos em português perderia em clareza e precisão. Não há termo em nossa língua que seja equivalente a polity. Mesmo a expressão politéia, roubada ao grego, não é de uso corrente e sequer consta dos principais dicionários. No que diz respeito a politics e policy, a palavra em português é a mesma para ambas: política. Neste caso, precisaríamos falar o tempo todo em “política” como atividade, e em “política pública”, ou “política governamental”, ou ainda em “políticas”. Por uma questão de economia de linguagem e clareza, optamos pelos termos em inglês. 6 Qualquer ordenamento constitucional num regime político competitivo, ao fixar condições mínimas para a aceitação do jogo pelos pactuantes, coloca certas questões fora do jogo político cotidiano. Stephen HOLMES (1988a) aponta essa questão ao mencionar as chamadas gag rules (ou regras de silêncio) presentes num ordenamento constitucional. Ele faz referência direta à questão da escravatura no regime constitucional norte-americano criado em 1787. Tratava-se de uma regra sobre a 5 somente parâmetros, princípios e limites do jogo político, normas constitucionais democráticas devem ter caráter genérico, de modo que medidas específicas para sua efetivação sejam tomadas conjunturalmente, tendo em vista as circunstâncias particulares com as quais lidam os governos. Condição básica do jogo político, resultantes de um pacto político entre elites concorrentes, as normas constitucionais encarnam a própria estrutura do Estado, da polity. São, portanto, normas de caráter soberano, em princípio não sujeitas à discussão cotidiana, decorrentes de um momento inaugural constituinte, no qual se iniciam o sistema e o jogo políticos; em virtude disto, é de se esperar que sejam protegidas contra modificações freqüentes. Tendo em vista tal finalidade, as regras decisórias que balizam o processo de modificação da normatividade constitucional costumam ser mais exigentes: quoruns ampliados de votação, prazos mais dilatados, poder de veto conferido a diversos atores institucionais e até mesmo a vedação total a qualquer mudança pela legislatura ordinária mediante simples emendas constitucionais, requerendo-se nesse caso a realização de uma nova Assembléia Constituinte. Noutras palavras, o grau de consenso necessário a decisões de tipo constitucional é muito mais amplo do que aquele aplicável às decisões da política governamental. O governo age na conjuntura; sua ação baliza-se pela eficácia; suas decisões podem – sem maiores problemas – constituir imposições da parte vitoriosa na disputa democrática (a maioria) sobre a parte derrotada (a minoria), assim como podem ter caráter específico e sentido controverso. Tudo isto é possível, desde que as decisões de governo não contrariem a normatividade constitucional. É da natureza do próprio jogo democrático o perde-ganha político; ora um grupo obtém o controle sobre os postos capazes de processardecisões governamentais, ora outro. As oscilações decorrentes deste processo refletem-se diretamente sobre a formulação e implementação das políticas públicas (policies), que são objetos da avaliação do eleitorado, o qual – com base num juízo sobre o desempenho do governo – premia ou pune seus representantes nas eleições subseqüentes, por meio das escolhas eleitorais. Se a alternância de grupos (partidos) no governo é uma condição do regime democrático, a variação das políticas públicas (policies) é uma conseqüência prática inevitável (e desejável) desse princípio. A possibilidade de que tal variação de policies ocorra é, portanto, pré-requisito de que a alternância de grupos (partidos) no governo tenha efeitos práticos. Daí as menores exigências das regras decisórias referentes à produção de a policies.7 qual sequer se poderia falar, com vistas a não destruir o regime instituído pelos founding fathers. Evidentemente, a existência de tal regra não seria admissível numa democracia, mas mesmo regimes poliárquicos contêm as suas gag rules, ou, ao menos, temas que não estão sujeitos à decisão majoritária cotidiana. O direito à propriedade privada é um exemplo disto. 7 Para uma abrangente discussão acerca do processo de emendamento constitucional, ver o volume organizado por Sanford LEVINSON (1995). 6 2. Critérios de distinção de matérias constitucionais e não-constitucionais. Formulação da Metodologia de Análise Constitucional. Se nossos argumentos sobre as dimensões de polity, politics e policy estão corretos, seria possível distinguir, no interior de uma constituição escrita, os aspectos fundamentais do ordenamento político relativos à estrutura do Estado (polity) daqueles outros que, embora se refiram ao conteúdo material de ações estatais prováveis ou desejáveis (policies), foram abrigados pelo texto constitucional e assemelhados formalmente aos princípios da polity. Nossa intenção, nessa parte, é elaborar critérios objetivos que nos permitam classificar os dispositivos constitucionais como polity ou policy. A tarefa exige boa dose de argumentação, dado que o texto formal contempla sem distinção esses dois princípios e estabelecer uma hierarquização entre eles é correr um risco considerável. Como se sabe, o constitucionalismo moderno se desenvolveu a partir do princípio liberal da limitação do poder político vis à vis a liberdade civil e individual. De modo geral, os textos constitucionais modernos preocuparam-se em estabelecer os princípios fundamentais do Estado ao mesmo tempo que procuraram definir os limites da ação estatal da maneira mais rigorosa possível. Poder e liberdade são considerados antitéticos na tradição liberal e essa oposição marcou decisivamente o surgimento das primeiras constituições escritas do final do século XVIII. Contemporaneamente, o conjunto de dispositivos constitucionais relacionados à regulação desse antagonismo vem sendo difundido por meio das noções de Estado de Direito e Rule of Law. Posteriormente, com a ampliação do sufrágio, as Cartas também passaram a ter de lidar com a realidade da incorporação de contingentes cada vez maiores da população ao processo político. Desta forma, às duas noções anteriores acrescentou-se a de Estado democrático. Cremos que uma primeira classificação do texto constitucional, em termos de polity e policy, deveria retornar às origens do constitucionalismo moderno e aos princípios liberais que marcaram a refundação do Estado, bem como aos princípios democráticos que vieram em seguida, especialmente a ampliação dos direitos de participação. Neste sentido, os seguintes critérios poderiam ser adotados para identificar os dispositivos típicos da polity e, por exclusão, revelar aqueles que poderiam ser considerados veículos de policy. Dentre os princípios de um regime liberal-democrático, formalizados constitucionalmente, apenas seriam típicos da polity: (1) As definições de Estado e Nação, tais como o regime republicano ou monárquico, a organização federativa ou unitária, o exercício direto e/ou por via representativa do poder político pelo povo, a noção de nacionalidade e a estrutura do aparato estatal. (2) Os direitos individuais fundamentais caracterizados pelas condições básicas do exercício da cidadania individual. Consideramos como princípios da polity, nessa primeira classificação geral, as 7 garantias da liberdade civil, que BERLIN (1981: 133-145) reuniu sob a expressão “liberdade negativa” (proteção do cidadão contra a ação