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A Revolta do Precariado no Brasil(Guy Standing) - Artigo

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A revolta do precariado no Brasil
Por Giovanni Alves.
A onda massiva de protestos a que assistimos nas ruas das cidades brasileiras é o que poderíamos considerar como sendo a revolta do precariado, camada social da classe do proletariado constituída por jovens altamente escolarizados desempregados ou inseridos em relações de trabalho e vida precárias (a pesquisa DataFolha de 21 de junho de 2013, constatou que a maioria dos manifestantes – 63% – têm entre 21 e 35 anos; e 78% têm ensino superior). Deste modo, o conceito de precariado possui um nítido recorte geracional e uma candente inserção de classe.
É claro que o movimento social que cresceu semana passada no Brasil não se reduz tão-somente à camada social do precariado, embora ele constitua efetivamente a espinha dorsal da onda de protestos sociais que tomaram as ruas. Na medida em que foi adquirindo amplitude e exposição midiática, inseriram-se outras camadas sociais da classe do proletariado, principalmente as camadas médias – ou vulgo “classe média” – inquietas com a precarização existencial e incisivamente manipuladas pelos mass media.
Na verdade, num segundo momento da onda de protestos, deslumbrados pela projeção midiática, e interpelados pela mídia liberal-conservadora, frações da “classe média” brasileira se inseriram nas manifestações de massa. O partido dos mass media (rede de TVs e grandes jornais), verdadeiros intelectuais orgânicos da burguesia financeira hegemônica, se articularam e passaram a pautar o protesto de rua com o apoio entusiasmado da “classe média” conservadora. Utilizando seu poder ideológico, os mass-media esterilizaram o movimento social do precariado, obnubilando seu caráter de classe radical e seu apoio nas representações dos partidos políticos de esquerda. A revolta do precariado tornou-se mero movimento patriótico de ocupação das ruas com uma pauta reivindicatória difusa baseada no combate à corrupção possuindo, deste modo, nítido caráter de oposição de direita ao governo Dilma.
É importante salientar que o precariado como camada social do proletariado é, em si e para si, profundamente contraditório, tendo em vista que ele incorpora as contradições candentes da ordem do capital em sua etapa de crise estrutural. Na medida em que o precariado é constituído por jovens altamente escolarizados, ele tende, por um lado, a incorporar a contradição radical entre, por um lado, os sonhos de consumo e anseios de ascensão social, e por outro, os carecimentos radicais inscritos na busca por uma vida plena de sentido – carecimentos radicais incapazes de serem realizados no seio da ordem burguesa. Enfim, no seio do precariado reside a contradição radical da forma-mercadoria entre valor de troca e valor de uso.
O precariado como verdadeira “contradição viva” incorpora, com sensibilidade social, a precarização existencial inscrita na ordem burguesa hipertardia. Não se trata apenas da precarização salarial que atinge a larga parcela de jovens inseridos em relações de trabalho precários, mas a precarização existencial ou precarização do homem-que-trabalha, que deriva das condições de existência alienada da vida urbana precária. Na verdade, a precarização do trabalho está efetivamente contida, por exemplo, na precarização do trajeto entre residência e local de trabalho, na circulação e na mobilidade urbana precária (o tema do transporte público). A precarização do trabalho está presente também na precarização do tempo de vida assolado pelos requisitos do trabalho estranhado e no tempo livre manipulado pelo consumo e o lazer superficial e alienante. A precarização do trabalho deriva não apenas da organização do trabalho flexível, mas também do modo de vida just in time, promovendo uma nova dimensão de desefetivação humano-genérica: a precarização existencial ou a precarização do homem-que-trabalha, conceito discutido no meu último livro Dimensões da precarização do trabalho.
Enfim, o precariado, como camada social média do proletariado está exposto, em si e para si, com maior intensidade, à manipulação da ordem burguesa e por isso vive com maior intensidade a precarização do trabalho, tanto no sentido de precarização salarial, quanto no sentido de precarização existencial. O precariado tende a estar convulsionado, deste modo, pelo estranhamento posto como carência de futuridade e de realização pessoal.
É importante salientar que largas frações da camada social do precariado incorporam, por um lado, a ideologia de “classe média”, tendo em vista sua posição na estratificação social. Como pertencentes às camadas médias, eles estão expostos à manipulação intensa e extensa dos mass media, compartilhando, deste modo, valores sociais da velha “classe média”. O que significa que tendem a absorver a “aberração cognitiva da classe média” (como diria Marilena Chaui), sendo em si politicamente ignorantes. Entretanto, apesar disso, carregam no peito contradições candentes oriundas de sua posição objetiva de classe. Isto é, embora cultivem aspirações fetichistas de consumo e adotem o individualismo competitivo próprio do ethos burguês, estão profundamente imersos na condição de proletariedade. Por isso, o sentimento moral imediato de parcelas amplas do precariado é a indignação.
Por um lado, a parcela do precariado despolitizado e indignado torna-se refém das ideologias reacionárias de direita ou extrema direita. Por outro lado, a parcela do precariado mais politizada e inquieta com a condição de proletariedade tende a assumir, em sua ampla maioria, a ideologia do proletariado radicalizado que encontra no esquerdismo seu leito natural. Estes são os polos antípodas da alma do precariado, manipulados, em seus limites antitéticos, pelas forças políticas da esquerda e extrema esquerda (por exemplo, comunistas revolucionários, anarquistas ou anarcoliberais) e, na outra ponta do espectro político, pelas forças políticas da direita liberal, reacionária e neofascista.
