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2018 Biodireito Profª Georgia Fontoura Profª Liliani Carolini Thiesen Copyright © UNIASSELVI 2018 Elaboração: Profª Georgia Fontoura Profª Liliani Carolini Thiesen Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 340.0202 F677b Fontoura, Georgia Biodireito / Georgia Fontoura; Liliani Carolini Thiesen. Indaial: UNIASSELVI, 2018. 187 p. : il. ISBN 978-85-515-0142-9 1. Direito Público e Privado. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci III ApresentAção Caro acadêmico, vivemos em tempos de rápidas e profundas transformações geradas pelas inovações tecnocientíficas, que tem colocado a humanidade frente a inúmeros dilemas éticos e jurídicos. Você já parou para pensar sobre o impacto da biotecnologia em nossas vidas? De que forma as relações e a vida em nosso entorno se modificaram com o avanço tecnológico e científico? Quais os parâmetros éticos e jurídicos mínimos para a conduta humana frente às inovações tecnológicas? Em que medida devemos prosseguir com este progresso científico sem conhecer os possíveis impactos para o ecossistema e as gerações futuras? Os benefícios oriundos desse avanço científico são igualmente distribuídos? Bem, estas são algumas questões que iremos aprofundar e refletir juntos neste Livro de Estudos. Na Unidade 1, iremos compreender a origem da Bioética, o processo histórico do desenvolvimento deste conceito no mundo científico e acadêmico, sua interface com o Biodireito e os Direitos Humanos, bem como os desafios interpostos pela biotecnologia nos dias atuais. A Unidade 2 trará informações acerca da evolução da pesquisa em seres humanos e seus princípios ético-jurídicos, iremos conhecer o projeto genoma humano, que é um dos maiores e mais ambiciosos projetos científicos de todos os tempos, vamos explorar o mundo da engenharia genética e biotecnologia, que com suas extraordinárias descobertas biotecnológicas trouxeram a clonagem humana e os organismos geneticamente modificados, além de conhecer a legislação sobre os dados genéticos humanos e aspectos bioéticos. Já a Unidade 3 abordará temas referentes ao ciclo da vida humana, começando com a reprodução humana assistida e a esterilização humana artificial, teremos um vislumbre do mercado de tráfico de órgãos, o funcionamento do transplante de órgãos no Brasil e sua legislação, os conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia e o posicionamento do direito brasileiro sobre esse tema. Por fim, conheceremos a terapia com células-tronco, seu conceito, seu histórico, aspectos bioéticos e os aspectos legais da utilização de células-tronco. Está será uma longa jornada de reflexões e aprendizagens sobre temas polêmicos e contemporâneos, fomentadores de debates éticos e questionamentos jurídicos. Portanto, à medida que avançar em seus estudos, você poderá constatar que são de suma importância para sua carreira profissional e humana. Desejamos a você uma ótima leitura! Bons estudos! Profª Georgia Fontoura Profª Liliani Carolini Thiesen IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA V VI VII UNIDADE 1 - BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA .................................................1 TÓPICO 1 - BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS .......................................................................................3 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................3 2 BIOÉTICA ............................................................................................................................................3 2.1 ORIGEM .........................................................................................................................................4 2.2 CONCEITO .....................................................................................................................................9 2.3 PRINCÍPIOS ...................................................................................................................................11 2.4 CLASSIFICAÇÃO ..........................................................................................................................13 3 BIODIREITO ......................................................................................................................................14 3.1 CONCEITO .....................................................................................................................................14 3.2 PRINCÍPIOS ...................................................................................................................................16 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................20 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................21 TÓPICO 2 - BIOÉTICA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS ....................................................23 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................23 2 DIREITOS HUMANOS E ASPECTOS BIOÉTICOS ...................................................................23 2.1 CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS .............................24 2.2 DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS .....................30 3 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA COMO FUNDAMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ............................................................................31 4 BIOÉTICA E O DIREITO DE PERSONALIDADE ......................................................................33 4.1 DIREITO À VIDA ..........................................................................................................................35 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................38 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................44 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................45TÓPICO 3 - BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA ...........................................................................47 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................47 2 BIOTECNOLOGIA .............................................................................................................................47 2.1 ATIVIDADES BIOTECNOLÓGICAS ..........................................................................................48 2.2 REGULAÇÃO LEGAL DA BIOTECNOLOGIA ........................................................................49 2.3 IMPACTOS DA BIOTECNOLOGIA ...........................................................................................50 3 BIOTECNOLOGIA, BIOSSEGURANÇA E BIODIREITO EM ÂMBITO NACIONAL E INTERNACIONAL .......................................................................52 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................55 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................58 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................59 UNIDADE 2 - BIODIREITO E EXPERIMENTAÇÕES CIENTÍFICAS EM SERES HUMANOS E ANIMAIS ................................................................................................61 TÓPICO 1 - PESQUISA COM SERES HUMANOS E ASPECTOS ÉTICO-JURÍDICOS ........................................................................................................63 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................63 sumário VIII 2 PESQUISA COM SERES HUMANOS ...........................................................................................63 2.1 HISTÓRICO ....................................................................................................................................64 2.2 PRINCÍPIOS ÉTICO-JURÍDICOS ................................................................................................69 2.3 ASPECTOS LEGAIS NO ÂMBITO NACIONAL E INTERNACIONAL ...............................71 2.4 RESPONSABILIDADE CIVIL EM FACE DAS PESQUISAS EM SERES HUMANOS: EFEITOS DO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ................................................74 3 MÉTODOS ALTERNATIVOS ..........................................................................................................74 4 COMITÊS DE ÉTICA EM PESQUISA ............................................................................................75 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................77 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................78 TÓPICO 2 - ENGENHARIA GENÉTICA E PESQUISAS COM GENOMA HUMANO .........79 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................79 2 ENGENHARIA GENÉTICA E BIOTECNOLOGIA .....................................................................79 3 PROJETO GENOMA HUMANO ....................................................................................................83 