arbitrária do Estado) e os direitos políticos de participação democrática. Note-se que esse critério minimalista afasta da definição constitucional da polity os direitos substantivos, individuais e sociais, que normalmente vêm acompanhados de normas constitucionais programáticas. (3) As regras do jogo, que organizam os processos de: participação e competição políticas, relacionamento entre e intrapoderes, interação entre níveis de governo e entre atores coletivos reconhecidos pela Constituição como lidando com interesses de ordem pública. Tais regras estipulam: (a) a divisão de prerrogativas e funções entre os atores institucionais, (b) as regras operacionais do processo decisório governamental e (c) os tempos e prazos que balizam tais processos. Os 3 critérios apontados acima partem da maior generalidade possível da polity (critério 1) e vão ganhando especificidade até quase tocar, por duas vezes, o nível de policy. No critério 2, a menção à cidadania poderia nos levar a incluir direitos constitucionais substantivos que costumam requerer policies para tornar possível a sua efetivação. Todavia, nessa definição minimalista de polity, evitamos confundir direitos individuais de proteção (contra o Estado e também contra outras pessoas) e de participação na esfera política, com os direitos dependentes de promoção através de políticas governamentais. Segundo essa classificação inicial, o primeiro tipo de direitos compõe a polity e, portanto, tem natureza constitucional. O segundo tipo aproxima-se da categoria de policy, apesar de sua inclusão na Carta conferir-lhe formalmente status constitucional. A definição operacional de polity também se aproxima da de policy quando, no critério 3 (as regras do jogo), mencionamos as funções dos diversos entes governamentais. Note-se, todavia, que o critério 3 destina-se a catalogar artigos constitucionais que organizam processos – dentre eles o da divisão de atribuições governamentais específicas entre os órgãos estatais – e não devem, portanto, ser confundidos com aqueles dispositivos que estabelecem funções promocionais do Estado e que serão classificados como policy. Nesse sentido, as funções de governo só serão classificadas como parte componente da polity quando disserem respeito a questões de ordem procedimental, relacionadas à distribuição horizontal de poder entre os diversos entes estatais, ao funcionamento interno desses mesmos entes, à participação democrática dos cidadãos e à garantia de sua liberdade negativa. Nessa perspectiva, funções passíveis de serem classificadas como polity provavelmente não serão aquelas que se referem a obrigações positivas do Estado, mas aquelas inspiradas nos princípios liberal do governo limitado e democrático do governo participativo. De outro lado, elas serão classificadas como policy justamente quando impuserem essas obrigações positivas, ao estilo “direito do cidadão, dever do Estado”, numa perspectiva vertical de relação entre o governo e a sociedade, em torno de direitos substantivos cuja efetivação depende da implementação de políticas públicas.Entretanto, desde que MARSHALL (1967: cap.III) definiu a composição tripartite da cidadania moderna em direitos civis, políticos e sociais e que os textos constitucionais da segunda metade do século 8 XX estabeleceram um amplo leque de obrigações sociais do Estado, tornou-se bastante difícil defender um conceito de polity tão minimalista como o estabelecido acima. Em todos os países que recentemente adotaram o figurino liberal-democrático, gamas importantes de direitos sociais foram mencionadas nos capítulos constitucionais destinados aos direitos e garantias fundamentais. Nossas constituições atuais não se restringem a estabelecer os limites necessários à vigência da “liberdade negativa” e tratam de avançar na direção da igualdade, impondo obrigações positivas ao Estado. É verdade que a realização dessa igualdade é obstada pelo direito também constitucional da propriedade privada, não sendo demais lembrar que tal dispositivo é a pedra angular do Estado de Direito liberal. De qualquer forma, considera-se um grande salto de cidadania a constitucionalização de direitos de igualdade material entre os homens, mesmo que definições como “função social da propriedade” e “Estado Democrático de Direito” comportem boa dose de contradição, refletida em tensões no interior do texto constitucional. Por estas razões e apesar de os conceitos de cidadania e polity não designarem a mesma coisa, decidimos trabalhar com dois tipos de classificação: a minimalista, baseada nos três critérios acima, e uma maximalista, que além dos três anteriores, incorporaria um quarto critério: (4) Os direitos materiais orientados para o bem-estar e a igualdade, assim como as funções estatais a eles associadas. Tais direitos e funções estatais não se confundem com os três critérios anteriores, dado que não têm implicação direta sobre as definições de Estado e Nação, não constituem direitos civis de proteção da liberdade nem direitos políticos de participação democrática, nem configuram regras processuais da competição pelo poder ou das relações entre e intra-órgãos e níveis governamentais. Todavia, não se trata aqui de fazer mera concessão a uma visão da constituição como programa social de governo, mas de indicar que determinados direitos materiais podem sem considerados condições básicas para o funcionamento adequado do regime democrático. Tais direitos têm a importante função de promover a adesão ao pacto político democrático e suprimi-los poderia levar a democracia ao colapso. Enquanto os direitos civis de liberdade e políticos de participação mencionados no critério 2 podem ser considerados direitos operacionais indispensáveis à vida democrática, os direitos materiais aqui mencionados podem ser considerados direitos condicionantes do jogo político nesses regimes, na medida em que mantém a adesão social ao pacto político democrático8. Por fim, independentemente do peso mais liberal-democrático ou mais igualitário das constituições, seus textos devem estabelecer apenas os princípios fundamentais do ordenamento político, não sendo conveniente que desçam a detalhes que sejam objeto da politics infraconstitucional cotidiana, momento da confecção de policies. Ao constitucionalizar normas que poderiam ser temas do jogo político ordinário, acaba-se por extrapolar justamente o seu caráter constitucional, conformador do jogo, estipulando-se a priori e de forma rígida aquilo que seria passível de mudanças freqüentes; limitam- se demasiadamente os resultados possíveis do próprio jogo, pois se constrange a liberdade dos atores 8 Estamos aqui tratando dos direitos sociais, mas também alguns outros direitos podem ser condicionantes. É o caso do direito de propriedade, que não se enquadra na categoria de direito social de Marshall (e sim na de direito civil) mas se constitui num condicionante óbvio para o funcionamento de quaisquer regimes políticos em sociedades capitalistas. 