É isto que explica os dois tempos da revolta do precariado no Brasil: num primeiro momento, o movimento social foi conduzido pelas forças de esquerda radicalizada e, num segundo momento, interpelado pela mídia liberal-conservadora, o movimento social foi hegemonizado, em suas demandas políticas, pelas forças da ideologia da “classe média” liberal de cariz neofascista. O caráter dual – intrinsecamente contraditório – da alma do precariado e do seu movimento social tende a ser explorado e manipulado pelo poder da ideologia a serviço dos interesses da ordem burguesa hegemônica.
O que une o precariado é a sua imersão em carecimentos sociais e carecimentos radicais próprios da condição de proletariedade. Um detalhe: podemos conceber também um lumpemprecariado, isto é, uma franja de jovens trabalhadores altamente escolarizados imbuídos do espírito de irracionalismo social que caracteriza o sociometabolismo da ordem burguesa apodrecida. O lumpenprecariado, como expressão suprema da barbárie social, tende a fazer o culto da violência como fim em si mesmo, aliando-se objetivamente, nesse caso, às tenebrosas forças políticas neofascistas que, nas condições de governos democráticos, visam desestabilizá-los.
Deste modo, percebe-se que a “classe social” do proletariado é uma classe social complexa demarcada por camadas sociais e frações de classe, cada uma com uma cultura e psicologia social própria. No caso da camada social do precariado, o que lhe caracteriza radicalmente é o recorte geracional e a inserção num determinado status educacional, com a carga ideológica que lhe é própria. De repente, tornou-se visível nas ruas do País, a nova expressão do proletariado brasileiro que reside principalmente nas grandes cidades do país. Em sua larga maioria, o precariado é composto por estudantes. Podemos considerar o estudante como um trabalhador assalariado em formação.
A condição social de estudante é hoje uma condição precária, tendo em vista a candente falta de expectativa de futuro profissional, aliada à organização das escolas (inclusas universidades públicas e privadas),que se tornaram verdadeiras máquinas de moer gente – no sentido em que elas incorporaram, para alunos e professores, a lógica do espírito do toyotismo: intensificação do trabalho escolar, com pressão e assédio moral visando cumprimento de metas tendo em vista a obtenção do diploma universitário. É a lógica da obtenção de resultados e desempenho produtivista. E pior, no caso dos estudantes, sem perspectivas palpáveis de realização profissional futura.
O que significa que a alta escolarização não garante realização profissional. Pelo contrário, a escolarização se confunde com a própria desqualificação social. O titulado escolar tornou-se apenas uma peça substituível na engrenagem do capital. Na medida em que, cada vez mais, jovens de alta escolarização passam a compor a superpopulação relativa a serviço da produção do capital, aumenta a concorrência no seio da classe trabalhadora, com a maioria dos jovens titulados inserindo-se em relações de trabalho precário, não conseguindo realizar, deste modo, aquilo que lhe prometeram ao dedicar-se, de corpo e alma, aos estudos escolares: o sucesso profissional com um bom emprego capaz de lhes garantir carreira, consumo e família.
Em seu livro A construção da sociedade do trabalho no Brasil, o sociólogo Adalberto Cardoso descobre, embora sem o saber, o celeiro de produção do precariado no Brasil. Esta longa citação é interessante. Diz ele:
“Em 30 anos (1976-2006), ocorreu uma deterioração das chances de inserção ocupacional dos mais qualificados. Isto é, se até 1976 a maior escolaridade abria as portas das melhores ocupações urbanas, em 2006 esse já não parecia o caso. É a isso que denomino inflexão do padrão desenvolvimentista de inserção ocupacional, resultante da operação de três vetores principais: o adiamento da entrada dos jovens no mercado de trabalho; o desemprego no início das trajetórias de vida; e o consequente aumento da competição pelas posições de mercado. Ou seja, a escola adquiriu cada vez maior centralidade nas chances de inserção dos jovens, mas essas chances tornaram-se muito mais restritas e de acesso mais lento em comparação com os jovens de gerações anteriores. ”
Portanto, a inflexão do padrão desenvolvimentista de inserção ocupacional que persiste ainda hoje no Brasil, mesmo com dez anos de neodesenvolvimentismo, criou e ampliou a camada social do precariado que convulsiona as ruas hoje.
Na verdade, a escolarização na ordem burguesa é um lastro de ilusões e despercepção da condição de classe. O cultivo de sonhos, expectativas e valores de mercado pela juventude proletária altamente escolarizada persegue o precariado, confundindo sua condição de classe e disseminando nele a cultura do individualismo próprio do ethos da sociedade das mercadorias. Ao mesmo tempo, a profunda manipulação da ordem do capital os inquieta radicalmente, levando-os às ruas para se expressarem como multidão. A catarse coletiva da multidão do precariado, em sua dimensão contingente, expõe sua insatisfação com as necessidades sociais não satisfeitas pelos anos de neodesenvolvimetismo; e mais do que isso, expressa tendencialmente os carecimentos radicais inscritos no próprio ser do precariado. Enfim, esta é a contradição suprema deste ser social que se manifesta e se organiza por meio das redes sociais (Facebook e Twitter, predominantemente) e que sai às ruas para dizer: “nós somos a contradição viva carente de direção política radical no sentido de assumir em si e para si a consciência de classe capaz de construir a democratização radical da sociedade”.
