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Resenha - A Era dos Direitos e Holocausto Brasileiro

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Resenha – A Era dos Direitos e Holocausto Brasileiro
A Era dos Direitos é um livro publicado em 1990 pelo italiano Norberto Bobbio. Filósofo político, historiador e escritor, Bobbio retrata em sua obra acerca dos antecedentes do principal marco de conscientização dos direitos humanos, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, logo após a Segunda Guerra Mundial e de como os direitos do homem estão presentes na sociedade hodiernamente. Em contrapartida, Holocausto Brasileiro é um documentário lançado em 2016, baseado no livro da jornalista brasileira Daniela Arbex e dirigido por ela e Armando Mendez. Ele mostra o genocídio que aconteceu no Hospital Colônia em Barbacena (MG), apresentado através de relatos, fatos e documentos oficiais de inúmeras pessoas que por serem consideradas “loucas” foram enviadas ao maior hospício do Brasil. No entanto, o que posteriormente foi descoberto é que na verdade o hospital psiquiátrico era um disfarce para as atrocidades cometidas com as pessoas consideradas como “inapropriadas” para a sociedade daquela época. 
Logo na introdução do livro, Bobbio argumenta que o reconhecimento e proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas modernas e que os direitos naturais são direitos históricos (aqueles que foram criados a partir da necessidade em determinado momento da história), enquanto que no documentário, imagens e informações dizem que entre 1930 e 1980, mais de 60 mil pessoas morreram no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, que atuava como um depósito de pessoas. Com isso, infere-se que na época do Hospital Colônia, não existia ainda um amplo debate e pesquisas a respeito da saúde e sanidade mental, mecanismos esses que eram necessários para que fossem criadas garantias de direitos ás pessoas que necessitavam.
Na primeira parte em A Era dos Direitos: Sobre os Fundamentos dos Direitos do Homem, Bobbio traz 3 questionamentos, dentre esses, o da possibilidade de um fundamento absoluto ser possível, a partir disso, ele discorre sobre 4 problemas do fundamento absoluto: “direitos do homem” é uma expressão muito vaga; constituem uma classe variável; são heterogêneas; e antinômicas entre si. Afirma também que o principal problema fundamental relacionado aos direitos do homem não é o de justifica-los, mas protegê-los, não é encontrar o fundamento absoluto, mas buscar os vários fundamentos possíveis. 
Posteriormente, em Presente e Futuro dos Direitos do Homem, discute acerca de diversos assuntos, tais como: A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores universais pode ser considerado humanamente fundado. Esse universalismo da Declaração se deu em 3 momentos: das declarações que nascem como teorias filosóficas; da passagem da teoria à prática; e em 1948, ano da própria Declaração, como que a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva. O desenvolvimento dos direitos do homem, também passou por 3 fases: afirmaram-se os direitos de liberdade; foram propugnados os direitos políticos; e foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências. Encerrando o tópico, Bobbio pronuncia que a efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana.
Ao traçar um paralelo com Holocausto Brasileiro, é cada vez mais notável que os pacientes que viviam no hospital, não eram somente desprovidos de direitos, além disso, não existia um desenvolvimento social para proteger as demandas do necessitados e garantir-lhes condições humanas dignas, mesmo que na época (1930 – 1980) a Declaração Universal dos Direitos Humanos já houvesse sido promulgada, o Centro Hospitalar tornava-se ainda mais cruel. 
Pessoas com doenças virais, bacterianas, físicas e até mesmo pessoas com algum tipo de deficiência física eram tratadas da mesma forma que aquelas que sofriam de distúrbios neurológicos. Também iam para o hospital pessoas que não tinham absolutamente nada disso, eram apenas consideradas diferentes, agitadas ou quietas demais, indesejáveis socialmente e consequentemente, abandonadas pela família. Submetidos a tratamentos de eletrochoque; remédios os quais suas funções eram diferenciadas apenas pela cor; injeções a todos os pacientes com a mesma agulha; falta de alimentação; frio; condições insalubres de sobrevivência. Sofriam também com a maneira que eram tratados, obrigados a fazer faxinas periódicas (caso não fizessem, eram castigados ou ameaçados), viviam presos em celas superlotadas, completamente nus ou mal vestidos. 
