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VITOR	ABDALA
	
	
Tânatos
Contos	sobre	a
Morte	e	o	Oculto
	
	
VCA
	
Copyright:	©	2016	Vitor	Abdala
Tânatos	–	Contos	sobre	a	Morte	e	o	Oculto	foi	publicado	originalmente	em	2	de	abril	de	2016,		em	versão	impressa,	pela	Editora	Giostri.
2ª	Edição	em	E-book	(2018).
Abdala,	Vitor
Macabra	Mente	/	Vitor	Abdala	–	Rio	de	Janeiro:	Ed.	do	Autor,	2016.
1.	Literatura	brasileira:	Ficção	e	contos	brasileiros.
CDD:	B869.3
ISBN:	978-85-921875-2-1
	
COMENTÁRIOS	SOBRE	TÂNATOS
"Narrativas	repletas	de	angústia	e	sofrimento"
—	Jornal	A	Tarde	(BA)
	
"Tânatos	é	um	livro	para	se	ter	na	estante.	Terror	nacional	contemporâneo	em	cenários	e	situações
plausíveis"
—	Toca	o	Terror
	
"Uma	excelente	antologia	de	contos	de	terror	com	uma	pegada	urbana,	quase	realista,	fruto	dos	mais	de
dez	anos	[do	autor]	trabalhando	como	repórter	e	que	imprime	um	tom	bastante	trágico	e	pessimista	à
leitura,	aumentando	ainda	mais	o	horror	contido	nas	páginas	do	livro"
—	Boca	do	Inferno
	
"Um	mergulho	no	oculto.	Vitor	Abdala	te	transporta	para	ambientes	e	situações	apavorantes,	onde	o
suspense	e	o	sobrenatural	mostram	o	verdadeiro	lado	negro	e	sem	piedade"
—	Trilha	do	Medo
	
“É	um	livro	curto,	que	a	gente	lê	numa	sentada.	Só	não	o	indico	para	aqueles	que	apreciam	histórias	com
finais	felizes”
—	Rubens	Francisco	Lucchetti,	papa	do	pulp	e	mestre
do	terror	nacional
	
	
	
	
	
CONTOS
	
Combustão
Vodu
Amanhã	Vai	Ser	Pior
Soterrados
Mensagem	Instantânea
Tem	Uma	Coisa	Dentro	de	Mim
Prisão	Perpétua
O	Assassino	Hesitante
Índios	
COMBUSTÃO
	
O	sangue	escorre	pela	minha	testa	e	entra	nos	meus	olhos	em	um	fluxo	contínuo.	Meus	dois	olhos,
inchados,	doem.	E,	com	isso,	tenho	dificuldade	de	enxergar	o	que	está	à	minha	frente.	Todo	o	meu	corpo
pede	socorro,	depois	de	tantos	socos	e	pontapés	que	recebi	nas	últimas	horas,	em	uma	sessão	de	tortura
interminável.
Estou	ajoelhado	dentro	de	um	terreiro	de	umbanda,	no	meio	da	favela.	Imagens	de	santos	e	orixás,
espalhadas	por	todos	os	lados,	pareceram	acompanhar	todo	o	meu	tormento,	com	olhares	de	satisfação.
Apenas	algumas	lâmpadas	vermelhas	e	uma	fraca	luz	que	vem	da	rua	iluminam	o	local.	A	dor	é	imensa.
Sinto	raiva	de	tudo	aquilo.	A	sessão	de	tortura,	a	dor,	aquele	local	estranho	e,	principalmente,	minha
estupidez.	Afinal,	tudo	aquilo	era	culpa	minha.
Sou	jornalista	e,	por	ideia	minha,	tinha	me	infiltrado	no	tráfico	de	drogas	daquela	favela	há	três
meses,	para	escrever	uma	reportagem	sobre	o	funcionamento	da	quadrilha.	Tudo	desmoronou	quando	fui
descoberto	pelos	bandidos	naquela	noite.	Levaram-me	para	ser	torturado	no	terreiro,	porque,	segundo
eles,	foi	uma	“entidade	espiritual”	que	os	alertou	sobre	a	existência	de	alguém	infiltrado	na	quadrilha.
No	início	ainda	tentei	argumentar,	dizendo	que	eles	não	podiam	acreditar	naquela	besteira
sobrenatural.	Mas,	depois	de	horas	sendo	torturado,	não	tive	mais	forças	e	acabei	confessando	minha
culpa,	na	expectativa	de	receber	o	perdão	dos	meus	algozes.	Eles	não	só	não	tiveram	compaixão,	como
passaram	a	me	bater	com	mais	força.
—	Por	favor,	não	me	matem	—	imploro,	esforçando-me	para	pronunciar	as	palavras	com	minha	boca
inchada.
—	Teu	destino	está	selado	—	diz	um	dos	bandidos,	enquanto	chega	o	rosto	bem	perto	do	meu.	—
Uma	morte	horrível	te	espera.
Ele	aponta	para	a	estátua	de	um	homem	com	capa	vermelha	e	um	tridente	e	complementa:
—	Exu	já	decidiu.
Olho	para	frente	e	vejo	a	estátua,	que	parece	sorrir	para	mim.	Sinto	uma	sensação	estranha.	As	feridas
pulsam	com	força.	Minha	vista	embaça.
Passo	a	ter	certeza	de	que	não	vou	sair	vivo	dali.	Tudo	o	que	quero	é	o	fim	da	sessão	de	tortura.
—	Sua	hora	chegou,	seu	verme!	—	grita	o	bandido.
Sinto	o	cano	frio	de	sua	pistola	na	minha	nuca	e	tenho	um	calafrio.	Meus	olhos	e	lábios	se	contraem
com	força.	A	arma	fica	encostada	em	mim	por	um	longo	período.	Fico	na	expectativa	do	tiro,	que	pode
vir	a	qualquer	momento.	Mas	o	bandido	desiste	e	recolhe	a	arma.
—	Sua	morte	não	vai	ser	tão	fácil,	vacilão.	Você	vai	sofrer.
Dois	homens	me	agarram	e	começam	a	me	arrastar	para	fora	dali.	A	estátua	continua	me	encarando,
dessa	vez	parece	mostrar	dentes	afiados.	Do	lado	de	fora,	vejo-me	em	um	campinho	de	terra,	com	umas
dez	pessoas	em	volta.	Todas	elas	armadas.	Não	há	como	fugir.
Ouço	risadas.	Entendo,	então,	o	que	está	reservado	para	mim.	Um	dos	bandidos	me	segura	em	pé,
enquanto	os	outros	vão	encaixando	pneus	de	borracha	em	volta	do	meu	corpo.	Um,	dois,	três,	quatro,
cinco	pneus	me	envolvem.	Logo	me	vejo	preso	àqueles	pedaços	de	borracha.	Alguém	me	chuta	e	caio	no
chão.	Um	novo	chute	e	caio	dentro	de	um	buraco.
Jogam	algo	sobre	mim	e	sinto	minhas	feridas	arderem.	Gasolina!	Estão	me	encharcando	com	o
combustível.	Meu	Deus,	vão	mesmo	me	queimar	vivo!	Tento	implorar	pela	minha	vida,	mas	tudo	o	que
consigo	é	vomitar.
—	Diz	adeus,	seu	dedo-duro	de	merda	—	diz	o	traficante.
Um	fósforo	é	riscado	e	jogado	sobre	mim.	O	fogo	sobe	pelas	minhas	pernas	e	o	inferno	começa.
—	Aaaaaarrrrrggggghhhhh!!!!
A	dor	é	insuportável	e	começo	a	gritar	como	um	porco	no	abatedouro.	As	chamas	queimam	minha
pele.	É	como	se	encostasse	em	uma	tigela	de	metal	que	acabou	de	sair	do	forno,	mas	sem	a	possibilidade
de	recuar	a	mão	e	num	grau	infinitamente	pior.	Debato-me	com	toda	a	força.	A	imagem	do	homem	com	a
capa	vermelha	e	o	tridente	aparece	de	novo	na	minha	frente.	Ele	sorri	satisfeito,	com	seus	dentes	afiados.
Minha	vista	embaça	e	vomito	de	novo.	O	fogo	chega	até	o	meu	rosto.	Já	não	consigo	gritar.	A	morte
não	chega.	Sinto	as	piores	dores	do	mundo.	Alguns	minutos	se	passam.	As	chamas	rompem	minha	pele,
em	vários	pontos,	e	começam	a	atingir	o	interior	do	meu	corpo.
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!
O	fogo	vagarosamente	vai	comendo	meus	músculos,	ossos	e	meus	órgãos	internos.	Meu	corpo	ainda
tenta	se	desvencilhar	daquele	tormento,	mas	os	pneus	não	me	deixam	mexer	muito.	Estômago,	intestino,
coração	e	pulmões	queimam.	Meus	olhos,	língua	e	ouvidos	derretem	com	as	chamas.	Mas,	maldição,	a
morte	não	vem.
Continuo	vivo,	sentindo	a	dor	mais	horrível	do	mundo.	Vejo	a	imagem	daquele	homem	de	capa
vermelha	de	novo.	Sinto	que	o	fogo	consome	todos	os	meus	órgãos,	como	se	mil	agulhas	incandescentes
perfurassem	meu	corpo	ao	mesmo	tempo.
Meu	Deus!	Por	que	eu	continuo	vivo?	Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!
Perco	a	noção	do	tempo.	Tenho	a	sensação	de	que	estou	sendo	consumido	pelo	fogo	há	mais	de	dez
horas.
Teu	destino	está	selado,	uma	morte	horrível	te	espera,	a	voz	do	traficante	volta	a	ecoar	na	minha
mente	e	mais	uma	vez,	em	meio	àquela	dor	insuportável,	volto	a	ver	aquela	estátua	estranha	e	ela	abre	sua
boca	para	repetir	uma	morte	horrível...	uma	morte	horrível...	uma	morte	horrível.
A	imagem	do	meu	coração	em	chamas,	batendo,	apesar	de	arder	no	fogo,	invade	minha	mente.	E	isso
faz	a	dor	se	tornar	ainda	mais	insuportável.	Meu	corpo	já	não	se	mexe,	mas	meus	órgãos	continuam	a
funcionar	e	minha	mente	está	em	pleno	funcionamento.
Instintivamente,	minha	boca	abre	e	tenta	pegar	um	pouco	de	ar,	mas	só	consegue	sugar	mais	chamas.
Será	isso	o	inferno?
Não,	ainda	estou	vivo.	Meu	pulmão	ainda	joga	ar	por	meu	corpo	incendiado.	Meu	coração	ainda
funciona.	E	minha	consciência	não	foi	afetada.
***
O	fogo	está	quase	extinto.	Meus	órgãos,	entretanto,	ainda	ardem	como	brasas	de	carvão.	Não	sei
quanto	tempo	se	passou.	Só	sei	que	a	dor	não	deu	trégua	um	segundo	sequer.	Alguém	joga	algo	sobre	meu
corpo	carbonizado,	mas	vivo.
A	estátua	aparece	de	novo.	O	homem	de	capa	vermelha	abre	sua	boca	com	dentes	afiados,	de	forma
desafiadora.	Então,	sinto	jogarem	algo	de	novo	sobre	mim.	Parece	terra.
O	que	está	acontecendo,	agora?
Mais	terra	é	jogada	sobre	mim.
Nãããããooooooooo!!!	Estou	sendo	enterrado	vivo!!!	Minhas	entranhas	ainda	estão	sendo	consumidas
pelo	fogo,	eu	não	morri	e	estou	sendo	enterrado	vivo.
Sinto	que	jáestou	completamente	encoberto	pela	terra,	mas	sei	que	continuam	a	me	enterrar	porque	o
peso	sobre	o	meu	corpo	aumenta	cada	vez	mais.	A	terra	aspirada	pelo	que	restou	do	meu	nariz	entra	no
pulmão	ainda	queimando.
Por	que	não	morro?
Sinto,	então,	uma	lâmina	sendo	enfiada	no	meu	estômago	em	brasa.	É	afiada.	Ali,	embaixo	da	terra
vejo	a	imagem	do	homem	de	capa	vermelha.	É	ele	quem	está	me	espetando.	Seus	olhos	são	labaredas.
Seus	dentes	mais	afiados	do	que	nunca.	A	dor,	que	parecia	que	não	podia	piorar,	atingiu	níveis
impensáveis.
A	estátua	sorri.	E,	apesar	de	ser	fisicamente	impossível,	a	dor	continua	a	piorar.	Uma	morte
horrível...	uma	morte	horrível,	repete	o	homem	da	capa	vermelha.
Meu	Deus,	isso	não	vai	acabar	nunca?!	Aaaaaaaaaarrrrrrrrrrgggggggggghhhhhhhhhh!
	
	
	
