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109 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL Unidade III 5 LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS – LEI Nº 9.605/98 Neste tópico, faremos algumas considerações preliminares para aplicação do Direito Criminal e Penal na proteção do meio ambiente. Como já vimos até aqui, tanto a nossa atual Constituição Federal de 1988 quanto todas as regras que compõem o sistema jurídico brasileiro asseguram e estabelecem garantias instrumentais, que atribuem competências específicas e expressas para a concretização da proteção ao meio ambiente. Nesse sentido, o direito “criminal ambiental” é mais uma das formas de tutela (proteção) para assegurar um meio ambiente equilibrado, possibilitando a sua utilização pelas sociedades na modernidade. Como tudo o que cerca a proteção ambiental é um direito novo para a nossa organização societal, desde a necessidade de adaptação para os usos dos recursos naturais até a necessidade do desenvolvimento de novas tecnologias, tornando menor o uso de recursos naturais e energia, os desafios impostos pela necessidade de se proteger o meio ambiente não poderiam ser menores para o Direito Penal. Os desafios que a proteção ao meio ambiente impôs ao Direito fez que estruturas de organização do seu sistema, construídas durante séculos, tivessem de ser revistas, e isso pode ser mais bem-percebido na utilização do Direito Penal para a finalidade de proteção ambiental. Notaremos que as adaptações passaram a exigir que sua realização seja feita a partir de uma estrutura própria, conforme, inclusive, indicado pela própria Constituição Federal de 1988, que nos deixou diversos sinais para essa nova interpretação. Até por esses indícios constitucionais, teremos de continuar nossa abordagem sempre fazendo remissões tanto à Constituição Federal de 1988 quanto aos textos legais que tratam da proteção ambiental pelo viés do Direito Penal, tornando nossos raciocínios inteligíveis dentro de uma lógica penal preexistente. Desta forma, temos que os fundamentos da proteção do meio ambiente através do Direito Penal, previstos pela Constituição, não são os mesmos utilizados de maneira clássica na proteção de direitos materiais (vida, liberdade etc.), muito menos os mesmos mecanismos processuais ordinariamente utilizados. Observação A necessidade de adaptação dos institutos jurídicos penais ocorre porque, à medida que a sociedade identifica novos bens que devam ser protegidos juridicamente, de natureza “supraindividual”, como é o 110 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III ambiental, ou seja, um bem de todos, também passa a exigir a construção de uma nova visão lógica sobre o Direito Criminal que dê conta de proteger, o que escapa à lógica apenas de proteção do indivíduo, conformando a lei ao atendimento de maneira mais efetiva de proteção desses direitos, que, conforme visto no início deste trabalho, passaram a ser denominados de “difusos” e/ou “coletivos”. Por isso, antes de adentrarmos propriamente em algumas das previsões contidas especificamente na Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), talvez seja necessário entendermos o correto sentido de uma lei quando trata da proteção do meio ambiente sob a perspectiva de um sistema de interpretação legal voltada para o Direito Penal em nosso país. Esse esforço se deve à perspectiva de nos fazer compreender como o sistema de interpretação das leis penais interfere no Direito Ambiental, bem como quais adaptações interpretativas do Direito Penal clássico foram necessárias para a consolidação de uma Lei dos Crimes Ambientais no Brasil. E mais, nos permitirá pressentir como este sistema ainda está em processo de construção e aperfeiçoamento. Detalhando um pouco mais, podemos dizer que o sistema do Direito Criminal convencional teve de sofrer adaptações para contemplar os temas ambientais, dando a este novo ramo características peculiares, ou seja, características que só podem ser observadas no que agora se chama Direito Criminal Ambiental. Em relação ao Direito Criminal como é convencionalmente aplicado, os estudiosos e doutrinadores sobre a questão ambiental, como Fiorillo e Pegorari (2012), destacam dentre as principais diferenças notadas, por exemplo, a aplicação da prospecção ou o caráter preventivo que tal direito passa a assumir diante do desafio de proteção ambiental, o que contraria completamente a aplicação do caráter retrospectivo/repressivo comumente atribuído à matéria penal na proteção de outros bens da sociedade. Essa alteração de característica atribuída às questões ambientais pelo Direito Penal implica o reconhecimento da necessidade de tutelar (proteger) o bem antes que o mal (dano) esteja completamente consumado. Melhor explicando, é a possibilidade de paralisar imediatamente o potencial dano, mesmo que para isso não se saiba com certeza se ele iria ou não se concretizar. Ao mesmo tempo, essa possibilidade da aplicação preventiva do direito pode representar a aplicação da uma penalidade ao potencial poluidor pela paralisação imediata de suas atividades, antevendo os efeitos de uma suposta condenação que poderá ou não vir no final do processo. Desta forma, podemos dizer que a lógica da aplicação da prospecção ou do caráter preventivo contraria o Direito Penal convencional e a aplicação do seu caráter retrospectivo/repressivo, porque não exige a aplicação de pena apenas após o dano consumado, conforme comumente podemos perceber. Exemplo: só pode ser processado ou condenado por homicídio, roubo ou lesão aquele que tenha cometido assassinato, roubado ou lesionado outra pessoa, no Direito Penal convencional, utilizando assim o seu caráter retrospectivo/repressivo; ou seja, exige-se a consumação dos verbos matar, roubar, ferir. Já para a aplicação do Direito Criminal Ambiental, a existência de indícios de lesão ao meio ambiente pode ser capaz de paralisar uma atividade produtiva pela simples possibilidade de ela estar relacionada a um eventual ou potencial dano ambiental, aplicando neste caso a prospecção ou o caráter preventivo da norma. 111 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL Naturalmente, desta lógica derivam outras consequências, pois o Direito Ambiental Penal se opera mediante o caráter preventivo. As demandas e ações que ingressam no sistema do Poder Judiciário buscando a defesa de um bem ambiental tendem a conceder a antecipação da tutela penal, ou seja, o pedido principal almejado na ação judicial tende a ser antecipado, para que o bem ambiental não corra o risco noticiado e seja protegido até que o Poder Judiciário tenha convencimento de que o bem não corre mais perigo. Com isso, podemos avançar em nosso aprofundamento teórico, afirmando que a proteção penal ambiental está atrelada tanto à criação de crimes de perigo concreto como de crimes ambientais de perigo abstrato, crimes ambientais de mera conduta e de normas penais em branco. Além disso, a sua aplicação estará sempre remetida à existência de elementos normativos dos tipos (verbos), ou seja, a previsão legal e antecipada da conduta humana condenável, conforme restará prescrito em texto legal, assim como feito na Lei dos Crimes Ambientais. Mas antes de avançarmos se faz necessário entender cada um dos elementos mencionados no parágrafo anterior, por isso faremos a seguir algumas considerações elucidativas. Para Jesus (2010), os crimes de perigo se diferenciam dos crimes de dano quando estes são os que se consumam com a efetiva lesão do bem juridicamente protegido (exemplos: homicídio, lesões corporais etc.). Nesse tipo de crime, houve a perdada vida e/ou lesões no corpo da vítima. Já nos crimes de perigo, o autor nos alerta de que estes são os que se consumam apenas pela possibilidade de dano. Continuando nossa análise baseada nos esclarecimentos de Jesus (2010), este nos ensina que o perigo pode ser presumido (abstrato) ou concreto, esclarecendo que o presumido ou abstrato: “é considerado pela lei em face de determinado comportamento positivo ou negativo. É a lei que o presume juris et de jure. Não precisa ser provado”, portanto “resulta da própria ação ou omissão. Já o perigo concreto é aquele não presumido, isto é, que precisa ser investigado e comprovado” (JESUS, 2010, p. 229). Já Mirabete e Fabbrini (2009), ao nos explicar sobre os crimes de mera conduta, ensinam que “trata-se de uma das classificações dos crimes quanto ao seu resultado”, e “a lei não exige qualquer resultado naturalístico, contentando-se com a ação ou omissão do agente”; portanto, “não sendo relevante o resultado material, há uma ofensa (de dano ou de perigo) presumida pela lei diante da prática da conduta” (MIRABETE; FABBRINI, 2009, p. 120). É quando a lei já previu uma expectativa de ofensa a um bem considerado juridicamente importante para a sociedade, vinculando o agente mais próximo da atividade-risco ao dano, independentemente de ele vir ou não a ocorrer. Por fim, esclarecemos que a lei penal em branco refere-se àquelas leis que não são autoaplicáveis, ou que necessitam de complementação legal advinda de outras normas ou regulamentações, mas que uma vez regulamentadas passam a ser objeto da aplicação do Direito Criminal Ambiental. Sendo assim, é importante destacar que, devido à constatação de que os danos ambientais em boa parte são considerados irreversíveis, na mesma ordem a legislação ambiental também foi estabelecida dessa forma, para evitar que tais danos ambientais simplesmente ocorressem. Se não fosse assim, haveria o risco de a proteção penal do meio ambiente ser considerada dispensável. 