Temos salientado que o precariado representa em si e para si a carência de futuridade intrínseca à ordem do capital. Por isso são suscetíveis a absorverem em suas atitudes sociais, formas de irracionalidade que caracterizam a ordem decadente do capital. A carência de futuridade deriva daquela “presentificação crônica” constatada por Eric Hobsbawn há alguns anos e que caracteriza o sociometabolismo da barbárie social. Na ótica liberal, não existe nada para além do capitalismo, a não ser o próprio capital em sua forma arcaica (as experiências pós-capitalistas do século XX). No princípio, era o homem burguês – eis o que diz o livro do “Genesis” do capital. Esta é a perspectiva epistemológica e moral da economia política tão criticada por Marx. A presentificação histórica do capitalismo tal como operava a economia política é a versão clássica (e elegante) da presentificação crônica que entorpece o precariado sob capitalismo manipulatório.
Como observou o filósofo Henri Bérgson no começo do século XX, “nós praticamente só percebemos o passado”, com o “presente puro sendo o avanço invisível do passado consumindo o futuro”. O que significa que o “presente puro” não existe; ele é apenas “o passado consumindo o futuro”. O que Bergson descreve, sem o saber, é a ontologia da temporalidade do capital, onde o passado, com sua inércia amortecedora, domina o presente, eliminando as chances de uma ordem futura qualitativamente diferente.
Na verdade, para István Mészáros o capital caracteriza-se por uma “temporalidade decapitada”, isto é, uma temporalidade restauradora, “a paralisante temporalidade restauradora do capital”, tendente a construir um “futuro” como uma espécie de versão do status quo ante. Deste modo, a temporalidade do capital que hoje se afirma não é uma temporalidade aberta, mas sim uma temporalidade fechada que não liga o presente a um futuro de verdade que já se abre à frente.
No caso dos “precários” que compõem a camada social do precariado, eles têm a percepção clara da temporalidade fechada do capital, percepção estranhada de perda do futuro que os projeta, no plano da contingência, na “presentificação crônica” do metabolismo social do capital. Ideologicamente, na sua consciência contingente, tendem a incorporar a presentificação histórica do capitalismo posta pela consciência liberal (o que trava a consciência utópica). Na verdade, a consciência liberal hegemônica no seio de parcelas do precariado, só traduz, no plano ideológico, o modo de ser da “paralisante temporalidade restauradora do capital”.
Nas condições do poder da ideologia e da constituição da “multidão” do precariado, coloca-se hoje, mais do que nunca, a necessidade radical da luta ideológica que, num mundo social do trabalho precário, torna-se mais candente tendo em vista a exacerbação da manipulação como modo de afirmação do capital como sociometabolismo estranhado.
Não se trata apenas de um problema social (vínculos laborais precários, baixos salários, falta de direitos laborais), mas sim, trata-se de um problema existencial que corrói a individualidade pessoal. A precariedade salarial e a precariedade existencial interditam a vida pessoal do sujeito de classe. É a alienação/estranhamento na sua dimensão radical.
No plano da consciência de classe contingente, expõe-se a carência de futuridade. Torna-se cada vez mais claro na percepção da consciência de classe contingente que o capitalismo global hipotecou o futuro de jovens-adultos que cumpriram tudo aquilo que a ordem burguesa receitou para obterem o sucesso, mas não encontraram um “lugar ao sol”, com a incapacidade do próprio sistema incluí-los como força de trabalho produtiva.
No livro Para além do capital, István Meszáros, um dos críticos radicais da perspectiva ideologia social-democrata, observou o seguinte: “A inalterável temporalidade histórica do capital é a posteriori e retrospectiva. Não pode haver futuro num sentido significativo da expressão, pois o único futuro admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem estabelecida bem antes de ser levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito’. ” Portanto, sob as condições da crise estrutural do capital, explicita-se com vigor um dos traços candentes da ordem burguesa e uma particularidade radical da nossa época histórica que se distingue de outras épocas do capitalismo histórico: a interdição persistente da futuridade.
Ora, quando o sistema do capital não consegue “incluir” em seusparâmetros sócio reprodutivos trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados de acordo com as prescrições e proscrições da ordem burguesa, há algo de podre no reino da Dinamarca. O espectro do precariado, como o espectro de Hamlet, é expressão do apodrecimento da ordem burguesa.
De fato, no Brasil de hoje, no plano imediato, a voz das ruas exige avanços sociais. É o caso, por exemplo, da satisfação de necessidades sociais vinculadas aos direitos de educação, saúde e transporte público de qualidade. Exige-se do Estado burguês mais investimentos públicos capazes de atenderem às necessidades sociais da classe trabalhadora. Entretanto, por outro lado, a voz das ruas expõe carecimentos radicais ativados pela precarização existencial. Carecimentos radicais que dizem respeito a uma vida plena de sentido, que são, em si e para si, incapazes de serem absorvidos pela ordem burguesa, pois dizem respeito a demandas existenciais para além do capital. Esta é a candente contradição capitalista do século XXI.