	
VODU
	
A	sugestão	de	ir	até	aquele	vidente	tinha	sido	de	sua	vizinha,	uma	senhora	de	mais	de	80	anos,	que
Érico	sempre	encontrava	no	elevador	do	edifício	onde	morava.	Érico	não	acreditava	em	clarividência,
leitura	de	mãos,	tarô,	búzios	ou	qualquer	uma	dessas	crendices	populares,	que	ele	considerava	puro
charlatanismo,	mas	estava	disposto	a	dar	uma	chance	àquilo.
Ele	já	esperava	há	quase	duas	horas,	quando	finalmente	a	secretária	do	“Bruxo”	o	chamou	para	entrar.
A	sala	estava	meio	escura,	mas	ele	logo	identificou	o	vidente	sentado	a	uma	mesa,	cheia	de	pequenas
estátuas.
—	Bem-vindo	à	minha	casa	—	disse	o	vidente,	sinalizando	para	que	Érico	se	sentasse	a	sua	frente.
De	início,	ele	relutou.	Pensou	em	dar	meia	volta	e	sair	dali	para	nunca	mais	voltar.	Sentiu-se	um
idiota	por	acreditar	que	aquilo	poderia	resolver	seu	problema.	Há	três	meses	vinha	sentindo	dores,
localizadas	em	diferentes	partes	do	corpo.
Começava	apenas	como	um	leve	incômodo.	Aquilo	evoluía	para	algo	mais	doloroso	e	parecia	que
facas	entravam	em	seu	corpo.	A	dor	ficava	no	local	afetado	por	alguns	dias	e,	subitamente,	desaparecia.
No	dia	seguinte,	outra	parte	de	seu	corpo	era	atingida.
Se	a	pontada	era	na	cabeça,	ele	sentia-se	inicialmente	com	uma	leve	enxaqueca.	Depois,	parecia	que
alguém	queria	arrancar-lhe	o	cérebro	com	um	facão	de	abrir	cocos.	Em	seguida,	toda	a	cabeça	ficava
dolorida,	com	uma	forte	enxaqueca.	Analgésicos	não	faziam	efeito.	Não	importava	quantos	comprimidos
de	dipirona	ele	ingerisse.	Por	volta	do	quarto	ou	quinto	dia,	tudo	acabava	repentinamente.
Já	tinha	sentido	dores	nas	costas,	na	cabeça,	na	pélvis,	nas	pernas,	na	barriga,	dentro	da	boca,	nos
braços,	na	cabeça	de	novo.	Tinha	visitado	duas	emergências	de	hospital,	três	clínicos	gerais	e	dois
especialistas.	Nenhum	deles	tinha	encontrado	nada	de	errado	com	seu	organismo.
—	Fique	à	vontade	—	disse	o	Bruxo.
Por	fim,	Érico	sentou-se,	ainda	hesitante.	O	vidente	encarou-o,	em	silêncio,	por	alguns	momentos.	O
Bruxo	era	um	homem	gordo	e	ele	exalava	um	odor	um	tanto	quanto	desagradável.	Um	cheiro	de	suor
misturado	com	carne	em	processo	de	apodrecimento.
O	vidente	deu	um	sorriso	que	Érico	achou	forçado.	E	o	silêncio	estabeleceu-se	na	sala	por	alguns
minutos.	O	Bruxo	analisou-o	com	profundo	interesse.	Quando	Érico	quis	quebrar	o	silêncio,	o	homem	à
sua	frente	segurou	suas	mãos	e	fechou	os	olhos.	Ele	ficou	assim	por	cerca	de	cinco	minutos,	até	que	os
abriu	novamente	e	soltou	as	mãos	do	cliente.
Érico	mal	disfarçava	seu	desprezo	por	toda	aquela	“farsa”.
—	Eu	sei	o	que	te	incomoda	—	por	fim,	disse	o	vidente.
É	claro	que	sabe.	Eu	contei	tudo	sobre	minhas	dores	para	aquela	velha	que	vive	gastando	dinheiro
nessa	merda,	pensou	Érico.
—	Você	está	atormentado	por	dores.	Que	você	não	sabe	de	onde	vêm,	mas	que	estão	tornando	sua
vida	um	inferno.
Parabéns	pela	conclusão,	gênio,	quis	gritar	para	seu	interlocutor,	ridiculamente	vestido	com	uma
roupa	de	pai	de	santo	e	um	chapéu	kufi	azul-claro.
Estava	arrependido	de	ter	ido	até	aquele	templo	fajuto,	mas	não	sabia	como	voltar	atrás.	Nesse
momento,	recuperava-se	de	uma	pontada	no	seu	pulmão	esquerdo.	Ainda	tinha	certa	dificuldade	para
respirar,	mas	estava	no	último	dia	daquele	ciclo.	Sabia	que,	no	dia	seguinte,	começaria	uma	dor
insuportável	em	outra	parte	de	seu	corpo.
—	Eles	me	contaram	—	disse	o	Bruxo,	apontando	para	o	alto.
Érico	olhou	como	um	bobo	para	o	teto,	tentando	descobrir	quem	eram	“eles”.
—	Suas	dores	não	serão	curadas	por	médicos.
Olhou	para	o	vidente.	Não	conseguia	esconder	seu	ceticismo.
—	São	dores	que	afetam	seu	espírito,	não	seu	corpo	—	falou	o	místico.
Maldito,	que	tal	dizer	isso	para	meu	pulmão	esquerdo?,	berrou	mentalmente	Érico.	Charlatão!
O	Bruxo	fechou	os	olhos	e	segurou	as	mãos	de	seu	cliente	novamente.	Érico	olhou	para	os	lados.	A
sala	estava	repleta	de	ícones	de	todas	as	religiões,	de	São	Jorge	a	Vishnu,	passando	por	Buda	e	Iemanjá.
Estrelas,	luas	e	símbolos	do	zodíaco	complementavam	a	decoração	do	kitsch	santuário.
Érico	ficou	olhando	fixamente	para	aquele	homem	que	se	esforçava	para	parecer	real	a	sua
encenação.	Os	olhos	continuavam	fechados.	O	ambiente	silencioso.	Ele	pensou	em	começar	a	assobiar
quando	foi	interrompido	pelo	súbito	despertar	do	Bruxo.
—	Vodu!	—	disse	o	vidente.
—	O	quê?!
—	Essa	é	a	origem	de	toda	a	sua	aflição.
—	Desculpa,	mas	não	estou	entendendo	—	disse	Érico.
—	Você	sabe	o	que	é	vodu?
Érico	pensou	um	pouco,	já	estava	se	envolvendo	demais	naquela	brincadeira.	Não	sabia	se	encerrava
de	vez	aquela	encenação	ou	se	dava	mais	corda	para	o	místico.
—	Sim,	aqueles	bonecos	em	que	você	espeta	uma	agulha.
O	Bruxo	aproximou-se	dele,	com	um	ar	solene.
—	A	religião	vodu	é	mais	do	que	isso.	Sacrifícios	de	animais,	comunicação	com	espíritos,
incorporação	de	entidades,	transes,	uso	de	plantas	medicinais.	E,	sim,	você	está	certo:	aqueles	bonecos
fazem	parte	disso.
O	vidente	alisou	seu	cavanhaque,	pensativo,	e	completou:
—	É	algo	muito	parecido	com	os	nossos	cultos	afro-brasileiros.	É	uma	religião	muito	antiga,	que	se
originou	na	África	e	chegou	às	Américas	com	os	escravos.	
Um	novo	período	de	silêncio.	Érico	sentiu-se	incomodado	com	aquilo.	O	Bruxo	levantou-se	e
caminhou	até	uma	estante,	onde	havia	livros	muito	velhos.	Ali,	ele	pegou	um	atlas,	que	jogou	sobre	a
mesa.	Com	o	dedo	molhado	de	saliva,	começou	a	folhear	o	velho	volume,	até	que	parou	em	um	mapa	do
Caribe.	O	livro	era	tão	velho	que	ainda	mostrava	várias	ilhas,	hoje	países	independentes,	como	colônias
da	Inglaterra.
O	dedo	do	vidente	percorreu	a	página	e	parou	em	cima	do	território	do	Haiti.	Érico	sentiu	um
calafrio.	O	Bruxo	olhou	para	seu	cliente	em	silêncio.
—	Haiti	—	disse,	secamente,	o	místico.
Érico	engoliu	em	seco,	enquanto	ouvia	o	Bruxo	completar	sua	frase.
—	É	daqui	que	vem	o	“trabalho”	que	está	te	causando	todas	essas	dores.
O	coração	de	Érico	passou	a	pulsar	mais	forte.	Era	impossível	que	o	vidente	soubesse	disso.	Ele	não
tinha	contado	para	sua	vizinha	de	80	anos	nem	para	ninguém	em	seu	edifício	sobre	os	seis	meses	que
passou	no	Haiti,	atuando	como	soldado	na	missão	de	paz	das	Nações	Unidas.
—	Mas,	como?...	—	Érico	ainda	tentou	falar	alguma	coisa,	mas	ficou	sem	saber	como	continuar	a
frase.
O	Bruxo	fechou	o	atlas	com	força,	levantou-se	e	colocou	o	livro	de	volta	na	estante.
—	Eu	sei	que	você	esteve	no	Haiti	e	algo	muito	terrível	aconteceu	por	lá.	Eu	posso	sentir	isso	—
falou	o	Bruxo.	—	Os	espíritos	não	me	dizem	o	que	é,	mas	sinto	que	esse	acontecimento	ainda	está	muito
ligado	a	você,	como	uma	força	poderosa.
Não	acredito	nisso!	Como	ele	pode	saber?,	Érico	pensou,	enquanto	fincava	suas	unhas	na	palma	de
sua	mão,	tentando	extravasar	sua	ansiedade.	Ele	não	sabia	como	continuar	aquela	conversa.	Estava
surpreso	por	seu	interlocutor	saber	que	ele	estivera	no	Haiti	e	que	algo	“muito	terrível”	tinha	acontecido
durante	sua	estada	na	ilha.
Mesmo	imaginando	que	o	Bruxo	realmente	não	soubesse	detalhes	desse	“terrível”	episódio,	sentia-se
envergonhado	pelo	crime	que	havia	cometido	numa	noite	escura,	na	capital	haitiana	Porto	Príncipe.
—	Essa	força	poderosaestá	sendo	descarregada	em	você	através	de	uma	ligação	simpática.	E	essa
ligação	foi	estabelecida	por	um	boneco	vodu	—	continuou	o	vidente.
Érico	sentiu	todos	os	pelos	de	seus	braços	e	pernas	se	arrepiarem	subitamente.	Vadia	maldita,	gritou
em	seu	pensamento	e	depois	olhou	assustado	para	o	Bruxo,	temendo	que	tivesse	falado	em	voz	alta.	O
místico	continuava	olhando-o	com	o	mesmo	rosto	sério.	Não,	ele	não	tinha	verbalizado	seu	ódio.
—	Ligação	simpática?!
—	Sim,	uma	simpatia.	Uma	magia	poderosa,	mas	não	tão	difícil	de	ser	desfeita	—	disse,	de	repente,	o
Bruxo,	como	que	prevendo	a	pergunta	que	Érico	queria	fazer.
Érico	estava	tão	puto	quanto	estava	espantado.	A	vadia	fez	um	boneco	vodu	para	desgraçar	com	a
minha	vida.
—	É	claro	que,	primeiro,	você	precisa	descobrir	quem	fez	o	“trabalho”	contra	você.	É	preciso	saber
onde	está	o	boneco.
É	claro	que	ele	sabia	quem	tinha	feito	o	boneco.	Lembrou-se	do	rosto	daquela	mulher,	em	profunda
dor	pela	perda	do	marido,	vociferando	contra	ele.	Os	olhos	injetados,	a	face	ensopada	de	lágrimas,	a
baba	pulando	da	boca.
Érico	se	recordava	de	ter	tentado	desculpar-se	com	ela,	depois	de	ter	matado	seu	marido.	Tentara
dizer	que	foi	um	engano,	que	estava	escuro	e	que	o	marido	dela	tinha,	em	suas	mãos,	um	objeto	parecido
com	uma	pistola.	Lamento	muito,	falou	para	a	mulher,	enquanto	outras	pessoas	começavam	a	se	juntar	em
torno	do	pequeno	grupo	de	apenas	quatro	militares.	
O	sargento	que	comandava	a	patrulha	puxou	Érico	e	disse	que	era	inútil	se	desculpar.	O	marido	dela
tinha	sido	estúpido	em	apontar	a	furadeira	elétrica	na	direção	de	militares	que	patrulhavam	uma	área
hostil,	durante	a	noite.
A	turba,	que	ficava	cada	vez	mais	enfurecida,	começou	a	avançar	contra	os	militares.	Era	hora	de
recuar	ou	eles	teriam	o	mesmo	destino	daquele	jovem	haitiano,	vítima	da	imperícia	dos	soldados.
Enquanto	os	outros	militares	empurravam	Érico	para	o	veículo	blindado	das	Nações	Unidas,	ele	pôde
ver	a	mulher	apontando	o	dedo	na	sua	direção	e	gritando,	em	um	português	com	forte	sotaque	francês:
Assassino!	Você	vai	pagar!	Você	vai	pagar!	Era	possível	sentir	o	ódio	na	voz	da	viúva,	uma	jovem	que
seria	até	bonita,	se	não	estivesse	naquela	situação.	
Ele	ficou	uma	semana	inteira	pensando	no	episódio.	Até	que	ele	começou	a	encontrar	bilhetes
ameaçadores	em	cima	de	sua	cama,	dentro	da	base	militar	brasileira.	Vinham	escritos	em	um	português
cheio	de	erros	de	ortografia.	Imaginava	que	aquelas	mensagens	vinham	da	viúva.	Não	sabia	como	ela
tinha	descoberto	seu	nome	ou	como	ela	deixava	aqueles	recados	dentro	da	base.	Provavelmente,	contava
com	o	apoio	de	algum	dos	vários	funcionários	haitianos	que	trabalhavam	ali.
As	palavras,	marcadas	por	ódio,	sempre	mencionavam	uma	maldição	que	seria	jogada	sobre	Érico.
De	início,	aquilo	o	deixou	incomodado,	mas,	depois	de	algum	tempo,	ele	passou	a	ignorar	as	ameaças	e	a
jogar	o	papel	no	lixo	antes	mesmo	de	ler.	Até	que	se	passaram	cerca	de	três	semanas,	os	bilhetes
cessaram	e	a	missão	dele	no	Haiti	chegou	ao	fim.
De	volta	ao	Brasil,	ele	se	esqueceu	da	mulher	e	da	vítima	que	ele	fez	no	Haiti.	Seus	colegas	o
apoiaram	dizendo	que	operações	militares	costumavam	deixar	efeitos	colaterais	indesejáveis	e	que	ele
não	deveria	se	afetar	com	aquilo.	Um	inquérito	foi	aberto	pelas	autoridades,	mas	Érico	foi	inocentado.
Quando	ele	começou	a	sentir	aquelas	infernais	dores	localizadas,	não	as	associou	às	ameaças	feitas
pela	haitiana.	Afinal,	nunca	acreditou	que	pudesse	ser	afetado	por	uma	macumba	feita	a	milhares	de
quilômetros	de	distância.
—	Você	está	bem?	—	a	voz	do	Bruxo	fez	Érico	despertar	de	suas	lembranças.
Érico	olhou	para	o	homem	à	sua	frente	e	moveu	sua	cabeça	em	sinal	afirmativo.	Suas	mãos	estavam
geladas.	Passou	a	mão	pela	testa	e	enxugou	o	suor.
—	Como	eu	desfaço	isso?	—	perguntou.	—	Como	eu	acabo	com	esse	feitiço?
O	Bruxo	recostou-se	em	sua	cadeira.
—	Bem.	Supondo-se	que	você	saiba	quem	fez	isso	para	você	e	que	você	consiga	por	as	mãos	nesse
boneco...	—	disse	o	vidente.
—	O	que	eu	tenho	que	fazer,	porra?	—	interrompeu	Érico,	impaciente.
—	Você	precisa	trazer	esse	boneco	para	a	gente.	Vamos	fazer	um	ritual	para	dissociar	o	boneco	de
você.	Queimamos	esse	objeto,	pedimos	a	intercessão	dos	orixás	e,	depois,	enterramos	o	boneco	em	uma
encruzilhada.
Érico	colocou	as	mãos	sobre	seu	rosto	e	esfregou-as	com	força,	de	modo	que	sua	cara	ficou
avermelhada.	Então,	levantou-se	e	saiu	da	sala	do	Bruxo.	Ele	tinha	que	voltar	ao	Haiti,	encontrar	aquela
mulher	e	pegar	o	maldito	boneco.
***
O	clima	tropical	abafado	da	capital	haitiana	foi	sentido	logo	que	Érico	saiu	do	avião	no	Aeroporto
Toussaint	Louverture.	Ele	levava	apenas	uma	mochila	com	algumas	mudas	de	roupa.	Já	tinha	um	plano.
Iria	até	a	casa	da	viúva	e	a	forçaria	a	entregar-lhe	o	objeto	da	maldição.
Ele	sabia	onde	ela	morava,	porque	seu	marido	havia	morrido	em	frente	à	casa	deles,	na	comunidade
de	Cité	Soleil.	Só	torcia	para	que	a	mulher	não	tivesse	se	mudado	de	lá.	Achava	improvável,	porque	a
oferta	de	imóveis	em	Porto	Príncipe	não	era	grande	depois	do	terremoto	de	2010,	que	destruiu	milhares
de	casas	e	levou	incontáveis	famílias	a	se	mudar	para	acampamentos	improvisados.
Érico	alugou	um	carro	no	aeroporto	e	dirigiu-se	para	um	hotel,	na	arborizada	Pétionville,	a	zona
nobre	de	Porto	Príncipe.	Ele	passou	a	noite	em	claro,	pensando	nos	detalhes	de	seu	plano.	Tinha	tanta
certeza	de	que	resolveria	tudo	nos	próximos	dias,	que	só	tinha	reservado	mais	duas	noites	no	hotel.	Seu
voo	também	estava	marcado	para	três	dias	depois.
Chegaria	à	casa	dela,	colocaria	uma	faca	em	seu	pescoço	e	exigiria	o	boneco	vodu.	Pegaria	o	objeto
amaldiçoado,	voaria	de	volta	ao	Brasil,	o	entregaria	ao	Bruxo	e	desfaria	aquela	macumba.
Sem	sono,	ele	desceu	ao	lobby	do	hotel	e	pediu	uma	cerveja	local.	Não	havia	ninguém	além	dele	e	do
recepcionista.	Porto	Príncipe	não	é	exatamente	o	destino	de	férias	dos	sonhos	de	alguém.	Miséria	e
sujeira	estão	espalhadas	por	onde	quer	que	se	olhe.
Já	no	final	da	madrugada,	ele	conseguiu	tirar	um	cochilo	de	cerca	de	três	horas.	Acordou	com	o	sol
esquentando	seu	rosto.	Abriu	a	janela	e	sentiu	o	cheiro	das	árvores.	Pegou	sua	mochila.	Em	volta	do
pescoço,	pôs	um	colar	com	sua	antiga	plaqueta	de	metal,	de	identificação	militar,	que	ele	usou	durante
sua	missão	no	Haiti.	Beijou-a	para	dar	sorte	e	saiu	do	quarto.	Era	impressionante	como	um	cético	como
ele	havia,	de	repente,	passado	a	acreditar	em	maldições	e	amuletos	de	sorte.
Caso	ele	se	esquecesse	do	poder	do	sobrenatural,	uma	dor	lancinante	no	fundo	de	seus	olhos	insistia
em	lembrá-lo.	A	dor	em	seus	olhos	era	o	mais	recente	tormento	de	seu	ciclo	interminável	de	dores.	Pegou
o	carro	e	dirigiu-se	para	Cité	Soleil.	O	sol	de	início	de	manhã	já	era	forte	o	bastante	para	queimar	seu
braço,	exposto	na	janela	do	veículo.
Parou	em	uma	rua	próxima	à	casa	da	viúva.	Saltou	do	carro	e	viu	a	movimentação	no	local.	Havia	um
grande	número	de	barracas	vendendo	todo	tipo	de	mercadorias	naquela	calçada.	Ao	lado,	corria	um	rio
que	estava	tomado	por	lixo,	como	pneus,	garrafas	plásticas,	roupas	velhas	e	até	carcaças	de	animais.
Colocou	seus	óculos	escuros	e	o	boné	para	não	ser	reconhecido.	Parou	próximo	à	casa	e	ficou
observando.	Na	calçada,	ao	lado	do	local	onde	morava	a	viúva,	pessoas	conversavam,	enquanto	uma
criança	nua	brincava	com	um	carrinho	de	plástico	sem	rodas.
Bebeu	um	pouco	da	água	mineral	que	tinha	trazido	do	hotel	e	ficou	ali	parado	por	um	tempo.	Um
menino	se	aproximou	e	pediu	dinheiro.	Ele	dispensou	o	moleque,	mostrando	os	bolsos	vazios.
Depois	de	mais	de	uma	hora	ali	parado,	viu	a	porta	se	abrir.	Uma	mulher	saiu.	Sim,	era	a	viúva,	a
bruxa	que	tinha	tornado	sua	vida	um	inferno	de	dores	sem	fim.	Pensou	em	sair	andando	na	direção	dela	e
apertar	seu	pescoço	até	que	ela	perdesse	o	fôlego	e	morresse.
Mas	decidiu	aguardar.	Agiria	à	noite,	quando	a	movimentação	na	rua	seria	menor.	E,	obviamente,	não
poderia	matá-la.	Pelomenos	não	antes	de	estar	com	o	boneco	vodu	em	suas	mãos.	Esperou	até	que	ela
sumisse	de	sua	vista,	então	voltou	ao	carro	e	dirigiu-se	para	o	hotel.	Aproveitou	para	descansar	um
pouco.
Seu	relógio	despertou	às	19h.	Ele	tomou	um	rápido	banho,	sem	tirar	sua	plaqueta	de	identificação.
Colocou	uma	roupa	leve	e	saiu	do	hotel	em	direção	à	casa	da	viúva,	com	o	olho	ainda	latejando.	Estava
decidido	a	acabar	com	aquilo	naquela	mesma	noite.
Érico	estacionou	o	carro	no	mesmo	local	onde	havia	parado	pela	manhã.	Ele	botou	a	faca	em	um
bolso	e	uma	pequena	lanterna	no	outro.	A	rua	estava	bem	mais	vazia,	mas	algumas	casas	estavam	com
suas	portas	abertas.
Buscou	andar	pelas	sombras,	o	que	não	era	difícil,	devido	à	precariedade	da	iluminação	daquela
área.	Quando	chegou	próximo	à	casa,	sentiu	a	dor	em	seu	olho	ficar	bem	forte.	Colocou	sua	mão	sobre
ele,	pensando	em	arrancá-lo	fora	para	cessar	aquela	sensação	horrível.
Recompôs	suas	forças	e	aproximou-se	da	porta.	Tentou	abri-la,	mas	um	trinco	impediu	que	ela
cedesse	mais	do	que	um	pequeno	vão,	por	onde	mal	passava	seu	braço.	A	sala	estava	escura,	mas	podia
ver	uma	fraca	luz	vindo	de	algum	lugar	dentro	da	casa.	Ouviu	o	choro	de	um	bebê.
Merda!	Não	sabia	que	a	mulher	tinha	um	filho.	Tentou	mover	o	trinco	com	sua	mão,	mas	era
impossível	abri-lo	por	fora.	Olhou	para	um	lado	e	para	o	outro.	Apenas	um	senhor	caminhava	na	outra
calçada.	Esperou	que	ele	passasse	e	se	distanciasse.	A	rua	estava	agora	vazia.
Empurrou	a	porta	com	o	ombro,	mas	ela	não	abriu.	Tentou	com	mais	força	e	nada.	Pegou	mais
distância	e	trombou	na	porta.	Dessa	vez,	ela	cedeu	um	pouco.	Pegou	fôlego	e	jogou,	mais	uma	vez,	todo	o
peso	do	seu	corpo	sobre	ela.
Assustada	com	o	barulho,	a	viúva	apareceu	na	sala,	com	o	bebê	no	colo,	ao	mesmo	tempo	em	que
Érico	entrava	no	local.	Ele	pôde	ver	os	olhos	de	pavor	da	mulher,	que	correu	de	volta	para	o	cômodo	que
tinha	a	luz	acesa,	gritando	por	socorro.	Érico	fechou	a	porta	da	casa	e	correu	atrás	dela.
Ele	encarou	a	jovem	e	fez	sinal	pedindo	silêncio.
—	Não	vou	te	machucar,	mas	não	faça	nenhum	barulho	—	ordenou	o	invasor.
A	mulher	estava	com	tanto	medo,	que	não	via	alternativa	a	não	ser	obedecer.
Ele	então	avançou	na	direção	dela	e	agarrou-a	pelo	braço.	Ela	fez	menção	de	que	ia	gritar,	mas
desistiu	quando	ele	puxou	a	faca	do	bolso	e	mostrou-a	ameaçadoramente	para	ela.
—	Você	entende	o	que	eu	digo?	—	perguntou	Érico.	—	Você	fala	português?
Ela	fez	que	sim,	com	a	cabeça.	Ela	havia	aprendido	português	depois	de	trabalhar	por	quase	dois
anos	na	cozinha	de	uma	organização	não	governamental	brasileira	que	atuava	no	Haiti.
—	Você	sabe	quem	eu	sou?
Lágrimas	começaram	a	brotar	nos	olhos	da	jovem,	que	acenou	positivamente	com	a	cabeça.
—	O	assassino	—	disse	a	mulher,	enquanto	tentava	proteger	o	bebê,	uma	criança	de	menos	de	um	ano.
—	O	monstro	que	matou	meu	Antoine.
Érico	sentiu	uma	pontada	forte	em	seu	olho	esquerdo	e,	por	um	momento,	ele	esfregou-o	com	a	mão
que	segurava	a	faca,	tentando	aliviar	a	pressão.
—	Você	sabe	por	que	eu	estou	aqui?
A	viúva	respondeu	negativamente	apenas	com	uma	movimentação	da	cabeça.
—	Deixa	de	ser	mentirosa,	sua	piranha!	É	claro	que	sabe	—	gritou	Érico,	ameaçadoramente.	O	bebê
voltou	a	chorar	a	plenos	pulmões.	—	Cadê	a	porra	do	boneco?	A	porra	do	boneco	vodu	que	você	fez
para	infernizar	minha	vida.
A	mulher	passou	a	fazer	coro	com	o	choro	do	bebê.
—	Por	favor,	não	machuca	a	gente.
—	Então	me	devolve	o	maldito	boneco,	sua	bruxa	miserável!
Érico	levou	a	faca	até	o	pescoço	da	mulher,	que	começou	a	soluçar,	junto	com	o	choro.	Uma	pontada
mais	forte	atingiu	o	olho	esquerdo	dele,	o	que	fez	com	que	ele	quase	largasse	a	faca.
—	Por	favor...	—	ela	implorou.
A	faca	saiu	do	pescoço	da	mulher	e	passou	para	o	do	bebê.	Ela	deu	um	grito	e	implorou	de	forma
ainda	mais	desesperada.
—	Nãããoooo...	Meu	bebê	não.
A	raiva	tomou	conta	de	Érico,	mas	ele	percebeu	que	a	situação	estava	fugindo	do	controle.	Se	a
mulher	não	lhe	desse	logo	o	boneco	vodu,	alguém	poderia	ouvir	os	gritos	e	entrar	na	casa,	para	saber	o
que	estava	acontecendo.
—	Eu	não	estou	brincando	—	disse	Érico.
—	Tá	bem,	tá	bem.	Eu	vou	dar	o	boneco	pra	você	—	respondeu	a	viúva.	—	Mas	ele	não	tá	aqui	com
a	gente.
Érico	afastou-se	dela,	socou	o	ar	e	soltou	um	palavrão,	diante	de	mais	um	problema.	Fervendo	de
ódio,	ele	encostou	a	faca	de	novo	no	bebê.	A	mulher	soltou	um	grito	de	espanto.
—	Eu	vou	dar	o	boneco!
Ele	recuou	a	faca.	A	mulher	suspirou.
—	Foi	ideia	do	meu	tio.	Ele	é	um	bokor,	um	feiticeiro.	Eu	queria	que	você	tinha	sofrimento,	que	você
pagava	por	que	fez	para	Antoine.	Meu	bebê...	—	ela	soluçou.	—	Meu	filho	vai	crescer	sem	pai,	porque
você	matou	ele.
Érico	puxou	seus	próprios	cabelos,	angustiado.
—	Quando	eu	vi	Antoine	no	chão	e	você	com	aquela	arma,	eu	queria	que	você	pagava	pelo	que	você
fez.	Eu	procurei	meu	tio	para	que	ele	jogava	uma	maldição	em	você.	Ele	fez	o	ritual	com	o	boneco.
—	Eu	quero	o	boneco	de	volta.	E	eu	quero	que	você	desfaça	essa	maldição	—	disse	Érico,	dessa	vez
em	um	tom	de	voz	mais	baixo.
A	jovem	abraçou	o	bebê	com	mais	força	e	beijou	sua	testa.
—	Tudo	bem	—	disse	ela.	—	Ele	mora	aqui	atrás.	Nós	vamos	até	a	casa	dele.	Eu	pego	o	boneco	com
ele.	Mas,	por	favor,	não	faz	mal	pra	nós.	Pega	o	boneco	e	vai	embora.	Apenas	vai	embora	e	deixe	nós	em
paz.
Érico	suspirou.	Seu	coração	começava	a	desacelerar.
—	Eu	não	quero	fazer	mal	a	vocês,	só	quero	minha	saúde	de	volta	—	disse	ele.
A	jovem	viúva	colocou	seu	bebê	no	berço,	enrolou-o	com	um	pano	e	o	pegou	de	volta	no	colo.	Ela