Durante o tópico A Era dos Direitos, Bobbio introduz argumentando que o problema do reconhecimento dos direitos do homem passou da esfera nacional para a internacional somente após a Segunda Guerra Mundial, com processos de generalização, internacionalização e especificação. Não diferente, o tópico Direitos do Homem e Sociedade aborda as maneiras em que ocorreram tais processos. A especificação em especial, aconteceu da diversidade dos status sociais do homem: “A mulher é diferente do homem; a criança, do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes.” Ao fazer uma comparação com o documentário, é possível levar em consideração duas vertentes: primeiramente, não havia um processo de especificação entre os pacientes do Hospital Colônia, mesmo aqueles que necessitavam de cuidados especiais, ou que não possuíam nenhum tipo de distúrbio mental, eram taxados como loucos; entretanto, na sociedade da época, havia uma enorme especiação entre os indivíduos, entre aqueles que eram os “normais, os “loucos” e até mesmo os “negros”, sendo diferenciados inclusive até pelo cemitério que seriam enterrados quando morressem. Existia um cemitério destinado somente aos pacientes do Centro Hospitalar, que era acoplado a ele. Os pacientes eram enterrados aos montes, 5 ou mais em uma só cova. Quando não eram enterrados, os corpos eram vendidos a faculdades de medicina, mais de 1800 cadáveres foram vendidos para 17 faculdades de medicina do Brasil entre 1969 e 1980. Os “loucos”, não tinham dignidade nem na morte, ao passo em que o hospital tornava-se cada vez mais um depósito dos rejeitados. 
Na segunda parte, introduzida com A Revolução Francesa e os Direitos do Homem, Bobbio inicia parafraseando Kant: “A liberdade jurídica e a faculdade de só obedecer a leis externas às quais pude dar meu assentimento.” Posteriormente, citando Thomas Paine, um grande influenciador da Revolução Francesa, o intelectual acredita que para encontrar o fundamento dos direitos do homem, é preciso não permanecer na história, mas transcender a história e chegar ao momento da origem, quando o homem surgiu das mãos do Criador, adentrando assim a religião no direito. Após isso, discorre-se acerca das críticas da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em que uma delas foi a de Karl Marx, que dizia que os direitos tutelados pela Declaração eram os direitos do burguês, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade, do homem enquanto “mônada isolada e fechada em si mesma”. 
Sucessivamente, são trabalhados dois temas que fazem respeito à Revolução Francesa: A Herança da Grande Revolução e Kant e a Revolução Francesa. O primeiro, traz um debate sobre a Declaração, mais especificamente problemas a seres resolvidos decorrente da sua promulgação ou não, são eles: se era ou não oportuna uma Declaração; se, reconhecida sua oportunidade, ela devia ser promulgada isoladamente ou como preâmbulo à Constituição, caso em que deveria ser adiada; e se, uma vez acolhida a ideia de sua promulgação independente, ela deveria ou não ser acompanhada por uma declaração de deveres. Fala-se também sobre a democracia, pois se a concepção individualista da sociedade for eliminada, não será mais possível justificá-la como uma boa forma de governo. Já no segundo, Kant argumentadurante o tópico que a história sempre foi ambígua, apesar das aparências, já que deu sempre respostas diversas conforme quem a interrogava e as circunstâncias em que o fazia. Somente a história filosófica (e não a empírica) pode desafiar a ambiguidade do movimento histórico, dando uma resposta à questão de se a humanidade está ou não em constante progresso para o melhor. E como conclusão, dizia que o sistema geral do direito representava de modo integral o desenvolvimento histórico do direito, no qual o ordenamento jurídico universal, a cosmopólis, representa a quarta e última fase do sistema jurídico geral, depois do estado de natureza, depois do estado civil, depois da ordem internacional. 
Já na Terceira Parte, iniciada com A Resistência à Opressão, Hoje, Norberto Bobbio inicia diferenciando obediência e resistência, e aceitação e contestação. Enquanto contrária á obediência, a resistência compreende todo comportamento de ruptura contra a ordem constituída, que ponha o sistema em crise, mas não necessariamente em questão, ainda que não precisamente violenta, pode chegar até o uso da violência e, de qualquer modo, não é incompatível com o uso da violência. Enquanto contrária á aceitação, a contestação se refere, mais do que a um comportamento de ruptura, a uma atitude crítica, que põe em questão a ordem constituída sem necessariamente pô-la em crise. Por conseguinte, Bobbio argumenta que a violência ainda possa ser usada, existe uma justificação que se tende a dar da não-violência, visto que diante das dimensões cada vez maiores da violência institucionalizada e organizada, e da sua enorme capacidade destruidora, a prática da não-violência é talvez a única forma de pressão que sirva para, em última instância, modificar as relações de poder, usando a não-violência como única alternativa política à violência do sistema. 
Em seguida, adentrando ao tópico Contra a Pena de Morte, Bobbio começa criticando que o debate sobre a abolição da pena de morte mal começou, pois durante séculos, o problema de se era ou não lícito/justo condenar um culpado à morte sequer foi colocado. Dos defensores, duas concepções tradicionais prevalecem: a retributiva, que repousa na regra da justiça como igualdade ou correspondência entre iguais; e a preventiva, segundo a qual a função da pena é desencojarar, com a ameaça de um mal, as ações que um determinado ordenamento, considera danosas. Ao seguir, o autor expressa que embora sejam muitas as teorias da pena, as duas predominantes ele chama de ética e de utilitarista. Os defensores da pena de morte seguem uma concepção ética da justiça, enquanto que os abolicionistas são seguidores de uma concepção utilitarista. E na conclusão do ponto, Bobbio diz acreditar que o desaparecimento total da pena de morte do teatro da história, estará destinada a representar um sinal indiscutível do progresso civil. 
