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C()NSIDERA~6ES INICIAIS No amanhecer do terceiro milenio se des- cortina urn cenario de questionamentos ao im- perio da razao, questionamentos ao domfnio hegem6nico da racionalidade tecnica e, princi- palmente, 0 emergir dasubjetividade valorizada como uma via da plenitude humana. A arte possibilitarecursos aos processos cognitivos, que, provavelmente, de outra forma n50 seriam captados. Boa parte da divulgac;:ao do "pensamento existencialista',' foi veiculada pela literatura e pelo teatro. 0 apelo eo registro da necessidade de compreender 0 ser humano em sua globaEdade tern encontrado eco no cinema e no teatro. Apec;:ajorriada de urn Poerna, que no Brasil foi encenada pela atriz Gloria Menezes, desvela 0 cotidiano de uma paciente oncologica, que opta e consente em participar de urn programa expe- rimental. Trata-se de uma professora universita- ria, intelectualmente brilhante e a pec;a mostra suas interac;:6es com os profissio'nais de saude. Aparentemente estavam todos os profissionais imbtifdos pela maxima hipocratica de nao causar o mal. Provavelmente, do ponto de vista dos canones da ciencia, os atos dos profissionais eram corretos, porem, a partir de uri) olhar aten- to a subjetividade da paciente, ihCimeras ques- toes poderiam sercolocadas. Na historia do cinema varios saoos filmes que apontam dilemas eticos, que VaG desde a eutanasia, passa porquest6es ambientais ate problematicas de saude m'ental, como e 0 caso do filme Laranja Mecanica. '/<\ ciencia noo e 0 valor mais alto 00 qual todos os outros va/ores devem estar subordinados." Papa Pio XII Schon7, no Capftulo 1 de sua obra Educating, the ReflectivePractioner, abordci a crise de confian- c;:ano conhecimento profissional e aponta para a necessidade de se preparar profissionais para as demandas dapratica. Cita, como exemplos a Medicina, 0 Direito e a Administrac;:ao. Afirma 0 autor: Na topografiairregular da pratica profissional ha'um terreno alto e firme de onde se pode ver um pantano. No planoelevado, problemas possfveis de serem administrados prestam~se a solw;oes atraves da aplica<;ao de teorias e techicas baseadas em pesqui- sa. Na parte mais baixa, pantanosa, problemas ca6ti- cos e confusos desafiam as solu<;oes tecnicas. A iro- nia dessa situa<;aqe 0 fato de que os problemas do plano elevado tendem a ser relativamente pouco importantes para os indivfduosou oconjunto da sociedade, 'linda que seu interesse tecnico possa ser muito,grande, enquanto no pantano estao os probl~ mas de interesse humano. 0 profissional deve fazer suas escolhas. Ele permanecera no alto, onde pode resolver problemas relativamente pouco importan- tes, de acordo com pad roes de rigor estabelecidos, au descera ao pantano dos problemas importantes e da investiga<;ao nao-rigorosa? Tal dilema tem duas fontes: em primeiro lugar, a ideia estabelecida deum conhecimento profissional rigoroso, baseado na ra- cionalidade tecnica, e, em segundo, a consciencia de zonas de pratica pantanosas e indeterminadas, que estao alem daquele conhecimento. A racionalidade tecnica e uma epistemologia da pratica derivada da filosofia 'positivista, construfda nas pr6prias funda- <;oesda universidade modema. Sendo a reaIidade, social mente construfda, pluridimensional e complexae sendoos codigos quase sempre compastos de prescric;:oes au 11 regras, tornam-se insuficierites para a realidade ou mesmo dificeis de aplicar e interpretar. Mes- mo aqueles profissionais com rigorasa forma~ao tecnica e cientffica pod em se deparar em seu co- tidiano com fenomenos complexos ecom de~ . mandas de alta exigencia de tomada de decisao. Em 1978/1979, elaborou-seo Relat6rio