9 na politics cotidiana, tornando formalmente polity o que seria considerado policy em países dotados de constituições mais enxutas. Tendo isto em vista, decidimos incluir dois outros critérios, secundários, que deverão ser acionados na tarefa de classificar o texto constitucional.. (5) Critério de Generalidade. Deixarão de ser classificados como polity os dispositivos constitucionais não genéricos (muito específicos). Embora de difícil definição, o limiar entre a generalidade e a especificidade poderia ser determinado da seguinte forma: são específicos os artigos derivados de princípios constitucionais superiores, mas cujo conteúdo pode sofrer alterações sem que isso ponha em risco os dispositivos mais amplos sob os quais esses artigos estão abrigados. Essa talvez seja uma maneira eficaz de distinguir polity de policy, uma vez que os textos constitucionais contemporâneos tendem, metaforicamente, a assemelhar-se a árvores de cujo tronco vão saindo galhos que se ramificam até os últimos detalhes. Nosso critério de generalidade poderia funcionar a exemplo da poda, que corta pontas de galhos sem que isso ameace a vida da árvore: da mesma forma, existiriam artigos constitucionais cuja retirada do texto constitucional não colocaria em risco o princípio fundamental ao qual ele está associado. Isto será particularmente útil na desclassificação da condição de polity dos dispositivos relacionados ao estabelecimento de regras do jogo, mas que por serem demasiadamente detalhistas, especificando processos que deveriam ser objeto de norma infraconstitucional, poderiam ser “podados” da constituição sem que a essencialidade do principio superior fosse afetada. (6) Critério de Controvérsia. Também deixarão de ser classificados como polity os dispositivos cujo conteúdo for tipicamente objeto da controvérsia político-partidária cotidiana, dizendo respeito às plataformas governamentais apresentadas pelos partidos em seu embate pelos postos de governo e não se enquadrando, portanto, na condição de norma paramétrica da politics que caracteriza dispositivos de tipo constitucional. Nesse sentido, via de regra não serão desclassificados como polity, pelo critério de controvérsia, os dispositivos constitucionais que estabelecem regras procedimentais. As razões pelas quais adotamos estes dois últimos critérios são as seguintes. No que diz respeito à questão da generalidade, normas muito específicas deixam de constituir parâmetros de funcionamento do sistema político, de desenrolar do jogo e de limitação do escopo das decisões, para se tornarem – por antecipação – as próprias decisões que caberiam aos atores políticos; por conta disto, perdem seu caráter constitucional. Ademais, é de se esperar que acabem por criar obstáculos à gestão política conjuntural, na medida em que podem engessar a ação dos governantes e/ou dos atores sociais diante de situações imprevistas, mudanças de condições sociais, novas tecnologias etc. Com isto, a Constituição pode acabar se tornando não um instrumento que confira maior segurança à sociedade, mas que a impeça de dar cabo de seus problemas em tempo hábil e com a precisão necessária, devido ao congelamento constitucional de diversos assuntos. O mesmo raciocínio se aplica à questão da controvérsia – com um agravante. A constitucionalização de policies não apenas reduz demasiadamente a margem de manobra decisória dos 10 atores, mas o faz em detrimento da democracia. Isto porque acaba por restringir excessivamente – tendo em vista o leque ideológico e de interesses de uma sociedade num dado momento histórico – a possibilidade de que à alternância dos partidos e das lideranças no governocorresponda a uma modificação das políticas públicas implementadas. Com isto, a competição democrática não é impedida no plano eleitoral, mas tem seus efeitos em certa medida anulados ou restringidos no plano governamental. Pode-se supor que é justamente para isto que servem as constituições – restringir a ação dos governos. Mas a suposição é incorreta se não leva em conta o fato de que tal restrição, caso seja demasiada, impede que a própria vontade popular se manifeste periodicamente por meio das ações dos representantes eleitos. Mais do que isso, restringirá por demais o alcance das decisões políticas majoritárias, incentivando e permitindo que minorias descontentes recorram à Justiça para escapar de decisões legislativas ordinárias, pelo menos nos países que adotam algum tipo de controle constitucional das leis. Noutras palavras, a vontade momentânea de uma maioria conjuntural impõe-se no longo prazo às futuras maiorias, cerceando-lhes. Em suma, o critério da controvérsia aponta para o fato de que não é legítimo numa democracia constitucionalizar questões que sejam controversas. A Constituição deve procurar definir (no limite do possível) apenas o que é incontroverso: as condições básicas de funcionamento de um sistema político competitivo. Sob este ponto de vista, o que for objeto de disputa deve ser resolvido na disputa, ou seja, nos processo eleitoral e decisório, dentro dos marcos poliárquicos. O quadro 2 resume os critérios de classificação do texto constitucional, relativos aos dois modelos possíveis desenvolvidos a partir do esforço teórico dessa seção. Quadro 2. Critérios de distinção de matérias constitucionais e não-constitucionais Modelos de classificação Minimalista (liberal clássico) Maximalista (social) (1) As definições de Estado e Nação (1) As definições de Estado e Nação Critérios substantivos (2) Os direitos individuais fundamentais (2) Os direitos individuais fundamentais (3) As regras do jogo (3) As regras do jogo (4) Os direitos materiais e funções estatais correlatas Critérios formais/ (5) Generalidade (5) Generalidade operacionais (6) Controvérsia (6) Controvérsia 11 3. Primeiras aplicações da MAC e o problema constitucional brasileiro. Em nossa pesquisa precedente (COUTO & ARANTES, 2003 e 2006; COUTO, 2005), partimos da constatação de que um dos aspectos mais evidentes e controversos da democracia brasileira contemporânea dizia respeito ao fato de que nossa Constituição, promulgada em outubro de 1988, não havia adquirido com o passar do tempo as condições de estabilidade e permanência que habitualmente caracterizam os textos constitucionais. Após sua promulgação o país permaneceu numa espécie de agenda constituinte, como se o processo de reconstitucionalização não houvesse se encerrado em outubro daquele ano. Desde então, a tomada de decisões e a implementação de políticas governamentais não lograram adquirir uma rotina apenas infra-constitucional, pois os governos se viram obrigados a desenvolver boa parte de sua produção normativa ainda no plano constitucional, por meio de modificações, acréscimos e/ou supressões de dispositivos localizados na própria Carta. A hipótese mais usual acerca da permanência dessa agenda constituinte no Brasil pós-1988 (comprovada pela intensa atividade de reforma do texto constitucional nesse período) supõe que a Constituição teria caducado logo após seu nascimento; isto é, o texto teria sofrido de um envelhecimento súbito, como se tivesse mais a ver com o passado do que com o presente. Desde a promulgação do texto constitucional, vozes dissonantes se levantaram contra a Carta, acusando-a de constituir, no plano econômico, um obstáculo à modernização do país e, no plano político, um desastre do ponto de vista da governabilidade. Tal descompasso seria especialmente perceptível diante da agenda de reformas estruturais do Estado e do sistema econômico, que gradualmente foi-se impondo como necessária para a desejada estabilização da economia e a retomada do desenvolvimento em novas bases. Nesse sentido, o fato de a atividade governamental ter continuado a ocorrer no plano constitucional