Ora, dez anos de governo Lula e Dilma no Brasil foram 10 anos de deformação espiritual da classe trabalhadora, manipulada pelas igrejas neopentecostais e mídia liberal-conservadora, apesar das benesses da economia política do neodesenvolvimentismo. A despreocupação dos governos Lula e Dilma com o controle social dos meios de comunicação e o desinteresse do PT com a formação política na perspectiva da consciência de classe, contribuíram para a imbecilização das massas proletárias no Brasil.
Na verdade, o “choque de capitalismo” dos anos dourados do neodesenvolvimentismo adoeceu – física e mentalmente – o mundo do trabalho. A confusão mental e ideológica assumiu as raias do absurdo, atingindo inclusive largas parcelas da intelectualidade. A geração Y (“geração neoliberal”), que nasceu inserida no mundo das redes virtuais, desligadas do passado público de luta de classes, alienadas do significado da política revolucionária – muitos confundem revolução com vandalismo – impregnaram-se, em si e para si, do fetichismo da mercadoria que provocou tremenda confusão ideológica por conta da manipulação.
Ao mesmo tempo, deve-se salientar a miséria da intelectualidade de esquerda reformista ou os devaneios da intelectualidade de extrema-esquerda, incapazes de operarem práticas culturais e políticas de formação da classe no cenário de barbárie social. Pode-se dizer que existe hoje uma crise do intelectual orgânico de classe no Brasil. Partidos de esquerda e extrema-esquerda e sindicatos de trabalhadores têm profunda dificuldade em absorver as demandas radicais e as formas de organização contingente do precariado.
Finalmente, é importante salientar que a revolta do precariado expõe os limites do neodesenvolvimentismo e do lulismo (o que não significa que o neodesenvolvimentismo e o lulismo, em si e para si, esgotaram-se como projeto burguês). A revolta do precariado expõe os limites do neodesenvolvimentismo primeiro pelo fato do neodesenvolvimentismo ser um projeto de desenvolvimento capitalista que tende a agudizar irremediavelmente os carecimentos radicais do precariado. O modo de vida just in time nas cidades metropolitanas do Brasil enlouquecem o mundo do trabalho, esvaziando as individualidades pessoais de classe expostas à precarização existencial.
Depois, a revolta do precariado expôs os limites irremediáveis do projeto lulista de poder baseado nas demandas sociais do subproletariado como classe-apoio. Nesse caso, a tarefa política do lulismo, caso queira sustentar-se como projeto civilizatório nos limites da ordem burguesa, é incorporar as demandas sociais do precariado – num primeiro momento realizando suas necessidades sociais, o que significa construir um projeto de neodesenvolvimentismo que amplie investimentos públicos na educação, saúde, transporte público e serviços públicos de qualidade (o que exige discutir uma pauta de reformas de base que devem transtornar o bloco de poder); e, num segundo momento, um projeto de desenvolvimento social para o Brasil que leve em conta os carecimentos radicais das individualidades de classe, o que, contraditoriamente exigiria negar o neodesenvolvimentismo como projeto burguês e resgatar o projeto socialista como projeto de democratização radical da sociedade visando ir além do capital – o que exigiria uma nova frente política ampla e de massas capaz de hegemonia social e cultural.
Os limites do neodesenvolvimentismo
Por Giovanni Alves.
Para além das manifestações de junho de 2013, o que temos hoje (e que irá prosseguir) é a explicitação dos limites do padrão de desenvolvimento capitalista implantado no país desde 2002 sob a direção da frente política do neodesenvolvimentismo sob inspiração do lulismo. As manifestações sociais expõem uma demanda reprimida de necessidades sociais e carecimentos radicais candentes do proletariado urbano brasileiro – incluso camadas médias assalariadas. Na verdade, o sistema democrático-político da ordem burguesa no Brasil (e nos países capitalistas mais desenvolvidos) está paralisado há tempos em sua capacidade de dar respostas efetivas às demandas coletivas por reformas sociais.
O tema dos transportes públicos foi o gatilho em junho deste ano dos protestos massivos de rua; e o tema da educação pública municipal foi o disparador das manifestações no Rio de Janeiro. Entretanto, nos “dez anos que abalaram o Brasil” – título do livro de João Sicsú – não faltam insatisfações sociais reprimidas quando discutimos transporte público, educação, saúde e qualidade de vida nas metrópoles brasileiras. Eis os limites do neodesenvolvimentismo.
Indiscutivelmente, o Brasil melhorou seus indicadores sociais, principalmente aqueles que dizem respeito às camadas pobres do proletariado brasileiro atendidas pelos programas sociais do governo Lula e Dilma. Como mostram indicadores medidos do Pnad/IBGE, de 2002 a 2013 diminuiu a desigualdade social com a redução da pobreza extrema, aumentou o consumo dos pobres com o crescimento da posse de bens duráveis e o acesso a serviços públicos essenciais. Nesse período, ocorreu a redução do subproletariado pobre e o surgimento de uma “nova classe trabalhadora”, isto é, trabalhadores assalariados de baixa renda com carteira assinada, identificado erroneamente por alguns como “nova classe média” (Marcelo Nery) ou “batalhadores brasileiros” (Jessé de Souza). Enfim, ocorreram mudanças de renda e consumo nada desprezíveis para as camadas pobres do proletariado que alteraram a estratificação social, mas não a estrutura de classes no país.