112 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III Ademais, o princípio da prevenção norteia a proteção constitucional do meio ambiente, incluindo nessa lógica também a proteção do bem ambiental sob o ponto de vista do Direito Penal. Avançando um pouco mais, podemos dizer também que outra novidade trazida pela Constituição Federal de 1988 foi a previsão de punição penal, não apenas da pessoa física (indivíduo infrator), mas também da pessoa jurídica (empresas ou instituições de direito público ou privado), o que ocorreu como reflexo de um amadurecimento conceitual e como opção de política criminal, posta a característica notada por diversos teóricos de que hoje vivemos em uma sociedade de risco, além da necessidade de colocar a atribuição da culpabilidade a partir de um conceito moderno de responsabilidade social, conforme será mais bem-analisado posteriormente. Mesmo que diversas condutas humanas em relação ao meio ambiente tenham se tornado reprimíveis eticamente, moralmente e socialmente, é o Direito Criminal Ambiental que apresenta sanções penais aplicáveis especificamente aos tipos de condutas indesejadas; isso só poderá ocorrer quando tais condutas estiverem perpetradas na lei. Porém, não basta a vontade do legislador infraconstitucional para transformar qualquer conduta em crime: a criação de sanções deve ser estabelecida conforme orientações do texto constitucional, e estas, aplicadas de acordo com a natureza de quem comete a conduta legalmente proibida, pois em âmbito penal a aplicação da pena não deve extrapolar a figura de quem cometeu a conduta legalmente reprovável. Por esse princípio, devemos sempre verificar a existência da estreita correspondência entre a responsabilização da conduta do agente e a pena a ser aplicada, visando atingir as finalidades das penas, que se voltam, nos casos do Direito Criminal Penal, à prevenção, em primeiro lugar, e depois à repressão. Por essa abordagem, o legislador buscou dar à criação das infrações penais ambientais e suas respectivas sanções outra ferramenta, capaz de assegurar o direito ao meio ambiente em sentido amplo. Ao prever a proteção da fauna, da flora, dentre outras proteções específicas, a proteção ambiental através do Direito Criminal busca assegurar o direito à vida em todas as suas manifestações. Portanto, quando nos referimos à proteção da tutela penal do meio ambiente na atualidade, seguramente estamos falando das novas interpretações e abordagens que só foram possíveis após a Constituição Federal de 1988 e potencializadas dez anos após, com a edição que passou a dispor sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dar outras providências, conforme passaremos a entender. Porém, antes de avançarmos para aspectos específicos da interpretação da Constituição Federal e da Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), é importante termos a noção de que esta lei não representa um rol taxativo em relação às possibilidades de atribuição de responsabilidades e penalidades em se tratando da matéria ambiental. Ela seguramente é um importante marco legal que concentra grande parte das reflexões e possibilidades de punição para condutas indesejadas, mas que pode ser complementada por outras regras e até não prever alguns tipos de condutas específicas que podem estar previstas em outros institutos legais. 113 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL Nesse sentido, é importante guardar a informação de que a Lei de Crimes Ambientais é complementada por inúmeras normas penais e administrativas (as chamadas normas penais em branco), além de em alguns casos, ser complementada por outros regulamentos federais, estaduais e municipais, bem como por resoluções internas de órgãos encarregados da gestão ambiental, por determinação legal, como é o caso do próprio Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) como órgão ligado ao Poder Executivo Federal, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) como órgão consultivo e deliberativo em âmbito nacional e do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) como órgão consultivo e deliberativo no âmbito do Estado de São Paulo, por exemplo. Detalhando um pouco mais as várias interfaces que devem ser consideradas na aplicação do Direito Criminal Penal, devemos lembrar que, com a necessidade de se levar em conta os aspectos ambientais em todos os ramos produtivos da sociedade moderna, o tema ambiental passou a incidir sobre as mais variadas legislações, surgindo daí nestas recomendações e punições específicas em relação ao meio ambiente. Nesse sentido, a título de exemplo, podemos mencionar diversas outras leis esparsas que foram promulgadas a partir de 1988 e que também tratam de questões relacionadas ao meio ambiente e suas mais variadas formas, tais como: Lei nº 7.679/89 – dispõe sobre as possibilidades de proibição da atividade pesqueira; Lei nº 7.802/89 – dispõe sobre o uso de agrotóxicos; Lei nº 7.803/89 – alterou a Lei nº 4.771/65, que dispõe sobre o Código Florestal; Lei nº 7.804/89 – alterou a Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente); Lei nº 7.805/89 – alterou o Decreto-Lei nº 227/67, que dispõe sobre o Código de Minas; Lei nº 8.974/95 – trata das regras sobre o patrimônio genético etc. Conforme visto até aqui, podemos concluir que o Direito Criminal Ambiental é mais uma importante ferramenta utilizada pela sociedade moderna na intenção de tutelar, ou seja, de proteger o meio ambiente. Verificamos também que a utilização do Direito Criminal na proteção do meio ambiente requereu uma série de adaptações do instituto penal em si. No mais, antes da análise do texto legalcontido na Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), faz-se necessário revermos qual conceito de “meio ambiente” a ser protegido é o adotado por esta lei; só assim poderemos dar a justa medida da interpretação de suas previsões. Pois bem, entender de qual meio ambiente trata a proteção trazida pela Lei de Crimes Ambientais nos remete necessariamente a entender o que é considerado meio ambiente por nossa sociedade. E essa definição foi inicialmente cunhada pelo art. 3º, inciso I, da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), que foi a primeira a definir meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Conforme tivemos oportunidade de verificar, o referido conceito está em constante transformação e juridicamente foi ampliado pela Constituição Federal de 1988, que passou a considerar como passível de proteção, além do meio ambiente natural – composto por atmosfera, elementos da biosfera, águas, mar territorial, solo, subsolo, recursos minerais, fauna e flora –, o meio ambiente artificial (espaço urbano construído pelo homem), o meio ambiente cultural (delimitado pelo art. 216 da CF como sítios arqueológicos, patrimônio paisagístico e arquitetônico tombado), o meio ambiente do trabalho (local de desenvolvimento das atividades laborais, visando à proteção da dignidade humana e da vida), além da proteção do patrimônio genético. 114 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III Desde então, os padrões para o entendimento do que deve ser protegido como meio ambiente em nossa sociedade devem ser buscados no artigo 225 da Constituição Federal, que passou a indicar os elementos estruturais para uma tutela ambiental, assim descrito: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Fiorillo e Pegorari (2012), ao analisar o texto do artigo 225 da Constituição Federal e sua ampliação conferida ao conceito jurídico de meio ambiente, evidenciam suas principais concepções fundamentais, destacando os seguintes aspectos: a) a afirmação expressa de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, portanto a qualidade ambiental não pode ser justificativa para se promover qualquer tipo de descriminação, devendo ser algo garantido a todos os brasileiros; b) o de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado diz respeito à existência de um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, criando em nosso ordenamento o bem ambiental; c) o de que a Constituição Federal, enquanto lei maior em nosso território, determina tanto ao Poder Público como à coletividade o dever de defender e preservar o bem ambiental; d) o de que a defesa e a preservação do bem ambiental estão vinculadas não só às presentes, mas também às futuras gerações, criando uma solidariedade entre elas. Todos esses aspectos nos sugerem que a tutela/proteção constitucional do meio ambiente deve ser orientada pelos seguintes indicativos: • O Direito Ambiental está estritamente ligado à necessidade de proteção à vida em todas as suas formas. • A Constituição Federal dá ao Direito Ambiental um caráter transcendental, ou seja, este deve ser abordado em seu caráter transdisciplinar, na medida em que coloca