seria conseqüência de uma incompatibilidade substancial entre o conteúdo da Carta de 1988 e os desafios que a nova realidade econômica e política, nacional e internacional, passou a nos impor. Desse prisma, a Constituição escrita sob a égide da “remoção do entulho autoritário” do regime militar pós-64 tornou-se ela mesma – e muito rapidamente – uma espécie de “entulho nacional- desenvolvimentista”, que precisaria ser removido para permitir a implementação das chamadas reformas orientadas para o mercado. Nossas investigações nos levaram a um distanciamento dessa hipótese de incompatibilidade substantiva, pois constatamos ser mais relevante uma outra dimensão do problema constitucional brasileiro. Para além de eventuais anacronismos legados pela Constituição, verificamos um peculiar modus operandi de produção normativa em nível constitucional, com conseqüências significativas para o funcionamento da democracia brasileira. Segundo nossa hipótese geral, o problema tem, portanto, um caráter mais formal do que substantivo, mais relacionado ao tipo de processo decisório e governamental ensejado pelo arcabouço constitucional do que a um eventual anacronismo dos termos substantivos da carta de 1988. Desse ponto de vista, o que menos importa é o conteúdo concreto das agendas de 12 governos específicos e mais a forma exigida para sua implementação, pois verificamos que independentemente das políticas governamentais particulares, levadas à esquerda ou à direita, por progressistas ou conservadores (ou qualquer outra denominação ideológica que se queira dar), a atividade de governo no Brasil seguiu ocorrendo em grande medida no plano constitucional, como se estivesse capturada por uma dinâmica constituinte permanente, incapaz de pôr um ponto final no processo iniciado em 1988. A hipótese específica da primeira versão do nosso projeto foi a seguinte: a Carta brasileira de 1988 se distingue por ter consagrado formalmente como norma constitucional diversos dispositivos que apresentam, na verdade, características de políticas governamentais. Nesse sentido, a constitucionalização de policies teria obrigado sucessivos governantes a buscar continuamente modificar a Carta para poder implementar boa parte de suas plataformas de governo, algo especialmente difícil na medida em que maiorias qualificadas são necessárias para tanto e não é nada fácil construí-las no contexto institucional de um estado federativo e de um regime presidencialista multipartidário como o brasileiro. Com base na Metodologia de Análise Constitucional (MAC) exposta no item 2 acima, realizamos uma primeira análise da Constituição de 1988, procurando determinar em que medida seu texto original continha dispositivos que pudessem ser classificados como de tipo constitucional – polity - ou mais adequadamente como políticas públicas - policies.9 A versão original da Constituição de 1988 continha 245 artigos, mas uma vez decompostos os parágrafos, incisos e alíneas, estes artigos se desdobraram em 1.627 dispositivos. Para efeitos da nossa primeira contabilidade do texto constitucional, preferimos deixar de lado o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, pela sua natureza específica de regra de transição. Depois de rigoroso exame de cada um dos 1.627 dispositivos da Carta original e aplicação da MAC, concluímos que 30,5% deles dizem respeito seguramente apolicy e 69,5% dizem respeito a normas de caráter constitucional – polity. Em outras palavras, quase 1/3 de nossa reorganização constitucional em 1988 foi marcada pela elevação de políticas públicas ao plano constitucional, com claros efeitos sobre o processo político posterior e a permanência de uma agenda constituinte vinculando os sucessivos governos. Por outro lado, quando analisamos a distribuição de dispositivos ao longo dos 9 títulos que compõem a Constituição, constatamos que o título 4, “Da organização dos poderes”, é responsável por quase 1/3 do total de dispositivos da carta, o que, sem dúvida, indica que o constituinte de 1988 teve grande preocupação em estabelecer detalhadamente a dimensão horizontal e funcional do sistema político brasileiro: composição, competências, prerrogativas e regras de funcionamento dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e órgãos auxiliares como o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União e outros. Em segundo lugar, vem o título 3, “Da organização do Estado”, que estabelece a estrutura político-administrativa do país, com ênfase na dimensão vertical do federalismo, dos governos 9 Os resultados detalhados dessa primeira análise da Constituição de 1988 podem ser vistos em COUTO & ARANTES (2006) 13 subnacionais e de suas relações com a União. O peso relativo dos títulos 3 e 4 certamente explica porque, aplicando os quatro critérios de polity formulados pela MAC, revelamos que 75,5% dos dispositivos polity da Carta brasileira dizem respeito – exclusivamente ou em associação com outros – a definições de “regras do jogo”, isto é, são dispositivos destinados a organizar os processos de participação e competição políticas, o relacionamento entre e intrapoderes, a interação entre os entes da federação e entre atores coletivos reconhecidos pela Constituição como lidando com interesses de caráter público. Tais regras normalmente estabelecem a divisão de prerrogativas e funções entre os atores institucionais, os mecanismos operacionais do processo decisório governamental e os tempos e prazos que balizam tais processos. Quanto aos aspectos que poderíamos definir como ainda mais estruturais ou estáticos do ordenamento constitucional – as “definições de Estado e Nação” –, estes ocuparam apenas 6,5% do texto promulgado em 1988. Uma primeira conclusão a extrair desse resultado é que, se a Constituição brasileira pode ser considerada muito extensa, seu tamanho reflete o nível de constitucionalização de políticas públicas pelo texto mas também o nível de detalhamento atingido pela Constituinte na definição dos procedimentos que deveriam presidir o funcionamento da democracia vindoura, algo que certamente pode ser explicado pelas preocupações da época em torno da liberalização e redemocratização do regime político. Por outro lado, se Ulysses Guimarães alcunhou o texto como “Constituição Cidadã”, o adjetivo perde força aos verificarmos que, quantitativamente, os componentes sociais, civis e políticos da cidadania são incomparavelmente inferiores à dimensão das regras do jogo: apenas 5,7% dos dispositivos constitucionais dizem respeito a direitos materiais orientados para o bem-estar e a igualdade sociais e apenas 8,1% dizem respeito a direitos individuais de liberdade e de participação política. Somados, os dispositivos “cidadãos” perfazem pouco mais de 13% da Carta de 1988. Quanto a dispositivos de tipo policy, verificamos sua presença em todos os títulos da Constituição, com exceção do título 1, relativo aos “Princípios Fundamentais” (de fato seria muito curioso se ali viéssemos a encontrar políticas públicas constitucionalizadas). Em termos percentuais, os títulos das “Disposições constitucionais gerais” e da “Ordem econômica e financeira” foram os que apresentaram maior índice de dispositivos policy, com algo em torno de 70% do total. Na seqüência, aparece o título da “Ordem social”, no qual cerca de 60% dos dispositivos definem princípios de policy e não de polity. Nada menos do