3.1 HISTÓRICO ....................................................................................................................................85 3.2 LEGISLAÇÃO SOBRE OS DADOS GENÉTICOS HUMANOS ..............................................86 4 MANIPULAÇÃO GENÉTICA E SEUS LIMITES: IMPACTOS ÉTICO-JURÍDICOS ..........91 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................94 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................95 TÓPICO 3 - CLONAGEM E BIODIREITO ......................................................................................97 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................97 2 CLONAGEM HUMANA ...................................................................................................................97 2.1 CONCEITO .....................................................................................................................................100 2.2 HISTÓRICO ....................................................................................................................................101 3 CLONAGEM REPRODUTIVA E TERAPÊUTICA .......................................................................102 4 ASPECTOS ÉTICO-JURÍDICOS ....................................................................................................104 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................108 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................109 TÓPICO 4 - ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS: A QUESTÃO DOS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS ....................................................................111 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................111 2 ALIMENTOS TRANSGÊNICOS .....................................................................................................111 2.1 CONCEITO .....................................................................................................................................112 2.2 HISTÓRICO ....................................................................................................................................113 2.3 IMPACTOS, RISCOS E BIOSSEGURANÇA .............................................................................115 3 ALIMENTOS TRANSGÊNICOS NO BRASIL .............................................................................118 3.1 EVOLUÇÃO ..................................................................................................................................118 3.2 PERSPECTIVA ................................................................................................................................121 4 DEBATES ATUAIS SOBRE A SEGURANÇA DOS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS E O DIREITO DOS CONSUMIDORES ......................................................121 4.1 ROTULAGEM ................................................................................................................................121 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................123 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................124 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................125 UNIDADE 3 - BIODIREITO E O DIREITO À VIDA: NOVAS TÉCNICAS CIENTÍFICAS E IMPACTOS ÉTICO-JURÍDICOS ........................................................................127 TÓPICO 1 - REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA E SUAS CONSEQUÊNCIAS ÉTICO-JURÍDICAS .........................................................................................129 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................129 IX 2 REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA ......................................................................................1292.1 CONCEITO .....................................................................................................................................129 2.2 HISTÓRICO ...................................................................................................................................131 2.3 EVOLUÇÃO NO BRASIL .............................................................................................................133 3 ASPECTOS BIOÉTICOS DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA ................................134 4 ESTERILIZAÇÃO HUMANA ARTIFICIAL .................................................................................137 4.1 TIPOS DE ESTERILIZAÇÃO .......................................................................................................137 4.2 QUESTÃO DA PATERNIDADE ..................................................................................................139 5 PERSPECTIVAS E DEBATES ATUAIS SOBRE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA .....................................................................................................................141 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................142 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................144 TÓPICO 2 - BIODIREITO E OS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS ......................145 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................145 2 TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS.................................................................................145 2.1 ESPÉCIES DE TRANSPLANTE ...................................................................................................146 2.2 PRESERVAÇÃO DE ÓRGÃOS PARA TRANSPLANTE .........................................................147 3 ASPECTOS BIOÉTICOS E LEGAIS DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS ................................................................................................................148 3.1 MERCADO DE ÓRGÃOS E TECIDOS HUMANOS ................................................................150 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................152 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................153 TÓPICO 3 - EUTANÁSIA E DIREITO À MORTE DIGNA ..........................................................155 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................155 2 EUTANÁSIA ........................................................................................................................................155 2.1 CONCEITO .....................................................................................................................................156 2.2 HISTÓRICO ....................................................................................................................................157 2.3 EUTANÁSIA E O CÓDIGO PENAL ...........................................................................................158 3 BIOÉTICA DA EUTANÁSIA ...........................................................................................................159 3.1 ARGUMENTOS ÉTICOS DA EUTANÁSIA ..............................................................................160 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................162 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................163 TÓPICO 4 - ASPECTOS BIOÉTICOS DA TERAPIA COM CÉLULAS-TRONCO ..................165 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................165 2 TERAPIA COM CÉLULAS-TRONCO ............................................................................................165 2.1 CONCEITO .....................................................................................................................................165 2.2 HISTÓRICO ....................................................................................................................................167 3 ASPECTOS BIOÉTICOS DA TERAPIA GÊNICA DE CÉLULAS GERMINATIVAS ..........168 3.1 EXPERIMENTAÇÃO COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS ...................................169 3.2 ASPECTOS LEGAIS DA UTILIZAÇÃO DE CÉLULAS-TRONCO ........................................170 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................171 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................173 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................174 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................175 X 1 UNIDADE 1 BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • compreender o que é Bioética, Biodireito e Biotecnologia; • identificar os princípios que envolvem a Bioética e o Biodireito; • estabelecer a interface entre a Bioética e o Direito; • estimular a reflexão de padrões éticos e potencializar a visão humanística acerca do Direito; • refletir acerca dos benefícios, impactos e riscos da biotecnologia e biomedicina; • apresentar a evolução do conceito de direitos humanos, sua relação e im- portância para os debates bioéticos. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS TÓPICO 2 – BIOÉTICA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS TÓPICO 3 – BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, seja bem-vindo a esta caminhada para estudar e compreender os principais temas que envolvem os debates bioéticos, o desenvolvimento do Biodireito face às relações advindas das descobertas científicas e biotecnológicas, bem como os dilemas contemporâneos acerca dos impactos e riscos do desenvolvimento tecnológico para a humanidade. O conhecimento determina o modo de pensar, agir e intervir na vida, com consequências para os seres humanos e todo ecossistema. Cada vez mais os avanços da ciência têm afetado as relações e a vida dos seres humanos e das outras espécies, produzindo novas realidades que permitiram a interferência na natureza e no próprio indivíduo. Como você pode perceber, a Bioética e o Biodireito estudam e debatem temas polêmicos e contemporâneos que envolvem a vida e a tecnologia. Você já parou para pensar quais seriam os limites éticos que envolvem a manutenção da vida? Qual o impacto que a tecnologia tem em sua vida? Ou a rapidez das transformações que tivemos em nossa sociedade no último século devido ao avanço científico? Afinal, o que é bioética? O que é e para que serve o biodireito? E quais as relações entre ambos? Estes são justamente alguns dos pontos que estudaremos nesta unidade. A partir do próximo tópico você poderá se aprofundar sobre a origem, definições e princípios bioéticos, bem como o impacto nas relações humanas e seus decorrentes conflitosjurídicos na sociedade hodierna. Estão preparados para desbravar e refletir? Então, vamos aos estudos! 2 BIOÉTICA O desenvolvimento das ciências biomédicas, da engenharia genética e da biotecnologia provocou uma série de mudanças nas perspectivas da vida. Neste sentido, compreende-se que, na medida em que essas tecnologias vêm avançando, os paradigmas em torno da ética na vida humana, bem como os riscos ao ecossistema, são questões fundamentais a serem refletidas atualmente. UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 4 2.1 ORIGEM A bioética, enquanto ciência, tem sua origem em meio às profundas mudanças sociais, políticas e culturais ocorridas principalmente após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O desenvolvimento científico e tecnológico, por um lado, provocou imensos progressos para a época, e por outro, abusos e ações cruéis, especialmente nas pesquisas envolvendo seres humanos. Durante a vigência do nazismo, o ordenamento jurídico alemão legitimava uma política racista pautada nos princípios da eugenia. Dentre os experimentos realizados nos campos de concentração podem-se citar: o congelamento humano, para simular as condições de batalha do exército alemão no leste da Europa; infecção com malária, para teste de medicamentos para imunização da doença; exposição ao gás mostarda, para testes de tratamentos das feridas causadas pelo gás; infecção com bactérias que provocavam o tétano, para investigar a eficácia da sulfonamida – um agente antimicrobiano sintético –; testes dos limites fisiológicos do consumo de água do mar; exposição à radiação, como método para esterilização; experimentos com crianças com objetivo de torná-las mais fortes e com traços mais próximos ao padrão ariano. Deste modo, em decorrência de tamanhas atrocidades que aconteceram durante a Segunda Guerra Mundial, foi constituído o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg para julgamento de dirigentes nazistas. Em 19 de agosto de 1947 foram divulgadas as sentenças das 24 pessoas acusadas, sendo 20 médicos, e um outro documento, que ficou conhecido como Código de Nuremberg. FIGURA 1 – JULGAMENTO DE NUREMBERG FONTE: Disponível em: <https://www.ushmm.org/learn/timeline-of-events/1942-1945/ international-military-tribunal>. Acesso em: 25 out. 2017. TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 5 DICAS Se você quiser conhecer mais sobre o Tribunal de Nuremberg, assista ao filme “O Julgamento de Nuremberg”, que retrata um dos acontecimentos mais emblemáticos da história, em 1947, na Alemanha. Nesse julgamento, alguns líderes nazistas reconhecem seus atos e pedem desculpas à humanidade, outros afirmam que estavam apenas cumprindo ordens legais, culminando em um marco histórico na crítica ao positivismo jurídico. FONTE: Disponível em: <https://culturaeviagem.wordpress.com/2014/04/02/o- -filme-o-julgamento-de-nuremberg-aula-de-historia-direito-e-filosofia-para- -a-humanidade-refletir/>. Acesso em: 25 out. 2017. O Código de Nuremberg é considerado um marco histórico para a bioética, pois pela primeira vez um documento internacional estabelecia parâmetros éticos, recomendados internacionalmente, a serem observados nas pesquisas que envolvam seres humanos. Esse Código estabeleceu as bases do consentimento informado e alguns princípios basilares que devem ser assegurados: 1. O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente. 2. O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente. 3. O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento. 4. O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais. 5. Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento. 6. O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe a resolver. UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 6 7. Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota. 8. O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 9. O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento. 10. O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes (CÓDIGO DE NUREMBERG, 1949, p. 181-182). Diante desses acontecimentos, a compreensão de que a relação médico- paciente sempre será benevolente e de que a ciência sempre estará atuando em prol da humanidade foi colocada sob questionamento. Para Lopes (2014), o Julgamento de Nuremberg abala dois grandes paradigmas: o do paternalismo médico e o da suposta neutralidade científica. Segundo Pessini e Garrafa (2013), as raízes do neologismo “bioética” acontecem em dois momentos distintos. Até pouco tempo, o bioquímico Van Rensselaer Potter era reconhecido como a primeira pessoa a utilizar o neologismo “bioethics”. Contudo, pesquisas recentes descobrem que, em 1927, o teólogo alemão Paul Max Fritz Jahr publicou o artigo “Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas" na Revista Kosmos. Até pouco tempo, a divulgação do termo bioética foi atribuída a Van Rensselaer Potter através do artigo “Bioética: Ciência da Sobrevivência” (1970), que posteriormente compõe um capítulo de seu livro “Bioética: Ponte entre a ciências e as humanidades” (1971). FIGURA 2 – VAN RENSSELAER POTTER E SUA OBRA “BIOETHICS: BRIGET TO THE FUTURE” FONTE: Disponível em: <https://alchetron.com/Van-Rensselaer-Potter>. Acesso em: 7 ago. 2017. TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 7 FIGURA 3 – EDIÇÃO DA REVISTA KOSMOS EM QUE FOI PUBLICADO ARTIGO SOBRE BIOÉTICA DE FRITZ JAHR FONTE: Disponível em: <https://bioamigo.com.br/category/histo ria-da-medicina/>. Acesso em: 9 ago. 2017. Potter justificou que a escolha do termo radical bios (vida) se refere aos seres vivos e às ciências biológicas, e ethos (ética) se refere ao conjunto de valores humanos. Em sua obra, caracterizou a bioética como uma ponte, estabelecendo uma interface entre as ciências e a humanidade que garantiriaa possibilidade do futuro, considerando a Bioética como uma “ciência da sobrevivência”. Para ele, a participação do homem na evolução biológica poderia garantir sua sobrevivência na Terra. “Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos” (POTTER, 1971, p. 2). No final da década de 1980, Potter ampliou o conceito da bioética ponte, enfatizando sua característica interdisciplinar e mais abrangente, denominando-a de global. Uma ética global para preservar a sobrevivência humana, de modo a relacionar todos os aspectos do viver, envolvendo a saúde e a questão ecológica. Posteriormente, em 1998, Potter expõe a ideia de bioética profunda, a qual compreende o planeta como um grande sistema biológico entrelaçado e interdependente, em que o centro não é o ser humano, mas a própria vida (PESSINI; GARRAFA, 2013). Até pouco tempo Potter era reconhecido como o primeiro a utilizar o neologismo bioética. Contudo, nos anos 1990 foi descoberto pelo professor Rolf Lother, da Universidade Humboldt de Berlim, um histórico artigo do alemão Fritz Jahr que já cunhava o termo. Segundo Goldim (2006), Jahr caracterizou a bioética como o reconhecimento de obrigações éticas para com todos os seres vivos, não apenas com os seres humanos. Em seu artigo, desenvolveu a ideia do imperativo bioético que ampliava o imperativo moral de Kant para todas as formas de vida: “Respeita cada ser vivo em princípio como uma finalidade em si e trata-o como tal na medida do possível” (JAHR, 1927 apud GOLDIM, 2006, p. 86). UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 8 Hans-Martin Sass (2011) reúne uma coletânea dos ensaios escritos por Jahr e apresenta um escrito sobre seu imperativo bioético de forma sistematizada, apontando sua visão bioética e a expansão das ideias de Kant. Nesse sentido, Sass (2011, p. 273-275) identifica alguns aspectos sobre o imperativo bioético de Jahr: 1. Uma nova disciplina acadêmica: o imperativo bioético deve ser “desenvolvido para educar e nortear as atitudes coletivas e individuais morais e culturais e exige novas responsabilidades e respeito com todas as formas de vida”. 