a todos os outros segmentos o dever de proteger o meio ambiental a partir de qualquer atividade produtiva ou de prestação de serviço, como um direito intergeracional, e, com isso, apresenta um alargamento conceitual de meio ambiente. Para o Direito, o destinatário do Direito Ambiental é a pessoa humana; por mais que seja notada a proteção da vida em todas as suas formas, ela se dará com maior ou menor intensidade, a partir de uma perspectiva humana. Por esta perspectiva, não fará sentido a proteção do meio ambiente, se ela não estiver inserida no princípio constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana, função elementar do Estado Democrático de Direito. Indo mais além, podemos dizer que, na medida em que se relaciona à dignidade, a proteção ao meio ambiente também se vincula ao conteúdo do que é considerado dignidade humana (isto é, a educação, lazer, trabalho, saúde etc.). Através da constatação do caráter transcendental e intergeracional que a proteção ambiental ganha em nossa Constituição, podemos notar como as previsões contidas no artigo 225, antes transcritas, se aproximam e necessitam de uma leitura integrada para que façam sentido na 115 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL sociedade brasileira. É por esta via, por exemplo, que a previsão elementar, indicada no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer os direitos sociais a educação, lazer, trabalho e saúde, também integra o que pode ser considerado proteção do meio ambiente no Brasil atual, rompendo com uma visão apenas biologizante sobre o tema. Essa visão ampliada também se impõe como necessária para a proteção ambiental a partir do exercício de um Direito Criminal Ambiental. • Uma leitura sob a concepção transversal dos aspectos ambientais constitucionais, o artigo 225 da Constituição Federal e a proteção ao meio ambiente no Brasil também deve ser interpretada de acordo com o que prevê o Preâmbulo da Constituição Federal, ou seja, dentro do que é apresentado como direitos que devem ser perseguidos por toda a Constituição Federal. Assim, uma leitura correta e justa do artigo 225, dentro dos preceitos constitucionais, deve ser feita de maneira inquestionável a propiciar dignidade, igualdade e justiça entre os indivíduos e grupos que compõem o povo brasileiro. • Da mesma maneira, a proteção do meio ambiente, prevista no artigo 225 da Constituição Federal, também se relaciona aos artigos 1º, 3º e 5º da Constituição Federal, ou seja, uma leitura sobre a proteção do meio ambiente deve estar apta a aplicar limites dentro de uma concepção de proporcionalidade capaz de unir interesses que até podem ser considerados antagônicos. Em outras palavras, dentro da previsão do artigo 1º da Constituição Federal, por exemplo, a proteção do meio ambiente deve ser capaz de se impor, mesmo diante da previsão explícita de que em nossa nação devemos manter tanto a dignidade humana quanto os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa. Da mesma forma, a proteção ao meio ambiente deve ser congregada às necessidades da promoção do desenvolvimento nacional e do bem de todos, constantes no artigo 3º. Além disso, o direito à vida, a função social da propriedade e o direito de ação popular, conforme as previsões contidas no início do artigo 5º e em seus incisos XXIII e LXXIII, também compõem instrumentos que se relacionam diretamente com a proteção do meio ambiente no Brasil. • Em se tratando das competências para criação de regras, que devem ou não ser adotadas na gestão ambiental pela União, bem como pelos Estados e Municípios, através dos mais variados órgãos públicos, também devemos observar os parâmetros constitucionais, seguindo as suas orientações para o ordenamento infraconstitucional, o que logicamente se estende para a criação dos tipos penais e suas respectivas punições atribuídas. • Como não poderia ser diferente, o Brasil, ao se consolidar, após o processo de redemocratização, em 1988, como um Estado Democrático de Direito, acabou por colocar a proteção ao meio ambiente como expressão de um direito à cidadania. Por sua vez, a aplicação deste conceito às relações envolvendo aproteção do meio ambiente é mais complexa do que parece, posto que o conceito moderno de cidadania é apresentado cada vez mais com novas dimensões. No início, mais precisamente no final do século XVIII, o conceito de cidadania formal era formulado apenas enquanto a obtenção do status de igualdade entre os indivíduos em um Estado Nacional. Depois, após a Segunda Grande Guerra Mundial, muito influenciado por estudiosos das Ciências Sociais, 116 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III esse conceito sofreu ampliação, passando, através do conceito da cidadania substantiva, a só ser atingido quando garantidos ao indivíduo amplos direitos sociais, políticos e civis. Hoje, novamente passando por uma ampliação de sua abrangência, há quem diga que a cidadania na modernidade só pode ser atingida quando, além da igualdade, grupos diferenciados dentro do território do Estado Nacional tenham também o direito a ser diferentes, sendo este o caso, por exemplo, dos indígenas, das comunidades quilombolas e dos outros grupos de povos e comunidades tradicionais que em geral existem no Brasil e que ocupam áreas relevantes também do ponto de vista ambiental. De qualquer maneira, o Direito Ambiental, quando somado à cidadania no Estado Democrático de Direito, inclui os direitos de solidariedade entre indivíduos e as futuras gerações, como explicado em momento anterior, quando tratamos dos direitos difusos, que traduzem uma forma coletiva de cidadania, e quando falamos da responsabilidade das presentes gerações por utilizar os recursos naturais sem comprometer o seu uso pelas gerações futuras, garantindo por estas vias a efetivação de direitos fundamentais. Vistos os indicativos constitucionais do que deve ser tutelado como meio ambiente, resta-nos entender como o Direito Penal considerado em suas próprias bases vai passar a contemplar a proteção do meio ambiente em sua sistemática. Lembrete Devemos começar considerando que na área penal a Constituição Federal de 1988 se voltou para diversas formas de criminalidade, sendo elas: econômica, social, financeira, popular e ambiental. De acordo com os raciocínios desenvolvidos neste trabalho até aqui, podemos dizer que o Direito Ambiental constitucional apresenta duas vertentes de atuação: a) a primeira expressa na imposição do seu efeito negativo, ou seja, no sentido de impor ao indivíduo um comportamento de não se destruir o meio ambiente, impondo o dever de sempre buscar sua preservação; e b) depois, por outro lado, a imposição de um dever positivo de atuação perante outras pessoas, físicas ou jurídicas (de direito público ou privado), fiscalizando condutas condenáveis para que o infrator se abstenha em favor do meio ambiente. Como mais uma possibilidade, surge o Direito Penal como mais um instrumento coercitivo diante da ineficácia de outros meios de proteção ambiental, somando-se a eles nesse objetivo. É importante termos a compreensão de que a imposição de preceitos constitucionais, como os até aqui elencados, acaba por vincular materialmente toda a cadeia de legisladores do Congresso Nacional na escolha dos bens jurídicos que devem ser protegidos, bem como na escolha da forma mais adequada para a atuação da política criminal quando da edição de uma nova lei. Além disso, os preceitos constitucionais também são importantes na medida em que também acabam por vincular a ação do Poder Judiciário, pois este deve cumprir seu papel na atualização constitucional, ou seja, deve interpretar as leis ordinárias de acordo com os preceitos da Constituição e com a evolução desejada pela sociedade no tempo. 117 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL Como já foi possível perceber até aqui, quando adentramos mais especificamente na análise da proteção penal do bem ambiental, não basta nos apropriarmos apenas do texto legal, por exemplo, do que está expresso na Lei de Crimes Ambientais, em comento neste tópico. É necessário ir além, abordando com clareza alguns conceitos considerados chave para a aplicação do Direito Penal em benefício do meio ambiente, sendo eles: bem jurídico; delito; e lesividade. Conceitos estes que ainda serão associados aos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, legitimando a intervenção penal nessa nova era de pretensões jurídicas da qual faz parte o direito ao meio ambiente. Podemos entender por bens jurídicos todos os valores essenciais à manutenção da convivência harmônica e pacífica dos homens em sociedade. Estes bens naturalmente estão atrelados ao critério de utilidade para o homem. Até por isso, sua relevância estará sempre identificada pelo Estado, que opta pela tutela/proteção jurídica desses bens, transformando-os em “bens jurídicos”. Tomando a sociedade moderna consciência da importância do meio ambiente para a sobrevivência do homem sobre a Terra, naturalmente este bem passou a compor interesse também da ciência do Direito Penal, que por sua vez passa a exercer uma racional concretização, seleção e individualização dos interesses merecedores de proteção penal. Sendo