Bel- mont. Uma comissao constitufda por 11 profis- sionais de. areas e disCiplinas diversas, que na epoca, nos Estados Unidos, eram membras da Comissao Nacional para a Prote~a() dos Sujeitos Humanos da Pesquisa Biomedica, responsabili- zou-se pela sua reda~ao. No Relat6rio Beln10nt encontravam-se tres princfpias: (1) princfpio do respeito as pessc:ias; (2) princfpia da beneficencia; (3) princfpio da justi~a. . o problema do Relat6rio Belmont e que se re- feria apemis a questoes eticas da experimenta<;:ao com seres humanos. Ficava fora do seu horizonte ocampo da pratica dfnica e assistencial.4 Foi entao que Tom Beauchamp e James F. Childress publicaram 0 livra Principles ofBioinedical Ethics em 1979, com 0 objetivo explfcito de analisar siste- maticamente princfpios morais que deveriam ser aplicados a biomedicina.Foram quatro os princf- pios elencados por Beauchamp e Childress:! (1) princfpio do respeito da autonomia; (2) princfpio da nao-maleficencia; (3) princfpio da beneficencia; (4) princfpio dajusti<;:a.Apresentaram urn enfoque claramente principialista, ou seja, compreendiam a eticabiomedica como uma etica aplicada, no sentido de que seu principal objetivo{aplicaros princfpios eticos gerais a problemas da pratica medica assistencial. Kipper e C1otetS, ao analisarem os princfpios da beneficencia e ·nao-maleficencia, afirmam que: OPrindeiq.nsmp_ouj3i.oetjca dos principios tentabus- car solu<;:6espara os dilemaseticos a partir de uma perspectiva aceitavel pelo conjunto das pessoas envolvidas no processo por meio dos principios sele- cionados. 0 Principialismo e uma etica que nao vai se adaptar a todas as teorias etici;ls nem ao modo de apreciar 0 que e bom ou ruim de cada uma d.aspes- soas de nossa sociedade. Todo 0 principio apresenta uma perspectiva vanda, po rem parcial, das responSa- bilidades .das pessoas que utilizam. Cabe destacar que 0 Principialismo foi pensado e desenvolvido _. -------------~_._"_._-_._'""_. 'I -j '.~ ·numa sociedade caracterizada pelo pluralismomoral i~ e para solu<;:aode problemas concretos. Naoha, por-· . tanto, uma metaffsica ou ontologia especificas per:- . meando todosos principios dessa teoria: .. o Principialismo e uma teoria moral emba- . sada em princfpios primafacie e aplicada ao carn- ... po dos dilemas e conflitos morais. Conforme Schramm,8 0 Principialismo foi duramente criti-. cado nos anos 80 por, supostamente, atribuir uma enfase demasiada ao princfpio do respeito a Clutonomia i~dividual em detrimento deoutros princfpios e seus val ores naG serem necessaria- mente pertencentes. a outras· culturas que nao a norte-americana, como, por exemplo, a mediter~ ranea e a Iatino-americana. Ainda de acordo com esse autor, quando 0 Principialismo e correta- mente aplicado, ele e uma metodologia de anali- se moral que investiga, de forma racional e im- parciaL os argumentos marais em situa<;:oes con- cretas de conflitos de interesses e valores prima facie. o Principialismo norte-americano, nacom- :;. preens~o de Neves6, como mais destacado pro- motor da autonomia, nunca lograu alcan<;:aruma ampla adesao na Europa continental. Nao obs" tante, everdade que, sobretudo nos pafses de tradi~ao protestante e. muito particularmente entre os profissionais de saude na sua generali-. dade, 0 grau de implanta<;:ao do Principialismo nao deixa de ser significativo. Em defesa do principialismo Schramm,8 afir- ma que este constitui uma op<;:aometodol6gica para lidar com situa<;:6es tragicas no campo bio-· medico e afirma que ele pade dialogar com ou- tras teorias morais, e cita Childress: UNaminha avalia<;:ao as duas abordagens - aprincipialistae acasufstica, - sac perfeitamente compatfveis en- tre si, e ate necessarias uma a outra, nas deli be- ra<;6es relativas a polfticas sanitarias", PRINdplO DA BENEFICENCIAE NAo-MALEFICENCIA o princIpio da beneficencia nao nos diz co- . mo distribuir 0 bem e 0 mar,s6 nos. manda pro- mover 0 primeiro e evitar 0 segunda~o se manifestam exigencias conflitantes, 0 mais que ele pode fazer e aconselhar-nos a conseguir a I , ; ~. fir ~ §;~ ~~~ dt~,\", ~ I I ~1' ~ti4 I 'it"&} ~~ ~ b'j>•..