2. Uma nova Ética de Virtude integradora e fundamental: o Imperativo Bioético baseia-se nas evidências históricas e outros indícios de que a compaixão é um fenômeno empírico estabelecido da alma humana. 3. Um novo Princípio da Regra de Ouro: o Imperativo Bioético reforça e complementa os deveres e o reconhecimento morais com os irmãos no contexto kantiano e tem de ser seguido em relação à cultura humana e obrigações morais mútuas entre os seres humanos. 4. Uma nova Regra de Cuidados com a Saúde Pessoal e Ética na Saúde Pública: o Imperativo Bioético inclui obrigações com o corpo e a alma de alguém enquanto ser vivo. 5. Uma nova Regra de Cuidados com a Saúde Pública e Ética: Jahr expressa uma visão crítica e conservadora sobre as questões de saúde pública, na qual cumprir as obrigações com alguém é também um dever com os outros e a saúde pública, realçando a estreita interação dos cuidados com a saúde pessoal e pública. 6. Uma nova Regra de Gestão Global e Ética: Jahr propõe uma regra universal ética de cuidar positivamente e proativamente da saúde e da vida deste globo como parte de um cosmos vivo, que resulta no imperativo bioético “Respeite cada ser vivo por questão de princípios e trate-o, se possível, como tal!”. 7. Uma nova Regra de Gestão e Ética Corporativa: o Imperativo Bioético tem de reconhecer, guiar e cultivar a luta pela vida entre as formas de vida e os ambientes vivos culturais e naturais. 8. Uma nova Regra de Terminologia e Ética Terminológica: Jahr inventou o termo bioética, pois via a necessidade de uma terminologia clara e precisa para definir nosso relacionamento com as formas de vida da realidade como diferente em relação às formas inanimadas e estabelecer a gestão da ciência e tecnologia mais modernas e suas aplicações de modo moralmente responsável. 9. Uma nova Regra e Ética de Diferenciação: ao inventar o termo Bioética, Jahr seguiu a diferenciação da terminologia da ciência mais moderna, para analisar as formas de natureza viva a partir de outras formas de natureza inanimada. 10. Uma Nova Regra de Interação e Regra de Integração na Ética: para Jahr, a ética ao animal e a ética social são campos diferentes, mas se interagem e se integram, trazendo formas e tons diferentes do Imperativo Bioético e descrevendo a multiplicidade de obrigações éticas no século XXI. Como podemos perceber, o conceito desenvolvido por Jahr é mais amplo que o de Potter, pois estende a visão bioética a todas as formas de vida, atribuindo, assim, deveres dos seres humanos para com os animais e as plantas. Garrafa (2006) estabelece quatro etapas do desenvolvimento histórico da bioética: fundação, momento em que se estabeleceram suas bases conceituais; expansão e consolidação, relacionada à expansão do conceito na década de 80; revisão crítica, quando iniciam as críticas ao principialismo e a necessidade de equidade e universalidade no atendimento sanitário e no acesso aos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico; ampliação conceitual, com a Declaração TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 9 Universal de Bioética e Direitos Humanos ocorre sua ampliação para os campos social e ambiental. Em sua origem, a Bioética teria um compromisso com o equilíbrio e preservação da relação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida (DINIZ, 2008). Posteriormente, passou a relacionar-se mais às questões biomédicas, e, com o passar dos anos, teve sua compreensão epistemológica e sua abrangência ampliadas, envolvendo diversos aspectos relacionados à vida e ao viver em dignidade. 2.2 CONCEITO Em especial a partir dos anos 1970, a bioética tomou forma enquanto campo da ciência. É uma área interdisciplinar, complexa e sistemática, que visa aplicar os fundamentos éticos à biociência e biomedicina. Trata, essencialmente, dos grandes dilemas da humanidade, na reflexão de parâmetros mínimos éticos capazes de garantir a preservação da biodiversidade e da sobrevivência humana digna. Bioética originou-se para dar respostas concretas aos conflitos oriundos do avanço tecnológico e científico. Para Barboza (2001, p. 32), “O homem passou a interferir em processos até então monopolizados pela natureza, inaugurando uma nova era que poderá se caracterizar pelo controle de determinados fenômenos que escapavam ao seu domínio”. NOTA Etimologicamente, Bioética vem do grego – bios (vida) + ethos (ética), ou seja, a ética da vida, aquela que se relaciona às condições éticas da vida, ética aplicada à vida. De acordo com Maria Helena Diniz (2008, p. 11), a Bioética seria, em sentido amplo: [...] uma resposta ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só dos problemas éticos, provocados pelas tecnociências biomédicas e alusivos ao início e fim da vida humana, às pesquisas em seres humanos, às formas de eutanásia, à distanásia, às técnicas de engenharia genética, às terapias gênicas, aos métodos de reprodução humana assistida, à eugenia, à eleição do sexo do futuro descendente a ser concebido, à clonagem dos seres humanos, à maternidade substitutiva, à escolha do tempo para nascer ou morrer, à mudança de sexo em caso de transexualidade, à esterilização compulsória de deficientes físicos ou mentais, à utilização da tecnologia do DNA recombinante, às práticas laboratoriais de manipulação de agentes patogênicos, etc., como também dos decorrentes da degradação do meio ambiente, da destruição do equilíbrio ecológico e do uso de armas químicas. UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITOE BIOTECNOLOGIA 10 Para Goldim (2006), a Bioética é uma reflexão compartilhada, complexa e interdisciplinar sobre a adequação das ações que envolvem a vida e o viver. Um diálogo interdisciplinar, segundo Maluf (2015, p. 8), tem por finalidade “a compreensão da realidade através de sua complexidade física, biológica, política e social. Analisa até onde vão os limites da interferência humana em questões que envolvem os seres vivos [...]”. Reich (1995, p. 21) define a bioética como o “[...] estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar”. Maluf (2015) a caracteriza como o estudo transdisciplinar entre biologia, medicina, filosofia (ética) e direito (biodireito) que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e responsabilidade ambiental. Portanto, considera questões em que não há consenso moral, como a clonagem, o aborto, os transgênicos, as pesquisas com células-tronco, assim como a responsabilidade dos cientistas em suas pesquisas e aplicações. Deste modo, podemos perceber que a bioética trata do campo da moral que envolve a ética da vida, ou como sintetizam Pessini e Barchifontaine (1996, p. 11), “a bioética estuda a moralidade da conduta humana no campo das ciências da vida”. Alguns autores a definem como ética aplicada à vida, com o objetivo de preservar a dignidade humana por meio de princípios basilares para uma conduta ética em relação à vida. IMPORTANT E Afinal, o que é ética? E qual sua diferença com a moral? FONTE: Disponível em: <https://cdn-images-1. medium.com/max/1200/1*uH9yKW8-l7Ip9J4e wWXB1w.jpeg>. Acesso em: 8 ago. 2017. Os termos ética e moral, embora relacio- nados entre si, possuem conceitos distin- tos que comumente causam dúvidas. Éti- ca e moral se complementam, entretanto possuem origem etimológica e significa- dos diferentes. Ética provém do grego ethos, que significa “morada”, “hábitat”, “modo de ser”, é a par- te da filosofia que estuda a moral e que visa questionar e fundamentar as regras morais. A ética é teórica e reflexiva, implica em uma reflexão pessoal sobre uma regra moral, de modo racional e crítico, e conduz a forma como o indivíduo deve se comportar em seu meio social. Moral origina do termo do latim Morales, que significa “relativo aos hábitos ou costumes”, é o conjunto de normas e valores que regem o comportamento do indivíduo na sociedade. A moral é prática e está relacionada ao agir humano, à sua conduta, e é socialmente definida. TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 11 Segundo André Soares e Walter Piñero (2002), a história da