então	andou	até	os	fundos	da	casa,	onde	havia	um	beco.	Érico	seguiu-a	por	alguns	metros	até	que
entraram	por	uma	porta	entreaberta.
Logo	que	eles	entraram,	Érico	sentiu	um	cheiro	de	carne	podre	e	quase	vomitou.	Seu	olho	voltou	a
latejar	e	ele	soltou	um	palavrão.	A	dor	era	insuportável.	Por	favor,	acabe	com	essa	dor,	pensou.	Ele
abaixou	o	corpo	e	ajoelhou-se	no	meio	da	sala.
Quando	ele	finalmente	levantou	a	cabeça,	deu	de	cara	com	um	velho,	com	um	cachimbo	na	boca,
encarando-o	a	três	palmos	de	distância.	Érico	quase	caiu	para	trás.	Que	diabos?!	O	ancião	parecia	ter
mais	de	cem	anos.
A	jovem,	com	o	bebê	ainda	no	colo,	falou	com	o	idoso	algo	em	crioulo	haitiano,	a	língua	popular	da
ilha.	O	velho	cuspiu	no	chão	e,	olhando	com	desprezo	para	Érico,	respondeu	algo	na	mesma	língua.
—	Quem	é	esse	velho	e	o	que	ele	está	dizendo?	—	perguntou	para	a	viúva.
A	jovem	demorou	um	pouco	para	responder,	mas	disse	que	era	seu	tio	e	que	ele	achava	que	não
deveriam	se	desfazer	do	boneco	vodu.
Érico	xingou	os	dois	e	levantou-se	do	chão,	brandindo	a	faca	na	direção	deles.	O	idoso	pareceu	não
se	abalar	com	a	ameaça,	mas	a	jovem	disse	que	conversaria	com	o	tio.	Os	dois	conversaram	naquela
língua	estranha	por	alguns	minutos,	até	que	Érico,	impaciente,	interrompeu	o	diálogo.
—	O	que	vocês	estão	falando?	Eu	quero	a	porra	do	boneco!	—	gritou.
A	jovem	deixou	o	bebê	em	um	cesto,	um	tipo	de	berço.
—	Ele	disse	que	não	adianta	dar	o	boneco	—	disse,	agora	já	mais	calma,	a	jovem	haitiana.
—	Como?!	—	disse	Érico,	impaciente.	—	Eu	preciso	levar	esse	boneco	para	o	Brasil.	O	bruxo	me
falou	que	eu	precisava	levar	o	boneco	para	ele...
Érico	foi	interrompido	pela	moça,	que	aproximou-se	dele.	Ela	viu	que	o	suor	pingava	de	seu	rosto	e
que	seu	olho	esquerdo	estava	inchado,	como	se	tivesse	sido	tomado	por	um	grande	tumor.
—	A	maldição.	Só	pode	acabar	com	ela	aqui.	Você	não	consegue	acabar	com	a	dor,	se	levar	o	boneco
embora.	Só	o	bokor	que	fez	o	ritual	pode	acabar	com	a	maldição.
—	Eu	não	acredito	em	você.	Você	quer	me	ver	morto.	Anda!	Pede	a	merda	do	boneco	pro	velho!
O	bokor	falou	algo	em	crioulo	para	a	sobrinha	e	apontou	para	umas	imagens	de	madeira	nos	fundos	da
sala.	Depois	encarou	com	dureza	o	homem	com	olho	inchado	que	estava	desesperado	perante	ele.
A	jovem	haitiana	aproximou-se	ainda	mais	de	Érico	e	segurou	seu	queixo,	com	aparentecompaixão.
—	Você	não	entende.	Ele	fez	pacto	com	um	loa,	uma	entidade	que	só	responde	pra	ele.	Só	ele	pode
pedir	pra	maldição	ir	embora.	A	maldição	é	só	ele	que	tira	—	disse	a	jovem	viúva,	apontando	para	o	tio
idoso.	—	Depois	do	feitiço	acabar,	o	boneco	vai	ser	destruído,	devolvido	pro	loa.
Érico	andou	de	um	lado	para	o	outro,	não	acreditando	que	estava	preso	aos	desígnios	de	uma	mulher
que	o	odiava	e	de	um	velho	feiticeiro.	Ele	mostrou	novamente	a	faca	para	a	jovem	e	depois	a	direcionou
para	o	bebê,	mostrando	o	que	faria	caso	não	desfizessem	o	feitiço.
A	mulher	pareceu	entender.	Ela	falou	algo	para	o	idoso,	que	resmungou	de	volta	e	saiu	da	sala.
—	Onde	ele	está	indo?	O	que	vocês	estão	falando?	—	perguntou	o	brasileiro,	colocando	a	faca	na
direção	da	moça	novamente.
A	jovem	nem	chegou	a	responder,	porque	o	bokor	voltou	para	a	sala	onde	eles	estavam,	com	um
boneco	vodu	nas	mãos.
Érico	viu	o	boneco	e	andou	em	direção	ao	velho.	Ele	arrancou	o	objeto	amaldiçoado	da	mão	do
feiticeiro.	Era	apenas	um	tosco	pedaço	de	pano.	Ao	contrário	do	que	ele	poderia	imaginar,	não	havia
nenhum	alfinete	enfiado	no	boneco.	O	velho	gritou	algo	para	ele,	mas	ele	não	pôde	entender.
Com	o	boneco	nas	mãos,	ele	voltou	a	sentir	uma	dor	intensa	no	olho	esquerdo.	O	velho	começou	a
falar,	sem	parar.	Érico	direcionou	a	ponta	da	faca	para	ele.	A	jovem	então	pediu	que	o	tio	parasse	de
falar	e	dirigiu-se	para	o	brasileiro.
—	A	maldição	que	tá	em	você	é	uma	das	mais	horríveis.	Ela	deve	ser	tirada	em	um	ritual.	E	você
deve	fazer	parte	dele.	Se	não	tirar	o	feitiço,	a	dor	vai	piorar.	Todo	seu	corpo	vai	ser	comido	pelo	loa	e
você	morre.
—	Não	acredito	nisso!	Não	posso	acreditar	que	isso	está	acontecendo!	—	esbravejou	Érico.	—	Foi
sem	querer!	Foi	sem	querer,	porra!	Eu	não	queria	matar	o	seu	marido!	Eu	era	um	soldado!	Numa	guerra,
essas	coisas	acontecem!
A	jovem	virou-se	para	o	tio	e	falou	algo	para	ele.	O	velho	respondeu,	com	rispidez.	A	moça	disse
outra	coisa	e	depois	se	virou	para	o	agoniado	homem.
—	Ele	vai	tirar	o	feitiço	—	disse	a	viúva.	—	Você	já	sofreu	o	bastante.	No	início,	eu	queria	que	você
morria,	mas	acho	que	você	já	pagou	pelo	que	fez	ao	Antoine.
Érico	colocou	as	mãos	sobre	o	rosto,	contorceu-se	um	pouco,	como	se	sentisse	um	grande	incômodo.
Com	as	costas	da	mão	que	segurava	a	faca,	ele	enxugou	seu	suor.	Sabia	que	havia	a	possibilidade	de	ser
enganado	pelos	dois	haitianos.	Ele	seria	submetido	a	um	ritual	que	ele	desconhecia.	Não	sabia	se	a
maldição	seria	realmente	retirada	ou	se	jogariam	um	feitiço	ainda	pior	sobre	ele.
Mas,	no	fundo,	ele	sabia	que	não	tinha	escolha.	Era	provável	que	a	jovem	viúva	estivesse	falando	a
verdade.	O	místico	que	ele	visitou	no	Brasil	talvez	não	conseguisse	acabar	com	aquilo.	Se	o	velho	tinha
jogado	a	maldição,	ele	saberia,	melhor	do	que	qualquer	pessoa,	como	reverter	aquela	bruxaria.
—	Se	vocês	me	enganarem...	Se	vocês	me	passarem	a	perna...	Sou	eu...	Sou	eu	que	vou	transformar
sua	vida	num	inferno	—	disse	Érico,	ao	mesmo	tempo	em	que	olhava	com	ódio	para	o	bebê.	—	Acho	que
você	está	entendendo	o	que	eu	quero	dizer.
A	moça	fez	que	sim	com	a	cabeça	e	falou	com	seu	tio,	o	bokor.	O	velho	se	arrastou	até	um	altar	e
acendeu	as	velas,	ao	mesmo	tempo	em	que	cantava	algo	em	uma	língua	estranha.
Depois,	ainda	cantando,	voltou-se	para	Érico	e	pediu	o	boneco	vodu	de	volta.
—	Quando	acabar,	você	não	vai	sentir	mais	dor	—	disse	a	jovem.
Sem	saber	se	deveria,	ele	devolveu	o	objeto	para	o	bokor,	que	foi	levado	até	o	altar.
O	feiticeiro	então	foi	até	a	outra	sala	e	voltou	com	uma	caixa	de	madeira.	Dali,	tirou	cinco	potes,
contendo	diferentes	tipos	de	pós.	Recitando	versos	na	língua	popular	haitiana,	ele	colocou	um	pouco	de
água	em	uma	vasilha	de	barro	e	despejou	uma	porção	de	cada	pó,	sempre	antes	erguendo	o	pote	em
direção	às	imagens	que	estavam	sobre	o	altar.
Érico	sentiu	mais	uma	pontada	no	olho	esquerdo	e,	novamente,	caiu	de	joelhos	no	chão,	soltando	a
faca.	O	velho	misturou	a	poção,	com	a	ajuda	de	um	pedaço	de	madeira	e,	então,	parou	de	cantar,
voltando-se	para	o	homem	que	estava	ajoelhado	no	meio	da	sala.
Sem	ajoelhar-se,	o	bokor	ofereceu	o	recipiente	com	a	bebida	para	Érico.	Ele	olhou	para	aquilo	com
repulsa	e	afastou	o	rosto.	
—	Você	deve	beber.	Você	deve	estar	preparado	para	a	presença	do	loa,	que	o	bokor	vai	chamar.
Érico	não	sabia	que	relação	poderia	aquilo	ter	com	a	quebra	da	maldição	que	o	atingia	através	de	um
boneco	vodu.
—	Bebe...	—	disse,	com	uma	voz	calma,	a	jovem	viúva.	O	bebê,	estranhamente,	permaneceu	todo	o
tempo	calado.	—	O	ritual	deve	continuar.
Ele	pegou	a	vasilha	e,	com	hesitação	e	um	pouco	de	medo,	levou-a	até	sua	boca.	A	primeira	golada
desceu	tão	amarga	que	ele	chegou	a	cuspir	um	pouco	de	volta	ao	recipiente.	Mas,	com	muito	esforço,
engoliu	parte	do	líquido.
O	velho	sinalizou	para	que	ele	bebesse	o	resto,	que	estava	na	vasilha.	As	demais	tragadas	não	foram
menos	desagradáveis.	Ele	desconhecia,	e	nem	fazia	questão	de	conhecer,	os	ingredientes	daquela	poção.
Se	era	sua	chance	de	se	livrar	daquele	infindável	ciclo	de	absurdas	dores,	ele	teria	que	beber.	Seu
ceticismo	já	tinha	sido	demolido	há	algum	tempo.
Por	fim,	ele	esvaziou	a	vasilha	e	devolveu-a	ao	velho,	que	começou	a	cantar.	Érico	imaginou	que	ele
estivesse	invocando	o	loa.	A	cantoria	prosseguiu	por	vários	minutos,	até	que	o	brasileiro	começou	a
sentir	algo	estranho	em	seu	corpo.
—	O	que	está	acontecendo?
Uma	sensação	de	dormência	começou	pela	sua	língua	e	rapidamente	se	espalhou	pelo	seu	rosto.	As
mãos	e	pés	renderam-se	a	um	formigamento	e	também	ficaram	dormentes.
O	canto	do	bokor	começou	a	parecer	cada	vez	mais	distante,	menos	real.	Sua	visão	começou	a
embaçar,	mas	ele	achou	ter	visto	que	outras	duas	pessoas	entraram	na	sala.	Ele	tentou	perguntar	quem
eram,	mas	não	conseguia	mexer	os	músculos	de	sua	boca	ou	emitir	qualquer	som.	Aparentemente,	elas
dançavam	ao	redor	dele.
As	imagens	começaram,	então,	a	girar.	Ele	sentiu	uma	vontade	de	vomitar,	mas	não	tinha	forças	para
expelir	nada	de	sua	garganta.	Seu	corpo	ficou	paralisado	e	ele	caiu	no	chão.	Ele	ainda	ouvia	o	som	dos
cânticos,	mas	sua	visão	escureceu	totalmente.
Com	o	corpo	completamente	imobilizado,	ele	ouviu	a	música	cessar.	A	jovem	viúva	falou	algo	no
dialeto	crioulo	e	riu.	Ela	estava	rindo	com	todas	suas	forças.	Foi	a	última	coisa	que	ele	escutou,	antes	de
apagar	completamente.
***
Memorando	32.1-a
Seção	de	Inteligência
Batalhão	de	Infantaria	—	Missão	de	Paz	do	Haiti
Exército	Brasileiro	(EB)
Durante	um	patrulhamento	em	Cité	Soleil,	na	manhã	de	hoje,	o	blindado	EE-11	Urutu	do	batalhão
quase	atropelou	um	cidadão,	que	atravessava	a	rua	sem	prestar	atenção	ao	tráfego	de	veículos.	Segundo
relato	do	sargento	Silva,	o	referido	cidadão,	ao	ser	abordado,	parecia	estar	sob	efeito	de	entorpecentes.
Ele	não	respondia	a	nenhum	estímulo	e	não	falava	qualquer	palavra.	O	homem,	de	pele	branca,	de	idade
aparente	de	40	anos,	não	tinha	nenhum	documento	e	trajava	apenas	uma	camisa	e	uma	calça	rasgadas.
Depois	da	frustrada	tentativa	de	comunicação,	o	sargento	percebeu	que	o	cidadão	tinha	em	seu	pescoço
uma	plaqueta	de	identificação	padrão	do	EB.	A	plaqueta	o	identificava	como	“Cabo	Érico	Vanzi”.	O
nacional	foi	então	trazido	para	o	batalhão,	onde	foi	entregue	aos	cuidados	do	serviço	médico.	Nos
registros,	consta	que	Érico	Vanzi	serviu	neste	batalhão	de	outubro	de	2012	a	abril	deste	ano.	O	senhor
Vanzi	deu	baixa	no	serviço	militar	logo	após	o	término	de	sua	missão	no	Haiti,	portanto	não	tem	mais
vínculo	com	o	EB.	Não	temos	informações	sobre	o	motivo	de	sua	estada	atual	no	Haiti.	Sugerimos
comunicar	o	ocorrido	à	Embaixada	Brasileira	em	Porto	Príncipe.
Cap.	Chagas
18	de	setembro	de	2013
***
Memorando	43-1.a
Serviço	de	Saúde
Batalhão	de	Infantaria	—	Missão	de	Paz	do	Haiti
Exército	Brasileiro	(EB)
O	paciente	Érico	Vanzi	encontra-se	sob	observação	há	duas	semanas,	sem	deixar	as	dependênciasdo
posto	médico	do	Batalhão.	Até	agora,	não	temos	nenhum	avanço	a	reportar.	O	senhor	Vanzi	não	responde
a	qualquer	estímulo	visual,	sonoro	ou	tátil,	parecendo	em	estado	de	permanente	apatia.	O	paciente
tampouco	fala	qualquer	coisa.	Ele	também	se	encontra	extremamente	debilitado,	com	hipotensão	arterial,
bradicardia,	dispneia	e	anemia.	Após	exames,	encontramos	resíduos	de	toxinas	em	seu	organismo.
Entretanto,	ainda	não	é	possível	afirmar	até	que	ponto	essas	toxinas	contribuíram	para	o	estado	atual	do
paciente.	Aguardamos	uma	melhora	de	seu	quadro,	a	fim	de	que	providenciemos	a	transferência	do
senhor	Vanzi	para	um	hospital,	onde	possam	ser	realizados	exames	complementares.
TC	Amarante
Médico	—	Serviço	de	Saúde
***
2	de	outubro	de	2013
Embaixada	do	Brasil	em	Porto	Príncipe
Despacho	diplomático	nr.	28/2013
Caso	Érico	Vanzi	(documento	sigiloso)
Ao	Ministério	das	Relações	Exteriores,	
A	Embaixada	Brasileira	informa	que,	a	seu	pedido,	a	Polícia	Nacional	do	Haiti	abriu	um	inquérito
para	investigar	o	caso	do	cidadão	brasileiro	Érico	Vanzi,	encontrado	mentalmente	afetado	e	com	a	saúde
debilitada	em	Cité	Soleil.	As	primeiras	informações	das	autoridades	haitianas	mostram	que	Vanzi	chegou
a	Porto	Príncipe	em	um	voo	proveniente	da	cidade	do	Panamá,	em	10	de	julho	de	2013.	Ele	hospedou-se
em	um	hotel	no	bairro	de	Pétionville	no	mesmo	dia	e	não	chegou	a	fechar	a	conta.	Ele	foi	visto	pela
última	vez	saindo	com	seu	carro,	alugado	no	aeroporto,	na	noite	de	11	de	julho.	O	carro	foi	encontrado
pelos	investigadores	em	Cité	Soleil,	bem	próximo	de	onde	os	soldados	da	Missão	de	Paz	das	Nações
Unidas	avistaram	Vanzi	na	manhã	de	18	de	setembro.	
A	Embaixada	também	recebeu,	do	Exército	Brasileiro,	os	registros	militares	de	Érico	Vanzi.	Através
de	uma	análise	dos	documentos,	foi	constatado	que	o	senhor	Vanzi,	enquanto	ainda	era	cabo	do	Exército,
envolveu-se	em	uma	ocorrência	de	disparo	de	arma	de	fogo	que	resultou	na	morte	acidental	do	cidadão
haitiano	Antoine	Abellard,	em	março	deste	ano.	
Curiosamente,	quando	o	senhor	Vanzi	foi	encontrado	em	setembro	deste	ano,	pelas	tropas	brasileiras,
ele	estava	em	um	local	bem	próximo	de	onde	ocorreu	a	morte	do	sr.	Antoine.	Pela	sua	relevância,	a
informação	foi	imediatamente	repassada	para	a	Polícia	Nacional	do	Haiti.
Porto	Príncipe,	20	de	outubro	de	2013
Ari	Fagundes
Oficial	de	chancelaria
***
Polícia	Nacional	do	Haiti
Ofício	—	Andamento	do	inquérito	1.450
Informações	sobre	o	caso	Érico	Vanzi
À	Embaixada	Brasileira	em	Porto	Príncipe,
A	Polícia	Nacional	do	Haiti	informa	que	colheu	o	depoimento	da	senhora	Beatrice	Abellard,	viúva	de
Antoine	Abellard,	morto	em	março	deste	ano,	em	um	incidente	envolvendo	militares	da	Missão	de	Paz
das	Nações	Unidas.
O	depoimento	foi	colhido	no	dia	12	de	novembro	de	2013.	A	senhora	Beatrice	negou	conhecer	o
senhor	Érico	Vanzi,	mesmo	sendo	confrontada	com	a	informação	de	que	seu	marido	havia	sido	morto	pelo
senhor	Vanzi,	em	março	deste	ano.	Ela	também	disse	que	não	sabia	por	que	motivo,	meses	depois,	o
brasileiro	tinha	voltado	ao	local	onde	seu	marido	havia	morrido.	Tentando	conseguir	sua	colaboração,	o
investigador	informou	para	Beatrice	que,	por	enquanto,	ela	não	estava	sendo	investigada,	porque	não
havia,	a	princípio,	nenhum	crime	envolvido.	O	policial	disse	para	ela,	ainda,	que	a	Polícia	Nacional
estava	apenas	atendendo	a	um	pedido	do	governo	do	Brasil,	que	queria	descobrir	por	que	um	cidadão	de
seu	país	havia	sido	encontrado	em	uma	rua	de	Porto	Príncipe,	com	sua	saúde	debilitada.	Nesse	momento,
a	senhora	Beatrice	não	conseguiu	segurar	o	riso	e	disse	que,	provavelmente	ele	tinha	se	drogado.	Depois
disso,	ela	negou-se	a	prestar	qualquer	outra	informação	e	o	depoimento	foi	encerrado.
Cerca	de	uma	semana	depois,	no	dia	20	de	novembro	de	2013,	em	uma	diligência	nas	proximidades
da	casa	da	senhora	Beatrice,	conseguimos	localizar	um	homem,	chamado	Eugène	Auguste.	Ele	afirmou	já
ter	participado	de	rituais	na	casa	do	senhor	Emmanuel	Leblanc,	tio-avô	da	senhora	Beatrice,	e	disse	que
tinha	informações	sobre	o	caso	Érico	Vanzi,	mas	que	temia	contá-las	aos	policiais.	Segundo	ele,	o	senhor
Emmanuel	Leblanc	é	um	bokor.	Eugène	teme	que	o	bokor	jogue	algum	feitiço	ou	maldição	sobre	ele.
Já	o	intimamos	a	depor	e	esperamos	que	ele	venha	à	delegacia,	contar	o	que	sabe.
Comissário	Tardieu
Chefe	do	Escritório	de	Assuntos	Criminais
***
Polícia	Nacional	do	Haiti
Inquérito	1.450
Depoimento	do	senhor	Eugène	Auguste
Às	15h	do	dia	2	de	dezembro	de	2013,	o	sr.	Eugène	Auguste	esteve	presente	na	sede	da	Polícia
Nacional	do	Haiti	e	prestou	o	seguinte	depoimento:
O	depoente	afirmou	que	tem	53	anos,	que	é	casado	e	trabalha	como	vendedor	de	frutas	no	mercado	de
Porto	Príncipe.	Ele	disse	que	mora	em	Cité	Soleil	há	mais	de	20	anos	e	que	conheceu	a	senhora	Beatrice
há	cerca	de	cinco	anos,	quando	ela	e	o	tio-avô,	Emmanuel	Leblanc,	chegaram	a	Porto	Príncipe,	vindos	da
cidade	de	Jacmel.	Pouco	tempo	depois,	ele	conta	que	descobriu	que	o	senhor	Leblanc	era	um	feiticeiro	e
procurou-o	para	tratar	de	uma	dor	no	estômago.	Depois	de	tomar	uma	infusão	medicinal	receitada	pelo
senhor	Leblanc,	ele	disse	que	se	curou	da	dor	de	estômago	e	passou	a	frequentar	a	casa	desse	senhor,	que
também	funcionava	como	um	templo	vodu.	Ele	contou	que	havia	cerimônias	religiosas	nesse	local	e	que
ele	participou	de	várias	delas.	O	investigador,	então,	perguntou-lhe	o	que	havia	acontecido	com	o	senhor
Vanzi.	O	depoente	começou	a	chorar	e	disse	que	não	queria	ter	participado	daquilo,	mas	que	tinha	medo
do	senhor	Leblanc.	Ele	contou	que,	na	madrugada	de	12	de	julho,	Jérôme,	um	homem	que	costumava
ajudar	o	senhor	Leblanc,	no	templo	vodu,	foi	chamá-lo	em	sua	casa.	Ele	disse	que,	ao	entrar	no	templo,
viu	o	bokor	e	sua	sobrinha,	a	senhora	Beatrice,	além	de	outra	mulher	que	costumava	frequentar	o	templo,
a	senhorita	Rose-Marie.	Ele	só	reparou	que	havia	uma	pessoa	caída	no	chão	depois	que	o	senhor	Leblanc
exigiu	que	ele	ajudasse	a	carregar	o	corpo.	Era	o	senhor	Vanzi.	Ele,	Jérôme	e	Rose-Marie	levantaram	o
corpo	e	o	levaram	até	outra	sala	da	casa	do	senhor	Leblanc,	onde	havia	um	caixão.	Eles	colocaram	o
corpo	dentro	do	caixão	e	o	depoente	pôde	ver	que	o	senhor	Vanzi	estava	aparentemente	morto.	Eles
fecharam	a	tampa	e	o	levaram	até	o	cemitério	de	Porto	Príncipe.	Eugène	conta	que	ele	ajudou	a	colocar	o
caixão	dentro	de	uma	gaveta	funerária	e	que	ele	viu	o	coveiro,	Jean-Claude,	fechando	a	sepultura	com
cimento.	Três	dias	depois,	quando	Eugène	voltou	ao	templo,	para	uma	cerimônia	religiosa,	viu	um	vulto
na	sala	ao	lado.	No	final	do	culto,	ele	foi	até	lá	e	viu	o	senhor	Vanzi.	Ele	estava	vivo,	andando
vagarosamente	pela	sala	escura	e	babando	sem	parar.	Eugène	concluiu	que	Leblanc	tinha	feito	um	ritual
para	roubar	a	alma	do	senhor	Vanzi	e	torná-lo	um	zumbi.	Em	seguida,	o	depoente	disse	que	não	estava	se
sentindo	bem	e	pediu	para	encerrar	o	depoimento.
Diante	do	depoimento	do	senhor	Eugène,	reconhecemos	ser	necessário	convocar	novamente	a	senhora
Beatrice,	além	do	senhor	Leblanc,	de	seu	ajudante,	senhor	Jérôme,	da	senhorita	Rose-Marie	e	do	coveiro,
senhor	Jean-Claude.
***
Polícia	Nacional	do	Haiti
Memorando	interno
Inquérito	1.450
Em	relação	ao	andamento	do	inquérito	policial	número	1.450,	comunicamos	ao	senhor	comissário	que
já	foram	coletados	os	depoimentos	dos	senhores	Eugène	Auguste,	Jérôme	Thébaud	e	Jean-Claude	Blaise,
e	da	senhorita	Rose-Marie	Rouzier,	todos	testemunhas	oculares	do	caso	Érico	Vanzi.	A	senhora	Beatrice
Abellard	e	o	senhor	Emmanuel	Leblanc	não	foram	localizados.	Mesmo	sem	as	oitivas	dos	dois	últimos
citados,	consideramos	ter	elementos	suficientes	para	indiciar	a	senhora	Beatrice	Abellard	e	o	senhor
Emmanuel	Leblanc	pelo	envenenamento	do	sr.	Vanzi,	com	base	no	artigo	246	do	Código	Penal.
Equipe	de	investigação
Escritório	de	Assuntos	Criminais
***
Embaixada	do	Brasil	em	Porto	Príncipe
Despacho	diplomático	nr.	2/2014Caso	Érico	Vanzi	(documento	sigiloso)
Ao	Ministério	das	Relações	Exteriores,
A	Polícia	Nacional	do	Haiti	encaminhou,	ao	senhor	embaixador,	o	relatório	final	do	inquérito	sobre	o
cidadão	brasileiro	Érico	Vanzi,	depois	de	ouvir	todas	as	testemunhas	disponíveis.	A	investigação
concluiu	que	Vanzi	foi	vítima	de	uma	vingança	da	senhora	Beatrice	Abellard,	por	ter	matado	seu	marido,
Antoine	Abellard,	em	uma	operação	militar	em	Cité	Soleil,	em	março	de	2013.	Segundo	o	inquérito,
Beatrice	conseguiu	atrai-lo	até	um	templo	vodu,	onde	ele	foi	submetido	a	um	ritual	de	magia	negra,
conhecido	como	“zumbificação”.	De	acordo	com	a	polícia,	o	senhor	Vanzi	foi	obrigado	a	tomar	uma
poção	que	tem,	entre	seus	ingredientes,	veneno	de	cobra,	ossos	humanos	e	uma	toxina	potente,	chamada
tetrodotoxina,	encontrada	no	peixe	baiacu.	Essa	toxina	o	deixou	em	estado	letárgico	e	ele	foi	enterrado
vivo.	No	dia	seguinte,	o	senhor	Vanzi	foi	desenterrado	e	levado	para	as	casas	da	senhora	Beatrice	e	de
seu	tio-avô,	senhor	Emmanuel	Leblanc.	Nesse	ritual,	ele	tornou-se,	segundo	a	polícia,	um	“zumbi”,	um
“homem	sem	alma”.	Ele	foi	mantido	como	cativo	naqueles	locais	por	cerca	de	dois	meses,	até	o	dia	em
que	os	militares	brasileiros	o	encontraram	vagando	pela	rua.	A	polícia	pediu	e	a	Justiça	concedeu
mandados	de	prisão	contra	a	senhora	Beatrice	e	o	senhor	Leblanc,	já	que	esse	ritual	é	considerado	crime
no	Haiti.	Nenhum	dos	dois,	no	entanto,	foi	encontrado.	Os	mandados	continuam	em	aberto.
Porto	Príncipe,	5	de	março	de	2014.
Ari	Fagundes
Oficial	de	chancelaria
***
Hospital	Estadual	Santo	Antônio
Unidade	de	Psiquiatria
Prontuário	do	paciente	Érico	Vanzi
Depois	de	cerca	de	dois	anos	de	tratamento	nesta	unidade	de	saúde,	constatou-se	que	Érico	Vanzi	não
apresentou	nenhuma	melhora	em	seu	quadro	psicológico.	O	paciente	continua	sem	se	comunicar	e	sem
reagir	a	qualquer	estímulo	externo,	em	um	estado	semivegetativo.	O	senhor	Vanzi	passa	o	dia	olhando
para	o	canto	da	parede,	sem	pronunciar	qualquer	palavra,	e	só	se	move	dali	com	a	ajuda	da	equipe	de
enfermagem,	para	se	alimentar	e	para	se	deitar	em	sua	cama.	Há	uma	opinião	unânime,	da	junta	de
psicólogos	e	psiquiatras,	de	que	Érico	Vanzi	foi	submetido	a	um	trauma	psicológico	extremo,	decorrente
do	enclausuramento	em	uma	sepultura,	por	seguidas	horas,	após	a	ingestão	de	tetrodotoxina.	Os	danos
causados	em	sua	mente	são,	provavelmente,	permanentes	e	irreversíveis.
Rio	de	Janeiro,	19	de	outubro	de	2015.
	