que 1/3 do título da “tributação e do orçamento” e até mesmo do título dos “direitos e garantias fundamentais” não precisariam estar no texto constitucional, pois referem-se a mecanismos de policy e não de polity. Por fim, mesmo os títulos que remontam às linhas básicas do moderno constitucionalismo – “Da organização do Estado” e “Da organização dos poderes” – revelaram a existência de dispositivos policy em seu interior: o primeiro com índice de 27% e o segundo com índice de 10% do total de dispositivos. A partir dessa caracterização geral da Carta de 1988, podemos avançar no sentido de mensurar o impacto de seu perfil geral sobre o processo governamental, a elaboração legislativa e a produção de 14 políticas públicas, um dos objetivos centrais desse projeto. Em trabalho anterior (COUTO & ARANTES, 2003), havíamos aplicado a Metodologia de Análise Constitucional ao conjunto de emendas constitucionais promulgadas durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso10 e chegamos a resultados surpreendentes: Dos 482 dispositivos de emendas que modificaram ou aglutinaram novos elementos constitucionais, nada menos do que 68,8% (332) diziam respeito a políticas públicas (policy) e apenas 31,2% (150) diziam respeito a princípios fundamentais (polity). Do total de dispositivos de emendas constitucionais, 60,8% eram aglutinadores, isto é, vieram agregar novos aspectos à Constituição. Dentre os aglutinadores, nada menos do que 82,7% diziam respeito a policy e apenas 17,9% vieram acrescentar mais polity à Carta. A conclusão geral a que chegamos naquele primeiro estudo foi: ao contrário do que se afirma no debate público, nossa Constituição não foi mutilada pelas emendas constitucionais do período FHC, mas, pelo contrário, cresceu nada menos do que 15,3%, graças a elas (enquanto a taxa de modificação do texto original, por emendas desse mesmo período, foi a metade desse valor: 8,8%). Em suma, o crescimento do texto constitucional no período FHC foi marcado pela inclusão de novos dispositivos policy na Constituição, em proporção significativamente superior aos dispositivos polity nela incluídos por meio de emendas. Tentar compreender porque isso aconteceu segue sendo um desafio analítico e de pesquisa empírica. De qualquer forma, com a aplicação da MAC à própria Constituição de 1988, pudemos verificar com maior precisão onde incidiram as emendas do período FHC que visaram modificar aspectos do texto constitucional (se polity ou policy). O resultado se encontra na tabela 1. Tabela 1. Constituição e emendas constitucionais FHC Tipo de dispositivo original Sofreram modificação Não sofreram modificação Polity 92 1.039 Policy 68 428 Total 160 1.467 Embora o maior número de emendas modificadoras tenha incidido sobre dispositivos polity do texto original, proporcionalmente é bem mais significativo o número de emendas sobre dispositivos policy, se considerarmos o perfil geral da Constituição. O fato é que teste estatístico revelou 10 Ao longo de 20 anos de vigência da Constituição de 1988, 62 emendas constitucionais foram aprovadas, sendo 6 durante o processo de Revisão de 1994 – as Emendas Constitucionais de Revisão – e outras 56 como Emendas Constitucionais comuns. Destas últimas, 35 foram aprovadas somente durante o governo Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002 (4,375 emendas por ano) tendo sido, na sua maior parte, propostas de iniciativa do Poder Executivo e recaindo majoritariamente sobre matérias que compunham uma agenda tipicamente governamental e não necessariamente constitucional. Durante o governo Lula, outras21 emendas foram aprovadas até dezembro de 2007 (aproximadamente 4 emendas por ano). 15 a existência de uma associação entre policy constitucionalizada e emendas modificadoras. Em outras palavras, as mudanças constitucionais do período FHC incidiram significativamente mais em dispositivos policy do que em dispositivos polity, o que corrobora a hipótese com a qual estamos trabalhando desde o início: a agenda política e governamental brasileira segue sendo uma agenda constituinte não porque sucessivos presidentes quiseram mutilar princípios fundamentais ou por qualquer outra razão exógena, mas porque a própria Carta os obrigou, em grande medida, a lidar com a Constituição para implementar simples políticas públicas. Mais do que isso, o grande legado da era FHC foi ter acrescentado 250 novos dispositivos policy ao ordenamento constitucional brasileiro.11 4. Novos passos: comparação e teste de hipótese sobre “judicialização de políticas públicas”. Duas questões que de imediato se levantam, após a consideração do caso brasileiro, é se a Carta de 1988 constitui uma regra ou uma exceção vis-a-vis outras Constituições e que impacto o perfil revelado por nossa análise tem sobre o Judiciário e seu grau de intervenção no território das políticas públicas. Nossos próximos passos de pesquisa estão voltados para a busca de respostas a estas duas questões. A primeira nos conduzirá a trabalhar com a metodologia de análise constitucional em perspectiva comparada. A segunda nos levará a testar a hipótese de que o perfil constitucional induz à “judicialização das politicas públicas.” No primeiro caso, se tomarmos como referência a análise comparativa de taxas de emendamento constitucional realizada por LUTZ (1995), logo nos salta aos olhos a atipicidade de nossa Lei Fundamental. O cálculo da taxa é bastante simples: divide-se o número de emendas constitucionais pelo número de anos de vigência de uma Constituição. Dentre 29 países selecionados para o ano de 1992, a menor taxa de emendamento constitucional foi a do Japão, de 0,00 – indicando que nenhuma emenda fora aprovada à Carta do pós-guerra, então com 47 anos. A mesma razão era encontrada para a Nigéria, porém com uma Carta que durou apenas 5 anos. Pouco acima disso, com os menores valores, figuravam Venezuela (0,04), Dinamarca (0,07), Austrália (0,09), França (0,12) e Estados Unidos (0,13). 11 Ao analisar o malogro da revisão constitucional de 1993/94, MELO (2002) afirma que ele se deu em virtude de uma conjunção de fatores. A despeito dos aspectos que favoreciam a mudança constitucional (votação por maioria simples em sessão unicameral do Congresso), “outras características, no entanto, tais como o monopólio, pelo Legislativo, da iniciativa propositiva, a inexistência de policy advocates para as emendas e a simultaneidade de votações reduziam o potencial de mudança por parte do governo. A análise sugere que esse potencial, que o arranjo institucional propiciava, foi anulado pelo impacto devastador de fatores contextuais, tais como os constrangimentos eleitorais, a polarização da agenda pública e a estrutura de incentivos com que se deparavam o Executivo e o Legislativo na conjuntura da CPI do orçamento. O calendário eleitoral, como variável isolada, se constituiu no fator decisivo.” (MELO, 2002, 76) A análise de MELO é em si reveladora de um aspecto fundamental do problema constitucional brasileiro: afinal, por que o sucesso ou o fracasso de um processo de revisão constitucional deveria estar condicionado pelos interesses do “governo”, pela presença ou ausência de “policy advocates”, pelo efeito negativo (“devastador”) de fatores “contextuais”, pela “conjuntura” política e pelo “calendário eleitoral”, se não pelo fato de que essa Constituição é ela mesma uma Carta de dispositivos tipicamente governamentais? Isto é, os fatores identificados por MELO para explicar o fracasso da revisão constitucional de 1993/94 são a própria confirmação de que a Constituição criou um modus operandi de produção normativa que vincula interesses conjunturais, de governo e de policy advocates, ao marco constitucional. Por essa razão nossa agenda política seguiu sendo uma agenda constituinte no pós- 1988. 