bioética pode ser dividida em três fases: • de 1960 a 1977: fase em que se originam os primeiros grupos de médicos e cientistas preocupados com os novos avanços científicos e tecnológicos. É neste período que se formam os primeiros comitês de bioética no mundo; • de 1978 a 1997: fase em que é publicado o Relatório de Belmont (1978), que possui grande impacto na bioética clínica; é realizada a primeira fecundação in vitro bem-sucedida; ocorrem importantes progressos pela engenharia genética; são criados os grupos de estudo em bioética: Grupo Internacional de Estudo em Bioética, Associação Europeia de Centros de Ética Médica, Associação Interdisciplinar José Acosta, Comitê Consultivo Nacional de ética da França e o Convênio Europeu de Biomedicina e Direitos Humanos. • de 1998 até hoje: descobertas significativas no campo da biotecnologia e biomedicina trazem conflitos de valores éticos, como: clonagem humana, descoberta quase total do genoma humano e a falência dos sistemas de saúde pública nos países em desenvolvimento. A bioética, enquanto área de pesquisa complexa, requer estudos por meio de metodologia interdisciplinar. Isto significa que profissionais de diferentes áreas devem participar das discussões em torno das questões éticas relacionadas ao impacto da tecnologia e da ciência em nossas vidas. O progresso científico é promotor de novos conhecimentos que passaram por alterações no olhar para a vida humana, tanto do ponto de vista individual como coletivo. O que até bem pouco tempo atrás eram barreiras intransponíveis, com o avanço tecnológico passaram a ser elementos dentro de um cotidiano tangível e imerso em infinitas possibilidades para a humanidade. Os diálogos em torno da ética e as concepções morais em torno da vida, do viver, da liberdade e dignidade humana também se alteraram. À medida em que a ciência expande suas possibilidades, as questões éticas são questionadas e repensadas por outros prismas. Entretanto, nem tudo que é cientificamente possível é eticamente aceitável. 2.3 PRINCÍPIOS Os princípios bioéticos remontam aos fundamentos envolvendo a pesquisa com seres humanos do Relatório de Belmont. Este relatório, publicado em 1978, definiu três princípios básicos orientadores para a ética da pesquisa envolvendo seres humanos: o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça. Embora o relatório se refira apenas às pesquisas envolvendo seres humanos, os estudos desenvolvidos acabaram se aplicando ao conjunto do campo bioético. UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 12 Com base nesses estudos, a obra clássica de Beauchamp e Childress, Principles of Biomedical Ethics, publicada em 1979, estabeleceu princípios éticos para a prática médica, ampliando os definidos pelo Relatório de Belmont para a pesquisa em seres humanos. Nessa obra, o princípio de respeito pelas pessoas, tratado pelo Relatório de Belmont, foi substituído pelo da autonomia, e o princípio da beneficência foi desdobrado em beneficência e maleficência. A obra consagra o “principialismo” como um método de raciocínio e decisão em bioética (LOPES, 2014). Como você pode perceber, os princípios são elementos basilares da bioética e são construídos historicamente, conjuntamente ao desenvolvimento da concepção desta área. Então, vamos agora conhecer os principais princípios bioéticos e suas definições. Princípio da Autonomia Este princípio enseja o domínio do paciente sobre a própria vida (corpo e mente), ou seja: o reconhecimento da capacidade da pessoa para se autogovernar, de modo livre e sem influências externas, em respeito à capacidade de decisão e ação do ser humano (SÁ; NAVES, 2011). Deste modo, pressupõe-se a considerar o paciente como um sujeito partícipe do processo de tratamento, com liberdade de decisão sobre sua vida. “Considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas, devendo, por tal razão, ser tratado com autonomia” (DINIZ, 2008, p. 14). Sendo, nesse sentido, necessário o consentimento e a informação acerca dos processos de intervenção e tratamento. Desse princípio decorre a exigência de consentimento livre e informado, que se encontra normatizado no Brasil pelo artigo 15 do Código Civil, Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, pelo Código de Ética Médica, Resolução nº 1.931/09 do Conselho Federal de Medicina, e demais legislações relacionadas às relações médico-paciente ou atividades associadas às pesquisas científicas. Princípio da Beneficência O profissional da saúde só pode usar o tratamento para o bem do paciente, ou seja, sua conduta deve primar por auxiliar ou socorrer sem prejudicar ou causar mal ou dano ao paciente. Impõe ao profissional da saúde ou biólogo o dever de dirigir esforços no sentido do benefício do paciente ou ser pesquisado. Deve se abster de procedimentos duvidosos, que pouco ou nada trazem benefício para o paciente ou para a espécie envolvida (SÁ; NAVES, 2011). Segundo Diniz (2008), sãoregras dos atos de beneficência não causar dano e maximizar os benefícios, minimizando possíveis agravos. Assim, esse princípio incute uma obrigação ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 13 Princípio da Não maleficência É um desdobramento do princípio da beneficência, ou seja, a obrigação de não acarretar dano intencional, cuja finalidade é reduzir os efeitos adversos das ações diagnósticas e terapêuticas no ser humano. Abstenção de procedimentos duvidosos ou que possibilitem gerar riscos ou danos em todos os âmbitos. Princípio da Justiça Estabelece como condição fundamental a equidade, ou seja, a obrigação ética de tratar cada indivíduo de modo imparcial e de igualdade, em respeito às diferenças nos diversos aspectos sociais, culturais, religiosos, financeiros ou outros que interfiram na relação médico-paciente ou científica. Envolve a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios, de modo que os recursos devem ser proporcionados de forma equitativa, assim como os benefícios, riscos e encargos, ao que se denomina justiça distributiva. Deste modo, prevê a igualdade no acesso, nos custos sociais, emocionais e físicos, na garantia de funcionalidade, eficiência e equidade. Como prelecionam Sá e Naves (2011, p. 35), “[...] justa é a intervenção que leva em conta os valores do paciente, bem como sua capacidade de deliberação e unidade psicofísica”. Desta forma, a justiça prima pela liberdade de pensamento e de consciência, pela autonomia da vontade, que, no caso da intervenção biomédica, deve maximizar os benefícios com o menor risco e custo possível. Aos custos devemos prever não somente os financeiros, mas os emocionais, físicos e sociais. 2.4 CLASSIFICAÇÃO A bioética pode ser classificada segundo dois campos de atuação: a bioética das situações emergentes e a bioética das situações persistentes. Volnei Garrafa (2006) sinaliza que a Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília tem utilizado esta classificação como forma de sistematização e compreensão de seu estudo da seguinte forma: • Bioética das situações emergentes: se ocupa dos temas mais recentes relacionados ao desenvolvimento biotecnocientífico e sua relação com a cidadania, dignidade humana e os direitos humanos, como a engenharia e manipulação genética, a reprodução humana assistida, doação e transplante de órgãos e tecidos humanos, questões relacionadas à biossegurança. • Bioética das situações persistentes: relativa aos temas que existem desde a Antiguidade, e persistem como dilemas cotidianos, como o aborto, a eutanásia, o racismo, a exclusão social e discriminação. Como pudemos perceber, a bioética possui uma pluralidade de conceitos e definições, e, de acordo com sua temática, tem sido também dividida por alguns UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 14 autores em microbioética e macrobioética. Iremos apontar a definição utilizada por Adriana Caldas Maluf (2015) e Maria Helena Diniz (2008). A microbioética é o ramo da bioética que trata das relações entre médicos e pacientes, entre as instituições de saúde pública ou privada e entre estas instituições e os profissionais de saúde. Cuida mais especificamente das questões emergentes que surgem dos conflitos entre a evolução científica e os limites da dignidade da pessoa humana. A macrobioética é o ramo da bioética que trata das questões envolvendo a vida no sentido amplo, relacionada ao macrossistema da vida, como o meio ambiente, a biodiversidade, a sustentabilidade. Tem por objetivo o estudo das questões ecológicas em busca da preservação da vida e trata, mais especificamente, das questões persistentes. 