assim, a pena imposta é uma consequência ocasionada pela condição axiológica do bem, e este tem sua relevância para a sociedade exatamente na proteção exercida pela pena. Até por essa ordem de importância atribuída à proteção dos bens jurídicos através de uma pena protetiva, merece destaque a importância galgada pela proteção do meio ambiente na modernidade, pois o meio ambiente saiu de um quase anonimato para ser incluído em um seleto rol de bens penalmente protegidos no Brasil. Há autores que destacam essa evidente diferença entre tutelar e proteger um bem da vida, e incluí-lo no seleto rol dos bens jurídico-penais significaria um estágio avançado de proteção. Destacando que, para ser legítima a tutela penal, é necessário que o bem seja “digno” dessa proteção e que a lesão ou ameaça efetivamente mereça uma sanção penal, por se tratar de um bem indispensável para a manutenção da ordem social e da vida sobre a Terra. Devemos convir que, quando um bem jurídico é protegido sob a guarida da legislação criminal, qualquer um que ouse violar a proteção da lei penal acaba muito mais exposto socialmente do que quando o bem é protegido apenas civil e administrativamente. Nesse sentido, a urgência na proteção do bem acaba sendo refletida pela simples tutela penal atribuída ao bem pela sociedade. Seu estabelecimento deve ser observado tendo em vista a proporcionalidade entre a relevância do bem jurídico protegido e as consequências sociais estigmatizadoras (da prestação de serviços à comunidade, do pagamento de fiança e até do encarceramento), inexistentes nos outros ramos do Direito. No entanto, a aplicação das penas também sofre limitações, também fixadas na força das previsões contidas na Constituição Federal, pois este é o instrumento legitimado para ajudar tanto na concretização do conceito de bem jurídico a ser protegido – não apenas orientando o legislador, mas também com força vinculante limitativa do poder punitivo do Estado –, quanto trazendo limitações constitucionais ao legislador penal que podem ser observadas, por exemplo, nos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, traduzidos em princípios que devem ser levados em consideração quando da aplicação das sanções penais previstas para os crimes ambientais. 118 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III É inegável, portanto, que exista uma “dignidade penal” na atribuição dessa importância aos bens ambientais, pois as interferências do Direito Penal geralmente são reservadas a valores ou interessessociais, constitucionalmente relevantes, que guardam, por sua vez, intrínseca relevância com a dignidade da pessoa humana. Ao mesmo tempo, a necessidade de se proteger um bem penalmente revela o fracasso ou a necessidade de se complementar todo tipo de proteção antes dispensada ao bem jurídico em questão. É o que alguns dizem ser a “carência de tutela penal”, que se refere ao princípio da subsidiariedade, ou seja, a necessidade de criminalização de uma atitude em relação a um bem só se torna legítima quando a proteção dispensada pelos outros ramos do Direito não foi suficiente para proteger o bem jurídico, o que, no caso em comento, ocorre em relação à proteção do meio ambiente. Esse mergulho conceitual nos induz a acreditar que a inclusão da proteção ambiental através de um Direito Criminal Ambiental não se deu em vão. Podemos afirmar que a missão do Direito Penal em relação ao meio ambiente no Estado Democrático e Social de Direito vem para subsidiar a proteção dos bens jurídicos mais importantes na sociedade, contendo condutas inaceitáveis e inconciliáveis com as condições de uma convivência pacífica, livre e materialmente segura dos cidadãos com o lugar, o país e o planeta que habitam. Como bem jurídico o meio ambiente ganha uma proteção que se tornou e se torna cada vez mais legítima, na medida em que cada vez mais proteger o meio ambiente se assemelha a proteger a própria dignidade da pessoa humana, devendo ser observadas as especificidades e a multiplicidade que representam as diversas manifestações de vida. Mas a proteção penal do ambiente tem se desenvolvido como algo capaz de proteger os bens relacionados a um aspecto geral, isto é, de caráter supraindividual, ou seja, coletivos ou difusos, privilegiando esta possibilidade em detrimento de uma proteção do meio ambiente enquanto um bem pertencente a um determinado indivíduo. Além disso, como bem jurídico protegido penalmente, o meio ambiente, ao figurar inclusive como direito fundamental reconhecido pela Constituição Federal de 1988, atende a uma visão constitucional positivista; ou seja, a partir da sua aceitação como um bem jurídico-penal, ele passa a ser reconhecido como um conceito partindo das normas jurídicas hierarquicamente superiores às demais, quais sejam, aquelas que decorrem diretamente da Constituição Federal. Por essa abordagem, podemos entender a importância dada aos bens ambientais para a sociedade na recente história do Direito brasileiro. Essa nova percepção da importância dos bens ambientais fez a Constituição determinar a proteção criminal desses bens, elevando a relevância do bem jurídico em análise e dando maior visibilidade quanto à proteção desses bens a instituições e órgãos oficiais, o que se traduz na necessidade de sua proteção em âmbito penal. Quanto aos delitos, estes estão estritamente ligados ao próprio conceito de crime, ou seja, penalmente, haverá delito quando o ato praticado for típico (ou seja, previsto expressamente em Lei Penal), antijurídico (ou seja, contrário ao direito, ou que é permitido, recaindo sobre ele juízo reprovável) e culpável (ou seja, que se possa revelar a existência do grau de intenção – dolo – ou culpabilidade em relação ao agente que o praticou). 119 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL Assim, no Direito Penal, assim como qualquer direito não é estático, as proteções jurídicas de determinados bens podem ser alteradas, variando de acordo com o momento histórico e com o grupo social que se estuda; portanto, cada sociedade atribui ao bem o valor que acha justo. Seguindo esta lógica, alguns bens jurídicos, ao longo do tempo, deixam de ter relevância penal, assim como novas relações se apresentam como merecedoras de tutela. Foi o que aconteceu em relação à proteção do meio ambiente, que até pouco tempo atrás não contava com muitas proteções, mas que cada vez mais passa a requerer maior atenção e influenciar o desenvolvimento das demais atividades produtivas. Notamos que, na história recente, os bens ambientais e vários outros foram ameaçados, de modo que a sua destruição atingiu potenciais que ameaçaram a existência da própria sociedade que integramos. Essa ameaça ocorreu até como consequência do grau do avanço tecnológico da modernidade, que aumentou, muito, o grau de exploração dos recursos naturais, expondo-nos à condição de viver em uma sociedade chamada “pós-moderna” ou “de risco”, na medida em que o “progresso” e o “crescimento” passaram a caminhar com um grau de destruição que colocou em risco a própria manutenção da dignidade humana e da vida. Essa situação expôs alguns fatores, como a intensificação com que a tecnologia passou a fornecer novidades não experimentadas, salientando os riscos impostos à qualidade devida por seus impactos; consequentemente, a falta de dados sobre os resultados dessas novas tecnologias passou a exigir a aplicação do princípio da precaução, até que fossem satisfeitas as insuficiências de informações científicas quanto aos resultados que a aplicação da tecnologia poderia causar, ou até que se pudesse dimensionar sem maiores surpresas o potencial danoso que a nova tecnologia ou atividade pudesse causar. Mesmo sendo o princípio da precaução a regra-padrão que deve ser seguida na aplicação das leis ambientais – até pelas características de difícil reparação do dano causado ao meio ambiente –, não podemos deixar de mencionar que, por uma questão prática, excepcionalmente também pode ser aplicado às infrações penais ambientais o princípio da insignificância. De acordo com o que nos ensina Milaré (2004), mesmo ao considerarmos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado um dos direitos fundamentais da pessoa humana, o que, por si só, justifica a imposição de sanções penais contra atos que representem sua agressão, também é justificável, pela ampla gama de situações que se encontram como decorrentes de impacto humano sobre o meio ambiente, que a tutela/proteção penal do ambiente só seja chamada a intervir em casos nos quais as agressões atinjam valores fundamentais da sociedade, alcançando um nível intolerável, ou que sejam objeto de intensa reprovação do corpo social. Do contrário, a necessidade de controle das atividades humanas sobre o meio ambiente, pelas instituições do Estado, não seria possível de ser atingida. Conforme adiantamos anteriormente, a necessidade de dar proteção ao meio ambiente e a escolha da nossa sociedade de dar aos direitos ambientais um status jurídico privilegiado dentro do sistema de proteção criminal fez a estrutura penal em vigor também passar por adaptações para receber esta nova demanda. Assim, novamente reforçamos que, ao tratar dos bens relacionados aos chamados direitos de terceira geração, como o meio ambiente, a ordem econômica etc., enquanto bens jurídicos difusos, torna-se indispensável uma análise dos seus respectivos sistemas de proteção, que foram criados atendendo à característica supraindividual. 