	
	
	
	
	
AMANHÃ	VAI	SER	PIOR
	
Levantei-me	da	cama	com	uma	coceira	no	pulso	direito.	Era	um	corte	superficial	na	pele,	mas	não	me
lembrava	de	como	eu	tinha	me	ferido.	Depois	que	a	coceira	passou,	esqueci-me	dele	até	o	dia	seguinte,
quando	acordei	sentindo	que	havia	um	corte	um	pouco	mais	profundo	no	pulso	esquerdo.
Merda!	Me	cortei	de	novo!	Só	que,	de	novo,	não	me	recordava	de	onde	tinha	me	machucado.	Desta
vez,	tinha	sangrado.	Fui	até	o	banheiro,	coloquei	um	antisséptico	e	vedei	a	ferida	com	uma	gaze	e	um
esparadrapo.
No	terceiro	dia,	comecei	a	ficar	preocupado.	Havia	um	corte	ainda	mais	profundo,	mas,	desta	vez,	no
meu	tornozelo	direito.	Eu	senti	a	dor	quando	acordei	pela	manhã.	Mal	conseguia	colocar	o	pé	no	chão.
Era	impossível	que	eu	tivesse	me	machucado	no	dia	anterior,	sem	perceber.	Era	um	corte	considerável,
feito,	aparentemente,	por	um	objeto	afiado.
E	só	quando	me	pus	sentado,	foi	que	parei	para	pensar	sobre	aqueles	cortes.	Então,	o	medo	tomou
conta	de	mim.	O	que	está	acontecendo?!	Alguém	está	entrando	na	minha	casa	à	noite	e	me	fazendo
esses	cortes!	E	se	esse	invasor	ainda	estivesse	ali?
Então,	eu	vi	uma	folha	de	caderno,	meio	amassada	e	suja	de	sangue,	no	chão	do	quarto.	Parecia	ter
algo	escrito,	com	sangue.	“Amanhã	vai	ser	pior”,	diziam	as	letras	meio	tremidas	do	bilhete.	Entrei	em
pânico.
Fiquei	de	pé	e	peguei	um	pesado	cofrinho	de	metal,	para	me	proteger.	Andei	com	dificuldade,	até
chegar	à	porta	do	quarto.	A	casa	estava	toda	apagada.
Vagarosamente,	fui	até	a	porta	da	sala.	Era	a	única	entrada	para	o	meu	apartamento,	porque	a	porta	da
cozinha	ficava	bloqueada	por	uma	pesada	geladeira.	Estava	trancada.	As	janelas	também	estavam
fechadas,	mas	era	praticamente	impossível	alguém	entrar	por	ali.	Meu	apartamento	ficava	no	nono	andar
do	prédio.
Ainda	me	esforçando,	andei	por	toda	a	casa,	escorando-me	na	parede,	em	busca	do	suposto	invasor.
Olhei	na	sala,	na	cozinha,	na	área	de	serviço	e	no	quarto.	Procurei	atrás	de	cada	cortina,	embaixo	de	cada
mesa	e	da	cama,	dentro	de	cada	armário.	Nada.	Apenas	tratei	a	ferida	com	antisséptico	e	cobri-a	com
gaze.
No	outro	dia,	mais	um	corte,	dessa	vez,	no	tornozelo	esquerdo.	Quando	eu	acordei	pela	manhã,	sentia
uma	dor	insuportável.	Fiquei	até	com	medo	de	olhar.	Temia	que	meu	tendão	de	Aquiles	tivesse	rompido
com	o	corte.	Quando	olhei,	realmente	pude	ver	muito	sangue	na	cama	e	na	minha	perna.
Demorei	uns	dez	minutos,	até	criar	coragem	para	levantar-me	da	cama.	No	chão	do	quarto,	mais	um
bilhete.	Em	letras	feitas	com	sangue,	estava	escrito:	“Amanhã	vai	ser	pior”.	Fiquei	apavorado.	Percorri
toda	a	casa,	pulando	em	um	pé	só,	procurando	por	alguém.	A	porta	continuava	fechada,	com	o	trinco	que
só	pode	ser	aberto	pela	parte	de	dentro	da	casa.	As	janelas	também	estavam	trancadas	por	dentro.
Vistoriei	cada	canto	da	casa.	Não	havia	ninguém	ali	dentro.
Fui	ao	hospital,	para	me	tratar	do	ferimento.	O	médico	da	emergência	receitou-me	um	anti-
inflamatório	e	um	creme	antibiótico.	Para	minha	sorte,	minha	vacinação	contra	o	tétano	estava	em	dia.
Segundo	ele,	o	tendão	tinha	sido	atingido,	mas	não	havia	se	rompido.	O	corte	foi	suturado	e	tudo	o	que
tinha	que	fazer	era	usar	os	remédios	para	evitar	inflamações	e	infecções.
Na	noite	seguinte,	acordei	sobressaltado	várias	vezes,	checando	meu	corpo,	em	busca	de	novos
cortes.	Não	encontrei	nada.	Também	levantei-me,	duas	vezes,	para	checar	se	havia	alguém	dentro	da
minha	casa.	A	porta	continuava	trancada	e	as	janelas,	fechadas.	Tudo	em	silêncio.
Apesar	de	toda	a	minha	vigilância,	amanheci	com	mais	um	corte	no	corpo,	desta	vez	um	pouco	acima
do	cotovelo.	A	ferida	era	profunda.	Eu	jurava	que	podia	ver	o	osso	do	meu	braço	pelo	buraco	do	corte,
mas	podia	ser	só	minha	imaginação,	afetada	pela	dor	que	eu	sentia.	Minha	cama	estava	toda
ensanguentada.
Como?!	Como	isso	é	possível?	Esse	corte	não	estava	aqui	da	última	vez	em	que	chequei	meu
corpo!	Como	não	posso	ter	sentido	alguma	coisa	me	cortando?
Olhei	assustado	em	todas	as	direções.	Eu	estava	com	muita	dor,	mas	também	com	muito	medo.	Peguei
uma	camisa	no	meu	armário	e	amarrei	sobre	a	ferida	no	cotovelo,	para	que	parasse	de	sangrar.	No	chão,
mais	uma	vez	o	bilhete:	“Amanhã	vai	ser	pior”.
Voltei	ao	hospital.	O	médico	era	diferente	do	que	me	atendeu	no	dia	anterior,	mas	a	recepcionista	me
reconheceu	e	encarou-me	como	se	perguntasse	“de	novo?”.
O	ferimento	foi	suturado	e	expliquei	que	já	estava	sendo	medicado	para	um	ferimento	no	tornozelo
desde	o	dia	anterior.	O	médico	fez	uma	cara	de	quem	queria	saber	o	que	eu	havia	feito	para	ter	dois
cortes	profundos	em	dois	dias	seguidos,	mas	ele	conteve	sua	curiosidade.
Voltei	para	casa	angustiado	e	com	vontade	de	chorar.	O	que	estava	acontecendo	comigo?	Eu	nunca	fiz
mal	a	ninguém,	por	que	aquilo	estava	acontecendo?	Decidi	que	não	dormiria	naquela	noite.
Quando	anoiteceu,	bebi	três	latas	de	energético	e	mais	cinco	xícaras	de	café.	Sentei-me	no	sofá	e
fiquei	vendo	televisão	a	noite	inteira.	Ao	amanhecer,	meus	olhos	já	davam	sinais	de	que	se	renderiam	ao
cansaço.
Chequei	todo	o	meu	corpo.	Nada	de	errado	com	ele.	Nenhum	corte	novo.
Fui	para	o	trabalho	com	muito	sono.	Mas,	tendo	tirado	um	cochilo	de	cinco	minutos	sentado	no
banheiro	do	escritório,	não	dormi	mais	o	dia	inteiro.	Cheguei	em	casa	acabado.	Pensei	em	passar	mais
uma	noite	em	claro,	mas	sabia	que	não	conseguiria,	nem	com	dez	latas	de	energético	ou	com	cafeína
injetada	na	veia.
Preguei	os	olhos	e	sóacordei	pela	manhã,	sentindo	uma	dor	excruciante	na	mão	direita.
Meu	Deus!!!
Minha	mão	não	estava	lá.	Meu	pulso	estava	encharcado	de	sangue.	Acendi	o	abajur	e	pude	ver	a
ponta	do	osso	do	meu	antebraço	e	a	carne	cortada.	Minha	mão	havia	sido	decepada.
Soltei	um	grito	assustador,	que	ecoou	por	toda	a	casa	e	provavelmente	foi	ouvido	até	pelo	porteiro	do
edifício,	nove	andares	abaixo.
Puta	que	o	pariu!!!	Minha	mão	foi	cortada!!!
Procurei	desesperado	pela	minha	mão	amputada	e	encontrei-a	no	chão.	Se	eu	não	estivesse	com	tanta
dor,	talvez	tivesse	borrado	minhas	calças	de	medo.	Peguei	a	mão	e	corri	para	o	hospital.
Dessa	vez	nem	passei	pela	mesa	da	recepção.	Quando	entrei	pela	porta	do	hospital,	eu	caí	no	chão	e
fui	acudido	por	dois	maqueiros,	que	me	levaram	para	a	emergência.
Mais	tarde,	quando	o	efeito	dos	sedativos	passou,	demorei	um	pouco	para	me	lembrar	de	onde	estava.
Olhei	assustado	para	o	meu	braço	direito.	Eu	continuava	sem	a	minha	mão.	Na	ponta	do	antebraço,	havia
apenas	um	curativo.
Apertei	o	botão	de	emergência	do	quarto,	sem	conseguir	controlar	o	choro.	Uma	enfermeira	chegou
correndo.	Perguntei	onde	estava	minha	mão.	Ela	respondeu	que	lamentava,	mas	que	não	tinha	sido
possível	reimplantá-la,	então	os	cirurgiões	apenas	fizeram	uma	operação	para	fechar	o	ferimento.
Isso	não	pode	estar	acontecendo!	Estou	tendo	algum	pesadelo	maluco	e	não	consigo	acordar!
Como	minha	mão	pode	ter	sido	decepada?	Como	eu	não	senti	nenhuma	dor	na	hora	da	amputação?	Quem
fez	isso?
A	enfermeira	perguntou	se	eu	estava	me	sentindo	bem	e	eu	respondi,	aos	berros:
—	Não,	sua	puta!	Não	estou	nada	bem!	Será	que	você	não	vê	que	estou	todo	machucado	e	que
cortaram	fora	a	minha	mão?	—	e	chorei	como	um	bebê.
A	enfermeira	saiu	do	quarto	irritada.	Então,	eu	vi	que	havia	um	bilhete	no	chão,	perto	da	porta.
Apertei	o	botão	de	emergência	de	novo.	Ela	reapareceu	mal-humorada,	algum	tempo	depois.	Desculpei-
me	por	tê-la	xingado	e	apontei	para	o	bilhete	no	chão.
Perguntei	se	ela	tinha	visto	alguém	deixando-o	ali.	Ela	disse	que	não.	Que	o	posto	de	enfermagem
ficava	em	frente	ao	quarto	e	não	tinha	visto	ninguém	passando	por	ali,	depois	que	os	maqueiros	me
trouxeram	do	centro	cirúrgico.
A	enfermeira	abaixou-se	e	pegou	o	bilhete	amassado	e	sujo	de	sangue.	Ela	fez	uma	cara	de	nojo	e
colocou-o	na	minha	barriga.	Com	certo	esforço,	levantei	minha	cabeça	e	pude	ler:
“Amanhã	vai	ser	pior”.
	
	
	