3 BIODIREITO O avanço tecnológico na área da biomedicina e biotecnologia deu origem ao que chamamos de bioética. Como vimos, a bioética é a ciência que estuda os aspectos de interação com a vida, seja ela humana ou não, e visa estabelecer valores e critérios éticos relacionados à sobrevivência e qualidade de vida na Terra. Os novos aspectos jurídicos decorrentes dessas relações deram origem ao biodireito, que é o ramo do direito que regula as relações decorrentes da inovação tecnológica e os aspectos que envolvem a proteção da vida humana e das espécies. As perspectivas éticas, jurídicas e médicas relacionam-se com o direito à vida e ao modo de viver, envolvem situações como o nascer, a qualidade de vida, necessidade de intervenção médica e o morrer. Segundo Sá e Naves (2011), são acontecimentos naturais ou humanos que trazem consequências jurídicas, fatos jurídicos que criam, modificam ou extinguem situações e/ou relações jurídicas. Importa salientar que as normas e princípios da bioética não são coercitivos, assim, é necessário que o direito regulamente atitudes lícitas, definindo seus contornos com base no princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecendo regras e limites à investigação (LOUREIRO, 2009). 3.1 CONCEITO O biodireito é um novo ramo do conhecimento em que se intercruzam a bioética e o direito, ou seja, a bioética é o estudo dos valores éticos relacionados à biomedicina e à biotecnologia, e o biodireito é a regulamentação jurídica da problemática da bioética, a consolidação normativa desses valores. Este ramo possui como escopo o estudo das relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia; peculiaridades relacionadas ao corpo e à dignidade da pessoa humana (MALUF, 2015). TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 15 Segundo a professora de Direito Jussara Nasser Ferreira (1998-1999, p. 51), o biodireito é o “[...] conjunto de normas esparsas que têm por objeto regular as atividades e relações desenvolvidas pelas biociências e biotecnologias, com o fim de manter a integridade e a dignidade humana frente ao progresso, benefício ou não, das conquistas científicas em favor da vida”. O biodireito, por ser uma construção recente, não possui suas normas organizadas ou codificadas, ou mesmo estruturadas em uma única lei. No ordenamento jurídico brasileiro, o biodireito está disposto de forma esparsa em diversos princípios constitucionais, códigos e em legislações que abordam os temas bioéticos e da biociência, tanto em nível nacional quanto internacional, recepcionados pela legislação brasileira. Maria Helena Diniz (2008, p. 7-8) entende o biodireito como o estudo jurídico que toma por fontes imediatas a bioética e a biogenética e tem a vida como objeto principal, “[...] salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade”. Nesse âmbito, o Biodireito transita na linha tênue entre os limites do respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra o indivíduo ou a espécie humana. Para Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, “O biodireito face à Bioética enfrenta hoje dois critérios filosóficos conflitantes: o da santidade da vida humana e o da qualidade da vida” (1993, p. 94). Cabe ao biodireito a atribuição de normatizar os efeitos e impactos da biociência e das atividades biomédicas, de modo a tutelar a dignidade e a vida, impondo limites às pesquisas científicas e à biotecnologia. Para Meirelles (2008, p. 6), daí emerge a finalidade do biodireito, “[...] fixar normas coercitivas que delimitem as atuações biotecnológicas, no sentido de ver respeitada a dignidade, a identidade e a vida do ser humano”. As questões de biodireito estão vinculadas aos Direitos Humanos e à internacionalização de tais direitos, não sendo mais, portanto, preocupações que se limitam apenas ao âmbito interno do Estado.Deste modo, objetiva a proteção da dignidade humana frente às constantes inovações biotecnológicas e biomédicas. Conforme menciona Meirelles (2008, p. 4-5): A Bioética propõe limites à biotecnologia e à experimentação, com a finalidade de ver protegidas a dignidade e a vida da pessoa humana como prius sobre qualquer valor. Porém, a norma moral é insuficiente porque, ainda que alcance a dimensão social da pessoa humana, opera apenas no plano interno da consciência, impondo-se, portanto, um novo ramo do dever ser, mediante o qual se regulem as relações intersubjetivas à luz dos princípios da Bioética. Necessário, por isso, que as normas sejam jurídicas, e não somente éticas, pois somente o caráter coercitivo daquelas impedirá ao científico sucumbir à tentação experimentalista e à pressão de interesses econômicos. UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 16 O estudo dos dilemas bioéticos na seara do direito é importante para que seja possível verificar em que medida a biotecnologia alcança o bem comum, assim como quais são seus riscos potenciais e futuros a toda humanidade. É inegável que alguns avanços na área da biociência foram significativos na melhoria da qualidade de vida, assim como o acesso tecnológico. Essas novas realidades produziram transformações significativas na sociedade, modificando profundamente as relações jurídicas, e é aí que se insere o biodireito. Por exemplo, pelas técnicas de reprodução humana assistida, pessoas que antes estavam impossibilitadas por distintas razões, passaram a alcançar a possibilidade de gerar filhos, entretanto, essa possibilidade trouxe consigo uma série de dilemas éticos e jurídicos, como a determinação de maternidade e paternidade, o direito sucessório, a manutenção e utilização de bancos de sêmen pós-morte, entre outros. O biodireito associa-se principalmente com as seguintes áreas específicas do Direito: o Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Penal, Direito Ambiental e Direito do Consumidor. Dentre os princípios e direitos fundamentais assegurados constitucionalmente relacionados ao campo do biodireito, pode-se destacar: dignidade humana (art. 1º, III), promoção do bem de todos sem qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV), inviolabilidade do direito à vida (art. 5º), direito à informação (art. 5º, XIV e XXXII), direito à saúde (art. 196), princípio da igualdade (art. 5º), direito à liberdade e justiça (preâmbulo e em diversos artigos). Entretanto, é necessário salientar que o rápido avanço tecnológico não acompanha o desenvolvimento legal. Diante de temas polêmicos e de constantes transformações no campo da bioética, não é possível regular as temáticas de modo fechado ou absoluto, caracterizando o biodireito pela ausência de regulação estruturada, em muitos casos de lacunas normativas. Desse modo, os princípios e direitos fundamentais possuem a função de suprir a lacuna ou vazio existente entre a esfera ética e as normas jurídicas constitutivas do biodireito. Assim, o biodireito consegue determinar caminhos definitivos aos dilemas bioéticos, ou determina apenas critérios para análise e solução das situações expostas? Importa ressaltar que os critérios e leituras do biodireito podem ir se modificando com o passar do tempo, tendo em vista que o avanço tecnológico pode apresentar respostas a questões éticas polêmicas na sociedade, bem como apresentar riscos não previstos decorrentes dos mesmos avanços. 3.2 PRINCÍPIOS Estudamos anteriormente os princípios basilares da bioética, sua definição e construção histórica. O biodireito, diferentemente da bioética, não possui um documento que defina seus princípios orientadores, ou mesmo que englobe temas já pacificados na doutrina ou na jurisprudência. A fonte dos princípios do biodireito, além dos princípios fundamentais da bioética, deve compor princípios globais já pacificados em documentos que envolvam a bioética, e também os que envolvem os direitos humanos. TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 17 No Brasil, os conflitos biojurídicos devem ancorar suas soluções em conformidade com os princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, assim como em documentos internacionais já ratificados pelo país. Desse modo, pode-se constatar que diversos princípios podem ser aplicados na área do biodireito. Iremos conhecer e estudar alguns deles na sequência. Princípio da Precaução Aplica-se de modo preventivo como forma de proteção a riscos, mesmo ainda desconhecidos, provenientes de determinada prática médica e/ ou biotecnológicas. Nesse princípio, a ameaça oriunda das incertezas de uma atividade causar danos às espécies ou ao meio ambiente pode ser irreversível, portanto, deve ser afastada a prática do ato antes que ocorra, devido ao risco potencial. Para Maluf (2015), esse princípio implicaria na necessidade de comprovar a inexistência de quaisquer consequências maléficas, diretas ou indiretas, ao ser humano ou ao ecossistema, antes de se efetuar pesquisa ou experimento científico. Trata-se de uma limitação à ação profissional, na qual impõe ao interessado o dever de comprovar a inexistência de risco, sob pena de proibição da atividade científica antes mesmo de sua realização. O princípio da precaução está previsto de forma implícita no art. 225 da Constituição Federal brasileira, e foi expressamente