16 Os maiores valores eram os de Áustria (7,00), Malásia (5,18), Suécia (4,72), México (2,94), Quênia (2,72), Luxemburgo (1,80) e Papua Nova-Guiné (1,75). Fazendo o cálculo da taxa de Lutz para o Brasil, chegamos a 3,17. Trata-se de um valor superior ao dobro da média dos 29 países por ele estudados (1,48) o que colocaria o país num hipotético 4º lugar, caso o inseríssimos na lista. Diante disto, a pergunta que poderíamos fazer é: que importância isto tem? Para tentar responder a esta questão, levemos em conta algumas suposições teóricas de Lutz (1995: 242): “Our first working assumption has to do with the expected change that is faced by any political system. ASSUMPTION 1: Every political system needs to be altered over time as a result of some combination of: (1) changes in the environment within which the political system operates (including economics, technology, and demographics); (2) changes in the value system distributed across the population; (3) unwanted or unexpected institutional effects; and (4) the cumulative effect of decisions made by the legislature, executive, and judiciary. A second assumption concerns the nature of a constitution. ASSUMPTION 2: In political systems that are constitutional, in which constitutions are taken seriously as limiting government and legitimating the decision-making process they describe, important alterations in the operation of the political system need to be reflected in the constitution If these two assumptions are used as premises in a deductive process, they imply a conclusion that stands as a further assumption. ASSUMPTION 3: All constitutions require regular, periodic alteration, whether through amendment, revision, or replacement.” Pode-se inferir daí que as constituições pouco emendadas possivelmente não respondem às mudanças do tempo ou, se o fazem, isto se dá pelo recurso a expedientes outros que não a mudança do texto constitucional propriamente dito. Lutz aponta que nos casos em que é muito difícil o emendamento constitucional pela legislatura, é provável que a alteração constitucional se dê mediante a interpretação dos tribunais; é bem esse o caso dos Estados Unidos, aliás. Entretanto, podemos nos questionar ainda se uma elevada taxa de mudanças constitucionais é desejável. Lutz aponta que uma taxa “razoável” de emendas constitucionais situar-se-ia próxima à média internacional. Considerando os casos elencados, ela oscilaria em torno de 1,5. O Brasil superaria por larga margem o que Lutz apontaria como “razoável”. Mas por quê razões seria nossa constituição tão emendada? Na forma de três proposições, Lutz (1995: 243-4) nos fornece sugestões a esse respeito: PROPOSITION 1: The longer a constitution, the higher its amendment rate, and the shorter a constitution, the lower its amendment rate. (…) PROPOSITION 2: The more difficult the amendment process, the lower the amendment rate, and the easier the amendment process, the higher the amendment rate. (…) 17 PROPOSITION 3: The more governmental functions dealt with in a constitution, the longer it will be, and the higher rate of amendment it will have. A constituição brasileira se adequa perfeitamente às três proposições de Lutz: ela é longa, apresenta um processo de emendamento relativamente fácil e lida com muito do que poderíamos chamar de “funções governamentais” – ou seja, policies. Quanto a seu tamanho, para além do anedótico, a Carta de 1988 é realmente grande emtermos comparados. Seu texto original possui 39.500 palavras (valor arredondado), o que o colocaria num hipotético 8º lugar na lista de 29 países analisados por Lutz. Entretanto, como esse autor não considera apenas os textos originais para seus cômputos, mas também os emendados, é provável que o texto constitucional brasileiro fosse comparativamente maior frente à versão originária de seus congêneres. Tendo isso em vista, se tomarmos como referência o texto constitucional brasileiro consolidado até a emenda 49/2006, aferimos que possui 65.000 palavras. Considerando as Cartas analisadas por Lutz, é o mesmo número da Constituição do Alabama, cuja taxa de emendamento é de 8,07 (a mais alta dentre as constituições estaduais americanas)12 e, dentre as constituições nacionais, é menor apenas que as Constituições da Índia (95.000 palavras, taxa de 1,49) e da Malásia (91.400, taxa de 5,18). Quanto à facilidade de emendamento, no que concerne aos procedimentos requeridos, o texto brasileiro figuraria como o terceiro de mais fácil modificação na lista de Lutz. Segundo um índice por ele elaborado (que não cabe aqui pormenorizar) o Brasil apresentaria um índice de dificuldade de emendamento de 1,5 – superior apenas aos apresentados por Áustria (0,80) e Suécia (1,00). Pouco acima do Brasil figurariam Malásia (1,60), o Quênia (1,75) e Luxemburgo (1,80); os textos mais difíceis de emendar seriam da Iugoslávia (5,60), EUA (5,10) e Austrália (4,70). O índice médio é de 3,26. Confirmando as proposições, Áustria, Suécia e Malásia apresentam elevadas taxas de emendamento constitucional (7,00; 4,72 e 5,18, respectivamente), o Quênia teria um valor pouco menor, mas ainda acima da média, de 2,72, ao passo que os três últimos mencionados acima apresentam taxas muito baixas de emendamento constitucional, de 0,75; 0,13 e 0,09, respectivamente13. Finalmente, quanto à terceira proposição de Lutz, a quantidade de “funções governamentais” com que lida uma constituição, o autor não nos oferece nenhuma análise empírica a respeito, embora aponte o problema. E é justamente essa lacuna que este projeto pretende preencher. Em primeiro lugar, falta na discussão do autor uma definição mais precisa do que se entende por “funções governamentais”. As únicas referências feitas por LUTZ (1995: 246) ao assunto se dão num único parágrafo de seu artigo, quando ele comenta que (1) as constituições estaduais norte-americanas teriam crescido premidas pelo cada vez maior número de funções com que os estados lidam, com “o 12 A segunda mais extensa carta estadual norte-americana é a de Oklahoma, com 58.200 palavras, seguida das cartas da Lousiana, com 47.300, e a do Missouri, com 39.300. Suas taxas de emendamento são, respectivamente, de 1,58; 1,69 e 1,61; todas acima da média estadual norte-americana, de 1,23 (Lutz, 1995: 248-9). 13 Ressalve-se que alguns dos casos elencados por Lutz, como a Iugoslávia, são de países não-democráticos e, portanto, parece-nos que sua análise fica prejudicada. 