120 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III Desta forma, temos a instituição de um sistema constitucional e legal criado para proteger o meio ambiente, denominado de Direito Criminal Ambiental, que, por sua vez, surgiu e passou a ser objeto de diversas teorias, forjadas com a intenção de explicar uma nova forma de tutela/proteção penal ajustada aos novos paradigmas ambientais, sem desfigurar, no entanto, os preceitos do Direito Penal tradicional. Baseando-nos na análise de Fiorillo e Pegorari (2012), podemos detectar os esforços dos teóricos na tentativa de desvelar características que tiveram de ser incorporadas à Teoria do Direito Criminal, quando aplicada à proteção do meio ambiente. O primeirodeles reside na Teoria sobre a Imaterialidade de Alguns Bens Supraindividuais, em que os bens imateriais e transindividuais também são aproveitáveis diretamente aos indivíduos, pois são bens jurídicos intermediários. Sob os auspícios dessa teoria, poderíamos entender que a proteção ao meio ambiente pode ser detectada, por exemplo, através da manutenção de índices satisfatórios da poluição do ar que, por sua vez, são traduzidos como uma possibilidade de se atingir a proteção da saúde pública em um determinado local. Ora, segundo essa teoria, atingir um bem supraindividual ambiental, ou seja, “a qualidade do ar”, é o mesmo que garantir segurança para a saúde individual do cidadão. Ao passo que, se o bem supraindividual, ambiental não for assegurado para todos, não se estará assegurando, por via de consequência, garantia de direito que também atinge diretamente a cada indivíduo, ameaçando a qualidade ambiental que também deve estar disponível para cada um. Segundo essa Teoria Interpretativa, não se pode considerar que a lesividade ocorrida por um agente, no caso, o condutor de um carro com alto índice de emissão de poluente, através de uma conduta isolada, possa ser considerada insignificante, pois a permissão para que tal fato ocorra impunemente pode estimular tal ocorrência de maneira reiterada, por um grande número de outras pessoas, o que certamente causaria uma lesão irreparável ao bem jurídico supraindividual meio ambiente, causando a poluição do ar e a consequente lesão a um bem também individual daquele que tivesse sua saúde atingida. Por óbvio, estaríamos diante da Teoria dos Delitos Acumulativos, ou seja, causados por um acúmulo de atitudes causadas por um número incalculável de agentes. Outras teorias que passaram a compor o campo do Direito Criminal Ambiental dizem respeito à aplicação específica em alguns microssistemas da tutela/proteção ambiental, como é o caso das teorias que se ocuparam de possibilitar a existência da aplicação de culpa sobre a relação existente entre as pessoas jurídicas e suas práticas relacionadas à realização de infrações penais ambientais. Sobre essa possibilidade, temos a observar que é primeira vez que uma norma penal pode ser atribuída para responsabilizar, inclusive com a aplicação da imposição de restrição da liberdade, uma pessoa jurídica, o que pode ocorrer através de seus representantes legais. Além dessas teorias, como a proteção do meio ambiente apresenta características de imaterialidade (ou seja, nem sempre a proteção do bem pode ser palpável, por exemplo, a atribuição de responsabilidade pela poluição do ar) e da transcendência dos bens supraindividuais, verifica-se que a doutrina estrangeira vem sugerindo a adoção de soluções que passam pela utilização da atribuição de responsabilidade de maneira objetiva (independente de se provar que o bem ambiental foi lesionado pela empresa x ou y, todas respondem) e pela criação de crimes de perigo abstrato, em que o empreendedor assume de maneira direta a responsabilidade por eventuais danos. 121 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL A verdade é que o encaixe perfeito entre o novo Direito Criminal Ambiental, conforme sugerido pela Constituição Federal, e o Direito Penal tradicional nem sempre é possível, pois este novo direito possui características peculiares, que demandaram esforços. Porém, se considerarmos o papel cada vez mais preponderante que a proteção do meio ambiente está ganhando em nossa sociedade, somado às possibilidades adaptativas existentes no nosso sistema jurídico, esse cenário tenderá a se aprimorar e a se consolidar em nossa sociedade como algo cada vez mais respeitável e com penas cada vez mais duras para aqueles que insistem em desrespeitar os limites de exploração do meio ambiente. Observação Observando as características iniciais atribuídas ao Direito Criminal Ambiental, podemos passar à análise mais apurada da Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) e de seus dispositivos, que estão divididos em duas partes: a Parte Geral, compreendida entre os artigos 2º e o 28, em que se encontram previstas as normas penais e processuais penais gerais; e a Parte Especial, em que se encontram descritas as condutas consideradas infrações penais ambientais propriamente ditas. Iniciaremos nossa análise da Lei de Crimes Ambientais pela leitura do que dispõe o artigo 2ª, que assim está transcrito: Art. 2º. Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la. Pela leitura deste artigo já é possível perceber que a Parte Geral da Lei dos Crimes Ambientais, Lei nº 9.605/98, muitas vezes apenas repete a redação contida no Código Penal, ou no Código de Processo Penal, embora em outros trechos também crie institutos aplicáveis somente aos crimes ambientais. Portanto, nas partes em que remete a institutos preexistentes, a lei se preocupa em se apoiar em bases sólidas; já nas partes em que a lei traz novos institutos, notamos a aplicação do princípio da especialidade, conforme possibilidade contida no art. 12 do próprio Código Penal, em que graças a este princípio é possível a adaptação dos institutos penais aos objetivos da norma. O caso descrito é justamente o que acontece em relação ao dispositivo previsto no artigo 2º desta lei, transcrito anteriormente, em que podemos perceber na primeira parte que houve apenas uma repetição da redação constante no artigo 29 do Código Penal, que prevê que: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. O que pode ser percebido é que, de outra forma, o artigo 2º da Lei de Crimes Ambientais, conforme anteriormente descrito, apenas buscou outra forma de tratar do concurso de agentes na conduta 122 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III criminosa, admitindo a coautoria e a participação, seja por ação ou omissão, de pessoas físicas e/ou jurídicas. Aliás, em se tratando de infrações ambientais, podemos dizer que o concurso de agentes é bastante comum, já que na maioria das vezes os delitos das pessoas jurídicas são perpetrados através de pessoas físicas, que de alguma forma estão interligadas. Desta forma, vale a pena elucidar os requisitos capazes de configurar o concurso de pessoas, sendo eles: a) existência de dois ou mais agentes na conduta criminosa; b) nexo causal entre a lesão ao bem e a conduta do agente; c) vínculo psicológico entre os agentes (liame subjetivo); d) identidade de infração; e) existência de fato punível. A ausência de um dos requisitos leva à inexistência de concurso criminoso e à aplicação da pena a apenas um agente. As coincidências em relação a outras previsões legais contidas no Código Penal não param por aí, pois na segunda parte do artigo 2º transcrito anteriormente também há ainda outra previsão similar, agora conforme a disposição do art. 13, § 2º, do Código Penal, em que consta o dever jurídico de agir atribuído para diretores, administradores, membros de conselhos e de órgãos técnicos, auditores, gerentes, prepostos ou mandatários de pessoa jurídica. Nesse sentido, ambos os institutos colocam as pessoas citadas pela lei na posição de “garantidores” para que a conduta criminosa não seja realizada. Desta forma, podemos asseverar que o artigo 2º traz uma previsão especial de punição pela omissão que se tornapenalmente relevante, pois possibilita a punição de todas aquelas pessoas que passam a deixar de agir em concurso, o que ocorre no momento do comportamento omissivo de deixar de agir, quando deveria conter a conduta criminosa. Para Fiorillo e Pegorari (2012), a previsão do artigo 2º trata-se, na verdade, do chamado crime omissivo impróprio, espúrio ou comissivo por omissão, isto é, aquele em que o tipo penal descreve uma ação, mas a inércia do agente, ou seja, quem podia e devia agir para evitar o seu resultado naturalístico, é que caracteriza a sua produção. Nesse sentido, os autores lembram que deve existir uma relação de causalidade entre o fato atribuído e o agente criminoso, ou seja, ele deve ser beneficiado pela omissão detectada, bem como deve estar presente o binômio “dever/poder agir” para evitar o resultado, conforme prescrição legal. Assim, o poder de agir é a possibilidade real e efetiva de alguém, na situação concreta e em conformidade com as possibilidades de qualquer homem, evitar o resultado penalmente previsto como relevante. 