	
SOTERRADOS
	
Em	janeiro	de	2011,	o	maior	desastre	natural	do	país	castigou	a	região	serrana	do	Rio	de	Janeiro.
Quase	mil	pessoas	morreram	e	outras	centenas	desapareceram,	sem	deixar	vestígios,	quando	uma
tempestade	desabou	sobre	municípios	com	encostas	de	terra	densamente	povoadas.	Bairros	inteiros
desapareceram	de	um	dia	para	o	outro.	Morros	se	desfizeram	como	se	fossem	meros	montinhos	de	areia,
construídos	por	uma	criança	na	praia.	Famílias	inteiras,	com	dezenas	de	integrantes,	deixaram	de	existir.
Dizem	que	a	gente	sempre	se	lembra	exatamente	de	onde	estava	e	do	que	estava	fazendo	quando	ouviu
uma	notícia	muito	impactante.	Comigo	não	foi	diferente.	Já	se	passaram	quatro	anos	desde	a	tragédia,	mas
me	lembro	como	se	fosse	ontem,	com	todos	os	detalhes	possíveis.	Eu	havia	dormido	na	casa	da	minha
namorada,	justamente	por	causa	da	chuva	forte	que	caíra	na	noite	anterior,	quando	ouvi	meu	celular
tocando	insistentemente.	Eu	era	assessor	do	prefeito,	uma	espécie	de	braço	direito,	que	arrumava	sua
agenda	e	o	ajudava	com	tudo	que	se	referisse	a	relações	públicas.
Apesar	disso,	era	raro	ser	acionado	de	madrugada.	Nas	primeiras	duas	vezes,	eu	simplesmente	deixei
o	celular	tocar.	Mas	quando	ouvi	minha	namorada	me	xingar	e	me	mandar	desligar	o	maldito	telefone,
decidi	atender.	Eu	tinha	dormido	pouco.	Ainda	nem	tinha	amanhecido.	Levantei-me,	só	de	meias	e	cueca,
e	saí	do	quarto	para	atender.
Do	outro	lado	da	linha,	uma	voz	histérica	gritou	para	mim,	perguntando	por	que	eu	não	atendia	a
porcaria	do	telefone.	Era	o	prefeito.	Depois	do	“cumprimento”	inicial	ele	começou	a	falar,	mas	eu	não
conseguia	entendê-lo	direito.	A	ligação	estava	péssima,	com	muito	chiado	e	o	áudio	chegando	picotado
até	mim.	O	prefeito	continuou	gritando,	insensível	para	a	minha	dificuldade	de	entendê-lo.	Eu	sabia	que
se	referia	a	algo	como	um	grande	desastre	na	cidade.	Então,	a	ligação	caiu,	sem	que	eu	pudesse
compreender	que	“grande	desastre”	era	esse.	Andei	até	a	cozinha	e	enchi	um	copo	com	água.
Então,	o	prefeito	ligou-me	de	novo	e,	desta	vez,	pude	ouvir	claramente:	o	temporal	tinha	provocado
deslizamentos	e	enchentes	em	vários	lugares,	deixando	mortos.	Foi	ali,	olhando	para	uns	ímãs	de
geladeira,	de	cueca	e	com	uma	grande	olheira,	que	tomei	conhecimento	da	gravidade	daquele	desastre.
Esse	momento	vai	ficar	para	sempre	na	minha	memória.
Corri	para	a	janela	e	olhei	para	baixo.	Não	era	possível	enxergar	a	rua	ou	as	calçadas.	O	rio	que
cortava	o	centro	da	cidade	tinha	transbordado.	Voltei	para	o	quarto,	com	o	coração	a	mil	e	quase	caí	no
chão,	quando	tentava	colocar	minha	calça.	Acendi	o	abajur	e	consegui	vestir	a	calça	direito.	Depois	pus
minha	camisa.	Minha	namorada	resmungou	algo	e	me	mandou	ter	respeito	com	o	sono	dela.	Dei	um	beijo
nela	e	corri	para	a	prefeitura.	Chegar	até	lá	não	foi	fácil,	porque	a	água	estava	na	altura	do	meu	joelho.
Por	sorte,	minha	namorada	não	morava	muito	longe	da	prefeitura.	Pude	ir	andando.	No	caminho,	tive
uma	ideia	do	caos	que	a	chuva	tinha	causado.	Carros,	sofás,	geladeiras,	brinquedos,	árvores.	Tudo
boiava	na	inundação.	
Ao	chegar	à	prefeitura,	vi	uma	movimentação	muito	grande	de	pessoas.	Parecia	que	eu	tinha	sido	um
dos	últimos	a	saber	do	desastre.	Entrei	no	prédio	e	procurei	o	prefeito.	Várias	pessoas	com	coletes	da
Defesa	Civil	entravam	e	saíam	apressadas.
Encontrei-o	na	sala	do	secretário	de	Defesa	Civil.	O	número	de	mortos	na	cidade	estava	em	20
quando	eu	cheguei.	Dois	minutos	depois,	já	tinha	subido	para	23.	E,	antes	que	eu	pudesse	falar	com	o
prefeito,	o	número	tinha	chegado	a	25.
Ele	tinha	o	rosto	pálido	e	parecia	desnorteado,	assim	como	o	secretário	de	Defesa	Civil,	seu	chefe	de
gabinete	e	dois	vereadores	aliados,	que	tinham	corrido	para	a	prefeitura	depois	de	também	receberem
ligações	do	prefeito.	Inicialmente,	ele	não	me	viu	porque	estava	hipnotizado	com	os	alfinetes	vermelhos
que	rapidamente	tinham	se	multiplicado	em	um	mapa	do	município.	Eles	marcavam	o	número	de	vítimas	e
os	locais	onde	elas	tinham	morrido.
Quando	pude	me	aproximar	dele,	puxou-me	para	um	abraço	e	começou	a	chorar.
Foi	a	primeira	vez	que	o	vi	chorando,	mas,	a	partir	dali,	ele	pareceu	ganhar	uma	força	descomunal	e
buscou	lidar	com	aquela	tragédia	com	toda	a	coragem	possível.	O	número	de	mortos	na	cidade	superou
os	300.	Eu	mesmo	vi,	pessoalmente,	dezenas	de	corpos	sendo	retirados	debaixo	da	terra	e	de	escombros.
No	total,	em	todos	os	municípios	afetados,	a	contagem	oficial	chegou	a	quase	mil.	Até	militares	das
Forças	Armadas	foram	convocados	para	ajudar	nos	resgates.
Governador	e	presidente	da	República	visitaram	as	cidades	e	aprovaram	repasses	de	dinheiro
milionários	para	ajudar	na	reconstrução	e	na	limpeza	das	cidades	afetadas.
Toda	aquela	movimentação	de	reportagem,	equipes	de	socorro,	políticos	e	militares	durou	alguns
dias,	cerca	de	um	mês.	Depois,	o	bizarro	circo	da	notícia	foi	desmontado	e	a	cidade	voltou	à
normalidade.
Mas	não	demorou	para	que	a	cidade	voltasse	a	ser	foco	da	atenção	da	imprensa.	Dias	depois,	o
Ministério	Público	anunciou	que	havia	aberto	uma	investigação	para	apurar	desvios	das	verbas
emergenciais,	destinadas	pelo	governo	federal.
Os	promotores	haviam	percebido	que	políticos	da	região	contrataram	empresas	de	parentes	e	amigos
para	executar	as	ações	de	emergência.	O	Ministério	Público	tinha	indícios	de	que,	através	desses
contratos	fraudulentos,	os	políticos	superfaturaram	o	valor	dos	serviços	e	desviaram	boa	parte	do
dinheiro.	O	prefeito	era	um	dos	investigados.
Naquelaépoca,	eu	ainda	trabalhava	como	seu	assessor.	Lembro-me	que	ele	me	ligou	indignado	com	a
acusação.	Disse	que	era	um	absurdo	ser	acusado	daquela	forma,	depois	de	ter	“dado	seu	sangue”	nos
trabalhos	de	resgate	e	reconstrução	da	cidade.
No	mesmo	dia,	nos	reunimos	em	seu	gabinete.	Ele	estava	irado.	Precisava	preparar	uma	resposta	para
a	imprensa.	Tinha	que	limpar	seu	nome,	que	havia	sido	“jogado	na	lama”	por	alguns	promotores
irresponsáveis,	que	só	queriam	ganhar	os	holofotes	através	da	maior	tragédia	natural	da	história.
Lembro-me	de	ter	sacado	um	bloco	da	minha	pasta	e	começado	a	rascunhar	alguma	coisa.	Foi	então
que	eu	o	questionei	sobre	até	que	ponto	aquela	história	era	verdade.	Ele	pareceu	indignar-se	com	a	minha
pergunta	e	preparou-se	para	esbravejar	algo	contra	mim,	mas	ficou	sem	falar	nada	por	algum	tempo.
Depois,	ele	socou	a	mesa	e	disse	que	contratar	empresas,	sem	licitação,	para	fazer	serviços	emergenciais
numa	cidade	em	estado	de	calamidade	pública,	não	era	o	mesmo	que	roubar	dinheiro.
Foi	a	minha	vez	de	ficar	em	silêncio.	Larguei	a	caneta	e	o	bloco	de	anotações	em	cima	da	mesa	e
depois	perguntei	se	ele	tinha	superfaturado	o	valor	dos	serviços	contratados,	porque	era	disso	que	se
tratava	a	acusação	dos	promotores.
Ele	direcionou	um	olhar	cínico	na	minha	direção	e,	com	uma	franqueza	que	me	assustou,	respondeu
que	todos	os	políticos	superfaturavam	obras	e	embolsavam	o	dinheiro	pago	a	mais	pela	prestação	dos
serviços.	Disse	que	ele	tinha	conseguido	tirar	a	cidade	de	um	estado	de	calamidade	em	poucos	dias.	E,	se
ele	tinha	recebido	alguma	coisa	por	isso,	qual	era	o	problema?
Sua	indignação	aparentemente	não	se	devia	ao	fato	de	ter	sido	acusado	de	um	crime,	mas,	sim,	de	ter
sido	descoberto	pelos	promotores.	Logo	ele,	que	tinha	trabalhado	“dia	e	noite”	pelo	restabelecimento	da
normalidade	na	cidade?!
Lutei	para	manter	minha	calma	e	não	expressar	meu	assombro	com	aquele	homem	que	tinha	se
aproveitado	da	morte	de	centenas	de	pessoas	e	da	destruição	de	incontáveis	casas	e	ruas	para	roubar
dinheiro	público.
Levantei-me,	peguei	meu	material,	disse	que	pensaria	em	algo	e	saí	da	sala.	Minha	vontade	era	ir
direto	ao	Ministério	Público	e	contar	o	que	havia	acabado	de	ouvir.	Mas	busquei	me	controlar.	Eu	ainda
era	funcionário	da	prefeitura	e,	acima	de	tudo,	eu	era	amigo	de	longa	data	do	prefeito.	
Na	verdade,	eu	não	estava	tão	surpreso	com	o	fato	de	ele	ter	desviado	dinheiro	público.	Eu	já	estava
envolvido	na	política	há	um	bom	tempo	para	conhecer	a	podridão	do	“sistema”.	E	também	já	tinha
ouvido	rumores	sobre	esquemas	fraudulentos	comandados	pelo	prefeito.	Mas	o	que	me	deixou	indignado
foi	seu	sangue-frio	de	roubar	dinheiro	em	meio	ao	desespero	de	várias	famílias,	que	tinham	perdido
parentes	e	suas	casas.
No	final,	decidi	preparar	uma	nota	à	imprensa,	com	a	resposta	padrão	de	que	o	prefeito	negava	as
acusações.	A	nota	dizia	que	ele	tinha	seguido	a	legislação,	que	permitia	a	contratação	sem	licitação	em
situações	de	emergência,	e	que	as	empresas	contratadas	eram	as	únicas	capazes	de	atender	prontamente
ao	chamado	da	prefeitura.	A	confissão	do	prefeito,	é	claro,	ficou	de	fora	da	nota	oficial.
Senti-me	um	pouco	cúmplice	daquela	canalhice,	mas	considero	que	foi	o	melhor	a	fazer	naquele
momento.	No	dia	seguinte,	aleguei	que	precisava	resolver	uns	problemas	pessoais	e	que	precisaria	me
ausentar	por	uma	semana.
Ao	final	dessa	semana,	simplesmente	pedi	demissão	da	prefeitura,	sem	sequer	falar	com	o	prefeito.
Ele	me	ligou	no	mesmo	dia,	questionando	o	motivo	da	minha	demissão.	Eu	disse	que	precisava	de	um
tempo	para	tocar	alguns	projetos	pessoais	e	depois	me	apressei	em	desligar	o	telefone.
Depois	disso,	ficamos	sem	nos	falar	por	muito	tempo.	Com	o	passar	dos	meses,	o	caso	do	Ministério
Público	acabou	sendo	arquivado	“por	falta	de	provas”,	seu	mandato	de	prefeito	encerrou-se	e	ele
separou-se	de	sua	mulher.
Então,	um	dia,	de	repente,	ele	me	ligou	de	novo.
Ele	estava	estranho.	Falava	coisas	desconexas.	Disse	que	precisava	de	ajuda,	que	estava	sendo
perseguido	e	estava	com	medo,	muito	medo.	A	ligação	caiu,	sem	que	eu	conseguisse	entender	direito	o
que	estava	acontecendo.
Duas	horas	depois,	ele	me	ligou	mais	uma	vez.	Estava	sussurrando.	Percebi	que	ele	estava	chorando.
—	Por	favor,	me	ajuda...	—	era	a	súplica	de	uma	pessoa	em	desespero.	—	Eles	querem	me	pegar,
aqui	dentro	da	minha	casa.
Ele	estava	sem	fôlego,	mas	teve	forças	para	gritar	com	alguém	que	parecia	estar	ao	lado	dele.
—	Meu	Deus,	por	favor,	parem	com	isso!
Então,	a	ligação	caiu	novamente.	Ele	não	ligou	de	novo.	Eu,	tampouco,	consegui	ligar	de	volta.
Fiquei	sem	saber	o	que	fazer.	Já	era	tarde	da	noite.	Sabia	que	o	ex-prefeito	morava	sozinho	em	uma
fazenda,	na	zona	rural	do	município.	Eu	morava	no	centro	da	cidade,	um	pouco	distante	da	casa	dele.
Decidi	então	ligar	para	a	polícia	e	contar	sobre	a	ligação	que	havia	recebido.	Parecia	que	alguém	tinha
invadido	sua	casa	e	estava	ameaçando	sua	vida.	Por	favor,	parem	com	isso,	eu	ouvi-o	gritar	antes	da
ligação	cair.	Os	policiais	prometeram	mandar	uma	patrulha	para	o	local.
Mais	tarde,	liguei	para	a	polícia	e	falei	com	os	policiais,	que	já	tinham	retornado	para	o	batalhão.	Eu
conhecia	o	sargento	que	chefiava	a	patrulha	mandada	para	o	local.	Ele	disse	que	não	encontraram
ninguém	na	casa	além	do	ex-prefeito	e	que	não	havia	sinais	de	arrombamento.	Eles	perceberam	apenas
que	a	casa	estava	toda	apagada,	sem	energia	elétrica.
Os	policiais	relataram	ter	batido	na	porta	e	o	ex-prefeito	ter	gritado,	lá	de	dentro,	para	que	fossem
embora.	Quando	eles	disseram	que	eram	da	polícia,	passos	apressados	foram	ouvidos	dentro	de	casa	e	o
ex-prefeito	abriu	a	porta.	Ele	estava	com	olheiras,	o	cabelo	bagunçado	e	as	roupas	rasgadas,	e	abraçou
um	dos	policiais.
O	sargento	disse	que	o	ex-prefeito	parecia	desorientado	e	falava	coisas	sobre	sombras	que	se
movimentavam	pela	casa.	Os	policiais	perguntaram	se	ele	tinha	ingerido	algum	medicamento.	Ele	disse
que	as	sombras	queriam	pegá-lo,	que	queriam	matá-lo.	De	acordo	com	o	sargento,	uma	busca	foi	feita	e
nada	foi	encontrado,	além	de	alguns	livros	e	peças	de	decoração	caídos	por	alguns	lugares	da	casa.	Em
seguida,	eles	foram	embora.
Aquilo	me	tranquilizou	e	fui	dormir.
***
Dois	dias	depois,	o	telefone	tocou	de	novo.	Já	era	madrugada.	Estava	com	muito	sono	e,	ao	pegar	o
celular,	deixei-o	cair	no	chão.	Soltei	um	palavrão	e	estiquei	meu	braço	para	pegá-lo,	sem	conseguir	abrir
os	olhos.
—	Alô!
—	Meu	Deus,	eles	estão	me	cercando!	Eles	estão	me	cercando.	Eles	vão	me	matar!
O	ex-prefeito	estava,	mais	uma	vez,	apavorado,	falando	sobre	pessoas	que	o	perseguiam.
—	Calma...	Calm...
—	Aaaaaaaaaaaaaaaaaaah	—	ele	gritou,	me	interrompendo	e	quase	me	matando	de	susto.
—	Prefeito.	O	senhor	está	bem?
—	Eles	estão	dentro	da	minha	casa!	Dentro	da	minha	casa!
—	Você	está	sozinho	em	casa?
—	Não,	droga.	Eles	estão	aqui!	O	que	eu	faço?
—	Estou	perguntando	se	os	seus	filhos	estão	aí.	Algum	empregado	na	casa?	—	tento	manter	a
tranquilidade,	para	não	deixá-lo	ainda	mais	nervoso.
—	Não,	todos	foram	embora...	É	por	isso	que	esses	malditos	estão	aqui!	Oh,	meu	Deus.
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah	—	berrou	ele,	mais	uma	vez.	—	Eles	estão	aqui	na	sala.	Eles	estão	aqui
na	sala.
A	ligação	caiu.	Preocupado,	tentei	retornar	a	ligação	várias	vezes,	sempre	encontrando	o	telefone	do
ex-prefeito	desligado	ou	fora	da	área	de	cobertura.	Levantei-me,	coloquei	uma	calça	e	fui	até	a	cozinha,
beber	um	copo	d’água.
Peguei	o	celular	e	liguei	para	o	número	do	celular	do	sargento	que	havia	verificado	a	casa	do	ex-
prefeito,	na	primeira	vez.	O	policial	se	disse	preocupado,	não	com	a	segurança	do	meu	amigo,	mas	com	a
saúde	mental	dele.	Para	o	sargento,	o	ex-prefeito	precisava	de	algum	apoio	psicológico.	Ele	não	parecia
estar	normal.
Perguntei	se	a	polícia	poderia	ir	ao	local	só	mais	uma	vez,	para	verificar	se	tudo	estava	bem.	O
sargento	disse	que	não	deveriaser	nada.	Pedi,	por	favor,	que	ele	fosse	até	lá	só	mais	uma	vez.	Poderia
ser	alguém	querendo	assustar	o	ex-prefeito,	que	tinha	feito	alguns	inimigos	durante	sua	vida	política.
O	policial	bufou	insatisfeito	e	disse	que,	da	primeira	vez,	não	havia	visto	sinal	da	presença	de	outras
pessoas	e	que	as	poucas	coisas	fora	do	lugar,	dentro	da	casa,	provavelmente	foram	desarrumadas	pelo
próprio	dono.	Mas,	no	fim,	respondeu	que	iria	até	lá,	se	fosse	para	me	tranquilizar.
Agradeci	e	pedi	que	ele	me	ligasse	de	volta	assim	que	possível.
Voltei	para	a	cama,	mas	não	consegui	pegar	no	sono.	Liguei	a	televisão	e	fiquei	vendo	um	filme.	O
telefone	tocou	cerca	de	três	horas	depois.	Eu	tinha	tirado	um	breve	cochilo,	que	foi	interrompido	pelo
toque.
—	Alô.
—	Nós	fomos	até	lá	—	era	o	sargento	da	polícia	e	ele	parecia	preocupado.	Isso	me	deixou	nervoso.
—	O	que	houve?	Está	tudo	bem	com	o	prefeito?
—	Como	da	primeira	vez,	não	vimos	sinal	de	arrombamento.	Nem	vimos	ninguém	lá	na	casa.	Mas,
quando	chegamos,	porta	estava	aberta,	escancarada.	Também	havia	várias	coisas	fora	do	lugar.
—	E	o	prefeito?	Tudo	bem	com	ele?
—	Estava	tudo	escuro.	Mais	uma	vez,	a	casa	estava	sem	energia.	O	prefeito	estava	num	canto,	atrás
da	poltrona.	Ele	ficava	falando	baixinho:	“Vão	embora.	Vão	embora”.	E	tinha	ferimentos	superficiais	nos
braços	e	no	rosto.	Pareciam	arranhões.	Também	estava	um	pouco	sujo	de	lama	—	disse	o	policial.	—
Suas	mãos	e	unhas	também	estavam	sujas	de	sangue	e	de	terra.	Não	sei	se	ele	mesmo	se	feriu	ou	se
alguém	tentou	machucá-lo.
Fiquei	calado,	enquanto	o	policial	continuava	o	relato.
—	Olha,	seu	amigo	claramente	não	está	bem.	Ele	está	em	choque	e	precisa,	sim,	da	ajuda	de	algum
profissional,	algum	psicólogo.	Mas	também	preciso	te	dizer	outra	coisa	—	o	sargento	parecia	intrigado.
—	O	que	foi?
—	Havia	pegadas	pela	casa.	Marcas	de	pés	enlameados,	por	todo	lado.	Os	pés	tinham	tamanhos
diferentes.	Ou	seja,	alguém	esteve	lá	com	ele.	Quando	o	colocamos	sentado	na	poltrona,	ele	falou	sobre
sombras	invadirem	sua	casa,	sobre	corpos	em	decomposição	se	aproximando	dele	e	tentando	matá-lo.
—	Meu	Deus.
—	Acho	que	realmente	alguém	pode	estar	tentando	assustá-lo.	Não	acho	que	sejam	assaltantes	ou
alguém	querendo	matá-lo,	senão	ele	já	estaria	morto	ou	seriamente	machucado.	Creio	que	seja	apenas
alguém	querendo	deixá-lo	com	medo.	E	devo	dizer	que,	seja	quem	for	o	responsável,	está	conseguindo.	O
prefeito	está	fora	de	si.
O	policial	disse,	então,	que	já	tinha	levado	o	ex-prefeito	para	o	hospital.	Ele	ficaria	em	observação,
sob	cuidados	médicos	pelo	menos	até	o	dia	seguinte.	Uma	patrulha	seria	posicionada	na	entrada	da
fazenda,	para	evitar	que	os	invasores	tentassem	repetir	a	intimidação.
Desliguei	o	telefone	e	fui	tomar	banho.	Já	estava	amanhecendo	e	eu	queria	conversar	com	o	ex-
prefeito.	Havia	muito	tempo	que	eu	não	me	encontrava	com	ele,	mas,	apesar	de	seu	erro	imperdoável,	ele
havia	sido	amigo	do	meu	pai	e	meu	amigo	por	muitos	anos.
Não	sabia	por	que	ele	tinha	escolhido	ligar	para	mim,	para	pedir	ajuda,	depois	de	quatro	anos
afastado.	Mas	entendi	que	ele	devia	me	considerar	uma	pessoa	com	quem	podia	contar.
O	hospital	ficava	no	centro	da	cidade,	então	não	demorei	a	chegar	até	lá.	De	início,	os	médicos	não
me	deixaram	falar	com	ele,	mas	eu	disse	que	sabia	o	que	estava	acontecendo	com	o	ex-prefeito	e	que	isso
podia	ajudá-lo.	Depois	de	algum	tempo,	a	equipe	médica	autorizou	minha	subida	até	o	quarto	no	qual	ele
estava	internado.
Quando	entrei,	ele	estava	deitado,	olhando	para	o	teto.	Chamei	seu	nome	e	ele	demorou	um	pouco
para	olhar,	mas	abriu	um	breve	sorriso	quando	enfim	percebeu	que	eu	estava	ali.
Ele	pôs-se	sentado	na	cama,	com	as	pernas	para	fora	do	leito,	como	se	fosse	ficar	de	pé	para	me
receber.	Sinalizei	para	que	ele	não	levantasse.	Apertei	sua	mão	e	ele	me	puxou	para	me	abraçar.	Demorei
um	pouco	para	corresponder	àquele	abraço,	mas	enfim	também	o	abracei	e	depois	me	sentei	em	uma
cadeira	à	sua	frente.
Eu	nem	precisei	puxar	o	assunto.	Ele	já	começou	falando	sobre	as	sombras	que	estavam	rondando	sua
fazenda	e	sobre	as	pessoas	mortas	que	tinham	entrado	na	sua	casa	e	tentado	arrastá-lo	para	fora.	Ele	me
mostrou	os	arranhões,	ao	mesmo	tempo	em	que	ficava	mais	exaltado.	Tinham	sido	mesmo	feitos	por	unhas
(ou	garras!).
Lembrei-me	do	sargento	dizendo	que	as	unhas	do	ex-prefeito	estavam	sujas	de	sangue	e	lama.	Tratei
de	acalmá-lo.
—	Foi	você	que	se	feriu	dessa	forma?	—	perguntei,	buscando	não	deixá-lo	mais	nervoso.
Ele	balançou	a	cabeça,	de	forma	negativa.
—	Você	não	acredita	em	mim.	Não	faz	ideia	de	quem	são	eles	—	disse	o	ex-prefeito,	com	as	mãos
nos	meus	ombros.	—	Eles	querem	me	matar.	Querem	me	arrastar	para	baixo	da	terra,	de	onde	eles
vieram.
Tomei	coragem	e	perguntei:
—	E	quem	são	eles?
Ele	baixou	a	cabeça	e	começou	a	chorar,	mas	não	respondeu.
—	Tem	alguém	querendo	te	assustar.	Tem	alguém	querendo	fazer	você	ficar	com	medo.	Você	tem
inimigos	que	podem	estar	por	trás	disso	—	afirmei.
—	Você	não	entende...	Você	não	acredita	em	mim	—	ele	disse,	voltando	a	deitar-se	na	cama	e
colocando	a	mão	sobre	a	testa.	Ele	chorava.	Era	possível	ver	que	ele	estava	em	agonia.	
—	Você	precisa	descansar.	Mas	saiba	que	você	pode	contar	comigo	para	qualquer	coisa	—	eu	falei,
ao	mesmo	tempo	em	que	me	levantava	da	cadeira,	já	me	preparando	para	deixar	o	hospital.
—	Por	favor,	não	vá	embora.	Não	me	deixe	sozinho.
Voltei	a	sentar-me	e	segurei	sua	mão,	em	silêncio.	Ela	estava	fria	e	tremia	levemente.	Ele	fechou	os
olhos.	Em	seu	rosto,	transparecia	o	cansaço.	Era	provável	que	ele	não	tivesse	dormido	por	dias.	Parecia
que	só	esperava	uma	companhia	para	entregar-se	ao	sono.
Esperei	uns	dez	minutos	e,	quando	vi	que	ele	estava	dormindo,	decidi	que	já	podia	ir	embora.
Saí	do	hospital	com	a	cabeça	cheia.	Não	conseguia	mais	sentir	o	desprezo	que	tinha	nutrido	por	ele
nos	últimos	quatro	anos.	Agora	eu	só	conseguia	ter	pena.	O	ex-prefeito	parecia	uma	criança	assustada,
implorando	para	que	seus	pais	deixassem	a	luz	do	quarto	acesa.	Ele	realmente	acreditava	que	fantasmas	o
estavam	atormentando.
Era	estranho,	porque	ele	sempre	havia	se	mostrado	uma	pessoa	racional,	com	pouca	disposição	para
questões	sobrenaturais.	O	susto	que	tinham	pregado	nele	realmente	havia	tido	um	efeito	devastador	em
sua	mente.
Cheguei	à	minha	casa	e	liguei	o	computador.	Fiz	uma	busca	rápida	com	o	nome	dele	e,	como	era	de	se
esperar,	apareceram	milhares	de	resultados.	A	maioria	deles	eram	notícias	sobre	os	dias	posteriores	ao
desastre	de	janeiro	de	2011,	em	que	o	ex-prefeito	aparecia	como	fonte	das	notícias.
Havia	também	muitos	sites	que	citavam	a	denúncia	do	Ministério	Público	sobre	o	desvio	das	verbas
que	seriam	usadas	para	mitigar	os	efeitos	da	tragédia.
Fechei	o	computador.	Estava	cansado,	então	acabei	dormindo	um	pouco.	À	noite,	liguei	para	o
hospital	e	me	disseram	que	ele	estava	bem.	Provavelmente,	receberia	alta	em	alguns	dias.
***
Dois	dias	depois,	ao	falar	com	o	hospital,	eles	me	disseram	que	o	ex-prefeito	tinha	recebido	alta.
Tentei	falar	com	ele	pelo	celular,	mas	não	consegui.	Estava	desligado.	À	tardinha	peguei	o	carro	e	fui	até
a	fazenda	dele.	A	casa	estava	fechada	e	silenciosa.	Os	únicos	sons	que	eu	ouvia	eram	os	cantos	de
pássaros,	o	farfalhar	das	árvores	ao	vento	e	o	correr	da	água	de	um	riacho	que	descia,	em	pequenas
cascatas,	a	colina	localizada	atrás	da	propriedade.	Rodeei	a	casa	e	encontrei	um	dos	funcionários	da
fazenda.
Perguntei	se	ele	sabia	onde	seu	patrão	estava.	Ele	disse	que	o	ex-prefeito	já	tinha	voltado	do	hospital
e	resolveu	caminhar	pela	mata.	Ele	estava	sereno,	segundo	disse	o	funcionário.	
Aproveitei	para	perguntar	sobre	a	invasão	à	casa	do	ex-prefeito.	O	funcionário	disse	que	deixava	o
serviço	sempre	no	início	da	noite,	mas	nunca	tinha	percebido	ninguém	rondando	o	terreno	enquanto	ele
estava	ali.
Ele	disse	ainda	que,	desde	o	dia	em	que	o	ex-prefeito	foi	para	o	hospital,uma	patrulha	da	polícia
ficava	posicionada	no	portão	principal,	do	início	da	noite	até	a	manhã	do	dia	seguinte.
O	homem,	que	já	era	idoso,	disse	que	sua	mulher	também	trabalhava	na	casa	e,	no	dia	seguinte	à
invasão,	fez	a	limpeza	da	sala.	Para	ele,	a	mulher	descreveu	a	cena	como	algo	caótico.	Havia	lama	para
todos	os	lados.	Não	só	as	pegadas.	Havia	também	marcas	de	mãos	pelas	janelas	e	paredes.	Também
havia	um	pouco	de	sangue	na	parede	e	no	chão	onde	o	ex-prefeito	havia	sido	encontrado	pela	polícia.
—	Deu	uma	trabalheira	danada,	moço.	Ela	ficou	aqui	até	de	noitinha.
Assim	que	o	funcionário	terminou	de	falar,	o	ex-prefeito	apareceu	entre	as	árvores,	vindo	do	bosque
que	cercava	a	propriedade.	Ele	realmente	parecia	mais	tranquilo.
Apertamos	as	mãos	e	o	ex-prefeito	convidou-me	para	entrar	em	casa.	Ele	preparou	um	café	e	nos
sentamos	à	mesa.	Ele	evitou	falar	sobre	a	invasão	à	sua	casa	e	ficamos	conversando,	por	alguns	minutos,
sobre	a	caminhada	que	ele	tinha	feito	naquela	tarde	e	sobre	os	pássaros	que	ele	havia	encontrado.
Então,	quando	ele	terminou	de	falar,	entrei	no	assunto:
—	Você	parece	bem	melhor.	Como	está?
—	O	hospital	me	fez	bem.	Acho	que	eu	só	precisava	de	umas	noites	de	sono.
Beberiquei	o	café.
—	Agora	que	você	está	mais	calmo,	acho	que	devia	conversar	com	a	polícia.	Essa	brincadeira	que
estão	fazendo	contigo	pode	acabar	mal.
Ele	não	falou	nada,	ficou	apenas	bebendo	o	café	e	olhando	para	o	bosque	lá	fora.	Então,	eu	continuei.
—	Aparentemente,	ninguém	quebrou	ou	roubou	nada.	Mas	isso	não	te	fez	bem.	Você	podia	ter	se
machucado	ou,	sabe-se	lá,	tido	um	ataque	cardíaco.
Ele	moveu	a	cabeça	de	um	lado	para	outro,	desaprovando	o	que	eu	falava.
—	Não	creio	que	alguém	esteja	querendo	me	assustar.	Sabe,	eu	acho	que	apenas	exagerei	no	remédio
para	dormir	e	passei	a	ver	coisas	que	não	existiam.
Pensei	nas	pegadas	de	lama,	mas	não	falei	nada.	Não	queria	deixá-lo	nervoso	ou	assustado.
—	Apenas	acho	que	os	policiais	deveriam	investigar	isso.	Alguém	entrou	na	sua	casa.	E	esse	alguém
pode	te	machucar.	Você	deveria	conversar	com	os	policiais	sobre	as	pessoas	que	podem	estar	querendo	o
seu	mal.
Ele	colocou	a	xícara	de	café	sobre	a	mesa	e	levantou-se,	aproximando-se	da	janela.
—	Mais	uma	vez:	não	há	ninguém	tentando	me	assustar.	Não	vou	tentar	te	convencer	do	que	eu	vi,	até
porque	eu	mesmo	não	tenho	mais	certeza	do	que	vi.	Eu	estava	sob	efeito	de	remédios	que	podem
confundir	à	beça	sua	mente	—	ele	disse,	ao	mesmo	tempo	em	que	voltava	para	perto	da	mesa.	—	Eu
agradeço	muito	pelo	que	você	fez	por	mim.	Eu	sabia	que	podia	contar	contigo.
Ele	colocou	a	mão	no	meu	ombro	e	continuou:
—	Nós	nunca	mais	conversamos	sobre	aquela	história	da	denúncia.	Sei	que	você	se	afastou	de	mim
depois	daquilo.	E	fiquei	bravo	com	você	no	início,	por	me	deixar	na	mão.	Mas	você	provou	que
amizades	podem	superar	essas	coisas.
—	Você	está	certo	—	respondi.	—	Eu	fiquei	muito	decepcionado	com	essa	história,	mas	eu	não	quero
falar	sobre	isso	agora.	A	Justiça	já	arquivou	o	caso.	Apesar	de	tudo,	você	era	considerado	como	um
irmão	pelo	meu	pai	e	sempre	demonstrou	uma	grande	consideração	por	mim	e	por	toda	a	minha	família.
—	Mais	café?	—	perguntou.
—	Não.	Na	verdade,	preciso	ir	andando.	Só	queria	ver	se	você	estava	bem.	Já	vi	que	você	está	legal.
Se	precisar	de	algo,	me	liga.	E,	sim,	pode	contar	com	a	minha	amizade	sempre.	O	que	passou,	passou.
Apertei	sua	mão	e	voltei	para	o	carro.	Não	falei	mais	com	ele	até	que,	três	dias	depois,	recebi	outra
ligação.	Vinha	do	número	do	ex-prefeito,	mas	ele	não	falava	nada.	Tudo	o	que	eu	ouvia	era	um	som
parecido	com	uma	tempestade	e	gritos	desesperados.	Então,	a	ligação	caiu.
Minutos	depois,	o	telefone	tocou	de	novo.	O	som	era	mesmo	de	uma	chuva	torrencial.	Trovões
podiam	ser	ouvidos.	Ao	fundo,	os	mesmos	gritos	de	socorro.	Eram	várias	vozes,	de	homens,	mulheres	e
crianças.	Chamei	o	ex-prefeito	várias	vezes,	mas	não	ouvi	sua	voz.	A	ligação	caiu	em	seguida.
Tentei	retornar	a	ligação,	mas	não	consegui.	Olhei	para	o	relógio.	Eram	3h30	da	manhã.	Liguei	para	o
sargento	e	ele	me	disse,	depois	de	algum	tempo	consultando	os	colegas,	que	a	patrulha	ainda	estava
posicionada	no	portão	da	fazenda,	mas	não	tinha	registrado	mais	nenhuma	tentativa	de	invasão	ou
qualquer	coisa	estranha.
Liguei	para	o	ex-prefeito	de	novo	e,	desta	vez,	ele	atendeu,	com	uma	voz	de	quem	acabou	de	acordar.
Ele	disse	que	estava	tudo	tranquilo,	que	não	tinha	me	ligado	e	nem	tinha	ouvido	qualquer	barulho	de
chuva	ou	de	pessoas	gritando.
Desliguei,	mas	não	consegui	dormir.	Provavelmente	era	apenas	uma	linha	cruzada	ou	algumas
daquelas	interferências	nas	telecomunicações	que	você	não	consegue	explicar.
***
Uma	semana	depois,	o	ex-prefeito	voltou	a	me	ligar.	Mas,	desta	vez,	ele	estava	novamente	estranho.
Ele	me	ligou	por	volta	das	21h.	Disse	que	estava	ouvindo	barulhos	do	lado	de	fora	de	casa	e	pediu	que
eu	fosse	até	lá.	Perguntei	sobre	a	patrulha	da	polícia	e	ele	respondeu	que,	há	dois	dias,	eles	não
mandavam	mais	o	carro	para	a	porta	de	sua	fazenda.
Coloquei	uma	roupa	o	mais	rápido	que	pude	e	saí	em	direção	à	fazenda.	Levei	20	minutos	para	fazer
o	trajeto.
No	caminho,	liguei	para	o	sargento	e	relatei	o	que	o	ex-prefeito	havia	me	dito.	Ele	comprometeu-se	a
arranjar	uma	viatura	e	mandar	para	o	local	assim	que	possível.
Quando	cheguei	à	fazenda,	ainda	havia	luz	na	casa.	As	árvores	dançavam	com	vento,	o	riacho	fazia
um	som	agradável	ao	descer	pela	encosta	e	as	cigarras	cantavam	em	uma	verdadeira	sinfonia.	Mas	fora
isso,	não	ouvia	barulho	algum.
Bati	na	porta	e	o	prefeito	prontamente	atendeu.	Estava	assustado,	com	os	olhos	inchados,	o	cabelo
bagunçado.	Antes	que	eu	pudesse	cumprimentá-lo,	ele	me	puxou	para	dentro	da	casa	e	trancou	a	porta,
com	todos	os	trincos	possíveis.
—	O	que	houve?
Ele	colocou	o	dedo	sobre	os	lábios,	pedindo	silêncio.
—	Eles	voltaram.
Ele	parecia	outra	pessoa.	A	serenidade	do	nosso	último	encontro	não	tinha	deixado	vestígios.	Talvez
estivesse	mesmo	sob	o	efeito	de	remédios.	O	ex-prefeito	me	puxou	e	me	colocou	sentado	no	sofá	ao	seu
lado.
—	Eles	voltaram	—	disse,	em	um	tom	angustiado.	—	Achei	que	eles	iam	me	deixar	em	paz,	mas	eles
estão	de	volta.	Eu	posso	ver	as	sombras	se	movendo	ao	redor	da	casa.	Posso	ouvir	os	sussurros.
Rapidamente	fui	até	a	janela	e	olhei	para	a	fora.	Podia	ver	apenas	as	árvores	balançando.
—	Fique	calmo.	Não	há	nada	lá	fora.	Apenas	as	árvores	e	as	cigarras.
Ele	fechou	os	punhos	com	força	e	mordeu	a	mão.
—	Eles	estão	quietos	agora.	Uns	cinco	minutos	atrás,	eles	pararam.	Mas	é	sempre	assim.	Eles	ficam
me	atormentando.	Eles	começam	a	aparecer	apenas	como	vultos	ao	redor	da	casa.	Eles	ficam	apenas	se
movendo	e	sussurrando.	Depois	sossegam	e,	quando	eu	acho	que	tudo	acabou,	é	aí	que	o	pesadelo
começa.
Olhei	para	fora	mais	uma	vez.	Não	podia	ver	nada	além	das	árvores	e	do	meu	carro	estacionado	na
frente	da	casa.
—	Não	há	ninguém	aqui	—	eu	disse.
Realmente	não	havia	sinal	de	ninguém	em	volta	da	casa.	Pedi	que	o	ex-prefeito	ficasse	sentado	na
sala,	enquanto	eu	ia	até	a	cozinha	preparar	um	café.
Ele	agarrou	meu	braço	desesperado,	para	que	eu	não	saísse	do	seu	lado.	Tentei	acalmá-lo,	dizendo
que	estaria	ali	ao	lado,	se	precisasse	de	alguma	coisa.	Ele	largou	meu	braço,	mas	ficou	olhando	para
todos	os	cantos	da	sala	e	para	as	janelas.
Entrei	na	cozinha,	peguei	o	café,	o	coador	e	já	me	preparava	para	ligar	a	cafeteira,	quando	as	luzes
começaram	a	piscar	e	depois	se	apagaram.	Os	pelos	do	meu	corpo	se	eriçaram	instantaneamente.
Fiquei	um	tempo	tateando	pela	cozinha,	até	que	meus	olhos	se	acostumaram	à	escuridão.	Toda	a	casa
havia	se	apagado.	Estávamos	às	escuras.	Apalpei	meus	bolsos,	mas	meu	celular	não	estava	ali.	Eu	o
havia	esquecido	dentro	do	carro.
—	Prefeito!	—	gritei,	sem	saber	muito	bem	por	que	gritava.
Ele	não	respondeu.	O	silêncio	era	total.	Foi	aí	que	as	coisas	começaram	a	ficar	esquisitas	e	eu
comecei	a	sentirum	medo	irracional.	Uma	queda	repentina	de	energia	tem	esse	poder	sobre	as	pessoas.
De	repente,	senti	que	alguma	coisa	passou	correndo	atrás	de	mim.	Olhei	para	trás.	A	porta	havia	sido
aberta,	mas	não	vi	ninguém.
—	Aaaaaaaaaaaaaaaaaaah!
Um	grito	veio	da	sala.	Era	o	ex-prefeito.
Tentei	correr	até	lá,	mas	bati	com	a	coxa	na	mesa	da	cozinha	e	caí	no	chão.	Senti	a	presença	de
alguém	ali.	Estava	escuro,	mas	era	possível	perceber	movimentações.	Sem	levantar-me,	arrastei-me	para
a	sala.	As	luzes	piscaram	e	pude	ver	figuras	escuras	movendo-se	pela	cozinha.
Com	certa	dificuldade,	e	uma	horrível	dor	na	perna,	levantei-me	e	gritei	pelo	ex-prefeito	de	novo.
Ele	não	estava	mais	no	sofá	e	a	porta	da	sala	estava	aberta.	Com	a	pouca	luz	que	entrava	através	da
porta	e	das	janelas,	pude	ver	as	pegadas.	As	luzes	voltaram	a	piscar.	Eram	dezenas	de	marcas	de	pés
enlameados.
—	Prefeito!	—	gritei	de	novo	e	percebi,	através	da	janela,	silhuetas	escuras	movendo-se,	com
rapidez,	fora	da	casa.
Então	ouvi	alguém	choramingando.	Vinha	de	trás	da	poltrona.	Abaixei-me	e	vi	o	ex-prefeito.	Ele
estava	encolhido.
—	Eles	vieram	me	buscar.	Eu	sei	disso	—	ele	disse,	finalmente.
—	Quem	vem	te	buscar?	Quem	são	essas	pessoas?
—	Os	mortos...	As	pessoas	que	perderam	suas	vidas	naquela	tragédia.	Oh,	meu	Deus,	o	que	eu	fiz?
Ouvi	o	som	de	passos	entrando	na	sala	e	vozes	se	lamentando.	O	barulho	vinha	de	todos	os	lados.
Então,	eu	senti	que	havia	alguém	atrás	de	mim.	Senti	a	presença	de	várias	pessoas.	Eram	várias
respirações,	fungando	nas	minhas	costas,	e	um	cheiro	forte	de	terra	molhada.	Não	tive	coragem	de	olhar
para	trás.
Uma	mão	fria	e	úmida	se	encostou	no	meu	ombro	e,	na	mesma	hora,	molhei	minha	calça	com	urina.
Havia	definitivamente	alguma	coisa	atrás	de	mim	e	o	ex-prefeito	podia	ver	o	que	era.	Devia	ser	algo
pavoroso,	porque	seus	olhos	estavam	tão	esbugalhados	que	faltava	pouco	para	saltarem	do	rosto.	Ele
estava	tão	assustado	que	queria	gritar,	mas	não	conseguia.	Fechei	os	olhos	e	lembro-me	de	ter	começado
a	rezar.	No	meio	da	oração,	a	mão	largou	o	meu	ombro	e	os	lamentos	cessaram.	A	luz	da	casa	voltou.
Todos	os	pelos	do	meu	corpo	voltaram	a	se	arrepiar.	Quando	olhei	para	trás,	não	vi	ninguém	ali,	mas
reparei	que	as	paredes	estavam	todas	sujas	com	marcas	de	mãos	enlameadas.	A	porta	ainda	estava
escancarada.
Vi	então	que	luzes	vermelhas	se	aproximavam	da	casa.	Era	a	patrulha	da	polícia,	que	o	sargento
prometera	enviar	para	a	fazenda.	Dois	policiais	saltaram	do	carro	e	foram	até	a	porta.	Eu	os	recebi	e	os
levei	até	o	ex-prefeito,	que	estava	imóvel,	com	uma	respiração	ofegante.
Os	dois	o	ajudaram	a	levantar-se	e	o	colocaram	sentado	na	poltrona.	Contei	o	que	havia	acontecido	e
um	dos	policiais	fez	o	sinal	da	cruz.	Chamamos	uma	ambulância,	que	levou	o	prefeito	novamente	para	o
hospital.
Nem	eu,	nem	os	policiais	quisemos	ficar	na	casa	depois	que	a	ambulância	foi	embora.	Aquela	havia
sido	a	experiência	mais	assustadora	que	eu	já	tive	em	toda	a	minha	vida.	Agora	sabia	por	que	o	prefeito
tinha	ficado	tão	afetado	das	outras	vezes.	No	meu	lugar,	qualquer	um	teria	mijado	nas	calças.
Quando	cheguei	à	minha	casa,	fiquei	com	medo	de	entrar	naqueles	cômodos	escuros.	Ao	esticar	meu
braço	para	alcançar	o	interruptor	e	acender	a	luz,	fiquei	imaginando	que,	a	qualquer	momento,	aquela
mão	fria	e	molhada	ia	me	agarrar	de	novo.
Enfim,	depois	de	um	pouco	de	hesitação,	entrei	em	casa	e	corri	por	todos	os	cômodos	para	acender	as
luzes.	Até	agora,	não	conseguia	acreditar	naquilo	que	havia	presenciado	na	fazenda	do	ex-prefeito.
Na	noite	seguinte,	cheguei	a	visitá-lo	no	hospital,	mas	ele	estava	ainda	em	choque	e	não	falava	nada.
Lembrei-me	do	seu	olhar	aterrorizado,	vidrado	em	alguma	coisa	assustadora	que	estava	atrás	de	mim
naquela	noite.	O	que	podia	ser	tão	horrível	que	o	fez	ficar	imobilizado?	Senti	um	calafrio	ao	me	lembrar
daquelas	sombras.	De	repente,	eu	estava	com	tanto	medo	que	rapidamente	me	levantei	daquele	quarto
semiescuro	e	saí	para	o	corredor	iluminado	do	hospital.
Uma	enfermeira,	que	passava	pelo	corredor	na	hora,	ficou	me	olhando,	espantada.	Fechei	a	porta	do
quarto	e	saí	do	hospital,	ainda	com	todos	os	pelos	do	corpo	arrepiados.
O	ex-prefeito	logo	recebeu	alta,	mas	aquela	foi	a	última	vez	que	o	vi.
Um	mês	depois,	uma	grande	chuva	caiu	na	cidade	novamente.	Não	foi	tão	terrível	quanto	a	catástrofe
de	2011,	mas	casas	desabaram	e	algumas	pessoas	morreram	soterradas.
Lembro-me	de	ter	lido	o	jornal	e	visto	que	uma	das	casas	soterradas	era	a	sede	da	fazenda	do	ex-
prefeito,	que	tinha	sido	engolida	pela	colina	vizinha.	Não	consegui	lamentar.	Só	senti	um	calafrio	de
novo.	Seu	corpo	havia	sido	resgatado,	sem	vida,	de	dentro	da	lama,	após	dois	dias	de	trabalho	dos
bombeiros.
***
Alguns	dias	depois,	meu	celular	apitou.	Era	uma	mensagem	de	voz.	Quando	vi	o	remetente,	quase
deixei	o	aparelho	cair	no	chão.	Minhas	mãos	tremiam:	era	uma	mensagem	do	ex-prefeito.	Ela	tinha	sido
enviada	três	semanas	atrás,	exatamente	na	noite	do	temporal.	Mas,	por	algum	motivo,	só	chegou	ao	meu
telefone	naquele	dia.
Demorei	mais	dois	dias	para	criar	coragem	e	ouvir	a	mensagem.	Abri	o	celular	e,	com	uma
tremedeira	no	dedo,	pressionei	o	botão	para	tocar	a	gravação	com	a	voz	do	ex-prefeito.
	 —	Alô...	Alô...	Por	favor,	atenda...	Eles	estão	aqui	de	novo...	(silêncio)	Oh,	meu	Deus,	eles
entraram	aqui	em	casa...	O	que	vocês	querem?	O	que	vocês	querem,	seus	malditos?	(sons
incompreensíveis	de	inúmeras	vozes	são	ouvidos)	Alô...	Você	está	aí?	Socorro!	Socorro!	(mais	vozes
fazem	sons	incompreensíveis)	Eles	estão	todos	na	minha	frente.	Homens,	mulheres	e	crianças...	com	seus
corpos...	seus	corpos...	em	decomposição.	Eles	vão	me	levar	hoje	à	noite!	Eles	vão	me	levar	para	o
inferno	hoje	à	noite!	(gritos	do	ex-prefeito	misturado	ao	de	outras	pessoas;	então,	um	grande	estrondo	é
ouvido	e	a	gravação	se	encerra).
	