incorporado ao Direito Ambiental em decorrência da Eco-92. O texto da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, estabelecido a partir da Eco-92 e da Agenda-21, foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 1, de 1994, que trata em seu artigo 3º sobre a necessidade da adoção de medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança de clima e mitigar seus efeitos negativos. Dispõe ainda que, se surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser motivo para postergar essas medidas, de modo a assegurar benefícios mundiais seguros e com menor custo possível. Princípio da Autonomia O princípio da autonomia está interligado ao da dignidade humana, pois prima pelo respeito à liberdade de cada ser humano, desde que não afete o outro ou a coletividade. A autonomia enseja a capacidade de autodeterminação de uma pessoa, gerenciando sua vida conforme sua vontade, sem influência ou coação de outras pessoas. Nas relações biomédicas, deve ser respeitada a capacidade de decisão do paciente, enquanto sujeito partícipe, sendo assegurado o direito à informação sobre todo processo de tratamento. O princípio da autonomia está diretamente ligado ao consentimento prévio do paciente, pois a liberdade de escolha e decisão somente será plena se a informação for fornecida de modo compreensível, de modo a viabilizar o conhecimento e consciência das possibilidades terapêuticas. UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 18 Assim, o consentimento livre e informado possui a finalidade de incutir ao pesquisador ou profissional da saúde o dever de informar, de forma clara e adequada, em nome da proteção da autonomia da escolha individual. Importa dar ênfase aos casos que envolvem indivíduos com autonomia reduzida ou incapazes de consentir (art. 3º e 4º Código Civil), situações quando se transfere o consentimento, total ou parcial, aos responsáveis legais. Alguns autores, como Bruno Torquato Naves e Maria de Fátima F. de Sá, preferem a utilização da expressão “autonomia privada” ao invés de “autonomia da vontade”, segundo entendimento de que a vontade não seria suficiente para criar Direito, pois não cabe a ele perquirir sobre o conteúdo da consciência de cada ser. Nesse entendimento hermenêutico substitui-se a carga individualista da autonomia da vontade, restando ao direito analisar a manifestação concreta da vontade, conferindo, atravésda autonomia, concessão de poderes de atuação à pessoa, determinando o conteúdo, a forma e os efeitos de um ato jurídico. Contudo, importa ressaltar que a autonomia privada é determinada em conformidade com o próprio ordenamento jurídico, estabelecendo os “limites” e o conteúdo dos poderes conferidos aos particulares em caso de tensão principiológica nas situações fáticas (SÁ; NAVES, 2011). Princípio da Responsabilidade Este princípio relaciona-se ao da precaução, pois ambos tratam dos malefícios que as intervenções biomédicas ou biotecnológicas podem causar, sendo que a responsabilidade ocorre quando a lesão ou dano já se concretizou. Assim, ocorre após o ato ou fato e visa minimizar ou reparar os malefícios causados por determinada ação. Princípio da Dignidade Refere-se à proteção da vida humana em todos seus aspectos, seja físico, psíquico ou espiritual. Está relacionado ao princípio da sacralidade da vida, na garantia do desenvolvimento pleno do ser humano, de modo individual e interligado a toda coletividade. Iremos tratar mais profundamente sobre este princípio no próximo tópico desta unidade. Princípio da Sacralidade da vida Como apontamos, este princípio está diretamente interligado ao princípio da dignidade humana. Encontra-se positivado no art. 5ª da Constituição Federal brasileira, e refere-se à inviolabilidade da vida humana, bem como a importância de sua proteção. Princípio da Justiça Tal qual o princípio bioético da justiça, este princípio incute o dever de garantir a equidade e a universalidade na distribuição justa dos benefícios dos serviços de saúde, partindo do pressuposto de que o direito à saúde e à vida é um direito fundamental e humano. Em sentido amplo, relaciona-se ao dever da TÓPICO 1 | BIOÉTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO: EVOLUÇÃO, CONCEITO E PRINCÍPIOS 19 administração pública de garantir o acesso à saúde e à vida em dignidade, fazendo- se uma obrigação sua execução através de programas sociais e políticas públicas. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 56) sintetiza de modo célebre essa questão ao afirmar que “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Nestes termos estão incutidas a justiça, a equidade, a igualdade e a diferença. Na prática, na distribuição dos riscos e benefícios, assim como na relação médico-paciente, deve-se observar o princípio da igualdade, atuando sem distinção de cor, nacionalidade, opção política ou sexual, crença e condição social ou financeira. Entretanto, deve garantir o direito à diferença, em respeito aos aspectos sociais, culturais e religiosos. Como exemplo, podemos citar o direito à recusa no tratamento médico, como no caso da transfusão de sangue para determinados grupos religiosos, em respeito à vontade do paciente. Entretanto, o direito ao tratamento médico não pode sofrer qualquer forma de discriminação ou seletividade em relação à sua cor, nacionalidade ou condição social. Princípio da Ubiquidade Decorre da necessidade de proteção global de experimentos e ações que podem colocar em risco a vida humana e todas as espécies. Envolve o direito ao patrimônio genético humano, incutindo o dever de preservar a manutenção das características essenciais da espécie humana, em nome dos riscos às futuras gerações e ao planeta. Relaciona-se ao Direito Ambiental, na visão de que o bem ambiental é onipresente, assim como a integridade genética, em interligação com toda biodiversidade. Afinal, os impactos ambientais negativos refletem não somente para a localidade, mas para toda vida no planeta. Assim, toda vez que uma política for elaborada ou uma atividade realizada neste sentido, deverá levar em consideração esse princípio, bem como a proteção constitucional da vida e da qualidade de vida e o direito das futuras gerações. Princípio da Cooperação entre os povos Este princípio decorre da solidariedade entre as nações em prol do bem comum. Envolve o livre intercâmbio de experiências científicas e de mútuo auxílio tecnológico e financeiro entre os países, tendo em vista a preservação ambiental e das espécies. Essa conduta não abala a soberania ou autodeterminação dos povos e nações. O âmbito do biodireito está vinculado ao princípio da ubiquidade e ao princípio da justiça, ao prever a proteção da espécie humana e da biodiversidade, assim como na repartição dos benefícios e ônus decorrentes das pesquisas científicas (MALUF, 2015). 20 Neste tópico, você aprendeu que: • A bioética, enquanto ciência, tem sua origem em meio às profundas mudanças sociais, políticas e culturais ocorridas principalmente após a Segunda Guerra Mundial. • As raízes do neologismo “bioética” acontecem em dois momentos distintos: com o bioquímico Van Rensselaer Potter, em 1970, e com o teólogo alemão Paul Max Fritz Jahr, em 1927. • A bioética originou-se para dar respostas concretas aos conflitos oriundos do avanço tecnológico e científico. • Bioética é o estudo complexo, interdisciplinar e sistemático sobre a conduta, os conflitos e controvérsias morais em torno da vida e do viver, a ética das ciências da vida. • A bioética pode ser dividida entre macrobioética e microbioética. E seus temas classificados por situações persistentes e emergentes. • São princípios bioéticos a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça. • O biodireito é um novo ramo do estudo jurídico que intercruza a Bioética e o Direito. • Pode-se citar como os princípios basilares do biodireito, decorrentes de diversos estudos e legislações nacionais e internacionais: precaução, dignidade, autonomia, sacralidade da vida, responsabilidade, justiça, ubiquidade, cooperação entre os povos. RESUMO DO TÓPICO 1 21 1 Cite e explique três princípios bioéticos. 2 No que se relaciona às formas de classificação da bioética, a doutrina divide seus temas por dois diferentes campos de atuação: a macrobioética e a microbioética. Descreva cada um desses campos e identifique seus temas de atuação. 