Entretanto, como temos salientado nos artigos anteriores, as camadas médias do proletariado urbano, principalmente o precariado (a camada social de jovens trabalhadores urbanos e estudantes altamente escolarizados, mas inseridos em relações de trabalho e vida precários), sentem-se órfãs do neodesenvolvimentismo. No caso do precariado, encontram-se imersos em frustrações de expectativas profissionais e carecimentos radicais insatisfeitos pela ordem burguesa; e no caso dos trabalhadores assalariados médios, apesar do aumento da sua renda nos últimos dez anos de neodesenvolvimentismo, aumentaram também, ao mesmo tempo, a carga tributária direta nos seus rendimentos e os gastos com serviços privados de péssima qualidade tendo em vista o sucateamento dos serviços públicos (é o caso, por exemplo, da educação e saúde pública nas grandes cidades).
Apesar da redução do desemprego e aumento da formalização no mercado de trabalho, preserva-se no Brasil neodesenvolvimentista, profundos traços de precariedade salarial historicamente estrutural no país, como, por exemplo, as altas taxas de rotatividade e crescimento das terceirizações (por exemplo, em 2000, o Brasil tinha cerca de 3 milhões de trabalhadores terceirizados; em 2013, tem cerca de 15 milhões e, segundo estimativas, em 2020, terá cerca de 20 milhões).
Ao mesmo tempo, nos últimos dez anos, pelo menos, as camadas médias dos trabalhadores assalariados urbanos, empregados nos locais de trabalho reestruturados,com a disseminação do espírito do toyotismo nas práticas de gestão laboral, tiveram o aumento da carga de trabalho e incremento da pressão para cumprimento de metas de produtividade nas empresas privadas ou públicas (o que explica, por exemplo o crescimento, no período, das denúncias de assédio moral no trabalho). Com o choque de capitalismo flexível ocorrido nos últimos dez anos, o modo de vida just-in-time disseminou-se nas grandes cidades. Instaura-se o que consideramos como sendo uma nova dimensão da precarização do trabalho no Brasil: a precarização existencial, traço sociometabólico da era do neodesenvovimentismo. É o que explica, por exemplo, o crescimento das ocorrências de adoecimentos laborais, principalmente transtornos psicológicos e doenças psicossomáticas (como a LER-DORT), muitos delas subnotificadas e invisíveis socialmente. Os adoecimentos mentais – burn-out, síndrome do pânico e depressão, por exemplo – possuem um nexo causal com o complexo da precarização existencial ocasionada pela forma de gestão toyotista e modo de vida just-in-time que promove o fenômeno da “vida reduzida” (como salientamos no artigo anterior). Enfim, o mundo do trabalho hoje – com dez anos de surto de modernização neodesenvolvimentista – é um mundo do trabalho adoecido.
É esta camada social média do proletariado urbano brasileiro, órfã (e vítima) do neodesenvolcvimentismo e choque de capitalsimo flexível, que hoje apoia e participa das manifestações sociais de massa, exigindo, por exemplo, educação, saúde e transporte público de qualidade e expondo irremediavelmente os limites do neodesenvolvimentismo. Mas perguntemos: em que medida estas demandas sociais reprimidas do proletariado urbano no Brasil expõem os limites do neodesenvolvimentismo? Nossa hipótese é de que são as camadas médias do proletariado brasileiro que expõem os limites do neodesenvolvimentismo quando mostram, por exemplo, a incapacidade do Estado brasileiro hoje em investir muito mais nas áreas sociais. Este é o verdadeiro limite do neodesenvolvimentismo.
Antes de prosseguirmos tratando dos limites do neodesenvolvimentismo é importante esclarecermos o significado de uma série de conceitos capazes de organizar nossa percepção e entendimento crítico do fenômeno do neodesenvolvimentismo no Brasil.
Primeiro, como salientamos nos últimos artigos, partimos da hipótese de que neodesenvolvimetismo não é neoliberalismo. Na verdade, neodesenvolvimentismo diz respeito a outro padrão de desenvolvimento capitalista no interior da temporalidade histórica do capitalismo global ou bloco histórico do mercado mundial sob o regime de acumulação flexível predominantemente financeirizado. Na verdade, o neodesenvolvimentismo no Brasil nasce da crise do modo de desenvolvimento neoliberal no Brasil nos primórdios da década de 2000, embora ele próprio – o neodesenvolvimentismo – não consiga romper o bloco histórico do capitalismo neoliberal que deu origem a nova forma de Estado político do capital (Estado neoliberal), desenvolvida nos últimos trinta anos, tanto no centro quanto na periferia capitalista desenvolvida. Nesse caso, o neodesenvolvimentismo no Brasil é uma variante do desenvolvimento capitalista possível na periferia capitalista inserida na macroestrutura do sistema do capital no plano mundial.
No Brasil, na década de 1990, a frente política do neoliberalismo vitoriosa nas eleições de 1989 (com Fernando Collor de Mello) e depois, em 1993 (com Fernando Henrique Cardoso), adequou o capitalismo brasileiro à nova ordem burguesa global, constituindo os pilares do Estado neoliberal no Brasil, o Estado político do capital adequado à nova temporalidade histórica do capitalismo global ou bloco histórico da acumulação flexível de cariz predominantemente financerizado (a frente política do neodesenvolvimentismo ao assumir o governo em 2003, incapaz de alterar a forma do Estado neoliberal, organizou seu plano de governo no interior da nova forma estatal construída na década anterior).