	
	
	
	
MENSAGEM	INSTANTÂNEA
	
ID	restrito
Boa	noite	23H00
Eu	disse:	boa	noite	23H10
	
Célia
Quem	é	você?	23H11
	
ID	restrito
Por	favor,	diga	boa	noite	23H11
	
Célia
Eu	nem	sei	quem	é	você.	Seu	número	de	telefone	nem	aparece	para	mim	23H14
Como	você	conseguiu	meu	número?	23H15
	
ID	restrito
Você	é	mal	educada	23H15
	
Célia
Vou	te	bloquear	23H19
	
ID	restrito
Por	favor,	não	faça	isso,	quero	te	conhecer	23H19
	
Célia
Mas	eu	não	quero	te	conhecer.	Adeus	23H23
	
ID	restrito
Só	quero	conversar	com	você	23H24
Oi.	Você	está	aí?	23H35
Eu	sei	que	você	está	aí	23H39
	
Célia
Para	de	me	encher.	Não	sei	por	que	não	estou	conseguindo	te	bloquear,	mas	vou	chamar	a	polícia	23H41
	
ID	restrito
Você	pode	tentar,	mas	vai	ver	que	não	consegue	fazer	ligações	telefônicas	também	23H42
Hahahahaha.	Como	estão	as	tentativas?	Já	conseguiu	sinal	para	seu	telefone?	23H50
Aposto	que	não	23H50
	
Célia
Quem	é	você?	Vou	falar	com	o	meu	pai.	Ele	é	policial	23H55
	
ID	restrito
Você	não	consegue	me	enganar.	Eu	sei	que	você	está	sozinha	em	casa	23H56
E	aí?	Vai	me	dar	boa	noite	ou	não?	23H57
Você	é	uma	mulher	difícil.	0H04
Tudo	bem.	Eu	espero	seu	banho	acabar	0H07
Linda	calcinha	azul	0H10
	
Célia
Seu	doente!	Para	com	isso!	Como	você	pode	saber	dessas	coisas?	0H12
	
ID	restrito
Preciso	invadir	sua	privacidade	para	conseguir	sua	atenção?	0H12
Não	adianta	me	ignorar	0H20
Estou	vendo	que	você	se	trancou	no	quarto	aí	no	segundo	andar	0H25
Está	com	medo?	0H25
Não	adianta	tentar	mandar	mensagens	para	outras	pessoas.	Você	não	vai	conseguir	0H26
Você	está	sem	conexão	à	internet.	Sou	a	única	pessoa	com
quem	você	consegue	se	comunicar	0H27
Que	pena.	Você	está	sozinha	e	isolada	0H28
Por	favor,	abra	suas	cortinas	e	olhe	para	fora	da	janela.	Estou	aqui	0H31
	
Célia
Estou	olhando.	Não	tem	ninguém	aqui	na	rua	0H37
	
ID	restrito
Quem	disse	que	eu	estou	na	rua?	0H37
	
CéliaVocê	pediu	para	eu	olhar	pela	janela	0H38
	
ID	restrito
Mas	não	disse	que	estava	na	rua	0H38
	
Célia
Onde	você	está	então?	0H38
	
ID	restrito
Olha	para	frente	0H39
Para	o	outro	lado	da	rua	0H39
O	que	você	está	vendo?	0H39
	
Célia
Não	vejo	nada.	Só	o	cemitério	vazio	0H40
	
ID	restrito
Isso!	0H40
Hahahahahahahaha	0H41
	
Célia
Você	é	só	um	doente,	que	quer	me	assustar	0H43
	
ID	restrito
Você	quer	me	encontrar?	0H48
Estou	atravessando	a	rua	agora	e	vou	entrar	na	sua	casa...0H50
	
Célia
Você	não	vai	me	assustar,	seu	babaca.	Eu	não	estou	vendo	ninguém	atravessar	a	rua	0H51
	
ID	restrito
Não	adianta	tentar	me	ver,	você	não	vai	conseguir	0H51
Por	que	você	não	desce	as	escadas	agora?	Já	estou	aqui	embaixo,	te	esperando	0H52
Por	que	está	demorando?	Anda,	desce	logo	0H55
Vou	ter	que	te	buscar	aí	em	cima?	0H58
	
Célia
Por	favor,	não	me	machuque	1H01
	
ID	restrito
Hahahahahahahaha	1H01
Como	você	sabe	que	eu	vou	te	machucar?	1H02
	
Célia
Por	que	você	está	fazendo	isso?	1H03
Para!	Por	favor!	Para!	Eu	não	vou	abrir	a	porta!	Vai	embora!	1H05
	
ID	restrito
Eu	só	estou	arranhando	a	porta	para	te	assustar.	Não	precisa	abrir	a	porta,	porque	eu	já	estou	aqui	dentro
do	seu	quarto1H06
Não	adianta	me	procurar,	você	só	vai	conseguir	me	ver	se	eu	quiser	aparecer	1H08
Não	chora...	1H08
Bu	1H10
HAHAHAHAHAHAHAHAHA	1H10
	
	
	
	
	
TEM	UMA	COISA	DENTRO	DE	MIM
	
Eu	estava	em	casa,	me	preparando	para	sair	com	uns	amigos,	quando	meu	irmão	entrou	arfando,	com
uma	cara	péssima,	queixando-se	de	um	incômodo	no	estômago.
Conheço	meu	irmão	desde	o	ventre	da	nossa	mãe	e	posso	afirmar	que	nunca	o	vi	com	um	aspecto	tão
horrível	quanto	naquele	dia.	Nós	éramos	aqueles	gêmeos	inseparáveis.	Dividíamos	um	apartamento
desde	que	passamos	para	o	vestibular	numa	universidade	pública	e	tivemos	que	nos	mudar	do	interior
para	a	cidade	do	Rio	de	Janeiro.
Moramos	juntos	durante	a	faculdade.	Eu	me	formei	no	curso	de	odontologia,	enquanto	ele	optou	por
história,	porque	queria	ser	professor	universitário.
Quando	ele	se	formou,	continuou	morando	comigo.	Só	nos	mudamos	para	um	apartamento	maior,	com
dois	quartos.	E	quando,	dois	anos	depois,	foi	a	vez	de	eu	me	formar,	também	optei	por	continuar
dividindo	a	casa	com	meu	irmão.
Eu	amparei-o	na	porta	e	levei-o	até	o	sofá.	Eu	disse	que	devia	ser	algo	estragado	que	ele	comeu	na
escola.	Ele	estava	fazendo	seu	doutorado,	mas	trabalhava	como	professor	numa	escola	pública.	E,	às
vezes,	a	comida	do	refeitório	não	lhe	caía	bem.	Ele	concordou	comigo	e	tomou	um	sal	de	frutas.
No	dia	seguinte,	ele	me	acordou,	dizendo	que	não	tinha	melhorado	e	que	a	dor	estava	mais	forte.	Ele
não	estava	com	diarreia	nem	nada,	apenas	sentia	aquela	dor	dentro	da	barriga.	Parecia	que	alguma	coisa
estava	arranhando	a	parede	de	seu	estômago.	Tem	uma	coisa	dentro	de	mim,	ele	disse.
Eu	disse	que	ele	devia	estar	com	gastrite.	
Naquele	mesmo	dia,	eu	consegui	marcar	uma	consulta	para	ele	com	um	especialista.	O	médico	fez	os
exames	rotineiros	e	recomendou	uma	endoscopia,	porque	suspeitava	que	fosse	mesmo	gastrite.
Ele	passou	aquela	semana	reclamando	de	dores	na	barriga.	Tinha	medo	de	que	fosse	alguma	coisa
mais	grave	do	que	uma	gastrite.	Passei	o	tempo	todo	tentando	acalmá-lo.
No	dia	da	endoscopia,	parecia	que	ele	estava	indo	para	o	abatedouro.	Ele	tinha	certeza	de	que	algo
muito	terrível	seria	descoberto	dentro	de	seu	estômago.	Cheguei	a	ver	lágrimas	brotando	em	seus	olhos	e
ele	me	abraçou,	como	se	despedisse	de	mim.
No	final,	não	havia	nada.	A	médica	que	fez	o	exame	não	constatou	nenhuma	anomalia	em	sua	barriga.
Assim	como	o	exame	de	fezes	não	constatou	a	presença	de	qualquer	parasita.
O	gastroenterologista	disse	que,	aparentemente,	não	tinha	nenhum	problema	com	ele.	Meu	irmão	ficou
muito	angustiado.	Ele	disse	para	o	médico	que,	com	certeza,	havia	alguma	coisa	dentro	da	sua	barriga,
que	parecia	querer	rasgá-la,	de	dentro	para	fora.
O	médico	passou	exames	complementares	de	imagem,	mas	confirmou-se	que	ele	não	tinha	nenhum
problema.	E	a	dor	continuou.	Tinha	noites	que	meu	irmão	não	conseguia	dormir.	E,	com	seus	gritos	de
dor,	eu	tampouco	conseguia	pegar	no	sono.	Ele	se	contorcia	na	cama.	Apesar	de	tomar	doses	absurdas	de
analgésico,	não	conseguia	aliviar	a	dor.
Até	que	um	dia,	a	dor	simplesmente	desapareceu.	Ele	disse	que	ainda	sentia	um	estranho	incômodo
em	seu	estômago,	mas	não	sentia	mais	dor.	Sinto	que	tem	alguma	coisa	dentro	de	mim,	como	se	fosse	um
peso	na	minha	barriga,	mas	nada	que	chegue	a	me	incomodar,	ele	me	disse.
Ele	voltou	a	trabalhar	e,	por	alguns	dias,	voltou	a	ser	a	pessoa	tranquila	que	ele	sempre	foi.
Mas,	cinco	dias	depois,	meu	irmão	voltou	da	escola	pálido.	Eu	estava	jogando	videogame	e	só	vi	que
ele	estava	aflito	quando	entrou	na	minha	frente	e	abriu	sua	mão.	Nela,	havia	quatro	pedaços	de	unha.
—	Que	porra	é	essa?	—	eu	perguntei.	—	Por	que	você	está	me	mostrando	pedaços	da	tua	unha?
—	Não	são	minhas	—	ele	respondeu,	assustado.	—	Elas	estavam	dentro	de	mim.	Eu	senti	uma	coisa
arranhando	minha	garganta	e,	depois,	elas	subiram	para	a	minha	boca.
—	Você	andou	fumando	meus	baseados?	Foi	por	isso	que	você	parou	de	sentir	aquelas	dores?
Ele	fechou	as	mãos	e	saiu	da	minha	frente.	Eu	voltei	a	jogar.
—	Eu	estava	na	sala	de	aula,	dando	uma	explicação	para	os	alunos,	e	essas	unhas	subiram	pela	minha
garganta	até	chegar	à	minha	boca.
—	Para	mim,	parece	que	você	cortou	suas	unhas	no	ônibus	e,	não	sei	por	que,	resolveu	guardar	essas
coisas	nojentas	para	a	posteridade	—	eu	disse,	mais	preocupado	em	fazer	o	gol	na	minha	partida	de
futebol	virtual	do	que	nos	devaneios	do	meu	irmão.
—	Você	é	um	imbecil.	Minha	mãe	tinha	que	ter	te	abortado,	seu	merda.
—	Você	também	morreria	—	eu	disse,	rindo,	enquanto	driblava	com	meu	jogador,	na	boca	da	área,	e
chutava	para	fora	do	gol.
Ele	se	trancou	no	quarto	e	não	falou	mais	comigo	pelo	resto	do	dia.
Na	manhã	seguinte,	eu	estava	tomando	café,	já	me	preparando	para	ir	ao	consultório,	quando	ele	se
juntou	a	mim,	cheio	de	olheiras.	Ele	não	deu	bom-dia,	mas	disse	que	tinha	voltado	a	sentir	alguma	coisa
arranhando	seu	estômago.	Não	sentia	dor,	mas	era	como	se	tivesse	um	animal	dentro	da	sua	barriga.
Eu	comecei	a	ficar	preocupado.	Achava	que	meu	irmão	podia	estar	enlouquecendo.
Ele	tomou	um	gole	de	café	e,	um	segundo	depois,	vomitou-o	sobre	a	mesa.
—	Jesus!	O	que	foi	isso?
—	Tem	alguma	coisa	na	minha	garganta	—	ele	respondeu	e	colocou	o	dedo	na	goela.
Ele	fez	menção	de	vomitar,	mas	não	expeliu	nada.	Então,	ele	colocou	a	mão	dentro	da	boca	e	tirou	um
dente.	Era	um	molar	e	dos	grandes.	Eu	olhei	espantado,	enquanto	ele	punha	o	dente	em	cima	da	mesa.
—	Deixa	eu	olhar	sua	boca	—	eu	falei,	sem	pensar	muito.
Meu	irmão	abriu	a	boca	e	constatei	que	todos	os	seus	dentes	estavam	lá.	Todos	os	32.	Eu	sabia	que
ele	só	tinha	32	dentes	mesmo,	porque	eu	o	tratava	no	meu	consultório.	Mas,	mesmo	assim,	eu	procurei	um
buraco	onde	aquele	dente	poderia	ter	estado,	antes	de	cair.	Nada.	Não	havia	nenhuma	ferida	em	sua	boca.
Peguei	o	dente	e	analisei-o.	Ele	era	amarelado	e	bem	maior	do	que	os	dentes	do	meu	irmão.
—	Como	isso	veio	parar	na	sua	boca?
—	Eu...	eu	não	sei	—	ele	respondeu,	atordoado.
Primeiro,	a	história	das	unhas.	Agora,	um	dente	emergia	da	goela	do	meu	irmão.
—	Só	para	eu	saber:	você	não	colocou	esse	dente	dentro	da	sua	boca	só	para	me	sacanear,	colocou?
Antes	que	ele	pudesse	responder,	ele	vomitou	mais	uma	vez	sobre	a	mesa.	Dessa	vez,	vi	mais	quatro
dentes	molares,	do	mesmo	tamanho	daquele.
Aquilo	era	realmente	bizarro.	Eu	tinha	acabado	de	olhar	sua	boca.	Olhei	até	dentro	da	sua	goela.	Não
havia	nada.	De	repente,	meu	irmão	vomita	quatro	dentes?	Que	porra	era	aquela?
Ele	disse	que	não	estava	se	sentindo	bem	e	foi	para	sua	cama.	Fui	atrás	e	pedi	para	olhar	sua	boca
mais	uma	vez.Enfiei	um	palito	na	goela	e	ele	quase	vomitou	novamente.	Mas	não	havia	nada	lá.
Fiquei	uns	dez	minutos	examinando	sua	boca	e	não	encontrei	nada.
—	Tem	uma	coisa	dentro	de	mim.	Eu	sei	disso	—	ele	repetiu	e	reclamou	mais	uma	vez	de	arranhões
dentro	do	estômago.
—	Não	há	nada	dentro	de	você.	A	gente	já	fez	endoscopia	e	todos	os	exames	possíveis.	Acho	que	é	só
sua	imaginação.
—	Esses	dentes	são	minha	imaginação?
Realmente,	não	havia	explicação	lógica	para	que	cinco	dentes	emergissem	da	sua	garganta.	Achava
improvável	que	ele	tivesse	engolido	dentes	daquele	tamanho.	E	para	que	ele	faria	isso?
—	Tem	algo	dentro	de	mim...
Eu	liguei	para	sua	escola	e	disse	que	ele	não	iria	trabalhar	naquele	dia.	Ele	ficou	o	tempo	inteiro
deitado.	Eu	também	desmarquei	minhas	consultas	daquele	dia.	À	noite,	ele	me	chamou	no	quarto.	Ele
dizia	que	alguma	coisa	estava	querendo	rasgar	seu	estômago.	Então,	ele	virou	para	o	lado	e	cuspiu	duas
unhas	inteiras.	Não	eram	pedaços,	como	ele	tinha	mostrado	no	dia	anterior.	Eram	unhas	inteiras.
Foi	a	minha	vez	de	quase	vomitar.	Não	havia	explicação	para	aquilo.	Eu	olhei	para	as	unhas.	Eram
unhas	humanas.	Eram	um	pouco	maiores	do	que	aquelas	do	dedo	do	meu	irmão,	mas,	sem	dúvida,	eram
unhas	de	gente.
Ele	começou	a	chorar.	E	eu	não	sabia	o	que	fazer	para	confortá-lo.	Na	verdade,	eu	estava	custando	a
acreditar	naquilo.	Era	irreal	demais.
Naquele	dia,	nada	mais	de	estranho	aconteceu,	mas,	no	dia	seguinte,	ele	acordou	vomitando	um
pequeno	pedaço	de	carne.	Quando	eu	me	aproximei,	vi	que	parecia	o	lóbulo	de	uma	orelha.	Não	tinha
sangue,	nem	nada.	Era	apenas	um	pedaço	de	orelha.	Dessa	vez,	eu	não	consegui	segurar	e	vomitei	no
chão.
Quando	meu	irmão	se	deu	conta	do	que	tinha	saído	de	sua	boca,	ele	deu	um	grito	de	horror.	Eu	tentei
chegar	perto	dele,	mas	ele	começou	a	me	empurrar	para	sair	do	quarto.	Antes	que	eu	pudesse	reagir,	eu	já
estava	do	lado	de	fora	e	ele	tinha	trancado	a	porta.
Podia	ouvir	os	gritos	desesperados	do	meu	irmão,	do	lado	de	dentro.	Eu	esmurrei	a	porta	várias
vezes.
Depois	de	alguns	minutos	de	silêncio,	em	que	só	podia	ouvir	o	choro	misturado	aos	soluços	do	meu
irmão,	ele	finalmente	falou:
—	Tem	algo	muito	estranho	acontecendo	comigo	—	e	eu	concordava	com	ele,	era	estranho	demais.	—
Tem	algo	dentro	de	mim.	Não	sei	o	que	é,	mas	está	querendo	rasgar	o	meu	estômago.
Eu	tentei	falar	algo,	mas	não	sabia	o	que	dizer.	Ele	deu	um	grito.	Parecia	estar	sofrendo	muito.
—	Está	doendo.	Está	voltando	a	doer,	como	os	infernos!	—	ele	disse,	quase	urrando	de	dor.	—	Isso
precisa	acabar.	Eu	me	sinto	uma	aberração!
—	Do	que	você	está	falando?	Abra	essa	porta.	Vamos	ao	médico.	Tem	que	haver	uma	explicação	para
isso.
—	Qual	a	explicação	para	eu	estar	vomitando	dentes,	unhas	e	um	pedaço	de	orelha?	O	médico	já
disse	que	não	há	nada	de	errado	comigo.
—	Por	favor,	abra	essa	porta.	Senão,	eu	vou	arrombá-la!
Então,	eu	ouvi	os	gritos	mais	apavorantes	que	eu	já	tinha	ouvido	em	toda	a	minha	vida.	Gritei	o	nome
do	meu	irmão,	várias	vezes.	Mas	ele	não	respondeu.	Empurrei	a	porta	várias	vezes,	sem	sucesso.
Lembrei-me	de	que	havia	chaves-reserva	de	todos	os	cômodos	da	casa,	guardadas	em	alguma	gaveta
da	cozinha.	Eu	demorei	cerca	de	meia	hora	para	achá-las.
Quando	eu	finalmente	abri	a	porta	do	quarto,	vi	meu	irmão	jogado	no	chão,	com	várias	facadas	na
barriga	e	uma	poça	enorme	de	sangue.	Ele	tinha	usado	seu	canivete	suíço	para	retalhar	sua	barriga,
provavelmente	numa	tentativa	desesperada	de	acabar	com	a	dor.	Seu	coração	ainda	batia	quando	eu
chamei	a	ambulância,	mas	ele	já	estava	morto	quando	a	equipe	de	socorro	chegou.
A	necropsia	não	encontrou	nada	em	sua	barriga	e,	aparentemente,	não	havia	nenhum	problema	com
sua	saúde.	Eu	fiquei	curioso	para	saber	se	tinham	achado	algum	outro	dente,	unha	ou	pedaço	de	orelha	na
sua	barriga,	mas	tive	vergonha	de	perguntar.
A	polícia	chegou	a	abrir	um	inquérito,	que	foi	arquivado	quando	a	perícia	comprovou	que	meu	irmão
tinha	tirado	sua	própria	vida.
No	enterro,	meus	pais	estavam	arrasados.	Contei	sobre	as	queixas	de	dor	na	barriga	e	sobre	sua	ideia
fixa	de	que	havia	alguma	coisa	querendo	rasgar	seu	estômago	de	dentro	para	fora.	Mas	não	mencionei	os
dentes,	as	unhas	e	o	pedaço	de	orelha.	Eram	detalhes	tenebrosos	demais	para	dois	pais	de	luto.
Quando	voltei	para	casa	depois	do	enterro,	fiquei	deitado	o	dia	inteiro	na	cama,	lembrando-me	de
todos	os	bons	momentos	que	vivemos	juntos.	Após	a	morte	dele,	fiquei	sem	chão	por	algum	tempo.	Senti
falta	do	meu	companheiro,	que	passou	nove	meses	agarrado	comigo	na	barriga	da	minha	mãe	e	que	viveu
toda	a	vida	ao	meu	lado.
Lembrei-me	dos	últimos	dias	de	vida	do	meu	irmão.	Ele	havia	sofrido	muito	com	as	tais	dores	no
estômago.	No	final,	não	havia	mesmo	nada	dentro	da	barriga	dele,	como	a	necropsia	pôde	confirmar,	mas
não	posso	dizer	que	era	apenas	algo	criado	por	sua	mente.
Algo	estranho	e	sem	explicação	aconteceu.	Eu	vi,	com	meus	próprios	olhos,	aquelas	coisas	saindo	da
boca	do	meu	irmão.
Alguns	meses	depois,	quando	eu	já	tinha	esquecido	aquele	pesadelo,	eu	senti	uma	indisposição
estomacal.	Fui	ao	banheiro,	mas	não	tive	vontade	de	evacuar.
Enquanto	eu	andava	até	a	sala,	comecei	a	sentir	uma	sensação	estranha.	Alguma	coisa	arranhava	o
interior	do	meu	estômago.	Meus	batimentos	cardíacos	se	aceleraram	e	senti	alguma	coisa	subindo	a
minha	garganta.	Era	algo	incômodo,	que	me	machucava.
Então,	eu	senti	aquilo	chegando	até	minha	língua.	Meu	Deus,	era...
...	UM	PEDAÇO	DE	UNHA!
	