3 Biodireito é o ramo do direito que regula as relações decorrentes da inovação tecnológica e os aspectos que envolvem a proteção da vida humana e das espécies. Assinale a alternativa que não constitui um princípio do biodireito: a) ( ) justiça b) ( ) razoabilidade c) ( ) precaução d) ( ) autonomia AUTOATIVIDADE 22 23 TÓPICO 2 BIOÉTICA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Estudaremos, neste tópico, a bioética e os direitos humanos, a importância da inter-relação entre essas duas áreas como fundamento e parâmetro para solução de conflitos bioéticos, assim como a ampliação do conceito de bioética a partir de uma leitura dos direitos humanos. As complexas realidades vividas em diferentes contextos no globo trazem desafios emergentes para a pauta da bioética. Como pensar na ética da/e na vida nessas distintas realidades? Se a bioética trata das questões concernentes ao direito à vida, como pensá-la em realidades com gritantes desigualdades sociais e populações em extrema vulnerabilidade? O processo de globalização, o veloz desenvolvimento tecnológico, o impacto ecológico das atividades humanas, a gritante desigualdade social em diferentes escalas e lugares, todas essas questões emergem debates éticos e contestam valores sociais, culturais e econômicos. Nesse sentido, estudar a bioética remete compreender as relações humanas na atualidade, assim como seus dilemas éticos e sociais. Para tanto, é necessário compreender a construção histórica dos direitos essenciais ao ser humano, os valores morais e éticos incutidos na sociedade,e adentrar em um universo de ruptura de paradigmas e de reflexões sobre o horizonte futuro da humanidade. 2 DIREITOS HUMANOS E ASPECTOS BIOÉTICOS É incontestável a inter-relação entre os direitos humanos e a bioética. Podemos começar pela condição basilar para a existência humana: a vida. Sem ela, não há direitos ou quaisquer dilemas em torno da existência humana. A bioética, ao tratar os dilemas do termo bios, da vida, e do modo de atuação do homem em relação a ela, possui vinculação direta com a construção dos direitos mínimos para a existência humana, ou seja, os direitos humanos. Estes direitos são construídos historicamente pelo homem para traçar parâmetros mínimos da existência e das relações humanas, seja com o meio onde vive ou entre si. Conforme instrui Dalmo Dallari (s.d., s.p.): UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 24 A consciência dos direitos humanos é uma conquista fundamental da humanidade. A bioética está inserida nessa conquista e, longe de se opor a ela ou de existir numa área autônoma que não a considera, é instrumento valioso para dar efetividade aos seus preceitos numa esfera dos conhecimentos e das ações humanas diretamente relacionada com a vida, valor e direito fundamental da pessoa humana. Neste âmbito, os dilemas biojurídicos possuem como ancoradouro os princípios fundamentais dos direitos humanos, bem como os valores morais e éticos de determinada sociedade, positivados ou não em sua Constituição. 2.1 CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS Os direitos humanos são fruto de um longo processo histórico de lutas por necessidades básicas essenciais para a condição de ser humano. Desse modo, conforme Hanna Arendt (1979), os direitos humanos não são um dado, mas um elemento construído, uma invenção humana em constantes processos de construção e reconstrução. Portanto, uma criação podendo contar com avanços, mas também retrocessos. Uma batalha, conceitual, teórica, mas também travada no campo prático. Ao longo de toda a história da humanidade, a luta pela sobrevivência levou os seres humanos a construírem formas de adaptabilidade ao meio que envolvem as dinâmicas das estruturas vigentes. Nesse sentido, as lutas e batalhas em torno dos aspectos essenciais da sobrevivência levaram os seres humanos a constantes embates que dizimaram civilizações inteiras em incontáveis guerras e massacres. Esses acontecimentos levaram também diversos sujeitos a pensar e construir mecanismos para evitá-los, de modo a possibilitar uma vida digna e pacífica entre todos os seres. Nessa perspectiva, foram incontáveis os pensadores que atuaram buscando esforços centrados em um bem comum. Um desses exemplos que traz no cerne de seu pensamento o amálgama desse objetivo é Confúcio (551 a.C.-479 a.C.), com sua célebre frase: “Não faça aos outros o que não quer que seja feito a você”. No entanto, foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas um evento ocorrido seis séculos antes de Cristo como o precursor da Declaração dos Diretos Humanos. Quando Ciro, rei da antiga Pérsia, conquista a Babilônia e cria ações até então inovadoras e impensadas, liberta os escravos, declarando liberdade de escolha para as religiões. Estas definições foram transcritas em um cilindro de argila, e é conhecido como o Cilindro de Ciro. E por tal importância, sendo traduzido para os seis idiomas oficiais da ONU. TÓPICO 2 | BIOÉTICA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS 25 FIGURA 4 – CILINDRO DE CIRO, RECONHECIDO COMO A PRIMEIRA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FONTE: Disponível em: <http://imperiopersaaquemenida.blogspot.com.br/2011/10/ el-cilindro-de-ciro-traduccion.html>. Acesso em: 11 out. 2017. Nesse sentido, acredita-se que os feitos de Ciro tenham sido difundidos integral ou parcialmente e as suas civilizações contemporâneas e as posteriores, como na China, na Índia e chegando à Europa por Grécia, tenham tido inspirações nesta declaração para buscar balizas de convivência. Consequentes documentos afirmam tal assertiva, como a Carta Magna (1215), a Constituição dos Estados Unidos (1787) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Sendo assim, convencionou-se estabelecer que os direitos humanos possuem um processo de constante adaptação aos desafios do momento presente, consolidando-se como um elemento em vívida disputa. Assim, alguns autores estabelecem os direitos humanos como portadores de dimensões ou gerações, marcados pelo processo histórico e possuindo características de cada período. Diversos autores tratam sobre a classificação linear da construção e evolução dos direitos em “gerações” ou “dimensões”. Há divergência nesse entendimento, devido à compreensão da não linearidade desses direitos ou hierarquização, mas sim o processo histórico que o determinou e que o recria através do tempo. Trataremos deste assunto a partir do entendimento do jurista Antonio Carlos Wolkmer (2013). Direitos de primeira dimensão: direitos civis e políticos, são os direitos individuais vinculados à liberdade, igualdade, propriedade, segurança e resistência às diversas formas de opressão. Estes direitos são entendidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis. Surgem no contexto do constitucionalismo político clássico, com marco na declaração de independência dos Estados Unidos (1776) e Revolução Francesa (1789). Este período esteve associado às lutas por independência, e busca por liberdade e demais valores que derivam desta, resultando na efetivação da liberdade. UNIDADE 1 | BIOÉTICA, BIODIREITO E BIOTECNOLOGIA 26 Direitos de segunda dimensão: direitos sociais, econômicos e culturais, com caráter positivo por exigir atuações do Estado. Surgem entre meados do século XIX e início do século XX em meio às tensões pelos graves impasses socioeconômicos provocados pelo processo de industrialização e os decorrentes problemas sociais ocasionados. Esses processos possibilitam o nascimento do Estado de Bem-Estar Social. Naquele período, as transformações advindas da Revolução Industrial (consolidada no século XIX na Europa e se expandindo por territórios que possuíam vínculos com a Europa) levaram a sociedade a buscar direitos vinculados com as novas demandas, relacionados à educação, à saúde etc. Direitos de terceira dimensão: direitos metaindividuais, direitos coletivos e difusos. Possuem como característica a titularidade do coletivo, a proteção de categorias ou grupos de pessoas, e a indivisibilidade, pois não podem ser satisfeitos ou lesionados de forma fracionada, mas atingem a toda a coletividade. Nas últimas décadas, as transformações sociais ampliaram os sujeitos desses direitos coletivos, passando a ser incluídos nesta dimensão, como: os direitos de gênero, os direitos da criança, os direitos do idoso, os direitos dos deficientes físicos e mentais, os direitos das minorias (étnicas, religiosas, sexuais); e os novos direitos da personalidade (a intimidade, a honra, a imagem). Já no século XX esses direitos coletivos expõem uma ótica que tem no direito valores expansivos e de alcance global, dando assim um enfoque mundial e universal, como a paz, o meio ambiente etc. Direitos de quarta dimensão: são os “novos” direitos referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética. São direitos que possuem a especificidade de tratar sobre a vida humana, como a reprodução humana assistida, o aborto, a eutanásia, transplantes de órgãos, a clonagem humana e outros. Resultam das preocupações com a regulamentação ética diante dos avanços das ciências biomédicas e biotecnológicas, e também os riscos advindos dessas ciências. E, ainda, os direitos de quinta dimensão: os “novos” direitos advindos das tecnologias de informação, do ciberespaço e da realidade virtual em geral. Estes direitos emergem das transformações
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