Na década neoliberal no Brasil, ocorreu um terremoto social que alterou não apenas a morfologia social do trabalho no Brasil, mas também o perfil da grande burguesia brasileira. Nesse período, no bojo da adequação à ordem burguesa global, consolidou-se um novo bloco de poder no capitalismo brasileiro, a partir do qual se articulou inicialmente a frente política do neoliberalismo, com os partidos PSDB-PFL, que durante quase dez anos, governaram o Brasil (1994-2002).
É importante esclarecer que bloco de poder não se confunde com frente política tendo em vista que frente política é a articulação de classes, camadas, frações e categorias sociais de classe, que apoiam, por exemplo, um governo e sua estratégia política.
Por exemplo, o bloco de poder neoliberal é o bloco das classes dominantes (com suas camadas, frações e categorias sociais) que mantém o poder do capital nas condições do capitalismo global. A espinha dorsal do novo bloco de poder no Brasil constituído na década neoliberal é constituída pelo capital financeiro que possui vínculos orgânicos, por exemplo, com o agronegócio, empreiteiras, grandes corporações industriais, grandes empresas de distribuição e serviços de telecomunicações, inclusive fundos de pensões sob gestão estatal. Deste modo, o bloco de poder neoliberal constitui uma “oligarquia financeira” que encontra no aparato do Estado neoliberal, um veículo privilegiado de articulação sistêmica (a frente política do neodesenvolvimentismo, que é governo, não conseguiu romper com o poder dos grandes grupos financeiros).
Por outro lado, um governo é constituído por uma frente política que articula tanto camadas, frações e categorias da classe dominante, que compõem parcelas do bloco de poder e garantem a sustentação do governo no interior do Estado político do capital; e camadas, frações e categoriais sociais da classe dominada e classes intermediárias que, no caso do Estado político do capital, atuam como classe-apoio. Uma frente política, por exemplo, não se reduz efetivamente às representações políticas no Congresso nacional (câmara dos deputados e senado), mas se compõem também por apoios (hegemonia) no poder judiciário, meios de comunicação de massa, forças armadas e sociedade civil organizada enquanto instancias compositivas do bloco de poder do capital. É a composição com parcelas do bloco de poder e o apoio e interpelação de outras classes e camadas sociais – inclusive classes subalternas – que dá o tônus da governabilidade e hegemonia política na sociedade burguesa.
Por exemplo, um governo que rompesse efetivamente com o bloco de poder burguês, para ter sustentação e governabilidade, teria que basear-se numa frente política vinculada a outro bloco de poder (por exemplo, um bloco de poder popular). Não apenas ter maioria na representação política no Congresso Nacional (sociedade política), mas ter apoios (hegemonia) na sociedade civil organizada. A frente política seria tão-somente a cristalização do processo de hegemonia política e cultural da classe do trabalho organizado nas cidades e no campo. Este bloco de poder popular implicaria a democratização radical da sociedade, com a constituição de conselhos sociais e populares, implodindo, deste modo, por dentro, o Estado político centralizado e burocrático do capital. Estamos no plano radical da utopia social, tendo em vista que não existem – nem de longe – possibilidades de um bloco de poder popular no Brasil. O que significa que, na perspectiva do realismo político, a sustentação e a governabilidade hic et nunc de uma frente política com pretensões de reforma social, implicaria irremediavelmente, num primeiro momento, articulação – mesmo que contraditória – com determinadas camadas, frações e categoriais do bloco de poder burguês. That’s the question.
Não nos interessa discutir os problemas da revolução social no Brasil, mas sim entender o que consideramos como sendo o neodesenvolvimentismo. Portanto, para nós, neodesenvolvimentismo é um modo de desenvolvimento do capitalismo no Brasiloperado por uma determinada frente política inspirada por uma estratégia de governo (o lulismo). A frente política do neodesenvolvimentismo visa operar um capitalismo periférico com pretensões social-democrata capaz de redistribuir renda e reduzir a desigualdade social no país. Esta frente política, embora tenha vínculos orgânicos com camadas, frações e categoriais sociais do bloco de poder neoliberal (burguesia produtiva interna e fundos de pensões articulados com o capital financeiro), se distingue efetivamente da frente política do neoliberalismo, lideradas pelo PSDB-PFL, vinculada organicamente com a burguesia parasitária-especulativa.
Apesar disso, na medida em que opera no interior do Estado político do capital originado do bloco histórico neoliberal no plano do mercado mundial sob a dominância do regime de acumulação flexível predominantemente financeirizado, a frente política do neodesenvolvimentismo mantém, mais ou menos, linhas de continuidade com a construção macroeconômica anterior (superávit primário alto, câmbio flexível e o sistema de metas de inflação), o que dá a efetiva ilusão de que nada mudou e que os novos governos “pós-neoliberais” são meros governos neoliberais. Entretanto, não apreender traços significativos de descontinuidade na política do neodesenvolvimentismo lulista em comparação com a estratégia política da frente do neoliberalismo da década de 1990, significa perder a dimensão da profunda contradição não-antagônica no seio do próprio bloco de poder do capital instaurada pelo novo modo de desenvolvimento capitalista no Brasil de feição neodesenvolvimentista.