5.1 Responsabilidade ambiental penal da pessoa jurídica Conforme antecipado em vários trechos deste trabalho, outra característica que marca a popularmente chamada Lei dos Crimes Ambientais, Lei nº 9.605/98, é o tratamento especial que ela dispensa às pessoas jurídicas em relação à atribuição de responsabilidades no caso do seu envolvimento em crimes ambientais; essa previsão está inicialmente contida nos artigos 3º e 4º da referida lei, que assim dispõe: Art. 3º. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja 123 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato. Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Interpretando a previsão legal anterior, temos que a responsabilidade penal indicada na Lei de Crimes Ambientais se dá em estrito atendimento à determinação constitucional do artigo 225, § 3º, da Constituição Federal. Assim, nota-se que a responsabilidade atinge tanto as pessoas físicas como as pessoas jurídicas, expandindo a noção sobre quem pode ser sujeito ativo para os delitos ambientais. Afinal, convenhamos que, embora um dano ambiental possa ocorrer através da conduta ativa ou omissiva de um agente, pessoa física, muitas vezes ele agiu para atender a ordens ou interesses de pessoas jurídicas, portanto acertou a lei em buscar mecanismos com o intuito de inibir as más práticas ambientais das empresas. Até por lidar com este novo contexto, podemos notar que a Lei nº 9.605/98 seguiu coerente a esta lógica de responsabilização das pessoas jurídicas, posto que os tipos penais constantes, ou seja, as condutas que podem ser consideradas criminosas pela lei, na maior parte dos dispositivos admite qualquer pessoa como sujeito ativo (são crimes comuns), tanto pessoa física como pessoa jurídica. Ressalvamos, no entanto, que a única exceção à regra anterior notada está na seção que trata dos “crimes contra a administração ambiental”, que vem prevista nos artigos 66 e 67. O que tecnicamente não poderia ser diferente, uma vez que trata na verdade de crimes próprios, porque exige que o agente seja funcionário público como característica peculiar para o sujeito ativo da conduta criminosa. Como toda tentativa de opor novidade ao sistema jurídico, devemos lembrar, no entanto, que as previsões constitucional e legal de atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica já foram objetos de diversas discussões entre estudiosos e operadores do Direito. Os que argumentam contrariamente à possibilidade de a pessoa jurídica ser responsabilizada penalmente alegam que essas não seriam dotadas de imputabilidade penal, ou seja, por se tratar de uma abstração jurídica, seria impossível impor uma punição penal de reclusão ou detenção a este ser abstrato, vez que a empresa não age por si, mas através da vontade de seus administradores; assim, consideram que a pessoa jurídica deve submeter-se apenas às sanções administrativas e não penais. No entanto, este posicionamento não tem sido muito bem-sucedido, principalmente porque quem advoga posicionamento contrário afirma que a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica deriva de previsão expressa e inquestionável decorrente do artigo 225, parágrafo 124 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III 3º da Constituição Federal e, ainda que não se enquadre nos institutos clássicos do Direito Penal, desperta no legislador a necessidade de criar novos mecanismos jurídicos capazes de impor maior responsabilidade às pessoas jurídicas, dada a importância da proteção ambiental atribuída por nossa sociedade na modernidade. Na prática, percebemos que a vontade do legislador, tanto constitucional como infraconstitucional, não é inviabilizar as atividades empresariais das pessoas jurídicas, até porque, se assim fosse, ele estaria agindo de forma contrária à lei que garante, como vimos, a proteção do valor social do trabalho e da livre-iniciativa; o que o legislador tem buscado é imputar maior responsabilidade à tomada de decisão das pessoas jurídicas, nem que para isso tenha de atribuir responsabilidade àquele indivíduo que agiu em seu nome. Ao analisar a lei, notamos que, de forma sábia, o legislador dispôs sobre os institutos de forma que não configure problema a atribuição de culpabilidade ao infrator pelos atos criminosos, na medida em que o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 deixa claro que, quando a conduta lesiva for praticada por decisão do(s) representante(s) legal(is) da empresa e em benefício dela, seus sócios, diretores e gerentes possuem, sim, culpa, de forma que se criou uma espécie de responsabilidade reflexa. Assim sendo, inicialmente, deve ser verificada a culpabilidade no nível da pessoa física, ou seja, se a pessoa física que causou a lesão ao meio ambiente for sócia, gerente, diretora etc. de pessoa jurídica, ou ainda se restará detectado que ao final a pessoa jurídica foi beneficiada pela conduta daquele agente, resta também configurado que a culpabilidade deve ser atribuída à pessoa jurídica. Só após esta verificação inicial é que restará estabelecida a responsabilidade penal também da pessoa jurídica. Através dessa lógica fica estabelecida o que para o Direito Penal é considerada a responsabilidade reflexa ou por ricochete, também chamada responsabilidade indireta ou de dupla imputação. Esse tipo de responsabilidade ganha este nome porque constitui alternativa apresentada para a aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, dentro do que se espera por uma chamada Teoria da Responsabilidade Social da empresa. Essa nova lógica, nascida da necessidade de adaptação do Direito Penal às novas necessidades supraindividuais, resolve o problema da culpabilidade no campo do juízo de reprovação social e criminal, pois, como veremos, para a punição da pessoa jurídica, não seria possível trabalhar com as tradicionais noções de culpabilidade, tipicidade e ilicitude, que se referem à conduta individual da pessoa humana. Por isso, na nova Lei de Crimes Ambientais, a estrutura tradicional da teoria do delito foi preservada, ou seja, o legislador prevê e codifica condutas que devem ser consideradas criminosas, prescrevendoa punição destinada ao infrator; mas a responsabilidade recebeu ampliação conforme necessidade encontrada para alcançar a pessoa jurídica, atingindo a moral econômica e de mercado que a configura. Isso porque a responsabilidade penal dos entes coletivos, pessoas jurídicas, não pode ser entendida como se faz nos casos da responsabilidade penal tradicional, pois, enquanto tradicionalmente a responsabilidade da pessoa física é baseada na culpa, na responsabilidade individual e subjetiva (ou seja, comprovada), a responsabilidade da pessoa jurídica, por ser uma abstração, deve ser entendida à luz de uma responsabilidade social do papel da empresa na sociedade. 125 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL No mais, devemos considerar que em tese a pessoa jurídica deriva de uma composição administrativa gerencial, tomando suas atitudes através de seus órgãos, cujas ações e omissões se confundem e são consideradas como da própria pessoa jurídica. Com as alterações políticas sugeridas pela Constituição Federal de 1988 para responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas pelos danos ambientais, há uma autorização político-constitucional expressa para que os conceitos clássicos da Teoria do Crime sejam alterados nestas condições, nascendo dessa necessidade uma teoria, chamada de Teoria da Dupla Imputação, que tanto consiste na atuação da pessoa física que age em nome e no interesse da pessoa jurídica para cometer crimes, como se utiliza da personalidade e a da culpabilidade dos representantes das empresas e dos interesses da pessoa jurídica que, somados, preenchem de modo satisfatório todos os elementos do Delito. Lembrete Quando uma pessoa jurídica estiver envolvida em crime ambiental, teremos na apuração e na responsabilização penal o concurso necessário entre pessoa física e pessoa jurídica, sendo esta a forma encontrada de fazer as teorias clássicas do Direito Penal atingirem também essa nova modalidade de crime. Este raciocínio tem-se consolidado como unânime no pensamento da maior parte da doutrina construída ultimamente; além disso, os próprios tribunais estão consolidando esse posicionamento como o mais correto em se tratando da aplicação da responsabilidade penal às pessoas jurídicas, conforme levantamento realizado por Fiorillo e Pegorari (2012), que nos trazem a transcrição de alguns julgados nesse sentido, conforme transcrito a seguir: Processual penal. Recurso Especial. Crimes contra o meio ambiente. Denúncia rejeitada pelo E. Tribunal a quo. Sistema ou teoria da dupla imputação. Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio” (STJ, REsp n. 889528 – SC, Rel. Min. FELIX FISCHER, 5ª Turma, DJ 17/04/2007). Recurso ordinário em mandado de segurança – direito processual penal – crime ambiental – Responsabilização da pessoa jurídica – possibilidade – trancamento da ação penal – inépcia da denúncia – ocorrência. 