	
	
	
PRISÃO	PERPÉTUA
	
Acordo	sozinho	em	uma	cela	escura.	Demoro	um	pouco	para	me	situar.	Onde	estou?	Com	dificuldade,
caminho	até	a	porta,	que	está	aberta.	Todo	o	meu	corpo	dói.	Olho	para	baixo	e	vejo	que	estou	com
feridas,	cheio	de	sangue	e	hematomas.
Aos	poucos,	as	lembranças	retornam.	Estou	detido	em	um	presídio	no	centro	do	Rio	de	Janeiro.	Antes
de	perder	a	consciência,	lembro-me	de	ter	sido	encurralado	nessa	mesma	cela,	por	vários	detentos.	Eles
me	espancaram	e	me	perfuraram	com	facas.	Não	sei	como	pude	sobreviver	àquelas	agressões.
Quando	eu	senti	as	primeiras	facadas	na	barriga	e	no	pescoço,	depois	de	receber	muitos	pontapés,	eu
desmaiei.	Alguém	deve	ter	me	socorrido	e	levado	para	o	posto	médico	do	presídio.	E	alguém	—	talvez	a
mesma	pessoa	—	trouxe-me	de	volta	para	essa	cela.	Quantos	dias	se	passaram	desde	que	eu	apaguei?
Não	sei	dizer.
Estou	em	um	setor	do	pavilhão,	chamado	de	“seguro”,	que	é	separado	dos	demais	porque	é	aqui	que
colocam	estupradores,	dedos-duros	e	presos	jurados	de	morte.
Em	penitenciárias,	monstros	são	normalmente	aceitos	pelos	colegas,	mas	algumas	vezes	o	pecado
cometido	é	tão	terrível,	que	causa	repulsa	até	nos	outros	monstros.	Eu	sou	um	desses	pecadores
imperdoáveis.	Pessoas	da	minha	espécie	são	piores	do	que	lixo.
Você	deve	estar	se	perguntando	sobre	que	crime	eu	cometi.	Provavelmente	você	não	vai	achar	nada
monstruoso,	mas	meus	colegas	de	prisão	discordariam.	Eu	denunciei	o	chefe	do	tráfico	na	favela	onde	eu
moro.	Denunciei	porque	a	polícia	tinha	provas	para	me	manter	30	anos	na	cadeia	e	eu	esperava	que,	com
a	delação,	eles	retirassem	meu	nome	dos	inquéritos	policiais.	Eles	sabiam	que	eu	conhecia	o	esconderijo
do	chefe,	porque	eu	trabalhava	para	a	quadrilha.	Então,	um	dia,	colocaram	uma	máscara	no	meu	rosto	e
me	escoltaram	pela	favela,	até	que	eu	mostrasse	o	local	onde	ele	se	escondia.
É	claro	que	minha	traição	foi	descoberta	pela	quadrilha.	Não	dá	para	confiar	na	polícia,	que	não	só
espalhou	a	informação	de	que	eu	era	“X-9”,	como	também	se	esqueceu	do	compromisso	de	limpar	minha
barra	com	a	Justiça.	Fui	preso	no	mesmo	dia,	com	um	mandado	de	prisão	preventiva,	e	levado	para	o
presídio	na	mesma	viatura	que	o	chefão,	mesmo	sem	ter	sido	julgado.
Fui	colocado	na	ala	do	“seguro”	e	consegui	sobreviver	bem	por	três	meses.	Mas,	um	dia,	acordei	com
os	carcereiros	abrindo	todas	as	celas	e	deixando	os	presos	da	ala	sem	proteção.	Não	demoroumuito	para
que	uma	horda	de	presidiários	entrasse	na	nossa	ala	e	me	encurralasse	na	minha	cela.
Não	sei	quanto	dinheiro	os	carcereiros	receberam,	mas	o	meu	ex-chefe	não	costumava	economizar
quando	precisava	subornar	alguém.	Era	óbvio	que	eu	não	sairia	ileso	dessa.	Em	um	presídio,	escórias
como	eu	nunca	podem	dormir	tranquilos.
Agora,	o	pior	parece	ter	passado.	Olho	para	as	outras	celas	e	vejo	que	estou	sozinho	na	ala.	Todas	as
celas	estão	abertas,	mas	não	há	mais	ninguém.	Não	sei	se	eles	foram	mortos	no	ataque	que	sofremos	ou	se
já	foram	transferidos	para	outra	penitenciária.	Esse	presídio	está	sendo	desativado	e	será	implodido,
para	dar	lugar	a	casas	populares.	Antes	de	ser	espancado,	eu	vi	algumas	levas	de	presos	deixando	a
cadeia.
Ando	até	o	final	da	minha	ala.	É	possível	ouvir	pessoas	conversando	em	outras	alas.	Meu	andar	ainda
está	ocupado.	Ele	será	um	dos	últimos	a	ser	esvaziados.
Encosto	na	grade	que	isola	minha	ala	do	restante	do	presídio	e,	com	grande	pavor,	percebo	que	ela
também	está	aberta.	Minha	ala	está	aberta	para	quem	quiser	entrar	e	terminar	o	serviço	que	deixaram
inacabado.	Sinto	um	medo	grande.	Afasto-me	dali	e	volto	para	minha	cela.	Fecho	a	grade,	na	expectativa
de	parecer	trancada	para	os	outros	presos.
Pela	janela,	vejo	mais	presos	sendo	escoltados	para	os	veículos	que	vão	tirá-los	da	penitenciária.	Há
uma	forte	guarda	de	policiais	e	carcereiros.	Não	devem	restar	mais	muitos	detentos	dentro	desse
presídio.	E,	pelo	que	percebo,	sou	um	dos	últimos	prisioneiros.	Nos	próximos	dias,	todos	serão	retirados
e	levados	para	outra	cadeia.
Meus	ferimentos	parecem	não	ter	cicatrizado.	Coloco	a	mão	em	um	dos	vários	buracos	feitos	pelas
facadas	e	ainda	sinto	o	sangue	úmido.	Como	é	possível?	Não	sei.	Só	sei	que	sobrevivi	e	consigo
caminhar	de	um	lado	para	outro,	mesmo	com	todos	esses	ferimentos.
Fico	com	medo	de	voltar	para	o	corredor.	Prefiro	ficar	quieto,	encolhido	naquela	cela.	Deito	na
estrutura	de	concreto	que	me	serve	de	cama.	Fico	ali	estirado	por	longas	horas,	sem	conseguir	dormir,
apavorado	com	a	possibilidade	de	meus	agressores	retornarem.
Na	manhã	seguinte,	ainda	sem	conseguir	dormir,	ouço	um	barulho	vindo	da	cela	em	frente.	Está	muito
escuro,	porque	nossa	ala	está	sem	luz.	Aproximo-me	das	grades	para	tentar	ver	quem	é.	Alguém	está
deitado	na	cama.	Posso	ver	as	pernas	flexionadas	de	uma	pessoa	deitada.
Tento	chamá-lo,	sem	fazer	muito	barulho,	para	não	atrair	atenção	de	outros	presos.	Ele	também	deve
ter	sobrevivido	ao	ataque	feito	à	ala	do	“seguro”	e	ainda	não	foi	transferido.
—	Psiu,	psiu	—	eu	repito.
Vejo	uma	cabeça	se	erguer	e	me	encarar.	Não	o	reconheço.	Ele	se	levanta	e	anda	até	a	grade	aberta	de
sua	cela.	Ele	não	está	ensanguentado	e	nem	tem	hematomas	pelo	corpo.	Tem	apenas	uma	marca	roxa	no
pescoço.	Quem	será?	Instintivamente	dou	um	passo	para	trás,	buscando	afastar-me	dele.
—	Calma	—	ele	diz	—,	eu	não	vou	te	machucar.	Somos	colegas	de	ala.
—	Como	eu	nunca	te	vi	por	aqui?
Ele	não	responde	e	continuo	preparado	para	o	pior.	Mas	ele	não	avança	na	minha	direção.	Seja	quem
for	meu	vizinho,	ele	não	parece	querer	me	agredir,	ele	apenas	volta	para	sua	cama	e	se	deita	de	novo.
Fico	um	pouco	mais	relaxado.
Nós	só	voltamos	a	nos	falar	mais	tarde,	quando	eu	ouço	barulhos	de	pessoas	próximo	de	mim	e	corro
para	a	grade	para	ver	se	alguém	tinha	entrado	na	nossa	ala.
—	Não	se	preocupe.	Ninguém	vai	entrar	aqui	—	diz	o	desconhecido,	ainda	deitado	na	cama.
—	Como	você	pode	saber?	Se	descobrirem	que	ainda	estamos	aqui	e	que	todas	as	portas	estão
abertas,	vão	acabar	com	a	gente.
—	Acredite	em	mim.	Você	não	precisa	se	preocupar	com	isso.
Ainda	estou	curioso	para	saber	o	que	ele	está	fazendo	ali.	Novamente,	pergunto	quem	é	ele,	mas,	mais
uma	vez,	fico	sem	resposta.	Desisto	de	saber.	Ele	provavelmente	arrumou	problemas	com	outros	presos	e
vai	aguardar	a	transferência	na	ala	do	“seguro”.	Olho	para	o	pátio,	pela	janela	da	minha	cela.	Ainda	está
vazio.
Mais	tarde,	passo	a	mão	pelo	meu	corpo.	Ainda	dói.	O	sangue	na	minha	pele	está	seco,	mas,	dentro
das	feridas,	ainda	está	molhado,	como	no	dia	anterior.	Tento	abrir	o	chuveiro,	mas	está	sem	água.
—	Ei.	Estamos	sem	luz	e	sem	água	—	falo	para	o	meu	vizinho	de	ala,	com	o	cuidado	de	não	fazer
muito	barulho.	—	Não	consigo	tomar	um	banho	ou	lavar	minhas	feridas.	Estou	preocupado	com	isso.
Posso	pegar	uma	infecção.
Meu	vizinho	nada	responde.
—	Preciso	chamar	um	carcereiro,	mas	não	sei	como.	Se	eu	for	até	a	grade	e	chamar	alguém,	os	outros
presos	podem	perceber	que	ainda	estou	aqui.
Silêncio.	Olho	para	a	cela	dele	e	não	consigo	encontrá-lo.	Vagarosamente,	ando	até	lá,	preocupado
em	ser	visto	no	corredor.	A	porta	está	aberta,	mas	ele	não	está	lá	dentro.	Onde	ele	se	meteu?
Ando	com	cautela	pelo	corredor,	olhando	em	cada	uma	das	outras	oito	celas	daquela	ala.	Todas	estão
vazias.	Volto	para	minha	cela	e	vejo,	no	pátio,	mais	um	grupo	de	50	presos	deixando	a	penitenciária.
No	dia	seguinte,	acordo	com	alguém	falando	comigo.	Levanto-me	num	sobressalto.	É	o	meu	vizinho
misterioso.	Ele	está	de	volta	a	sua	cela.
—	O	último	grupo	está	deixando	a	prisão	hoje	—	ele	diz,	em	voz	alta.
Ouço	barulho	dos	presos,	que	fazem	uma	algazarra	próximo	dali.
Olho	para	o	corredor.	Graças	a	Deus,	não	há	ninguém	na	nossa	ala.	O	barulho	é	dos	presos	das	outras
alas	daquele	andar,	que	parecem	estar	sendo	mobilizados	para	a	transferência.
—	Ninguém	veio	falar	com	a	gente	ainda	—	eu	respondo,	tentando	não	falar	muito	alto.	—	A	gente
deveria	estar	nesse	último	grupo.
Ele	apenas	ri	e	volta	para	sua	cama.
Mais	tarde,	olho	pela	janela	e	vejo	um	grupo	de	40	presos	reunido	no	pátio.	Eles	são	divididos	em
grupos	menores	e	encaminhados	para	diferentes	camburões.
—	Lá	se	vão	os	últimos	presos	—	ouço	meu	vizinho	comentar,	na	outra	cela.	—	Estão	felizes	porque
vão	deixar	esse	inferno.
O	presídio	onde	estamos	é	um	dos	piores	do	país.	É	velho,	sujo,	úmido,	claustrofóbico.	Suas	paredes
não	devem	ver	uma	camada	nova	de	tinta	há	pelo	menos	três	décadas.	Manchas	de	sangue	e	fezes	estão	há
anos	decorando	as	alas	da	penitenciária.
Até	agora	ninguém	veio	até	mim,	para	me	preparar	para	a	transferência.	Sinto	que	é	hora	de	chamar
alguém.	Não	podem	me	esquecer	ali.	Saio	pelo	corredor	e	vou	até	a	grade	da	ala.	Está	tudo	em	silêncio.
—	Boa	sorte,	companheiro	—	meu	vizinho	grita,	enquanto	eu	deixo	a	ala	do	“seguro”.
Com	cuidado,	abro	a	porta	e	saio	pelo	pavilhão,	procurando	alguém.	Nada.	Está	tudo	vazio.	Não	há
ninguém	no	andar,	mas	não	consigo	descer	porque	a	grade	da	escada	está	trancada.	Não	há	viva	alma	nas
seis	alas	daquele	andar	do	pavilhão.
Eu	perco	o	medo	de	atrair	atenção	dos	outros	presos	e	dou	um	grito	alto.
Eu	grito	por	alguns	minutos,	mas	ninguém	vem	até	mim.	Decido	voltar	para	a	minha	cela	e	gritar	pela
janela.	Será	que	os	malditos	vão	me	esquecer	trancado	naquele	andar?
Ninguém	olha	para	o	alto.	Nem	policiais,	nem	carcereiros,	nem	detentos.	Vejo	os	dois	últimos	grupos
de	presos	entrando	nas	viaturas	blindadas	de	transferência.
—	Não	adianta	gritar	—	avisa	o	vizinho.
—	Por	quê?	Por	que	ninguém	olha?	Eu	devia	estar	naquele	grupo	—	sinto	o	desespero	tomando	conta
de	mim.	—	Eles	me	esqueceram	aqui.
Continuo	tentando	chamar	atenção.	Por	um	instante,	penso	que	dá	certo,	porque	um	dos	policiais	olha
para	cima.	Mas	minha	esperança	se	esvai	quando	ele	volta	a	baixar	o	olhar,	como	se	não	tivesse	me
visto.	Todos	os	presos	já	entraram	nos	carros.	Os	carcereiros	fecham	as	portas	das	viaturas,	que	saem	do
presídio.
Os	policiais	também	deixam	o	prédio.	Apenas	dois	carcereiros	voltam	para	dentro	do	pavilhão.
—	Eles	vêm	me	buscar.	Eles	entraram	no	prédio	de	novo.	Lembraram	que	estou	aqui	e	vêm	me
buscar.
Meu	vizinho	se	levanta	e	anda	até	a	grade.	Ele	está	esquisito.	Seu	rosto	parece	mais	pálido.	Seus
lábios	estão	quase	sem	cor.	Seus	cabelos	parecem	fios	de	palha.
—	Eles	não	vêm	te	buscar.	Acredite	em	mim.	Elessó	vão	pegar	alguns	documentos	e	vão	deixar	o
presídio	antes	de	anoitecer.
Eu	corro	de	volta	à	escada	e	continuo	a	gritar	pela	grade.	Estou	preso	ali,	sem	poder	sair,	sem	poder
chamar	ajuda,	correndo	o	risco	de	ser	esquecido	naquele	prédio,	que	será	dinamitado	em	alguns	dias.
Grito	por	cerca	de	duas	horas.	Ninguém	vem	até	mim.
Volto	desolado	para	a	minha	cela.
—	Olhe	pela	janela	—	é	a	voz	do	meu	vizinho.	Ela	parece	mais	rouca	do	que	antes.	—	Os	carcereiros
já	terminaram	de	arrumar	o	que	precisavam	e	devem	estar	saindo	do	prédio	nesse	momento.
Olho	para	baixo	e,	realmente,	os	dois	estão	deixando	o	pavilhão	com	duas	caixas.	Eles	andam	até	o
portão	principal	e	depois	deixam	o	presídio.
—	Eles	ainda	vão	voltar	depois	para	limpar	os	escritórios,	nos	próximos	dias.	Mas	ninguém	vai
passar	por	essa	ala.	Eles	já	tiraram	tudo	o	que	queriam	desse	andar	—	diz	o	meu	vizinho.
Já	está	anoitecendo	e,	naquela	penumbra,	não	consigo	enxergar	direito	o	meu	colega.	Vejo	apenas	uma
magra	silhueta	no	canto	da	cela	em	frente.
—	Por	que	eles	estão	deixando	a	gente	para	trás?	—	pergunto	desanimado.
—	Eles	não	estão	deixando	ninguém	para	trás.	Todos	que	tinham	que	ser	transferidos	já	foram.
—	Mas	eu	continuo	aqui.	Como	eles	podem	esquecer	um	prisioneiro?
Ele	ri	mais	uma	vez.	Fico	com	vontade	de	esmurrar	sua	cara.	Como	ele	pode	rir	dessa	situação?
Corremos	o	risco	de	ser	esquecidos	ali,	sem	luz,	água	ou	comida	por	vários	dias.
—	O	nosso	destino	é	ficar	aqui,	meu	amigo	—	diz	a	voz	cada	vez	mais	rouca	do	meu	vizinho.
—	Como?	—	pergunto,	sem	entender	o	que	ele	quer	dizer.
—	Já	se	perguntou	por	que	ninguém	te	ouviu	gritar?	—	pergunta,	soando	cada	vez	mais	incômodo.	—
Ou	por	que	suas	feridas	não	cicatrizam?	Aliás,	há	quanto	tempo	você	não	come	nada?
Eu	não	respondo	nada.	De	repente,	começo	a	sentir	uma	grande	angústia.	Tudo	à	minha	volta	escurece
e	me	vejo	no	meio	de	um	espaço	vazio.	Um	vazio	de	escuridão.	Aquela	sensação	dura	uma	eternidade.
Então,	a	voz	de	meu	vizinho	me	traz	de	volta	à	minha	cela.
—	Não	há	como	você	ter	sobrevivido	àquele	ataque.	Já	parou	para	contar	quantas	perfurações	de	faca
existem	no	seu	corpo?	Lamento	dizer,	mas	você	não	teve	sorte.
—	Q-quem	é	você?
—	Eu	sou	um	prisioneiro.	Assim	como	você.	Estou	preso	aqui	desde	1946.	Fui	morto	algum	tempo
depois,	pelos	meus	companheiros,	assim	aconteceu	com	você.	Eu	já	devia	estar	fora	dessa	prisão,	mas
vou	ficar	aqui	para	sempre,	assim	como	você.
—	E-eu	estou	m-morto?
—	Seu	corpo,	sim.	Mas,	infelizmente,	sua	alma	não	teve	essa	sorte.	Pelo	menos,	se	você	tivesse
morrido	mesmo,	se	tivesse	deixado	de	existir,	você	não	estaria	condenado	a	vagar	por	esse	prédio	por
toda	a	eternidade.
Coloco	a	mão	nos	diversos	furos	de	faca	pelo	meu	corpo.	Meu	sangue	ainda	está	úmido.	Olho	para
um	pequeno	espelho	na	parede	da	minha	cela	e	não	vejo	minha	imagem	refletida.	Eu	estou	mesmo	morto.
—	E	mesmo	quando	demolirem	esse	presídio,	nós	vamos	continuar	presos	aqui,	na	memória	desse
prédio	—	meu	companheiro	continua.	—	Essas	celas	em	que	estamos	não	são	feitas	de	tijolos.	Elas	são
eternas.
Olho	para	a	janela	e	não	consigo	mais	ver	o	pátio	do	presídio	ou	o	morro	que	eu	conseguia	enxergar
além	dos	muros.	Não	há	nada	do	lado	de	fora	da	minha	janela.	Está	tudo	escuro.	Grito	por	ajuda	e	meus
gritos	ecoam	pelo	prédio	vazio.	Sei	que	ninguém	vai	me	levar	embora.	Eu	não	vou	ser	transferido.	Minha
pena	agora	é	perpétua.
	
	
	
	
	
O	ASSASSINO	HESITANTE
	
Wanderson	não	sabia	dizer	exatamente	quando	começou	a	sentir	vontade	de	matar.	Com	oito	ou	nove
anos,	ele	já	gostava	de	matar	bichos.	Matou	seus	peixes	a	sangue	frio.	Todos	os	cinco	peixinhos	dourados
e	dois	cascudos	de	seu	aquário.	Pescou-os,	colocou-os	no	chão	e	esmagou-os	com	seu	pé.
Depois,	matou	seu	hamster.	Pegou	o	ratinho	e	enforcou-o	com	um	cadarço	de	tênis.	Quando	já	não
havia	mais	bichos	dentro	de	casa	para	matar,	passou	a	satisfazer-se	com	filhotes	de	cachorro	e	gato	que,
de	vez	em	quando,	apareciam	na	sua	rua.	Seu	método	de	assassinato	favorito	era	encurralar	o	animalzinho
e	apedrejá-lo	até	a	morte.
Ele	lembrava-se	perfeitamente,	no	entanto,	quando	ele	sentiu	um	impulso	para	fazer	sua	primeira
vítima	humana.	Wanderson	estava	com	15	anos	e	apaixonou-se	por	uma	menina	de	sua	escola.	Mas,	ao
mesmo	tempo	em	que	surgiu	a	paixão,	apareceu	o	desejo	animalesco	de	assassinar	a	menina.
Ele	não	tinha	nada	contra	a	menina,	porque	ela	até	gostava	dele	e	o	tratava	bem.	Era	simplesmente
uma	vontade	irracional	de	agarrar	o	pescoço	dela	e	sufocá-la	até	que	ela	morresse.
Isso	lhe	causou	muito	sofrimento.	Como	ele	poderia	estar	apaixonado	pela	menina	e,	ao	mesmo
tempo,	querer	acabar	com	a	vida	dela?	Mas	era	algo	mais	forte	que	ele.	Era	um	pensamento	que	ele	não
conseguia	controlar.
Quando	ele	encontrava-a	na	sala	de	aula,	seu	primeiro	pensamento	era	beijar	sua	boca.	Mas	logo	em
seguida,	uma	ideia	doentia	invadia	sua	cabeça	e	ele	não	conseguia	parar	de	pensar	no	assassinato	da
garota.
No	final,	ele	já	não	conseguia	parar	de	pensar	naquilo.	Ele	tentava	se	distrair	com	outros
pensamentos,	contava	até	50,	resolvia	equações	mentalmente	e	buscava	imaginar-se	longe	dali,	em	uma
praia	deserta.	Mas	seu	instinto	assassino	prevalecia	e	ele	logo	voltava	a	pensar	na	morte	da	menina.
Um	dia,	ele	decidiu	que	tinha	que	matá-la.	Era	a	única	forma	de	tirar	aqueles	pensamentos	da	sua
cabeça.	Ele	planejou	tudo	com	muito	cuidado.	Combinou	de	estudar	com	ela,	em	sua	casa,	em	um	dia	que
seus	pais	não	estavam.	Chamou	outros	dois	colegas,	para	que	ela	não	desconfiasse	de	nada.
Em	cima	da	hora,	ele	desmarcou	com	os	outros	colegas,	mas	não	falou	nada	para	a	menina.	Ela	entrou
na	sua	casa,	perguntou	pelos	outros	dois	e	Wanderson	disse	que	eles	já	deviam	estar	chegando.
Wanderson	ofereceu	um	refrigerante	e	pediu	que	ela	se	sentasse	no	sofá.	Ele	foi	até	a	cozinha,	pegou	a
bebida	e	uma	faca	de	cortar	carne.	Mas	quando	ele	voltou	para	a	sala	e	viu	o	rosto	da	menina,	ele
desistiu.
Na	meia	hora	seguinte,	enquanto	a	menina	esperava	a	suposta	chegada	dos	dois	colegas,	ele	ainda
pegou	e	largou	a	faca	mais	duas	vezes.	Não	adiantava,	ele	não	teria	coragem	de	matá-la.
Como	os	colegas	não	chegavam,	a	menina	achou	melhor	ir	embora	e	marcar	outro	dia	para	o	estudo.
Wanderson	não	tentou	convencê-la	a	ficar.	Apenas	despediu-se	dela.	Estava	frustrado.	Havia	falhado	na
sua	primeira	tentativa	de	matar.
A	paixão	e	a	vontade	de	matar	a	menina	acabaram	passando.	Mas,	aos	16	anos,	seu	desejo	assassino
voltou	com	força	total,	quando	ele	retornava	do	curso	de	informática	para	casa.	Ele	viu	uma	mulher	mais
velha,	de	cerca	de	30	anos,	sentada	sozinha	no	fundo	do	ônibus,	e	passou	a	sentir	uma	vontade
incontrolável	de	enfiar	a	cabeça	dela	num	saco	plástico	e	asfixiá-la.
Já	estava	de	noite	e	a	mulher	saltou	do	ônibus	em	um	ponto	relativamente	deserto.	Wanderson	desceu
atrás	e	seguiu-a	por	um	tempo.	Mas,	de	repente,	a	mulher	parou	para	pegar	alguma	coisa	na	bolsa	e	ele
amarelou.	Passou	direto	pela	potencial	vítima,	sem	saber	o	que	fazer.	Ele	ainda	esperou	mais	à	frente,	na
esquina	seguinte,	mas	quando	a	mulher	passou,	falando	ao	celular,	Wanderson	novamente	ficou	sem
reação,	paralisado	pelo	medo.
Depois	disso,	ele	passou	a	sentir	vontade	frequente	de	matar,	mas	sempre	desistia	em	cima	da	hora.
Ele	não	escolhia	suas	potenciais	vítimas.	O	que	acontecia	era	que,	de	repente,	ele	olhava	para	alguém	e
seu	instinto	assassino	aflorava.	Ele	não	conseguia	entender	por	que	sentia	vontade	de	tirar	a	vida	daquela
pessoa.	A	ideia	apenas	surgia	e	o	consumia	de	tal	modo	que	ele	não	conseguia	tirar	aquilo	da	cabeça.
Desde	seus	15	anos,	depois	que	ele	fracassou	em	matar	sua	paixão	adolescente,	ele	nunca	mais	teve
desejo	de	matar	ninguém	de	seu	círculo	de	amizades.	Ele	não	entendia	por	que,	mas	o	impulso	agora	só
aparecia	com	pessoas	desconhecidas,	sempre	mulheres.	Mulheres	que	ele	via	no	ônibus,	no	shopping	e	na
rua.
Não	eraum	desejo	sexual,	ele	simplesmente	sentia	que	deveria	matá-las.	O	curioso,	no	entanto,	era
que	ele	nunca	tinha	coragem	de	atender	a	seu	desejo	e	assassinar	as	vítimas.	Ele	sempre	chegava	muito
perto	de	agir,	mas	sempre	desistia.
Ele	não	ficava	o	tempo	inteiro	pensando	em	matar.	Mas,	em	geral,	depois	que	seu	impulso	assassino
escolhia	a	vítima,	a	vontade	ficava	martelando	na	sua	cabeça	por	vários	dias	seguidos.
Como	eram	pessoas	desconhecidas,	ele	nunca	as	via	novamente.	Se	ele	perdia	a	chance	de	matar,	ele
ficava	frustrado	por	muito	tempo,	sem	a	possibilidade	de	tentar	de	novo	com	aquela	vítima.
Aos	20	anos,	cinco	anos	depois	de	muitas	frustrações,	ele	decidiu	que	teria	que	matar	alguém.	Dessa
vez,	ele	decidiu	fazer	um	planejamento	de	antemão.	Ele	tinha	um	velho	carro	e	conhecia	as	ruínas	de	uma
velha	fazenda	abandonada	no	Grande	Rio.	As	ruínas	ficavam	próximas	a	um	aglomerado	com	poucas
dezenas	de	casas	humildes,	onde	seus	avós	moravam	e	que	ele	costumava	frequentar	quando	criança.
Fosse	qual	fosse	a	vítima	escolhida	por	seu	“eu	assassino”,	ele	a	levaria	para	lá	e	a	mataria.
Antes	mesmo	de	saber	quem	seria	sua	vítima,	ele	foi	e	voltou	à	fazenda	várias	vezes,	para	que	nada
saísse	errado.	Naquelas	ruínas	isoladas,	ele	teria	tempo	suficiente	para	reconquistar	sua	coragem,	caso
amarelasse	de	novo.
Só	teria	que	garantir	que	conseguisse	levar	sua	vítima	até	seu	carro	e	não	arruinasse	tudo	como	das
últimas	20	vezes.
Levou	mais	de	um	mês	até	que	ele	sentisse	aquele	impulso	irracional	de	novo.	Dessa	vez	ele	estava
andando	do	trabalho	para	o	ponto	de	ônibus,	à	noite,	quando	viu	uma	jovem	dobrando	a	esquina	e
caminhando	na	calçada	oposta.
Como	sempre,	ele	não	conseguia	entender	por	que,	mas	ficou	se	imaginando	fazendo	um	grande	rasgo
na	barriga	dela	e	deixando	as	tripas	saírem	pelo	buraco.	Ele	não	tinha	controle	algum	sobre	aquela
vontade.	Era	seu	impulso	assassino	implorando	para	ser	saciado.
Wanderson	acompanhou	a	jovem,	à	distância,	por	três	quarteirões	até	que	ela	entrou	em	uma	casa.
Ele	ficou	rondando	pelo	local,	por	cerca	de	três	horas,	até	que	as	luzes	da	casa	se	apagaram.	Então,
voltou	para	o	ponto	de	ônibus	e	seguiu	para	sua	casa.
No	dia	seguinte,	no	mesmo	ponto	de	ônibus,	ele	ficou	esperando	a	jovem	passar	pela	rua.	Ela
demorou	mais	tempo	do	que	na	noite	anterior.	Wanderson	teve	que	deixar	cinco	ônibus	passarem.
Andando	pela	calçada	oposta,	ele	seguiu-a	até	a	mesma	casa	do	dia	anterior.	Tinha	certeza	de	que	ela
morava	ali.
Um	dia	depois	ele	resolveu	ir	ao	trabalho	de	carro.	Ele	estacionou	bem	próximo	da	esquina	de	onde	a
moça	costumava	aparecer.	Quando	saiu	do	trabalho,	ele	andou	até	o	carro	e	esperou	em	pé	encostado	no
muro	de	uma	casa.	Nos	dois	últimos	dias,	não	conseguia	parar	de	pensar	na	morte	da	mulher.	Antes	de
chegar	ao	carro,	ele	tinha	parado	num	bar	e	bebido	uma	dose	de	cachaça,	para	criar	coragem	para	a
abordagem.	Ele	não	aguentava	mais	ser	um	assassino	frustrado,	simplesmente	porque	seu	superego	ficava
censurando	seu	ID	na	hora	H.
O	momento	chegou	quando	a	jovem	dobrou	a	esquina.	Ele	ainda	titubeou	alguns	segundos	e,	por	um
instante,	achou	que	ia	vacilar	de	novo.	Mas,	então,	agarrou	a	vítima,	tapou	sua	boca	com	um	pano	cheio
de	clorofórmio	e	entrou	com	ela	no	assento	traseiro	do	carro.	Quando	ela	já	estava	inconsciente	com	a
inalação	do	produto	químico,	ele	saiu	e	olhou	para	os	lados.	Só	havia	um	casal	namorando	no	ponto	de
ônibus,	mas	eles	estavam	de	costas	e	não	perceberam	a	ação.
Wanderson	sentou-se	no	assento	do	motorista	e	saiu	com	o	carro	vagarosamente,	para	não	chamar	a
atenção	de	ninguém.	Seu	coração	estava	disparado.	Sua	mente	não	sossegava	um	só	instante,	imaginando
o	momento	em	que	ele	tiraria	a	vida	daquela	pessoa.
Demorou	uma	hora	e	meia	até	chegar	à	ruína.	O	portão,	de	madeira,	estava	fechado	apenas	com	um
arame	amarrado.	Depois	de	tirar	o	arame,	ele	abriu-o	com	um	chute	e	dirigiu	o	carro	até	a	sede	da
fazenda.
A	moça	ainda	estava	desacordada.	Com	dificuldade,	ele	puxou-a	do	assento	e	buscou	erguê-la	nos
braços.	Nas	primeiras	tentativas,	ele	não	conseguiu	levantá-la.	Suando,	ele	bufou.	A	vítima	mexeu-se
como	se	fosse	acordar.
Wanderson	reuniu	suas	forças	e	tentou	erguê-la	mais	uma	vez.	Desta	vez,	ele	conseguiu,	mas	quase
caiu	para	trás.
Não	imaginava	que	uma	mulher	magra	pudesse	pesar	tanto.	Com	muito	esforço,	ele	carregou-a	até	um
cômodo	imenso,	que	devia	ser	a	sala	da	antiga	fazenda,	e	colocou-a,	sentada,	escorada	em	uma	pilastra.
No	carro,	ele	pegou	uma	corda	que	usou	para	amarrar	a	mulher.	Ela	mexeu-se	novamente.	Wanderson
estava	radiante.	Pela	primeira	vez,	acreditava	que	finalmente	iria	até	o	fim.	Olhou	para	o	rosto	da	mulher
e	não	sentiu	pena	ou	qualquer	arrependimento.	Não	sabia	se	era	o	efeito	da	cachaça	ou	se	tinha	finalmente
amadurecido	como	assassino,	mas	ele	realmente	iria	matar	sua	primeira	vítima.
Ele	voltou	ao	carro	e	lá	pegou	uma	mochila	de	camping,	onde	tinha	guardado	várias	ferramentas	que
poderia	usar	para	torturar	e	matar	sua	vítima.	A	mulher	acordou	meio	grogue	e,	só	então,	ele	percebeu
como	ela	era	bonita.	Ainda	não	tinha	prestado	a	devida	atenção	nela.
Seu	instinto	assassino	simplesmente	apontou	a	seta	para	ela	e	Wanderson	cegamente	seguiu	seu
impulso.	Mas	ele	não	tinha	reparado	no	rosto	dela.	Sua	primeira	vítima	era	linda	e	ele	ficou,	de	uma
forma	doentia,	satisfeito	com	aquilo.
—	Onde	estou?	—	perguntou	a	jovem,	ainda	sem	conseguir	se	situar	direito.	—	Eu	estou	amarrada?
Por	quê?
Ela	devia	ter	a	mesma	idade	de	Wanderson,	mas	sua	voz	era	doce,	como	de	uma	menina.	Ele	nada
respondeu,	apenas	sentou-se	em	dois	tijolos	no	meio	da	sala	e	ficou	sorrindo	para	ela.
A	moça	tentou	se	desvencilhar	da	corda	e	começou	a	gritar	por	socorro.	Ele	continuou	olhando	para
ela	e	pôde	reparar	que,	quanto	mais	o	efeito	entorpecente	ia	passando,	mais	assustada	sua	vítima	ficava.
O	desejo	assassino	simplesmente	assumiu	o	controle	e	ele	sentia	prazer	com	o	medo	da	mulher.
Ele	abriu	a	mochila	e	viu	o	que	tinha	à	sua	disposição.	Ele	primeiro	pegou	um	serrote	e	mostrou	para
a	mulher,	que	deu	um	grito	de	pavor.
—	Me	solta!	Me	solta,	seu	maluco!
Ele	não	conseguia	parar	de	sorrir.	Wanderson	se	tornaria	um	assassino,	algo	que	sua	mente	doentia
sempre	desejou,	mas	que	ele	nunca	teve	coragem	para	concretizar.	Ele	aproximou-se	dela	e	arrastou	o
serrote	pela	sola	do	pé	da	mulher.
A	lâmina	serrilhada	feriu	levemente	o	pé	e	logo	o	sangue	começou	a	escorrer.	Ela	gritou	mais	alto.
Wanderson	não	se	incomodou.	Seu	lado	animal	tinha	tomado	conta	de	si	e	ele	nem	estava	preocupado	se
alguém	ouviria	os	gritos	dela.
Voltando	para	a	mochila,	ele	guardou	o	serrote	e	pegou	uma	faca.	Era	uma	faca	de	churrasco.	Ele
encostou	o	objeto	afiado	na	barriga	dela,	enquanto	ela	se	debatia.	Com	o	desespero	da	vítima,	a	faca
acabou	cortando	sua	pele.	Mais	sangue	escorreu.
Desta	vez,	ele	riu	alto.	Achava	que	podia	ficar	torturando-a	a	noite	inteira,	sem	se	entediar.
—	Qual	seu	nome,	coisinha	linda?
—	Jé...	Jéssica...	Por	favor,	me	deixa	ir	embora,	moço.	Eu	só	quero	ir	embora.
—	Jéssica,	sinto	te	dizer,	mas	você	não	vai	sair	daqui,	meu	anjo.
Wanderson	deu	um	tapa	na	cara	dela	e	gostou.	Então,	ele	deu	um	soco	e	depois,	uma	pancada	ainda
mais	forte.	Ela	não	parava	de	gritar.
Ele	andou	até	a	mochila	e,	desta	vez,	voltou	com	um	martelo	e	um	prego.	Ela	deu	um	grito	agudo	ao
ver	aqueles	objetos.	Ele	encostou	o	prego	no	ombro	dela	e	ela	parou	de	se	sacudir,	com	medo	de	se
machucar	mais.
—	Por	favor...	por	favor...	por	favor...	—	ela	ficou	repetindo,	dando	uma	pausa	nos	gritos.
Um	grito	ainda	mais	agudo	saiu	da	garganta	da	jovem	quando	o	martelo	empurrou	o	prego	para	dentro
do	osso	de	seu	ombro.	E	depois,	ela	desmaiou.	Wanderson	parou	de	rir	um	instante.	Não	era	para	morrer
tão	rápido.	Ele	pegou	o	pulso	da	mulher	e	viu	que	seu	coração	ainda	estava	batendo.	Sua	vítima
provavelmente	tinha	desmaiado	com	a	dor.	Ele	deu	dois	tapas	na	caradela,	mas	ela	não	despertou.
Com	o	martelo	na	mão,	ele	levantou-se	e	ficou	olhando	a	mulher	desmaiada	à	sua	frente.	Queria	que
ela	despertasse	logo,	para	voltar	a	torturá-la.
Alguns	minutos	depois,	ainda	com	os	olhos	fechados,	ela	sussurrou	algo.	Estava	despertando.	Ele
aproximou-se	e	ela	continuou	a	falar	bem	baixinho.
Como	ainda	não	era	possível	ouvir	o	que	ela	dizia,	ele	precisou	chegar	seu	ouvido	perto	da	boca	da
jovem.	Nesse	momento,	ele	sentiu	dentes	mordendo	com	força	a	lateral	da	sua	cabeça.	Eles	rasgaram	sua
pele	e	arrancaram	sua	orelha.	Aquela	dor	súbita	fez	com	que	ele	soltasse	um	berro	e	se	afastasse	da
mulher.
Wanderson	colocou	as	mãos	sobre	a	ferida	e	percebeu	que	sangrava	sem	parar.	A	mulher	cuspiu	a
orelha	decepada	e	deu	uma	risada	estridente,	que	ecoou	pela	velha	casa.	Quando	ele	voltou	a	encarar	a
jovem,	viu	que	os	olhos	dela	estavam	abertos,	mas	estavam	completamente	brancos.	Não	era	possível	ver
a	íris	ou	a	pupila.	Tudo	estava	branco.
Ela	continuava	a	rir	alto.	Era	um	riso	que	provocava	calafrios	em	Wanderson.	Ele	arrastou-se	para
mais	longe	dela.
Então,	ela	parou	de	rir	e	fitou-o,	em	silêncio.	E	abriu	sua	boca.	Ela	abriu	tanto,	que	parecia	que	sua
mandíbula	tinha	se	soltado	do	resto	da	cabeça.
Como	se	fosse	uma	cobra,	a	língua	da	mulher	saiu	serpenteando	da	boca	e	desceu	quase	até	seu	peito.
Instintivamente,	ele	segurou	o	martelo	com	mais	força.	O	impulso	assassino	parecia	tê-lo	abandonado
e	ele	estava	com	medo.
Ela	percebeu	que	Wanderson	estava	assustado	e	voltou	a	rir.	Era	uma	gargalhada	macabra.	O	que
aconteceu	com	essa	menina?,	ele	pensou.
A	língua	dela,	tão	longa	que	não	parecia	humana,	ergueu-se	na	direção	de	Wanderson.	Ele	tentou
levantar-se,	mas	não	conseguiu.	Alguma	força	sobrenatural	mantinha-o	sentado.
Então,	ela	abaixou	a	cabeça,	dobrou-se	como	uma	contorcionista	e	começou	a	morder	a	corda	que
prendia	sua	cintura	e	suas	mãos.	Wanderson	olhava	espantado.	Ele	não	conseguia	acreditar	que	o	corpo
humano	podia	adotar	uma	posição	tão	extrema.	Parecia	que	a	coluna	vertebral	dela	e	suas	costelas	eram
feitas	de	gelatina.
Enquanto	ela	roía	a	corda,	emitia	sons	animalescos.	Até	que	ela	conseguiu	se	livrar	das	amarras	e
colocou-se	de	quatro,	encarando	Wanderson.	Uma	baba	viscosa	escorria	da	boca	da	jovem.
Ela	arqueou	seu	corpo,	como	se	fosse	um	felino	em	posição	de	ataque	e	deu	mais	uma	daquelas
risadas	estridentes.
Wanderson	tentou	levantar-se	mais	uma	vez,	sem	sucesso,	enquanto	aquela	mulher	—	se	é	que	podia-
se	chamar	de	mulher	aquela	criatura	—	se	aproximava	dele,	andando	com	as	solas	dos	pés	e	as	palmas
das	mãos	no	chão,	e	com	sua	coluna	absurdamente	encurvada.	Parecia	um	animal.	
Wanderson,	que	estava	preso	ao	chão,	tentou	se	arrastar	para	longe	dela,	em	vão.	Então,	ela	chegou	o
rosto	bem	perto	do	seu.	Seus	olhos	completamente	brancos,	aquela	baba	escorrendo	pela	boca,	a	pele
pálida,	um	hálito	com	cheiro	de	tabaco	e	cachaça	e	um	perfume	de	rosas,	que	parecia	cheiro	de
cemitério.
Com	uma	voz	rouca,	quase	masculina,	a	mulher	perguntou:
—	Por	que	eu	estava	amarrada	e	machucada?
Wanderson	mal	conseguia	falar.
—	Jéssica?!
A	mulher	riu	como	uma	insana.
—	A	Jéssica	não	está	aqui	—	respondeu,	depois	de	terminar	a	risada.
Mantendo	uma	das	mãos	e	os	dois	pés	no	chão,	ela	usou	sua	segunda	mão	para	tirar	o	prego	de	seu
ombro.
—	Por	acaso,	foi	você	que	colocou	isso	no	meu	ombro?
—	Eu	sinto	muito,	Jéssica...
Ela	pôs-se	de	pé,	em	um	movimento	súbito,	ao	mesmo	tempo	em	que	gritava:
—	Eu	já	falei	que	a	Jéssica	não	está	aqui!!!
Wanderson	ainda	continuava	grudado	no	chão,	preso	por	uma	força	invisível.
—	Achei	que	esse	fosse	o	seu	nome...
—	Jéssica	era	a	pobre	criatura	que	você	estava	torturando.	Ela	foi	só	o	canal	que	eu	usei	para
aparecer	aqui.
—	Quem	é	você?	—	perguntou	Wanderson,	aterrorizado.	Seu	impulso	assassino	tinha	mesmo	o
abandonado	e	o	deixado	a	sós	com	aquela	criatura	assustadora.
Outra	risada	fez	gelar	os	ossos	de	Wanderson.
—	Rainha	das	Sete	Encruzilhadas,	Rosa	Caveira,	Pombagira.	Eu	tenho	vários	nomes...
Wanderson,	que	ainda	estava	sentado,	tentou	fazer	o	sinal	da	cruz,	mas	antes	que	pudesse	concluí-lo,
foi	derrubado	no	chão.
—	Por	favor...
Então,	a	criatura	voou	sobre	ele	e,	com	suas	unhas,	rasgou	o	pescoço	de	Wanderson.
—	Por	fa...av...	—	ele	tentou	dizer,	enquanto	o	sangue	jorrava.
A	mão	direita	da	criatura	pegou	o	prego	e,	sem	precisar	de	um	martelo,	enterrou-o	no	olho	dele.
Wanderson	soltou	um	grito.	A	Pombagira	soltou	uma	risada.
A	família	de	Wanderson	comunicou	seu	desaparecimento	à	polícia	no	dia	seguinte,	mas	seu	corpo
nunca	foi	encontrado.
	