18 conseqüente crescimento da maquinaria governamental”. Ao lado disso, (2) os estados teriam sido cada vez mais obrigados a responder a “problemas de grande magnitude associados à rápida urbanização, desenvolvimento tecnológico, crescimento e mobilidade populacional, mudança econômica e desenvolvimento, e o tratamento justo de grupos minoritários”, e teriam aumentado também (3) “a pressão de interesses específicos por status constitucional; e (4) a desconfiança das legislaturas estaduais, resultante de abusos passados, a qual resultou em detalhadas restrições sobre a atividade governamental”. Ao observar esses pontos, Lutz conclui (1995: 246-7): “All of these factors tribute to the length of state constitutions, and it is argued that not only do these pressures lead to many amendments, and thus greater length, but that greater length itself leads to the accelerated need for amendment simply by providing so many targets for change. Thus, the length becomes a surrogate measure for all of these other pressures to amend, and is a key causal variable.” Portanto, quanto mais uma constituição tem de lidar com políticas públicas, maior ela tende a ser. Quanto maior ela é, mais tende a ser emendada. E quanto mais emendada for, maior ela fica, tendendo a ser ainda mais emendada. Esta seria uma descrição acurada do processo pelo qual passa a Constituição brasileira desde 1988. A questão que Lutz não respondeu e sobre a qual nós aqui buscamos fornecer um modelo explicativo é: como definir o que, no interior de uma Carta constitucional, são políticas públicas? E como, com base nessa definição, verificar se de fato uma constituição com muitas políticas públicas torna-se maior e mais emendada? Na primeira etapa desta nossa pesquisa procuramos responder a esse problema numa análise sobre a Carta brasileira de 1988. Todavia, para poder compreendê-lo melhor, seja para a formulação de uma teoria política da Constituição e do emendamento constitucional, seja para uma compreensão mais acurada dos problemas particulares suscitados pelo ordenamento constitucional brasileiro, torna-se necessária a comparação. É preciso analisar textos constitucionais de outros países, distinguindo em seu interior a presença de policy ou polity, para verificar em que medida o diferente balanço entre esses dois elementos normativos no interior de uma Carta afeta, primeiro, a forma como um país é governado e, segundo, a maneira como os atores políticos lidam com a Constituição. Caso nos atenhamos ao estudo exclusivo da Constituição brasileira de 1988, corremos o risco de reificar esse texto sem conseguir formular explicações universalizáveis e, conseqüentemente, válidas. Essa é a razão de nos lançarmos agora à uma perspectiva comparada. O segundo passo da pesquisa está direcionado à análise do impacto do perfil da constituição sobre o processo decisório, especialmente o de tipo judicial. Nosso argumento principal é que a Carta de 1988, por ter consagrado formalmente como norma constitucional diversos dispositivos de policy, apresenta fortes implicações para o modus operandi do sistema político brasileiro. Esse perfil conduz a três conseqüências importantes do ponto de vista do processo decisório e do funcionamento do poderes. Em primeiro lugar, a constitucionalização de políticas públicas faz com que os sucessivos 19 governantes se vejam diante da necessidade de modificar o ordenamento constitucional para poder implementar parte de suas plataformas de governo. Em segundo lugar, construir amplas maiorias legislativas passa a ser condição básica para superar o engessamento prévio a que foi submetida a agenda governamental pelo constituinte, algo especialmente difícil no contexto institucional de um estado federativo e de um regime presidencialista multipartidário como o brasileiro. Por fim, mas não menos importante, esse tipo especial de Constituição tem impacto significativo sobre o funcionamento do sistema de justiça, na medida em que o Judiciário e especialmente seu órgão de cúpula – o Supremo Tribunal Federal (STF) – passam a ser mais acionados para controlar a constitucionalidade das leis e demais atos normativos, nem sempre relativos a princípios constitucionais fundamentais, mas freqüentemente relativos a políticas públicas. Nesta etapa da pesquisa, pretendemos desdobrar a metodologia de análise constitucional para o exame das Ações Diretas de Inconstitucionalidade julgadas pelo STF (são hoje mais de 4 mil) e verificar a hipótese da judicialização das políticas públicas por meio do processo de revisão constitucional que ocorre com asADIns. Nossa hipótese é que a combinação de uma Constituição fortemente dirigente – que encerra um grande número de políticas públicas – e um sistema de controle direto da constitucionalidade das leis de amplo acesso a atores sociais e políticos (Arantes, 2005) faz do caso brasileiro um exemplo não só de constituição muito emendada (a partir de uma agenda governamental que bem poderia ser considerada ordinária, à luz de critérios mais substantivos) como de intensa participação do judiciário na política, na medida em que a constituição está carreada de políticas públicas que por essa via acabam desaguando igualmente nos tribunais. No seu conhecido estudo comparativo envolvendo 36 democracias contemporâneas, Lijphart (2003) demonstrou a existência de relação empírica entre rigidez constitucional e força da revisão judicial, o que poderia ser explicado por duas razões: “uma delas é que tanto a rigidez quanto a revisão judicial são recursos anti-majoritários, e que as constituições completamente flexíveis, com a ausência de revisão judicial, permitem a regra irrestrita da maioria. A segunda razão é que elas também se ligam logicamente, no sentido em que a revisão judicial só pode operar de forma efetiva se for apoiada pela rigidez constitucional, e vice-versa.” Lijphart completa o argumento afirmando que numa combinação de forte controle constitucional e constituição flexível, a maioria legislativa tenderá a reagir a declarações de inconstitucionalidade com emendas à Constituição. E, inversamente, sob constituições rígidas, mas não protegidas por mecanismos de controle constitucional, a maioria parlamentar poderá aprovar leis de caráter constitucionalmente duvidoso. Portanto, com a constitucionalização de direitos cria-se de imediato um ponto de veto, embora não se gere automaticamente um ator de veto (veto player), pois a vedação a que determinadas decisões sejam implementadas não decorre diretamente da ação de qualquer ator político, mas sim da interdição constitucional formal a que determinadas coisas sejam feitas. Contudo, ainda que não haja a intervenção direta de outros atores políticos pelo fato da constituição prever certas vedações, o fato é 20 que para assegurar que os direitos constitucionais não serão solapados por decisões das autoridades governamentais é necessária a intervenção de um ator em particular: o judiciário. Sem que haja um controle de constitucionalidade capaz de assegurar que perderão efeito (ou serão anuladas) normas legais ou atos administrativos em contradição com o que determina a constituição, pouca valia teria a prescrição constitucional de direitos – ou de qualquer outra coisa. Tendo isso em vista, o veto point da constitucionalização dos direitos ganha efetividade apenas quando o veto player representado pelos tribunais entra em ação, exercendo o controle de constitucionalidade. E, vale lembrar, o judiciário somente passa a agir depois que é provocado por alguém a deixar a condição de inércia que lhe é própria. Para Taylor, inclusive, mais correto seria falar dos tribunais da seguinte forma: “by providing veto points to select political actors, it gives them greater voice and leverage over policy than might otherwise be the case, in some cases enabling them to act as veto players even when they might otherwise be unable to do so elsewhere in the