1. Admitida a responsabilização penal da pessoa jurídica, por força de sua previsão constitucional, requisita a actiopenalis, para a possibilidade, a imputação simultânea da pessoa moral e da pessoa física que, mediata, ou imediatamente, no exercício de sua qualidade ou atribuição conferida pelo estatuto social pratique o fato-crime, atendendo-se, assim, ao princípio do nullum crimen 126 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III sine actio humana. 2. Excluída a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas, o trancamento da ação penal, relativamente à pessoa jurídica é de rigor. 3. Recurso provido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício (RMS 16.696/PR – Relator Ministro Hamilton Carvalhido – DJ 13.03.06). Superior Tribunal de Justiça – Processo REsp 564960/SC; Recurso Especial 2003/0107368-4 – Relator(a) Ministro Gilson Dipp – Quinta Turma. Data do Julgamento 02/06/2005. Data da Publicação/Fonte DJ 13.06.2005, p. 331, RDR, v. 34, p. 419. Criminal. Crime ambiental praticado por pessoa jurídica. Responsabilização penal do ente coletivo. Possibilidade. Previsão constitucional regulamentada por lei federal. Opção política do legislador. Forma de prevenção de danos ao meio ambiente. Capacidade de ação. Existência jurídica. Atuação dos administradores em nome e proveito da pessoa jurídica. Culpabilidade como responsabilidade social. Corresponsabilidade. Penas adaptadas à natureza jurídica do ente coletivo. Recurso provido. I. Hipótese em que pessoa jurídica de direito privado, juntamente com dois administradores, foi denunciada por crime ambiental, consubstanciado em causar poluição em leito de um rio, através de lançamento de resíduos, tais como graxas, óleo, lodo, areia e produtos químicos, resultantes da atividade do estabelecimento comercial. II. A Lei Ambiental, regulamentando preceito constitucional, passou a prever, de forma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meio ambiente. III. A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial. IV. A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. V. Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal. VI. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito. VII. A pessoa jurídica só pode[rá] ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral. VIII. De qualquer modo, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado. IX. A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa. A coparticipação prevê que todos os envolvidos no evento delituoso serão responsabilizados na medida de sua culpabilidade. X. A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e 127 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL desconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica. XI. Não há ofensa ao princípio constitucional de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]”, pois é incontroversa a existência de duas pessoas distintas: uma física – que de qualquer forma contribui para a prática do delito – e uma jurídica, cada qual recebendo a punição de forma individualizada, decorrente de sua atividade lesiva. XII. A denúncia oferecida contra a pessoa jurídica de direito privado deve ser acolhida, diante de sua legitimidade para figurar no polo passivo da relação processual penal. XIII. Recurso provido, nos termos do voto do Relator (FIORILLO; PEGORARI, 2012, p. 34-42). Pelos julgadoscolacionados anteriormente, não restam dúvidas de que os tribunais superiores estão se utilizando da mesma construção teórica prevista no artigo 3º, parágrafo único, da Lei de Crimes Ambientais, considerando para fins de atribuição de responsabilidade penal das pessoas jurídicas a aplicação do concurso de agentes, reconhecendo também por esta via a possibilidade de coautoria ou participação entre pessoas físicas e jurídicas, na realização de atos criminosos contra o meio ambiente. Porém, devemos notar que a previsão legal não exige necessariamente o concurso, apenas faz referência à possibilidade de sua ocorrência, fixando inclusive a possibilidade da responsabilidade da pessoa física, apresentando, nesse sentido, sistemas paralelos de responsabilização, conforme também será verificado mais adiante. Tecendo maiores considerações sobre a distinção existente entre a responsabilidade da pessoa jurídica e a pessoa física, devemos observar que a doutrina da responsabilidade penal por consequência não desconsidera a autonomia entre a pessoa física e a jurídica, ao contrário, admite inclusive a possibilidade de haver responsabilização de ambas as pessoas na realização das infrações. Ao menos é o que se pode verificar pela possibilidade de penalizá-las simultaneamente, conforme autoriza o art. 3º, parágrafo único, da Lei nº 9.605/98. Depois, embora alguns autores possam apontar como inconstitucional a atribuição de responsabilidade por via reflexa, o que não é o entendimento dos tribunais conforme notado anteriormente, não se pode esquecer que ela deriva de uma norma constitucional originária, ou seja, a própria Lei de Crimes Ambientais, construída a partir da interpretação de dispositivo constitucional. Mesmo que levássemos em conta o princípio da unidade constitucional, a aplicação da norma, mesmo que destoante do sistema, deve ser feita pelo entendimento mínimo de uma exceção necessária, aplicável somente aos crimes ambientais. Por estes argumentos não pode prosperar a afirmação de que a pessoa jurídica não possui culpabilidade, pois, embora esse elemento seja considerado fundamental para o Direito Penal em geral, para o Direito Ambiental ele parece crucial e elementar. De fato, essa discussão em torno da responsabilidade penal da pessoa jurídica é algo crucial, tanto para a aplicação da norma penal ambiental na atualidade, como para a construção de novas possibilidades jurídicas de regulamentação da atividade empresarial e a atribuição de responsabilidades 128 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III pelo futuro do planeta. Por isso, tantas teorias e debates se fazem necessário; dentro dessa concepção, duas outras teorias ainda foram criadas: a primeira e a Teoria da Ficção, que remonta ao teórico von Savigny (séc. XVIII), segundo a qual a pessoa jurídica não seria dotada de capacidade de ação (consciência e vontade), característica inerente apenas à pessoa física, único sujeito ativo possível de delito; depois, contrariamente, a Teoria da Realidade, orgânica ou da personalidade real, concebida por Otto von Gierke, que atribui à pessoa jurídica autonomia, vontade e capacidade de ação. Conforme visto, tanto a Lei nº 9.605/98 como a prática dos tribunais acabaram por consagrar a segunda teoria em detrimento da primeira, adotando como mais adequada a Teoria da Realidade para a proteção ambiental em relação às pessoas jurídicas na atualidade, adaptando-se aos preceitos constitucionais para atender à necessidade de prevenção e repressão de delitos que atingem bens jurídicos ambientais, sobretudo diante do incremento dos danos causados e dos crimes cometidos no âmbito das empresas. Assim, a Lei nº 9.605/98 abandonou a chamada Teoria da Ficção, criada por von Savigny e tradicional em nosso sistema penal, segundo a qual as pessoas jurídicas são pura abstração, carecendo de vontade própria, consciência e finalidade, imprescindíveis para se ligarem ao fato típico, ou seja, prescrição legal, bem como de imputabilidade e capacidade para lhe ser atribuível qualquer culpa. Caiu, desta forma, a afirmativa de que as pessoas jurídicas são, por isso, incapazes de delinquir, sustentada na premissa de que faltam aos entes coletivos capacidade de ação no sentido estrito do Direito Penal (consciência e vontade), capacidade de culpabilidade (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa), além da capacidade de pena (princípio da personalidade da pena – a pena deve recair sobre o autor do delito, e não sobre todos os membros da corporação, bem como tem por escopo a ideia de retribuição, intimidação e reeducação). Agora todas essas limitações teóricas se encontram superadas. Outros argumentos que sempre são utilizados para deslegitimar a responsabilidade penal da pessoa jurídica se relacionam à impossibilidade de se impor pena privativa de liberdade às pessoas jurídicas, característica marcante do Direito Penal, que de fato não é aplicável à pessoa jurídica, fator que segundo alguns autores descaracterizaria a tutela penal. Porém, independentemente da veracidade das alegações, o que importa de fato é que o Código Penal prevê alternativas a esta alegação, listando outras espécies de penas, conforme pode ser verificado da leitura do artigo 32 do Código Penal, que assim dispõe sobre a possibilidade de penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, além da pena de multa. Portanto, levando ainda em consideração que a Constituição Federal estabelece as espécies de penas aplicáveis e em nenhum momento limita a aplicação da responsabilidade penal à imposição de pena privativa de liberdade, devemos considerar que as pessoas jurídicas podem ser responsabilizadas pelas demais possibilidades de pena, cumprindo por outra via a vontade do legislador em punir pessoas jurídicas infratoras dos tipos penais ambientais. A previsão de penas alternativas, como aplicação de multa ou de prestação social, dentre