	
	
	
ÍNDIOS
	
O	que	você	vai	ler	a	seguir	é	a	reprodução	de	um	diário,	assinado	pelo	doutor	Gláucio	Ribeiro,
pesquisador	da	UFRJ.	O	documento	foi	encontrado	por	uma	equipe	de	resgate	do	Corpo	de	Bombeiros	do
Pará	enviada	ao	acampamento	“Xavante”,	às	margens	do	Rio	Xingu,	ao	sul	do	município	de	São	Félix	do
Xingu.
A	busca	foi	iniciada	depois	de	um	pedido	de	socorro	emitido	pelo	equipamento	de	rádio	do
acampamento.	Apesar	disso,	quando	as	equipes	de	resgate	chegaram	ao	local,	ninguém	foi	encontrado.
Os	pertences	dos	pesquisadores	e	do	pessoal	de	apoio	foram	recolhidos	pelos	bombeiros	e	entregues
às	autoridades	policiais.
***
2	de	julho	de	2015
Acordei	cedo,	depois	de	passar	a	noite	sem	conseguir	dormir	direito.	Cheguei	a	ligar	a	televisão,	mas
nada	na	programação	me	interessou.	Então,	com	a	adrenalina	a	mil,	resolvi	desistir	do	sono	e	sentei	para
começar	a	escrever	nesse	diário.
Parto	hoje	para	um	trabalho	no	sul	do	Pará	e	quero	deixar	tudo	registrado	nesse	caderno,	que	será
meu	“diário	de	bordo”.	Sou	antropólogo,	especialista	em	culturas	indígenas,	e	há	pelo	menos	dez	anos
estudo	os	povos	da	região	do	Xingu.	Interesso-me	por	culturas	tradicionais	desde	bem	jovem.	Lembro-me
de	brincar	com	meu	irmão	de	forte	apache.	Eu	sempre	queria	ser	o	índio.	Meu	irmão	não	reclamava,
porque	ele	queria	ser	sempre	o	soldado	do	forte.
A	terceira	língua	que	eu	aprendi,	depois	do	português	e	do	inglês,	foi	o	nheengatu,	um	“parente”	mais
moderno	do	tupi	que	os	índios	brasileiros	falavam	quando	os	portugueses	chegaram	por	aqui.	Depois,
aprendi	a	falar	a	língua	guarani,	com	amigos	gêmeos	que	estudavam	na	minha	turma,	no	ensino	médio,	e
tinham	nascido	em	uma	tribo	no	Mato	Grosso	do	Sul.
As	pessoas	sempre	me	perguntaram	para	que	eu	aprendia	essas	línguas.	Onde	eu	iria	usar	esse
conhecimento	se	nem	os	índios	falavam	mais	esses	idiomas,	eles	questionavam.
A	verdade	é	que	eu	nunca	usei	mesmo	essas	línguas	nas	ruas	ou	para	me	comunicar	com	meus	amigos,
à	exceção	dos	gêmeos	guaranis,	com	quem	convivi	por	três	anos.
Mas,	por	outro	lado,	elas	foram	bastante	úteis,	quando	ingressei	no	curso	de	ciências	sociais,	na
Universidade	Federal	do	Rio	de	Janeiro	(UFRJ),	e,	depois,	nas	minhas	pós-graduações	na	área	de
antropologia.	E	certamente	foram	vitais	quando	me	candidatei	a	um	cargo	de	pesquisador	no	Museu
Nacional	da	UFRJ.
Na	minha	carreira	acadêmica,	acabei	aprendendo	mais	duas	línguas:	o	xavante	e	o	caiapó.	Nada	mal,
né?
Mas	voltando	ao	trabalho	que	vamos	fazer	no	sul	do	Pará,	essa	será	minha	quinta	missão	à	Amazônia.
Para	esse	trabalho,	vou	me	juntar	a	outros	três	pesquisadores	do	Museu	Nacional:	meu	ex-orientador	do
doutorado	e	hoje	colega,	doutor	Ariston,	e	duas	arqueólogas,	as	doutoras	Karen	e	Inácia.
O	objetivo	da	missão	é	fazer	o	estudo	de	achados	arqueológicos	em	uma	área	às	margens	do	Rio
Xingu,	onde	será	construído	um	parque	de	extração	de	gás	de	xisto.	O	trabalho	científico	é	uma	exigência
das	autoridades	brasileiras	para	liberar	a	implantação	da	unidade,	que	vai	tirar	o	gás	do	subsolo.
No	reconhecimento	do	terreno,	funcionários	da	empresa	que	construirá	o	parque	energético	relataram
ter	encontrado	pedaços	de	cerâmica,	que	podem	ser	de	grande	interesse	para	a	compreensão	das	culturas
indígenas	que	habitamou	habitaram	esse	local.
Nesse	momento,	estou	terminando	de	arrumar	minha	mochila.	Vamos	passar	cerca	de	um	mês	no	local.
Pode	ser	que	encerremos	o	trabalho	antes	disso,	ou	que	o	trabalho	demore	até	mais.	Vou	levar	alguns
livros,	cadernos	de	anotação,	roupas	impermeáveis	e	muito	repelente.
Nosso	voo	sai	daqui	do	Rio	de	Janeiro	na	tarde	de	hoje.	Já	fiz	o	check-in	do	voo	pela	internet	e	nem
preciso	chegar	tão	cedo	ao	aeroporto.	A	expectativa	é	chegar	ao	local	da	pesquisa	apenas	no	dia	4	de
julho.
Vou	ver	se	consigo	descansar	um	pouco,	porque	a	viagem	será	longa.
4	de	julho
Finalmente	chegamos	ao	nosso	acampamento,	no	sul	do	Pará.	A	viagem	foi	longa	e	estamos	todos
exaustos.	Nosso	voo	fez	uma	conexão	demorada	em	Brasília.	Ali,	antes	de	entrar	no	avião	para	Marabá,
no	Pará,	eu	consegui	tirar	um	cochilo,	na	sala	de	embarque.	Chegamos	em	Marabá	já	de	madrugada.
Fomos	para	um	hotel,	que	era	uma	verdadeira	espelunca.	Só	consegui	dormir	umas	quatro	horas,	apesar
de	muito	cansado,	porque,	logo	cedo,	um	carro	da	construtora	veio	nos	buscar	no	hotel,	para	nos	levar
para	o	sul	do	Pará.	A	viagem	de	carro	até	a	sede	do	município	de	São	Félix	do	Xingu,	mais	ao	sul	do
estado,	demorou	quase	nove	horas.
Chegamos	em	São	Félix	no	final	da	tarde.	Só	passamos	uma	noite	na	cidade,	mas,	pelo	menos	dessa
vez,	consegui	dormir	um	pouco	mais.	Saímos	logo	cedo	em	direção	ao	nosso	acampamento.	Não	há
estradas	até	aqui.	Estamos	no	meio	da	Floresta	Amazônica.	Só	se	chega	aqui	de	barco	ou	de	helicóptero.
Viemos	de	voadeira,	uma	lancha	muito	usada	aqui	na	Amazônia,	e	a	viagem	durou	algumas	horas.
Apesar	do	cansaço	que	estou	sentindo,	o	cenário	é	inspirador	e	isso	me	dá	forças	para	escrever	esse
diário.
A	noite	amazônica	é	hipnótica.	Nesse	momento,	estou	sentado	na	raiz	de	uma	árvore,	olhando	para	o
reflexo	da	lua	nas	águas	do	Xingu.	Meus	ouvidos	captam	sons	de	grilos,	cigarras,	corujas	e	pássaros,
todos	juntos,	como	se	fizessem	parte	de	um	coro	selvagem.
O	acampamento	onde	estamos	é	algo	muito	simples,	sem	qualquer	tipo	de	conforto.	Há	dois
funcionários	de	apoio,	que	dividem	o	espaço	com	a	gente.	Um	índio	caiapó,	que	nasceu	aqui	na	região	e
conhece	a	mata.	Foi	ele	quem	nos	trouxe	de	barco	e	também	será	nosso	guia.	Além	disso,	há	um
funcionário	da	empresa	que	construirá	o	parque	energético	“Xavante”.	Ele	é	o	“gerente”	do
acampamento.	Está	aqui	para	acompanhar	nosso	trabalho	e	fazer	nossa	ponte	com	a	empresa,	caso	seja
necessário.
Já	montamos	nossas	barracas	e	uma	tenda	de	lona	para	armazenar	o	material	coletado.	Além	dos
abrigos	que	montamos,	o	acampamento	tem	uma	pequena	oca	de	madeira	e	teto	de	palha,	que	serve	de
morada	para	o	caiapó,	uma	tenda	de	lona	que	serve	de	dormitório	e	escritório	para	o	funcionário	da
empresa	e	um	pequeno	banheiro	improvisado	também	de	madeira.	Também	há	uma	mesa	ao	ar	livre,	onde
nós	faremos	nossas	refeições.
Vou	encerrar	por	aqui	o	registro	de	hoje.	Estou	muito	cansado	e	preciso	de	uma	boa	noite	de	sono.
Amanhã	vamos	dar	uma	olhada	nos	achados	arqueológicos.
5	de	julho
Os	mosquitos	não	me	deixaram	dormir	na	noite	passada.	Apesar	de	ter	me	enchido	de	repelente,	os
pernilongos	invadiram	minha	barraca	e	ficaram	zunindo	no	meu	ouvido.	Pude	contar	pelo	menos	três
picadas.
Os	mosquitos	são	tão	ferozes	que	eles	nem	parecem	se	intimidar	com	repelentes.	A	Karen,	que	está
em	sua	primeira	missão	na	Amazônia,	também	reclamou	dos	mosquitos	e	disse	que	só	conseguiu	tirar	um
cochilo	rápido.	Os	mais	velhos	da	expedição,	Ariston	e	Inácia,	não	fizeram	nenhuma	reclamação	e	só
riram	do	mau	humor	da	novata.	Ariston	perdeu	as	contas	de	quantas	vezes	viajou	pela	Amazônia.	São	30
anos	estudando	os	índios	amazônicos.	Inácia	também	já	faz	missões	na	Amazônia	há	pelo	menos	duas
décadas.
Tomamos	um	café	da	manhã	improvisado,	à	base	de	beijus	que	nosso	guia	caiapó	preparou	e	de	café
com	açúcar.	Paiakan	é	o	nome	do	nosso	novo	amigo.	Ele	é	simpático	e	gosta	de	puxar	assunto	com	a
gente.	Disse	que	nasceu	na	região,	mas	passou	parte	da	adolescência	em	Belém.	Voltou	para	sua	aldeia
para	se	casar.	Sua	tribo	vive	alguns	quilômetros	rio	acima.	
O	outro	membro	da	equipe	de	apoio,	senhor	Roberto,	acordou	mais	tarde	e	só	chegou	para	tomar	café
da	manhã	quando	já	estávamos	indo	olhar	os	achados	arqueológicos.	Roberto	é	paraense,	mas	não	se
sente	muito	à	vontade	no	meio	da	floresta.	Ele	diz	que	viveu	toda	sua	vida	em	cidades,	já	tendo	passado
por	Belém,	Brasília,	São	Paulo	e	Rio	de	Janeiro,	mas	veio	para	o	acampamento	por	causa	do	bom	salário
oferecido.
Depois	do	café,	Paiakan	nos	levou	até	os	achados	arqueológicos.	Inácia	reclamou	quando	viu	que
eles	haviam	sido	tirados	de	seu	local	original.	O	índio	disse	que,	quando	chegou	ao	acampamento,	cerca
de	um	mês	atrás,	os	objetos	já	tinham	sido	movidos.	Provavelmente	foram	os	funcionários	da	construtora.
Analisamos	os	achados	por	um	bom	tempo.	A	maioria	do	conjunto	era	formada	por	potes	de	barro,
mas	também	havia	restos	de	pequenos	ossos	de	animais.	Karen	tirou	fotos	e	começou	a	catalogá-los.
Logo	depois,	descobrimos	que,	ali	perto,	havia	mais	artefatos.	Eles	estavam	semienterrados	e	não
tinham	sido	movidos	pelo	pessoal	da	construtora.	Era	um	conjunto	de	artesanato	interessante.
Percebemos	que	não	eram	artefatos	caiapós,	o	povo	que	habitava	aquelas	terras.	Paiakan	confirmou
que	não	se	pareciam	em	nada	com	as	panelas	e	vasos	usados	em	sua	aldeia.	Eu	complementei,	dizendo
que,	na	verdade,	aquelas	cerâmicas	eram	diferentes	de	qualquer	padrão	que	eu	já	tivesse	visto,	inclusive
de	outros	povos,	que	habitavam	aquela	região	da	Amazônia.
Ao	final	da	manhã,	recolhemos	os	objetos	que	já	tinham	sido	manuseados	pelos	funcionários	da
construtora	e	os	levamos	de	volta	para	o	acampamento,	que	ficava	a	dois	minutos	de	caminhada	dos
achados	arqueológicos.
No	almoço,	comemos	um	tucunaré	frito,	que	havia	sido	pescado	vinte	minutos	antes	pelo	Paiakan.
Estava	delicioso.	Depois,	Ariston	e	eu	fomos	ambos	descansar,	enquanto	Inácia	e	Karen	seguiram	de
volta	ao	local	onde	estavam	os	objetos	semienterrados.	À	tardinha,	fui	até	o	local	das	escavações	e	vi
que	elas	tinham	encontrado	artefatos	semelhantes	aos	primeiros,	mas	que	estavam	quase	intactos.
Antes	de	encerrar	o	dia	de	trabalho,	isolamos	a	área	e	esticamos	um	pedaço	de	lona	sobre	a
escavação.
À	noite,	nos	sentamos	em	volta	da	fogueira	e	conversamos	sobre	os	achados.	Quem	seriam	os	autores
daqueles	trabalhos	de	artesanato?	Ariston	estava	tão	perplexo	quanto	eu,	porque	não	conhecíamos
aqueles	padrões	artísticos,	apesar	de	ambos	sermos	especialistas	nos	povos	daquela	região.
Inácia	disse	acreditar	que	pertencessem	a	algum	povo	já	extinto.	Ainda	seria	necessário	fazer	exames
mais	detalhados	no	laboratório	da	universidade,	mas	ela	se	arriscava	a	dizer	que	era	algo	que	precedia	a
colonização	portuguesa.
6	de	julho
O	professor	Ariston	e	eu	vasculhamos	o	entorno	do	acampamento	com	Paiakan,	em	busca	de
possíveis	novos	achados,	enquanto	as	duas	arqueólogas	continuaram	trabalhando	na	área	de	escavação.
Choveu	um	pouco	na	manhã	de	hoje.	O	calor	e	a	umidade	dentro	da	mata	tornam	o	clima	quase
insuportável.
Encontramos	uma	imensa	jiboia,	comendo	um	animal,	que	parecia	ser	um	pequeno	macaco.	Paiakan
não	conseguiu	identificar	a	espécie	da	presa.	Quando	chegamos,	a	cobra	já	estava	terminando	de	engolir
sua	refeição.	Ficamos	ali	hipnotizados,	por	um	tempo,	com	aquela	cena.	Depois	ainda	avistamos	um	casal
de	tucanos	se	bicando	na	copa	de	uma	árvore.
Nosso	amigo	índio	nos	ensinou	algumas	técnicas	de	sobrevivência	na	selva.	Muitas	delas	já
conhecíamos,	de	nossos	contatos	anteriores	com	caiapós	e	outros	povos	da	região,	mas,	mesmo	assim,
deixamos	que	nosso	anfitrião	as	mostrasse.
Depois	de	caminharmos	por	cerca	de	três	horas,	não	vimos	nada	de	interesse	arqueológico	ou
antropológico	naquela	região.
Quando	voltamos	ao	local	da	escavação,	Inácia	e	Karen	já	tinham	avançado	bastante	nos	trabalhos	e
estavam	tirando	fotose	catalogando	os	objetos.	É	um	trabalho	demorado,	que	precisa	ser	feito	com
cuidado	para	não	danificar	nada.	Ariston	e	eu	as	ajudamos	nas	escavações.
Agora,	à	noite,	estou	de	volta	à	margem	do	rio	Xingu.	Não	canso	de	admirá-lo.	É	um	rio	majestoso.
9	de	julho
Ariston	e	eu	passamos	os	últimos	quatro	dias,	esquadrinhando	o	terreno	em	volta	do	acampamento,
em	busca	de	novos	achados,	enquanto	a	Karen	e	a	Inácia	continuaram	trabalhando	nas	escavações.	Nos
três	primeiros	dias,	foram	buscas	infrutíferas.	Mas,	no	quarto	dia,	tivemos	muita	sorte.
Foi	o	Ariston	que	fez	a	descoberta,	ao	pisar	em	um	pedaço	de	osso,	numa	trilha	da	floresta.	Ele
inicialmente	achou	que	tinha	pisado	num	galho	seco.	Só	depois	viu	que	era	um	osso.	Paiakan	e	eu
corremos	para	olhar,	acreditando	que	se	tratava	do	osso	de	um	animal.	Mas	era	um	osso	humano,	um
pedaço	de	fêmur.
O	professor	e	eu	chegamos	mais	perto	para	analisar	aquilo.	Tirei	um	facão	da	mochila	e	comecei	a
desmatar	a	área	próxima	de	onde	tínhamos	encontrado	o	osso.	Ainda	estava	decepando	galhos	e	arbustos
quando	ouvi	o	grito	de	surpresa	de	Ariston.	Havia	vários	ossos	humanos	semienterrados	em	uma	camada
de	terra	escura.	Vi	parte	de	pelo	menos	dois	crânios	saindo	da	terra.	Paiakan	ficou	nervoso.	Ele	pediu
para	que	não	mexêssemos	naqueles	ossos.
Era	uma	espécie	de	cova	coletiva,	mas	os	corpos	não	tinham	sido	enterrados.	Pareciam	ter	sido
simplesmente	largados	ali,	naquele	local,	e	só	tinham	sido	cobertos	por	finas	camadas	de	material
orgânico	e	terra	sedimentadas	ali	com	o	tempo.
Paiakan	se	afastou,	sem	querer	olhar	os	restos	humanos.	Ariston	aproximou-se	das	ossadas	e	disse
que	aquele	era	um	achado	incrível.	Seriam	esses	os	responsáveis	pelos	artefatos	de	cerâmica	que
encontramos	nas	escavações?
Eu	não	conseguia	conter	minha	empolgação.	Achei	que	sairíamos	dali	apenas	com	aquelas	peças	de
cerâmica,	mas	tínhamos	encontrado	uma	cova	coletiva.
Aquelas	ossadas	estavam	a	cerca	de	500	metros	de	distância	das	cerâmicas.	Havia	a	possibilidade	de
que	aqueles	esqueletos	pertencessem	à	mesma	tribo	que	tinha	feito	aquelas	peças	de	artesanato.
Depois	da	excitação	inicial	da	descoberta,	fomos	chamar	Inácia	e	Karen.	Não	queríamos	mexer
naqueles	ossos	antes	da	chegada	das	especialistas.
Quando	as	duas	viram	a	nossa	descoberta,	não	conseguiram	esconder	o	entusiasmo.	Karen	fez	várias
fotos	e	disse	que	elas	deveriam	começar	a	trabalhar	naquele	local	imediatamente.	Inácia	concordou	e
levou	seus	equipamentos	de	escavação	até	lá.
No	final	do	dia,	as	arqueólogas	recolheram	uns	poucos	pedaços	de	ossos	e	voltamos	para	o
acampamento.	Inácia	disse	que	seria	preciso	fazer	mais	exames	para	tentar	datar	aquilo,	mas	apostava
que	as	ossadas	eram	bastante	antigas.
Mais	uma	vez	sentamos	em	volta	da	fogueira	depois	do	jantar:	um	ensopado	feito	pela	Karen.	Paiakan
voltou	a	falar	sobre	os	ossos.	Ele	estava	incomodado	com	aquilo	e	disse	que	não	deveríamos	mexer	nas
pessoas	mortas.	Inácia	disse	que	era	exatamente	isso	que	arqueólogos	costumavam	fazer	e	todos	rimos.
Menos	o	caiapó.
Hoje,	decidi	escrever	o	diário	deitado	na	minha	barraca.	O	céu	está	nublado,	então,	provavelmente
não	verei	minha	amiga	lua	refletida	no	Xingu.
10	de	julho
Passamos	o	dia	escavando	a	cova	coletiva	e	catalogando	os	pedaços	de	ossos	encontrados.	Pelo
menos	cinco	crânios	foram	encontrados,	um	deles	de	criança,	além	de	outras	partes	de	corpos	humanos.
Quando	voltamos	para	o	acampamento	já	era	noite.	Um	homem	idoso	estava	com	Paiakan.	Eles
conversavam	na	língua	caiapó.	Karen	e	Inácia	ficaram	surpresas	em	ver	aquele	visitante.
Quando	chegamos,	eles	pararam	de	conversar.	O	idoso	estava	extremamente	nervoso.	Paiakan
também	parecia	angustiado.
Ariston	chegou	perto	do	visitante	e	cumprimentou-o,	em	caiapó.	O	professor	era	fluente	na	língua
indígena.	Eu,	que	conhecia	um	pouco	da	língua,	também	falei	com	o	senhor.	Ele	era	sogro	de	Paiakan.
Nós	o	convidamos	para	jantar	com	a	gente.	Ele	agradeceu,	mas	disse	que	tinha	apenas	ido	até	a
cidade	de	São	Félix,	comprar	algumas	ervas	na	feira,	e	que	precisava	voltar	para	a	aldeia.	Ariston
insistiu	para	que	ficasse,	porque	já	era	noite.	O	velho	indígena	apenas	respondeu	que	estava	acostumado
a	navegar	à	noite.	Ele	despediu-se	e	caminhou	em	direção	ao	rio,	onde	sua	lancha	o	esperava.	Paiakan
acompanhou-o	e	depois	voltou,	ainda	angustiado.
Karen	e	Inácia	já	tinham	voltado	para	suas	barracas	para	se	arrumar	para	o	jantar.	Ariston	e	eu
perguntamos	por	que	seu	sogro	estava	tão	nervoso.	Paiakan	tentou	desconversar,	mas	o	professor	disse
que	tinha	ouvido	o	final	da	conversa.	Eles	falavam	sobre	as	ossadas	encontradas	na	floresta.
Paiakan	respondeu,	então,	que	seu	sogro	era	o	pajé	da	aldeia	e	que	ele	achava	não	devíamos
perturbar	os	mortos.	O	índio	disse	apenas	que	concordava	com	o	sogro	dele.	Os	espíritos	dos	mortos
deveriam	ser	deixados	em	paz.
Fomos	interrompidos	por	Roberto,	o	funcionário	da	construtora,	que	disse	que	o	jantar	estava	pronto.
Hoje	ele	tinha	ficado	de	preparar	a	comida	e	fez	um	macarrão.	Comemos	e	não	voltamos	mais	àquele
assunto	durante	a	noite.
11	de	julho
Hoje	eu	acordei	com	o	grito	da	doutora	Inácia.	Ela	estava	irritada.	Os	objetos	que	tinham	sido
catalogados	e	armazenados	em	caixas,	dentro	de	uma	tenda	específica	para	isso,	foram	espalhados	no
centro	do	acampamento.
A	exceção	eram	os	ossos	que	a	gente	tinha	marcado	com	etiquetas	e	recolhido	no	dia	anterior.	Esses
não	estavam	espalhados	e	nem	guardados	nas	caixas.	Eles	tinham	sumido.	Paiakan	também	saiu	de	sua
barraca	e	nós	dois	olhamos	para	ele.	Karen	e	Ariston	apareceram	em	seguida.
Inácia	estava	muito	irritada.	Eu	puxei	Paiakan	para	um	canto	e	perguntei	se	ele	sabia	quem	havia	feito
aquilo.	Ele	respondeu	que	não,	mas	eu	não	consegui	acreditar.	Ele,	que	tinha	sido	simpático	e
comunicativo	com	a	gente	nos	primeiros	dias,	ficou	esquisito	desde	que	encontramos	as	ossadas	e
pareceu	ainda	mais	estranho	depois	que	o	velho	pajé	conversou	com	ele	na	noite	anterior.
Perguntei	se	ele	tinha	algo	a	ver	com	aquilo.	Ele	ficou	bravo	comigo.	Disse	que	foi	dormir	na	mesma
hora	em	que	todo	mundo	e	só	tinha	acordado	depois	de	ter	ouvido	o	grito	da	Inácia.	Eu,	então,	voltei	para
o	centro	do	acampamento,	onde	os	artefatos	haviam	sido	jogados.
Inácia	se	abaixou	para	começar	a	recolher	o	material	esparramado,	sendo	seguida	por	mim,	Ariston	e
Karen.	Paiakan	ficou	só	olhando.	Seu	olhar	estava	mais	do	que	estranho.	Ele	parecia	estar	com	medo.
Por	sorte,	todas	as	peças	ainda	estavam	etiquetadas,	então	o	trabalho	de	catalogação	não	foi	perdido.
Levamos	cerca	de	20	minutos	para	colocar	tudo	nas	caixas.	Inácia	estava	um	pouco	mais	calma,	mas	pude
perceber	que	ela	também	suspeitava	de	Paiakan.
Em	seguida,	fomos	até	o	local	onde	estavam	as	ossadas.	Não	fiquei	surpreso	ao	ver	que	os	ossos
tinham	sido	colocados	de	volta	ao	lugar.	Provavelmente,	o	sogro	de	Paiakan	tinha-o	orientado	a	colocar
os	restos	mortais	de	volta	ao	seu	local	de	origem,	para	não	“perturbarmos	os	espíritos	dos	mortos”.	Eu
levei	os	ossos	de	volta	para	o	acampamento	e	recoloquei-os	dentro	das	caixas,	enquanto	Ariston,	Karen	e
Inácia	deram	prosseguimento	aos	trabalhos	de	escavação	da	cova.
Até	o	final	do	dia,	já	tinham	sido	encontrados	os	ossos	de	pelo	menos	mais	três	pessoas.	Um	deles
tinha	uma	bala	alojada	no	crânio.	Inácia	pegou	o	osso	com	cuidado	e	viu	que	era	um	projétil	usado	em
mosquetes	antigos.	As	duas	arqueólogas	se	entreolharam	e	vibraram	com	a	descoberta.	Aquilo	certamente
será	útil	para	datar	as	ossadas.
12	de	julho
No	dia	seguinte,	as	escavações	continuaram.	Mais	esqueletos	foram	encontrados	e,	entre	a	costela	de
um	deles,	havia	sido	cravada	uma	espada.	Inácia	deu	um	grito	de	satisfação	e	sorriu.	Era	uma	descoberta
extraordinária.
A	peça	era,	certamente,	do	período	do	Brasil	Colonial.	Nós	apostávamos	que	era	da	época	dos
bandeirantes,	os	exploradores	que	entraram	no	interior	do	país	procurando	riquezas	minerais	e
aprisionandoíndios.
No	decorrer	do	dia,	outros	dois	punhais	de	metal,	certamente	do	mesmo	período,	foram	encontrados
junto	das	ossadas.	Só	paramos	os	trabalhos	quando	a	escuridão	ficou	total.	Voltamos	para	o	acampamento
satisfeitos,	com	as	armas	e	os	ossos	que	tinham	sido	feridos	pelos	artefatos.
Comunicamos	felizes	as	descobertas	para	o	Roberto.	Ele	não	compartilhou	do	nosso	entusiasmo	de
cientistas,	mas	nos	parabenizou.	Paiakan,	ele	disse,	havia	comido	mais	cedo	e	já	tinha	ido	deitar.
Jantamos	rápido	e,	depois,	nossa	equipe	reuniu-se	na	tenda	que	armazenava	os	artefatos	recolhidos.
Acendemos	um	refletor	alimentado	por	um	gerador	de	óleo	diesel	e	pudemos	analisar	com	mais	detalhes
as	armas	encontradas.
Com	uma	lupa,	Inácia	percebeu	que	havia	três	pequenas	letras	em	um	dos	punhais,	bem	próximo	ao
cabo.	“F.M.X”.	Tratavam-se	provavelmente	das	iniciais	do	proprietário	da	arma.	As	duas	arqueólogas
mal	podiam	conter	sua	felicidade.
O	acampamento	contava	com	um	equipamento	de	radiocomunicação	e	com	um	roteador	que
amplificava	o	sinal	de	internet,	recebido	por	satélite.	Graças	a	essa	conexão	sem	fio	com	a	rede,	Karen
conseguiu	enviar	as	fotos	para	um	historiador	conhecido	dela,	especializado	no	período	das	bandeiras.
Estou	de	volta	à	minha	barraca	e	já	é	tarde	da	noite.	Mal	consigo	dormir,	empolgado	com	as
descobertas	de	hoje.	Acho	que	elas	podem	lançar	uma	luz	sobre	a	quem	pertencem	as	ossadas	e	os
artefatos	encontrados	no	acampamento.
13	de	julho
Hoje	a	doutora	Inácia	acordou	indisposta,	sentindo	um	mal-estar.	Ela	disse	que	queria	tirar	a	manhã
para	descansar.	Mas	também	tivemos	boas	notícias.	A	Karen	estava	radiante.	Ela	disse	ter	recebido	um	e-
mail	do	colega	historiador.	Enquanto	tomávamos	café	da	manhã,	ela	nos	leu	a	mensagem	recebida.
Segundo	o	historiador,	as	iniciais	podem	se	referir	a	Fernão	Manuel	Xavier,	um	bandeirante
português	que	liderou	uma	pequena	expedição	ao	longo	do	rio	Xingu,	entre	1689	e	1691.	Sua	história	não
costuma	aparecer	nos	livros	de	história	e	poucas	fontes	oficiais	fazem	referência	a	ele	ou	a	sua
“bandeira”.
No	entanto,	de	acordo	com	o	historiador,	há	um	registro	manuscrito	de	sua	viagem	pelo	interior	do
Brasil,	que	está	hoje	arquivado	na	Biblioteca	Nacional	do	Rio	de	Janeiro.	Como	ele	já	tinha	pesquisado
aquela	“bandeira”	e	tinha	uma	cópia	do	registro	em	sua	casa,	pudemos	conhecer	vários	detalhes	de	sua
expedição.	Seu	grupo	era	composto	por	cerca	de	40	bandeirantes	e	mais	algumas	dezenas	de	índios
paulistas.
O	objetivo	de	Fernão	Manuel	Xavier,	que	já	vivia	há	15	anos	no	Brasil	quando	começou	a	expedição,
era	encontrar	ouro	no	interior	do	país.	Entretanto,	ele	foi	mal	sucedido	e,	por	algum	motivo,	seu	nome
acabou	sendo	deixado	de	lado	pela	história.
No	manuscrito	de	Xavier,	prosseguiu	o	historiador,	o	bandeirante	relata,	com	detalhes,	a	luta	feroz
com	uma	tribo	no	meio	da	expedição.	Pelo	relato,	quando	os	bandeirantes	chegaram	onde	hoje	é	o	sul	do
Pará,	integrantes	de	seu	grupo	começaram	a	desaparecer,	um	em	cada	noite.	Depois	de	um	mês,	o	grupo
de	40	bandeirantes	estava	reduzido	à	metade.	Cerca	de	dez	índios	paulistas	também	haviam	sumido.
Então	um	dia,	contou	o	historiador,	os	corpos	foram	encontrados.	Estavam	todos	pendurados	de
cabeça	para	baixo,	amarrados	nos	galhos	das	árvores,	com	toda	a	pele	do	corpo	arrancada.	Fernão
Manuel	Xavier	sabia	que	era	obra	de	alguma	tribo	feroz	da	região.	Ele	chamou	aqueles	índios	de
“juruparis”,	nome	de	uma	figura	mitológica	da	cultura	indígena	brasileira	que	os	cristãos	associavam	ao
diabo.
O	bandeirante	preparou	seus	homens	para	ficarem	alertas.	Quando	os	índios	atacassem,	eles	estariam
prontos	para	contra-atacar.	Naquela	noite,	houve	a	tentativa	de	matar	mais	um	bandeirante	e	seis	juruparis
foram	capturados.	Cinco	foram	mortos,	tiveram	suas	peles	arrancadas	e	foram	pendurados	nas	árvores,
assim	como	os	índios	fizeram	com	seus	homens.	Apenas	um	jurupari	foi	mantido	vivo,	para	que
mostrasse	onde	ficava	sua	aldeia.
O	grupo	de	bandeirantes	avançou	pela	mata	até	chegar	à	aldeia.	Foi	uma	verdadeira	carnificina.
Pegos	de	surpresa,	os	índios	ainda	tentaram	lutar	bravamente	e	infligiram	baixas	aos	agressores,	mas
acabaram	sucumbindo.	Cerca	de	cem	homens,	mulheres,	velhos	e	crianças	juruparis	foram	mortos	a	tiros,
facadas	e	golpes	de	espada.	Tudo	foi	destruído.	Toda	a	tribo	foi	exterminada	e	nunca	mais	ninguém	ouviu
falar	deles.
Algumas	mulheres	e	crianças	também	tiveram	suas	peles	arrancadas	e	foram	penduradas	de	cabeça
para	baixo.	Os	corpos	se	amontoavam	ao	redor	da	aldeia.	Depois	do	massacre,	os	bandeirantes	seguiram
com	a	expedição	rio	abaixo.
Karen	olhou	para	a	gente	sorrindo	e	disse	que	elas	tinham	acabado	de	descobrir	os	traços	de	uma
tribo	indígena	desaparecida	há	mais	de	300	anos.	Todos	nos	abraçamos	e	fomos	até	a	Inácia,	contar	a
novidade.
A	velha	arqueóloga,	apesar	de	ainda	indisposta,	reuniu	forças	para	se	levantar	e	nos	abraçar.	A
felicidade	era	aparente	entre	todos	nós.	É	claro	que	não	estávamos	felizes	pela	destruição	da	tribo,	mas
por	redescobrir	aquele	povo.
Corri	para	contar	a	novidade	para	o	Roberto.	Ele	nos	deu	os	parabéns	novamente.
Paiakan	não	estava	no	acampamento.	Roberto	disse	que	ele	tinha	saído	para	pescar	algo	para	o
almoço.	
Passamos	a	manhã	por	ali	mesmo,	esperando	que	Inácia	tivesse	alguma	melhora	e	pudéssemos	voltar
às	ossadas.	Com	sorte	poderíamos	encontrar	mais	objetos.
Paiakan	voltou	da	pescaria,	com	três	grandes	peixes	em	seu	cesto.	Ele	preparou	o	pescado	e,
enquanto	almoçávamos,	a	Karen	contou	a	novidade	para	nosso	companheiro	caiapó.	Quando	ela	falou
que	havia	uma	grande	possibilidade	dos	ossos	e	cerâmicas	pertencerem	a	uma	tribo	antiga,	que	tinha	sido
massacrada	por	bandeirantes,	Paiakan	quase	se	engasgou	com	uma	espinha	de	peixe	que	ele	mastigava.
Ele	nos	olhou	espantado	e	disse	que	não	deveríamos	perturbar	espíritos	antigos,	principalmente	as
almas	daqueles	que	pereceram	de	forma	violenta.	Tudo	o	que	eles	esperavam	era	descansar	em	paz	na
floresta,	disse	Paiakan.	Depois,	pediu	licença,	levantou-se	e	saiu	em	direção	à	sua	barraca,	deixando	sua
comida	no	prato.
Nós	quatro	ficamos	em	silêncio	por	um	longo	período.	Depois	que	todos	terminamos	de	comer,	Karen
preparou	um	prato	e	levou	para	Inácia,	que	se	mantinha	deitada	em	sua	barraca.	Já	o	nosso	colega
funcionário	da	construtora	pediu	licença	e	voltou	para	sua	tenda.	Ele	disse	que	comunicaria	a	nossa
descoberta	aos	seus	chefes.
Fiquei	um	tempo	conversando	com	o	professor	Ariston	e	depois	fui	fazer	uma	sesta	na	minha	barraca.
À	tarde,	Inácia	já	estava	se	sentindo	melhor,	mas	achou	melhor	permanecer	deitada.	Então,	Ariston	e
eu	acompanhamos	a	Karen	até	a	cova.	Continuamos	escavando	em	busca	de	novas	descobertas,	mas	não
achamos	nada	que	se	equiparasse	àquelas	armas.	Karen	etiquetou	os	ossos	com	grandes	tarjas	numeradas,
fez	medições	e	tirou	fotos	do	local.
Depois,	com	cuidado,	começamos	a	retirar	os	restos	mortais	que	já	tinham	sido	completamente
escavados.
Fizemos	algumas	viagens	entre	a	cova	e	o	acampamento,	até	que	todos	os	ossos	já	desenterrados
fossem	guardados	em	caixas,	na	tenda	dos	achados	arqueológicos.
Inácia	jantou	com	a	gente.	Ela	disse	que	estava	mais	disposta	e	que,	no	dia	seguinte,	provavelmente
faria	novas	escavações	próximas	ao	local	onde	encontramos	as	ossadas.	Todos	ficamos	aliviados	com	a
recuperação	e	a	disposição	da	professora.
14	de	julho
Hoje,	Ariston	e	as	duas	arqueólogas	prosseguiram	com	os	trabalhos	de	escavação	das	ossadas.	Eu
fiquei	no	acampamento,	porque	Paiakan	disse	que	queria	conversar	comigo.	Sentamos	à	mesa	e	ele	me
disse	que	tinha	visto	algo	rondando	o	acampamento	ontem.	Ele	tentou	identificar	os	visitantes,	mas	não
conseguiu,	porque	estava	muito	escuro.
Ele	estava	assustado.	Achava	que	eram	os	espíritos	dos	juruparis.	Ele	disse	que	rapidamente	acendeu
um	cachimbo	para	fazer	fumaça	e	não	permitir	que	os	mortos	entrassem	em	sua	oca.	Os	caiapós	acreditam
queos	espíritos	temem	fumaça.
Conversei	com	ele	e	disse	que,	apesar	de	não	partilhar	de	suas	crenças,	respeitava	seus	costumes	e
seus	temores,	mas	que	nós,	pesquisadores,	tínhamos	que	fazer	nosso	trabalho.
15	de	julho
Hoje	de	madrugada,	eu	fui	acordado	por	barulhos	estranhos	em	volta	da	minha	barraca.	Fiquei	quieto,
temendo	ser	um	animal	selvagem.	Percebi	que	alguma	coisa	estava	rondando	por	ali.
Depois	de	algum	tempo,	percebi	que	o	visitante	tinha	ido	embora.	Saí	da	minha	barraca	e	vi	que
estava	tudo	em	ordem,	mas	não	vi	nenhum	vestígio	de	animal.
Acabei	dormindo	até	mais	tarde.	Os	trabalhos	de	escavação	da	cova	coletiva	prosseguem.	Alguns
poucos	ornamentos	indígenas	têm	sido	encontrados.	Ariston	e	eu	estamos	tentando	descobrir	se	esses
juruparis	seriam	jês,	tupis	ou	de	algum	outro	grupo	étnico.	Ainda	não	temos	elementos	suficientes	para
saber.
16	de	julho
Estamos	todos	preocupados	e	assustados.	Quando	acordei,	pela	manhã,	Paiakan	disse	que	o	Roberto
havia	sumido	do	acampamento.	Não	sabemos	onde	ele	foi.	O	caiapó	e	eu	fomos	até	sua	tenda	e	ele	não
estava	mesmo	lá.	Não	havia	nada	bagunçado	e	aparentemente	estava	tudo	no	lugar.	Apenas	o	equipamento
de	radiocomunicação,	ligado	em	baterias	de	carro,	emitia	um	som	de	estática.
Gritamos	o	nome	dele	algumas	vezes,	mas	não	tivemos	nenhuma	resposta.
Paiakan	demonstrou	um	grande	nervosismo.	Procurei	acalmá-lo,	dizendo	que	provavelmente	ele	tinha
ido	dar	uma	volta	pela	mata.	O	índio	disse	que	não	acreditava	nisso.	Roberto	normalmente	só	saía	do
acampamento	sozinho	para	ir	até	o	rio	e	só	entrava	na	mata	se	estivesse	acompanhado	de	Paiakan.	Ele
tampouco	estava	no	rio	e	os	dois	barcos,	a	voadeira	usada	para	ir	até	a	cidade	e	a	canoa	usada	para
pescar	nas	proximidades,	estavam	no	mesmo	lugar.
Mesmo	assim,	pedi	a	Paiakan	que	déssemos	uma	volta	em	torno	do	acampamento,	para	ver	se	o
acharíamos.	O	índio	respondeu	que	era	uma	perda	de	tempo,	mas	disse	que	procuraria	pela	mata.
Desligamos	o	rádio	e	fui	acordar	o	professor	Ariston.	Contei	a	ele	o	que	havia	acontecido	com	o	nosso
colega	e	expliquei	que	sairia	em	busca	dele.
Caminhamos	pela	mata	por	cerca	de	duas	horas,	sem	qualquer	sinal	do	Roberto,	e	voltei	para	o
acampamento	com	grande	desânimo.	Meus	três	amigos	pesquisadores	também	ficaram	desolados	ao
saber	que	não	tínhamos	encontrado	o	colega.
Paiakan	ficou	repetindo	que	eram	os	espíritos	que	havíamos	perturbado.
Resolvemos	ficar	todos	no	acampamento	hoje.	As	escavações	podiam	esperar,	pelo	menos	até	o	dia
seguinte.	Decidimos	que,	até	descobrirmos	o	que	tinha	acontecido	com	Roberto,	deveríamos	ficar	ali.
Mas	já	é	noite	e	Roberto	ainda	não	chegou	ao	acampamento.	Se	ele	não	voltar	até	amanhã	de	manhã,
decidimos	que	vamos	buscar	ajuda.
17	de	julho
Hoje	fui	acordado	logo	cedo.	Ainda	nem	tinha	amanhecido	quando	Paiakan	me	chamou	na	minha
barraca.	Ele	tinha	o	rosto	lívido	e	estava	ofegante.	Demorou	um	tempo	até	que	ele	conseguisse	falar
alguma	coisa.	Ele	disse	que	tínhamos	que	ir	embora,	que	precisávamos	deixar	o	acampamento	o	mais
rápido	possível.
Tentei,	em	vão,	acalmá-lo.	Ele	disse	que	não	devíamos	ter	mexido	naqueles	ossos,	que	ele	tinha	nos
alertado	sobre	isso	e	que	agora	os	espíritos	daqueles	mortos	estavam	querendo	vingança.	O	caiapó
estava	descontrolado.
Perguntei	por	que	ele	estava	tão	nervoso.	Ele	disse	que,	dessa	vez,	conseguiu	ver	os	espíritos
rondando	o	acampamento.	Eram	figuras	horríveis.	Ele	disse	que	ficou	com	tanto	medo	que	só	pensou	em
se	encolher	em	sua	oca	e	rezar	para	que	fossem	embora.	Paiakan	acreditava	que	esses	espíritos	tinham
pegado	Roberto.
Pedi	mais	uma	vez	para	que	ele	ficasse	calmo	e	esperasse	ali,	porque	eu	acordaria	o	Ariston	e
repassaria	seu	relato.	Ele	viu	quando	eu	acordei	o	professor.
Ao	ser	acordado	de	madrugada,	Ariston	achou	que	tínhamos	alguma	notícia	sobre	Roberto.	Eu	disse
que	não	e	comecei	a	contar	o	que	o	caiapó	tinha	me	falado.	Eu	queria	que	o	professor	conversasse	com	o
índio,	porque	aquele	descontrole	de	Paiakan	só	prejudicaria	a	nossa	tarefa	de	localizar	o	nosso	colega
desaparecido.
Quando	olhei	para	trás,	o	caiapó	não	estava	mais	no	acampamento.	Ele	tinha	subido	na	voadeira	e
ligado	o	motor.	Ainda	tentei	correr	em	sua	direção,	mas	ele	saiu	rio	acima,	em	direção	à	sua	aldeia.
Ariston	e	eu	ficamos	arrasados.	Primeiro,	um	sumiço	inexplicável,	agora	outro	integrante	do
acampamento	fugia	dali,	com	nosso	único	barco	a	motor.	A	situação	não	era	nada	boa.
Achei	que	era	hora	de	chamar	ajuda	pelo	rádio	ou	pela	internet.	Ariston	concordou	e	fomos	os	dois
para	a	tenda	do	Roberto.	Mas,	depois	de	várias	tentativas,	não	conseguimos	nenhuma	resposta.
Tentamos	várias	frequências	e	só	ouvimos	ruídos	de	estática.	A	internet	também	estava	fora	do	ar.
Quando	a	Karen	e	a	Inácia	acordaram,	contamos	sobre	a	deserção	do	Paiakan.	Agora	éramos	só	nos
quatro	e	não	conseguíamos	pedir	ajuda.	Decidimos	continuar	no	acampamento,	até	porque	nossas	únicas
opções	eram	remar	com	a	canoa	pelo	rio	ou	entrar	em	contato	com	alguém	pelo	rádio.
A	opção	da	canoa	foi	logo	descartada.	Demoramos	horas	para	viajar	da	cidade	de	São	Félix	até	o
acampamento	em	um	barco	a	motor.	Quem	sabe	quanto	tempo	demoraria	se	fizéssemos	o	trajeto	de
canoa?	Se	fôssemos	rio	acima,	talvez	encontrássemos	a	aldeia	de	Paiakan.	Mas	sequer	sabemos	onde	ela
fica	e	a	que	distância.
A	única	opção	realmente	viável	é	tentar	comunicação	com	equipes	de	resgate,	mas	até	agora	não
conseguimos	contato	com	ninguém.
De	qualquer	forma,	não	podemos	nos	desesperar.	Apesar	do	sumiço	do	Roberto,	não	acredito	que
haja	algum	risco	imediato	para	a	nossa	segurança.	O	Roberto	desapareceu,	mas	não	sabemos	o	que
aconteceu	com	ele.	Ele	pode	ter	se	perdido	na	mata,	se	afogado	no	rio	ou	sido	atacado	por	um	animal
selvagem.
Mas	acho	improvável	que	ele	tenha	sido	atacado	por	um	animal	selvagem,	porque	não	vimos	nenhuma
pegada	de	grande	felino	nas	redondezas	do	acampamento.
Logo,	não	vejo	motivos	para	desespero.	Por	via	das	dúvidas,	Karen	e	Inácia	decidiram	dormir	na
mesma	barraca.	Ariston	preferiu	dormir	desacompanhado.	E	eu	também	estou	sozinho	na	minha	própria
barraca.
Vamos	ver	o	que	podemos	fazer	amanhã.
18	de	julho	—	madrugada
Meu	Deus,	estou	tão	nervoso	que	nem	sei	se	vou	conseguir	escrever	aqui.	Fui	acordado	com	um	grito.
Parecia	ser	o	professor	Ariston.	Eu	me	levantei	rápido	da	minha	barraca	e	corri	para	ver	o	que	tinha
acontecido.	Sua	barraca	estava	caída	no	chão,	toda	desarrumada,	mas	não	havia	sinal	dele.	Ó,	Deus,	meu
coração	está	disparado.	Peguei	minha	lanterna	e	procurei	em	todas	as	partes	do	acampamento.	Cheguei	a
buscar	dentro	da	mata,	próximo	ao	acampamento,	mas	não	encontrei	nada.
Chamei	seu	nome	várias	vezes	e	não	tive	respostas.	Acabei	acordando	a	Karen	e	a	Inácia,	com	meus
gritos.	Nós	três	recolhemos	nossas	coisas	e	viemos	para	a	tenda	principal.	As	duas	estão	chorando	muito
no	dormitório,	enquanto	eu	escrevo	meu	relato,	aqui	no	escritório.	Estou	olhando	a	porta	a	todo	momento.
Minha	mão	está	tremendo	tanto,	que	a	letra	está	quase	ficando	ilegível	e	nem	sei	se	vou	conseguir	ler
depois	o	que	eu	mesmo	estou	escrevendo.
Senhor,	todo	poderoso,	nos	proteja,	estou	escutando	barulhos	lá	fora.
18	de	julho	—	noite
Essa	madrugada	foi	assustadora.	Estávamos	nós	três	na	tenda	principal,	que	servia	de	escritório	e
dormitório	para	o	Roberto,	quando	comecei	a	ouvir	barulhos	estranhos	lá	fora.	Chamei	a	Karen	e	a	Inácia
e	pedi	que	elas	fizessem	silêncio.	Era	um	som	de	pegadas.	Depois	ouvimos	alguém	mexer	nas	nossas
barracas	lá	fora.	Por	fim,	escutamos	alguns	sons	que	pareciam	vozes	humanas,	mas	eram	indecifráveis.
Parecia	que	estavam	falando	de	trás	para	frente.	Não	se	parecia	com	nenhuma	língua	indígena	que	eu
conhecesse.	O	som	parecia	o	de	uma	fita	cassete	ou	de	uma	fita	de	vídeo	rebobinada,	em	uma	velocidade
normal.	E,	no	meio	das	vozes,	havia	roncos,	parecidos	com	de	leões,	e	sibilos,	como	se	fossem
serpentes.	O	vento	tambémcomeçou	a	soprar	forte,	fazendo	a	tenda	tremer.
Depois,	os	sons	e	o	vento	cessaram.	Precisei	de	alguns	minutos	para	criar	coragem	e	olhar	lá	fora.
Não	havia	mais	ninguém	(se	é	que	houve	alguém	ou	algum	animal	ali).	Mas	todas	as	barracas	tinham	sido
jogadas	no	chão.
Mas	o	mais	chocante	foi	ver	todos	os	objetos,	que	levamos	tanto	tempo	para	catalogar,	esparramados
pelo	chão.	Dessa	vez,	os	ossos	também	estavam	espalhados.
Karen	e	Inácia	voltaram	a	chorar	quando	viram	tudo	desarrumado.	Acho	que	dessa	vez,	o	motivo	das
lágrimas	não	era	o	trabalho	jogado	fora.	Elas	estavam	realmente	com	muito,	muito	medo.	O	choro	era	de
desesperança.	As	duas	mulheres,	assim	como	eu,	estamos	muito	assustados	com	tudo	isso.	A	internet	está
mesmo	fora	do	ar,	mas	finalmente	consegui	travar	comunicação	com	os	bombeiros	pelo	rádio	agora	há
pouco.
O	problema	é	que	a	comunicação	foi	interrompida	no	meio.	Então,	não	posso	ter	certeza	de	que	eles
entenderam	nossa	situação	e	se	eles	vão	mandar	alguém	aqui	para	nos	ajudar	e	buscar	nossos	dois
colegas	desaparecidos.
Passamos	o	dia	dentro	dessa	tenda.	O	único	momento	em	que	deixei	o	local	foi	por	volta	de	meio-dia,
depois	de	ouvir	o	som	de	um	barco	cortando	o	rio,	mas	quando	eu	cheguei	até	a	margem,	ele	já	tinha
passado.	Com	o	barulho	do	motor,	a	pessoa	provavelmente	não	me	ouviu	chamando.
A	boa	notícia	é	que	temos	suprimento	para	vários	dias	dentro	dessa	tenda.	E	não	precisamos	nos
arriscar	fora	dela,	caso	os	invasores	—	rezo	eu	para	que	sejam	apenas	animais	—	voltem	a	rondar	o
acampamento.	A	má	notícia	é	que	essa	tenda	não	é	segura.	Só	contamos	com	uma	lona	para	nos	separar
do	que	quer	que	esteja	lá	fora.
Karen	e	Inácia	choraram	durante	boa	parte	do	tempo,	mas	parece	que	elas	agora	estão	resignadas	com
a	situação.	Consegui	passar	uma	fagulha	de	esperança	para	elas	depois	da	minha	comunicação	com	os
bombeiros.
Está	chovendo	lá	fora	e	hoje	devo	passar	a	noite	em	claro.	Estou	cansado,	mas	não	posso	dormir.	Há
algo	lá	fora,	que	atacou	nossas	barracas	na	madrugada	passada	e	pode	tentar	algo	contra	a	tenda	onde
estamos	hoje.	Descobri	que	havia	uma	espingarda	de	caça	guardada	no	armário,	aqui	dentro.	Já	estou
com	a	arma	posicionada	ao	meu	lado,	enquanto	escrevo	meu	relato.
De	qualquer	forma,	sinto	que	a	ajuda	está	a	caminho.	Só	temos	que	esperar	sua	chegada	nas	próximas
horas.
19	de	julho
Estou	com	muito	medo.	Dá	para	perceber	pela	minha	letra	tremida.	Estou	escrevendo	apenas	para	ver
se	consigo	controlar	meus	nervos	e	não	deixo	o	pavor	tomar	conta	de	mim.	Eu	tirei	um	cochilo	em	cima
da	mesa,	mas	fui	acordado	agora	de	madrugada	por	barulhos	do	lado	de	fora	da	tenda.	As	duas	mulheres
estão	dormindo	aqui	ao	lado	e	não	sei	se	devo	acordá-las.
Enquanto	uma	mão	escreve,	com	dificuldade,	esse	relato,	a	outra	está	posicionada	sobre	a	espingarda.
Aquelas	vozes	voltaram.	São	as	mesmas	coisas	que	estavam	aqui	na	madrugada	de	ontem.	E	agora	tenho
certeza:	não	são	animais.
Não	quero	admitir,	porque	tenho	que	manter	minha	sanidade,	mas	não	consigo	parar	de	pensar	no	que
o	Paiakan	disse	sobre	os	espíritos	dos	mortos.	Enquanto	escrevo,	peço	a	Deus	para	nos	guardar	de
qualquer	mal.
Deus	santo,	o	barulho	parece	estar	mais	perto.	Essas	coisas	estão	se	aproximando	da	tenda.	Elas
estão	aqui	ao	redor,	cercando	a	gente	(algumas	letras	ilegíveis	e	o	diário	termina).
	COMBUSTÃO
	VODU
	AMANHÃ VAI SER PIOR
	SOTERRADOS
	MENSAGEM INSTANTÂNEA
	TEM UMA COISA DENTRO DE MIM
	PRISÃO PERPÉTUA
	O ASSASSINO HESITANTE
	ÍNDIOS

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