Em continuidade com o tópico anterior, segue O Debate Atual Sobre a Pena de Morte, Norberto Bobbio argumenta que para constatar o processo gradual de deslegitimação da pena de morte, devem-se ainda considerar três dados reais: Restringe-se cada vez mais o número de crimes para os quais a pena de morte é obrigatória, ao mesmo tempo em que se amplia o de crimes nos quais a aplicação da pena de morte é deixada à decisão discricional dos juízes e dos jurados; nem em todos os Estados nos quais a pena de morte é ainda admitida, ela é efetivamente aplicada; mesmo onde a pena de morte não só está prevista, mas a sentença capital foi emanada, manifestou-se a tendência a sua suspensão sine die, bem como seu perdão em consequência do indulto. Para uns, a pena de morte poderia ser útil, mas o que importa é que ela seja justa; para outros, poderia também ser justa, mas o que importa é que seja útil; para esses, quando não útil, deve ser recusada como um mal não necessário, ao passo que, para aqueles, na medida em que satisfaz uma exigência de justiça, deve ser aprovada por ser eticamente boa, independentemente se ser útil ou não. Ainda assim, para finalizar, Bobbio utiliza-se da constatação de que violência chama violência, e o argumento mais forte para lutar contra a pena de morte é a salvação da humanidade. 
A posteriori, em As Razões da Tolerância, o autor começa conceituando tolerância e o diferente uso que dela se pode fazer em contextos diferentes. Tolerância em seu significado histórico, o que se tem em mente é o problema da convivência de crenças, entretanto, hoje, o conceito de tolerância é generalizado para o problema da convivência das minorias étnicas, linguísticas, raciais, para aqueles que são chamados de “diferentes”, como por exemplos os homossexuais, os loucos ou os deficientes. Quando Bobbio se refere a essas 3 categorias diferentes, percebe-se um grande paralelo com o documentário Holocausto Brasileiro, pois eram as pessoas que eram colocadas no Hospital Colônia justamente por serem caracterizadas como as “diferentes” da sociedade da época. Pessoas que não eram loucas, por vezes acabam tornando-se, devido ao que passaram antes de ir para o Centro Hospitalar e lá dentro. A memória afetiva dos pacientes sobreviventes “parou” no momento em que foram abandonados. Diversos ex-funcionários relataram que os pacientes em sua maioria eram normais, precisavam apenas de afeto. Esses tidos como “normais” tinham a “mordomia” de sair do hospital para trabalhar como faxineiros, pedreiros, mas sem ganhar nada por isso, como uma forma de exploração. Eles sentiam vergonha da condição em que estavam, ou melhor, da falta de condição humana que viviam. 
Por fim, na quarta e última parte do livro, em Os Direitos do Homem Hoje, Norberto Bobbio argumenta que o que distingue o momento atual em relação ás épocas precedentes e reforça a demanda por novos direitos é a forma de poder que prevalece sobre todos os outros. Hoje, as ameaças à vida, à liberdade e à segurança podem vir do poder sempre maior que as conquistas da ciência e das aplicações dela derivadas dão a quem está em condições de usá-la. Entramos na era que é chamada de pós-moderna e é caracterizada pelo enorme progresso, vertiginoso e irreversível, da transformação tecnológica e, consequentemente, também tecnocrática do mundo. 
Já para o documentário, o encerramento se dá com o debate de que não existe um único culpado para a tragédia do Hospital Colônia, a responsabilidade é coletiva. Aconteceram maus tratos, tortura, abuso de poder durante 8 décadas e boa parte das pessoas que assistiram àquilo não fizeram nada mudar a situação vivida pelos pacientes, dentre essas, o governo brasileiro, o diretor do hospital, os médicos e os demais funcionários, além das famílias que sabiam o que realmente se passava lá dentro. Quando houve a denúncia, os contribuintes da tragédia revoltaram-se com as críticas recebidas, visto que não percebiam o tamanho das barbaridades que eram cometidas. Até que abriram os olhos, e novas mudanças passaram a ser adotadas, como a de que os leitos psiquiátricos passaram a ser substituídos por modelos de atendimento mais humanizados. 
Holocausto Brasileiro faz jus ao título. É uma história que mostra o horror que viveram os pacientes e a quantidade exorbitante de mortos nessa tragédia. É uma passagem da história ainda desconhecida por muitos. Ao levar em consideração o que diz Bobbio, os direitos do homem são direitos históricos, que surgem de acordo sua necessidade, os sobreviventes do massacre precisam de justiça, mas além disso é necessário o debate sobre saúde mental e leitos de qualidade, com métodos de tratamento sérios e humanos, mantendo, assim, condições de dignidade humana garantidas.

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