Por outro lado, o neodesenvolvimentismo não é apenas um novo modo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, mas uma frente política inspirada por uma estratégia política ou estratégia de governo denominada lulismo. Deste modo, é importante distinguir neodesenvolvimentismo de lulismo.
O primeiro – neodesenvolvimentismo – diz respeito a um padrão de desenvolvimento da ordem capitalista no País, operada por um frente política baseada em camadas, frações e categoriais do bloco de poder do capital (a burguesia interna das grandes empresas, agronegócio, empreiteiras e fundos de pensão) com apoio de camadas, frações e categorias sociais do proletariado brasileiro (com destaque para a multidão do subproletariado pobre e proletariado de baixa renda, embora tenha apoio em parcelas organizadas do proletariado industrial do campo e da cidade).
O segundo – o lulismo – diz respeito a uma estratégia de governo ou estratégia política que caracteriza esta frente política que nasceu em 2003. O lulismo – tal como interpretamos as ideias desenvolvidas por André Singer no livro Os sentidos do lulismo – compõe-se hoje por três elementos básicos, isto é, o lulismo é uma estratégia de governo da nova ordem burguesa no Brasil que se caracteriza por (1) interpelar o apoio do subproletariado pobres e das camadas de baixa renda do proletariado brasileiro, das cidades e do campo por meio de programas sociais (Bolsa-Família, Minha Casa Minha Vida, por exemplo) e valorização do salário-mínimo – 70%, de 2002 a 2012; (2) por adotar a postura de não-confrontar o capital como bloco de poder (o que explica o viés bonapartista de Lula e Dilma, agindo aparentemente acima das classes sociais antagônicas, extirpando, inclusive, do horizonte do discurso político, o léxico do antagonismo de classe e cultivando como alma mater., a conciliação social como valor fundamental, com o mote “Lula Paz e Amor” ou ainda “Brasil País de Todos”); (3) e, por fim, por adotar um reformismo fraco baseado em políticas de combate a pobreza, incentivo ao consumo visando mercado interno e programas sociais voltados para a redução da desigualdade social. Na verdade, o reformismo fraco oculta a incapacidade política da frente do neodesenvolvimentismo de operar reformas sociais que incomodem os interesses de camadas, frações e categoriais sociais do bloco de poder neoliberal. Eis os limites do neodesenvolvimentismo.
Na medida em que o lulismo entrou em crise, tendo em vista as novas contradições sociais que surgem no desenvolvimento da conjuntura da luta de classes no Brasil, abriu-se um novo campo de contingencia política: exige-se, por exemplo, de Luis Inácio “Lula” da Silva, criador (e criatura) do lulismo, hábil negociador sindical e personalidade política carismática, a notável capacidade de auto reforma do espírito lulista, capaz de preservar o espólio do novo gestor da ordem burguesa no Brasil – o Partido dos Trabalhadores. De fato, a crise do lulismo abala a capacidade de governabilidade da frente política do neodesenvolvimentismo, expondo os limites do neodesenvolvimentismo e exigindo mudanças de rumo da condução da ordem burguesa do Brasil.
Na verdade, os limites do neodesenvolvimentismo expõem a crise do lulismo como estratégia política, não no sentido de que a frente política do neodesenvolvimentismo tenha perdido o apoio do subproletariado pobre ou do proletariado de baixa renda – as políticas sociais adotadas pela frente política do neodesenvolvimentismo são indiscutivelmente positivas na perspectiva da consciência (e dos interesses) de classe contingente do proletariado brasileiro.
Consideramos que a crise do lulismo ocorre no sentido do governo Dilma, por exemplo, ser interpelado, mais do que nunca, por outras camadas do proletariado brasileiro – as camadas médias assalariadas e principalmente o precariado – que se manifestam hoje nas ruas exigindo mudanças no tônus do reformismo fraco.
O lulismo hoje é intimado a adotar um reformismo forte, o que significa, por conseguinte, confrontar o núcleo do bloco de poder do capital e seus aliados sociais: o capital financeiro. Portanto, os limites do neodesenvovimentismo põem-se com a exigência de reformas sociais que signifique – pelo menos – mais investimentos sociais nos serviços públicos de qualidade (por exemplo, educação, saúde e transporte público). Impõe-se, deste modo, para construir uma nova forma do Estado brasileiro, uma frente política capaz de ir além do Estado neoliberal; o que significa implementar, pelo menos, duas reformas sociais preliminares: primeiro, reforma política que democratize o parlamento brasileiro, resgatando o valor da representação política corrompida pelo particularismo dos interesses oligárquicos; e uma reforma tributária capaz de implantar efetivamente a justiça social no País (a taxação das grandes fortunas e a tributação do capital parasitário-especulativo). Na verdade, trata-se de operações políticas de alta impacto que o lulismo não conseguiu fazer – e nem conseguirá faze-lo – nos dez anos de neo desenvolvimentismo. Elas são pré-condições políticas para deixar de lado o reformismo fraco e alterar a face do Estado neoliberal capturado pela dívida pública.
Ao dizermos limites do neodesenvolvimentismo, não se trata de afirmar que o neodesenvolvimentismo como novo modo de desenvolvimento capitalista se esgotou irremediavelmente. Enquanto não se constituir uma nova frente política capaz de ir além dos limites do neodesenvolvimentismo, o novo padrão de desenvolvimento capitalista brasileiro herdado do lulismo, persistirá como um cadáver insepulto, sendo conduzido (e administrado) inclusive por uma nova frente política (de direita) hoje oposicionista que almeja assumir o espólio dos governos do PT.