political system.” (Taylor, 2004, 154) 5. Objetivos específicos e resultados esperados (triênio 2008/2009). Nos próximos três anos, minha intenção é desenvolver duas metas de investigação empírica mais específicas, à luz do quadro teórico exposto acima: 1. Análise do impacto do perfil constitucional sobre o processo de revisão judicial da constitucionalidade das leis, pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de testar a hipótese da “judicialização das políticas públicas; e 2. Análise comparada de processos de reformas constitucionais recentes em países selecionados da América do Sul, e seus impactos sobre o funcionamento da democracia . A análise específica da dimensão judicial do problema constitucional brasileiro nos permitirá elaborar uma contribuição que reputamos original ao campo de estudos que se dedica à análise de processos decisórios que envolvem mudanças constitucionais. Nossa idéia é construir um modelo explicativo baseado em três variáveis, algo que a literatura ainda não logrou fazer: (1) a taxa de policies de uma Constituição; (2) o grau de dificuldade de emendamento constitucional; e (3) a existência ou não do controle constitucional das leis – a cargo do Judiciário ou de tribunais constitucionais – e o grau em que é praticado pelos órgãos responsáveis. A consideração dessas três variáveis na análise dos diferentes casos nacionais nos permitirá compreender, de forma comparativa, como em cada um dos países estudados a constituição afeta a agenda governamental de políticas públicas e ao mesmo tempo é afetada por esta. A análise comparada de processos de reformas constitucionais recentes em países selecionados da América do Sul nos permitirá analisar seus impactos sobre o funcionamento da democracia nesses 21 países, em conexão com as questões de “estatidade” (stateness) que têm sido debatidas pela literatura embalada pelo conceito de Estados Falidos (Fukuyama, 2005). Alguns países como Venezuela, Bolívia e Equador têm passado por importantes processos de mudança constitucional, envolvendo diversas dimensões da estatidade, mas parecem longe ainda de estabelecer um marco jurídico consensual nesse plano normativo fundamental. Interessa-nos analisar estes processos, a partir da metodologia de análise constitucional que desenvolvemos, e suas consequências para a maior ou menor institucionalização do regime democrático nesses países. 6. Metodologia e Plano de Atividades. O presente projeto poderá contar com a colaboração de outros pesquisadores, pois há espaço e eu diria mesmo necessidade disso. Algumas atividades aqui previstas supõem a formação de uma equipe mais ampla de investigadores. A pesquisa será realizada com base na seguinte metodologia e plano de trabalho: 6.1. Análise da bibliografia. Tendo em vista os objetivos principais do projeto, os seguintes tópicos deverão orientar a pesquisa bibliográfica: 6.1.1. Relações entre constitucionalismo e democracia (objetivos gerais) 6.1.2. Controle constitucional das leis e “judicialização da política” (objetivo específico 1) 6.1.3. Processo decisório e legislativo (objetivo específico 1) 6.1.4. Transições democráticas recentes, processos de elaboração constitucional e de construção institucional (objetivo específico 2) 6.1.5. Regimes democráticos e questões de stateness em perspectiva comparada (objetivo específico 2) 6.2. Consolidação da Metodologia de Análise Constitucional. A Metodologia de Análise Constitucional (MAC) tem nos permitido examinar o conteúdo de uma constituição e verificar em que medida seus dispositivos correspondem a princípios fundamentais (polity) ou a políticas públicas (policy). Informados pela teoria democrática e por elementos fornecidos pelo constitucionalismo, formulamos critérios objetivos de classificação de dispositivos constitucionais, e por meio deles temos avaliado qualitativa e quantitativamente os textos constitucionais selecionados. Nosso desafio teórico e metodológico nessa próxima etapa do projeto será desenvolver modelos que nos permitam analisar comparativamente diferentes modos de funcionamento de democracias constitucionais, especialmente no que diz respeito 1) a processos de mudança constitucional e 2) de “judicialização de políticas públicas” como decorrência da taxa depolicies existentes nas constituições e dos sistemas mais ou menos acessíveis de controle de constitucionalidade das leis. 6.3. Pesquisa empírica e sistematização de dados. 6.3.1. Levantamento e sistematização em banco de dados das Ações Diretas de Inconstitucionalidade no período 1988-2007 (objetivo específico 1) 22 6.3.2. Seleção de países que passaram recentemente por processos de (re)construção institucional e elaboraram novos textos constitucionais, com vistas à análise comparativa (objetivo específico 2) 6.4. Reuniões de trabalho e seminários de discussão. Nossa intenção é formar uma equipe mais ampla de pesquisadores - com estudantes de graduação e de pós-graduação, assim como de professores doutores – e caso tenhamos sucesso nesse sentido, haverá pelo menos quatro tipos de reuniões e seminários, envolvendo os participantes: 6.4.1. Reuniões para organização, avaliação e ajustes do trabalho de pesquisa. 6.4.2. Reuniões para sistematização e análise do material empírico. 6.4.3. Seminários para debater problemas suscitados pela leitura da bibliografia. 6.4.4. Seminário final, com a participação de convidados especialistas, para discussão dos resultados da pesquisa. 6.5. Produção de artigos sobre os principais resultados desta etapa da pesquisa, a serem encaminhados para publicação: 6.5.1. Constitucionalização e judicialização de políticas públicas. 6.5.2. Reformas constitucionais e institucionalização da democracia em perspectiva comparada. 7. Cronograma geral da pesquisa Considerando o período de 36 meses, é possível estabelecer o seguinte cronograma de atividades (estão grafados em tom mais escuro os bimestres nos quais as atividades serão desenvolvidas com maior intensidade, e em tons mais claros os bimestres em que serão empreendidas com menor intensidade). Mês/ Atividade 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 Leitura e análise da bibliografia Pesquisa Empírica Consolidação da MAC Redação de Artigos Reuniões de Trabalho Seminários Internos da Equipe Seminário Final 23 8. Bibliografia ACKERMAN, B. Neo-federalism?. In ELSTER, J. & SLAGSTAD, R. (eds.). Constitutionalism and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. ______________. We the people: foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1991 ARANTES, Rogério Bastos & KERCHE, Fábio J. Judiciário e democracia no Brasil. Novos Estudos, 54, São Paulo: CEBRAP, Julho, 1999. ARANTES, Rogério Bastos. Judiciário e política no Brasil. São Paulo, Sumaré, Educ, Fapesp, 1997. ARANTES, Rogério Bastos. “Constitutionalism, the Expansion of Justice and the Judicialization of Politics in Brazil”. In: Rachel Sieder; Line Schjolden; Alan Angell. (Org.). The Judicialization of Politics in Latin America. 1 ed. New York: Palgrave Macmillan, 2005, v. , p. 231-262 ARANTES, Rogério B. & COUTO, Cláudio G. “A Constituição sem fim” in Sérgio PRAÇA & Simone DINIZ, S. (orgs) Vinte anos de Constituição. São Paulo: Paulus, 2008. BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília, UnB, 1981. BOBBIO, Norberto. “Estado, poder e governo”. 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