outras possibilidades, encontra guarida na permissão constitucional contida no artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal, que assim dispõe: 129 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos. Assim, a lei que disciplina os crimes ambientais, pautada pela permissão constitucional citada anteriormente, estabeleceu no artigo 21 que as sanções próprias aplicáveis às pessoas jurídicas, em atendimento às suas peculiaridades, poderiam ser outras que não as de privação ou restrição da liberdade, até pela impossibilidade de aplicação do instituto jurídico, conforme antes explicado, passando a discipliná-las da seguinte maneira: Art. 21. As penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas, de acordo com o disposto no art. 3º, são: I – multa; II – restritivas de direitos; III – prestação de serviços à comunidade. Outro método punitivo para pessoas jurídicas que merece destaque na Lei de Crimes Ambientais é a previsão contida no artigo 10 da referida lei, que busca a punição através da limitação das possibilidades de negócio da pessoa jurídica. Essa limitação reside na interdição temporária de direitos até a proibição de contratar com o Poder Público, de receber incentivos fiscais ou de receber quaisquer outros benefícios públicos, bem como de participar de licitações, pelo prazo de cinco anos, no caso de crimes dolosos, ou seja, em que restou configurada a vontade da empresa de cometer o crime, e de três anos, no decrimes culposos, em que não houve a intenção da empresa de cometê-lo. Talvez esse instrumento punitivo seja a previsão mais eficaz e atemorizante que leve a uma maior responsabilidade ambiental pelas grandes empresas que desejam negociar com o Estado. Finalmente, há quem argumente contrariamente à atribuição de responsabilidade da empresa, alegando que os sócios que não têm direito a voto ou veto podem ser atingidos pela responsabilidade penal mesmo que não tenham participado da decisão que levou ao cometimento do crime ambiental. Nesse sentido, a aplicação da pena, para estes teóricos, se afiguraria como violadora do princípio da intranscendência, extrapolando os limites de que cometeu a infração e atingindo pessoa alheia a ele, no caso, o sócio sem poderes de voto e de veto. 130 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III A posição teórica contrária a estes argumento sustenta que este motivo não é suficiente para se deixar de atribuir a responsabilidade penal a empresas e pessoas jurídicas, pois em contraposição alega que, também quando a pessoa física é punida penalmente, outras pessoas não diretamente ligadas à infração penal acabam sendo indiretamente atingidas; exemplo disso pode ser verificado na família de um condenado preso, que da mesma forma acaba privada do contato familiar diário e, até mesmo, da participação da renda daquele que foi condenado. No entanto, mesmo diante de mais este argumento contra essa opção político-constitucional de inclusão da responsabilidade penal da pessoa jurídica em danos ambientais, a jurisprudência nacional tem consolidado essa nova possibilidade, conforme pode ser verificado nos julgados colacionados: A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2 de junho de 2005, condenou uma pessoa jurídica de direito privado em razão de ter praticado crime ambiental ao causar poluição em leito de um rio por meio de lançamento de resíduos de graxas, óleo, produtos químicos, areia e lodo resultante da atividade do estabelecimento comercial, conforme prevê o artigo 54, § 2º, V, e artigo 60 da Lei nº 9.605/98 (STJ, REsp 564.960-SC, 2003/0107368-4, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 02/6/2005, DJ 13.06.2005, p. 331). O Ministro Relator Gilson Dipp ressaltou que “a decisão atende a um antigo reclamo de toda a sociedade contra privilégios inaceitáveis de empresas que degradam o meio ambiente [...]. A Constituição Federal de 1988, consolidando uma tendência mundial de atribuir maior atenção aos interesses difusos, conferiu especial relevo à questão ambiental [...]”. Em sentido contrário: STJ, REsp 622.724-SC, Rel. Min. Felix Fischer, j. 18/11/04 (FIORILLO; PEGORARI, 2012, p. 42). Dados os cuidados tomados tanto pelo legislador constitucional como pelo legislador infraconstitucional, nos parece que a questão principal hoje não mais se relaciona à atribuição ou não da responsabilidade à pessoa jurídica, o que até pelos julgamentos das cortes nacionais parece estar pacificado. Até porque a previsão, para que a responsabilidade penal seja atribuída também pela lei infraconstitucional, é algo que deriva de previsão expressa da própria Constituição Federal que legitima e valida o que dispõe a Lei de Crimes Ambientais, por exemplo. Hoje, porém, o maior desafio da discussão que cerca os delitos ambientais e a atuação das pessoas jurídicas deve ocorrer diante de eventuais lacunas legislativas, ou seja, de possíveis condutas prejudiciais ao meio ambiente e que ainda não foram objeto de previsões punitivas pela legislação. Da mesma forma, outras preocupações devem ocorrer diante da necessidade de se criar mecanismos que garantam a efetiva viabilização da aplicação de sanções penais às empresas, o que, por um lado, reduziria a sensação de impunidade e, por outro, colocaria maior seriedade na gestão administrativa das empresas diante do desafio ambiental que se apresenta. 131 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 DIREITO E LEGISLAÇÃO AMBIENTAL Nesse sentido, o critério da aplicabilidade prática e da efetividade dos dispositivos legais que preveem as punições para lesões ou ameaças de lesões aos bens ambientais se tornará cada vez mais algo exigível, até porque é exponencial o desenvolvimento econômico e tecnológico das empresas, o que impõe cada vez mais e com mais velocidade o incremento de formas cada vez mais significativas da devastação ambiental; sem dúvida, para o Direito, criar condições de responder à altura e com velocidade aos desafios que as tecnologias de exploração impõem é uma aspiração constante. Esperamos até aqui ter dirimido quaisquer dúvidas que possam pairar sobre a possibilidade de atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica pelas condutas lesivas praticadas contra o meio ambiente; essa não é só uma expectativa: trata-se de um clamor popular da modernidade. Sendo assim, o legislador foi corajoso ao permitir a punição dessas empresas, por atender à tendência mundial de responsabilização; porque boa parte dos delitos ambientais é praticada por pessoas jurídicas, públicas ou privadas, ou ainda em benefício destas; ou por se alinhar às necessidades de proteção trazidas pela globalização e sua influência no desenvolvimento econômico e tecnológico na chamada sociedade da informação e/ou sociedade de risco. 5.2 Desconsideração da personalidade jurídica Conforme visto anteriormente, o artigo 2º da Lei de Crimes Ambientais, baseado em permissão constitucional, pode atribuir ao diretor, ao administrador, ao membro de conselho e de órgão técnico, ao auditor, ao gerente, ao preposto ou ao mandatário de pessoa jurídica a responsabilidade por crimes ambientais, desde que estas pessoas saibam da conduta criminosa da pessoa jurídica ou de outrem e deixem de impedir a sua prática, quando podiam agir para evitá-la. Devemos notar que a condenação como responsável penal pelo dano não exime da responsabilidade por reparar o dano causado. Mas nem sempre a atuação dos órgãos da pessoa jurídica assume esse dever, podendo esse ônus até ser objeto de conflitos internos na estrutura administrativa da pessoa jurídica condenada e entre os seus membros mencionados no artigo 2ª da legislação. Antevendo possíveis conflitos que pudessem impedir ou dificultar a reparação do dano pela pessoa jurídica, o legislador infraconstitucional decidiu se antecipar e incluir no artigo 4º da Lei de Crimes Ambientais a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, evitando, com isso, eventual frustração ao ressarcimento de prejuízos causados ao meio ambiente. Conforme nos explica Andreucci (2009), a Lei de Crimes Ambientais se antecipou, se apropriando de uma discussão que já havia sido iniciada sobre a responsabilidade das pessoas jurídicas ao longo do tempo. Vejam: em outros tempos, a sociedade pregava o fortalecimento indiscriminado e a qualquer custo das atividades empresariais, porque era essa a lógica do progresso pautada pelo crescimento ilimitado. Sob esta ótica, foram sendo criados mecanismos jurídicos, cada vez mais eficazes, que objetivavam a proteção da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, assegurando cada vez mais uma distinção total entre as atividades empresariais e a vida econômica de seus integrantes. Esse tipo de segurança jurídica aos donos dos meios de produção visava incentivar a iniciativa privada, que, por meio das 132 Re vi sã o: V irg ín ia - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 6/ 06 /1 5 Unidade III atividades econômicas, deveria promover o desenvolvimento da economia, reduzindo a necessidade de intervenção estatal. Em tese, assegurar a autonomia das empresas era quase o mesmo que proteger a pessoa e o patrimônio
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