O que se discute não é a capacidade de desenvolvimento do capitalismo no Brasil (o neodesenvolvimentismo), mas a redução (ou ampliação) da desigualdade social e precarização do trabalho em suas dimensões cruciais. Pode-se inclusive admitir um neodesenvolvimentismo de direita capaz de fazer o Brasil crescer, administrando a barbárie social nos limites da farsa democrática e do Estado policial vigente.
Os limites do neodesenvolvimentismo são, deste modo, os próprios limites do Estado brasileiro como Estado neoliberal de feição oligárquico-financeira – enfim, um Estado capturado pelo capital especulativo-parasitário. A estratégia política do lulismo – talvez justificadapela correlação de forças desfavorável na sociedade civil e sociedade política – optou pelo caminho de menor resistência do bloco de poder do capital. Por exemplo, mais investimentos sociais na educação, saúde e transporte público com qualidade, são investimentos públicos bastante caros que exigem mais de um Estado brasileiro que tem hoje cerca de 42% do orçamento público comprometido com o pagamento da dívida pública (por exemplo, só em 2014 mais de 1 trilhão serão pagos a este título).
É a dívida pública brasileira que expõem o círculo de ferro do capital financeiro que aprisiona o país. PT e PSDB, partidos-gestores do condomínio da ordem burguesa no Brasil, nunca assumiram (nem poderia assumir), a tarefa da auditoria soberana da dívida pública, tendo em vista seus vínculos orgânicos com o bloco do poder neoliberal. Ao mesmo tempo, a maioria do Congresso Nacional hoje está cativa da lógica financeira que mantem, sob a espada de Damocles da Lei de Responsabilidade Fiscal, os limites do Estado brasileiro em atender as necessidades sociais ampliadas. Na verdade, parlamento, poder judiciário, forças armadas e grande mídia e, last but not least, igreja católica e igrejas evangélicas, são trincheiras da ordem burguesa desigualitária que impedem reformas sociais estruturais de maior espectro. Por outro lado, obviamente, mesmo que a oposição de direita ganhe, ela não tem condições (e vontade) política em romper com esta lógica do capital financeiro que determina a própria lógica da governabilidade no país que é hoje o elo mais forte do imperialismo na América Latina.
Finalmente, podemos concluir dizendo que a função do cientista social é ir além da imediaticidade histórica, embora não deva despreza-la em sua riqueza e diversidade contingente. Muitas análises das manifestações de junho de 2013 ficaram no impressionismo jornalístico sem atentar para as causalidades estruturais e estruturantes da nova configuração das classes sociais no Brasil, com suas camadas, frações e categorias sociais surgidas do movimento da reorganização do capitalismo no Brasil dos últimos dez anos. Temos salientado que o Brasil sofreu nos últimos vinte anos de neoliberalismo e neodesenvolvimentismo um terremoto social que alterou a configuração das classes, camadas, frações e categoriais sociais nas metrópoles brasileiras. A inquietação social das ruas possui uma base material profunda de classe – é preciso salientar isso. O que se manifesta nas ruas precisa ser melhor decifrado nas suas raízes sociológicas e a raiz está na nova configuração da estrutura de classes e suas camadas socais (a nova classe trabalhadora e o precariado).
Com o neodesenvolvimentismo alterou-se certas dinâmicas – o sub proletariado ascendente transformou-se em nova classe trabalhadora e a camada social média do proletariado urbano tornou-se um imenso e inquieto precariado frustrado diante de um Estado brasileiro limitado em sua capacidade de dar respostas estratégicas às demandas sociais reprimidas. Ao mesmo tempo, temos um grande empresariado dependente do submundo financeiro que comanda o circuito da governabilidade, cercando situação e oposição, neutralizadas em sua capacidade de reforma social estrutural.
Com os protestos de ruas, as organizações tradicionais – partidos e sindicatos – perceberam a sua crise orgânica, incapazes de dar a direção política e ideológica das manifestações sociais. O Brasil vive há muito tempo uma crise de representação política que se exacerbou nas condições de explicitação dos limites irremediáveis do neodesenvolvimentismo como crise do capitalismo periférico. Nesse caso, o vazio organizacional e político é ocupado pela grande mídia como força sinistra da ordem burguesa, que manipula e pauta os movimentos sociais em prol dos interesses das forças oligárquicas do bloco de poder neoliberal. No calor dos protestos de rua e de exposição dos limites do neodesenvolvimnetismo abriu-se um cenário de risco para a democracia política paralisada por sua ineficácia de representação e esvaziamento de legitimidade devido ao apodrecimento do Estado burguês no Brasil. Enfim, o que pode parecer para os incautos com déficit de percepção dialética e perspicácia política mais apurada um cenário de revolução social, é mais a antessala do fascismo social sob o manto da democracia amesquinhada que reitera a perversidade da ordem burguesa desigualitária no Brasil.
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Leia também A revolta do precariado no Brasil, precariado? e a série “Neodesenvolvimentismo e precarização do trabalho no Brasil“, de Giovanni Alves, no Blog da Boi tempo.

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