~ I t~ ~, Wij ~ I f'J. i~11'''WI I.fliF,fI I %J' """ I 0~ II~w;;: I.~';:''::.~. maior pon;:ao possfvel de bem em rela~ao ao ma1.3 o R.rincfpio da beneficencia e uma a~ao feita n'o b~neffcio de outros, estabekce !Im~- . 0QlDoral e difere de bene.YQlfuda...qJJ.e...e~~u= de.d e...se_disp.ouLagiL.TI o_ben.clido_dos_Jlll1:rD.£... No ambito da saude, e maisespecificamente no contexto medico, a beneficencia e operacionali- ,zada no sentido de agir no interesse do paciente, Desde 0 Re/at6rio Be/mont, ha uma distin~ao entre beneficencia e nao-maleficencia, Frankenas afirma que 0 princfpio da benefi- cencia requer nao causar danos, prevenir danos e retirar os danos ocasionados. Beauchamp e Childress! adotam os elementos de Frankena e os reclassificam da seguinteforma: nao-male- ficencia ou a obriga~ao de nao causar danos, e beneficencia ou a obriga~ao de prevenir danos, retirar danos e promover 0 bem. 0 princfpio da nao-maleficencia envolve absten!;~o. enquanto 0 princfpjQ...cgbeneficencia requer a~ao, concluem os autores (Kipper e Clotet), e que 0 princfpio de nao-maleficencia e comum a todasas pessoas, enquanto 0 princfpio da beneficencia, na pratica, e menos abrangente, Nos pafses em via de desenvolvimento, es- pecialmente quando a c1ientela/usuarios dos sis- temas de saude e composta por pessoas com bai- xa instru~ao; 0 princfpio beneficencia, se exercido de forma absoluta, pode levar os profissionais de saude a atitudes paternalistas. 0 paternalismo pode se manifestar de diversas formas: superpro- tec;:ao, autoritarismo, desqualifica~ao da comu- nicac;:ao, entre outros, caracterizando uma assi- metria na rela~ao profissionallpaciente. o princfpio da nao-maleficencia esta conti- do no juramento de Hipocrates ao afirmar: Aplicarei0 regime para 0 bem dos doentes, segundo o meu saber e a minha razao; e nunca para prejudicar ou fazer mala quem quer que seja. A ninguem darei, para agradar, remediomortal nem conselho que 0 induza a destruic;:ao.Na casa onde eu for, entrarei apenas para 0 bem do doente, abstendo-me de qual- quer mal voluntario, de toda seduc;:aoe, sobretudo, dos prazeres do amor com mulheres ou com ho- mens, quer Iivres,quer escravos;0 que no exercicio ou fora do exercfcioe no comercio da vida eu virou ouvir, que nao seja necessario revelar, conservarei como segredo. Desse princfpio decorrem certas normas para 0 medico, como"nao matar", "nao causar dor", "nao incapacitar" e "nao impedir prazer",2 Do princfpio da beneficencia decorre urn procedimento pratico: a avaliac;:ao deriscolbene- ffcio, A cosmovisao, ou 0 referencial de vida do profissional, l1aO e adequada como unico para- metro para impor a outrem sua perspectiva. Para evitar ou minimizar 0 autoritarismo cientffico, as decisoes que envolvem conflitos ou dilemas de- vem ser objeto de consulta aos Comites de Etica ou de bioetica, quando existirem. o princfpio da nao-malefice.o.cia..prop.6.e.-a obriga<;:ao de nao infligiL,llitlJo intencional. Este princfpia deriva da maxima da etica medica: "Pri- mum non nocere";3 Considerando que todo conhecimento cien- tffico e historicamente situado e que prbvavel- mente e a expressao de valores, a categoria psi- col6gica denominada por Serge Moscovici de "Representa<;:oes sociais" pode ser de grande uti- lidadepara analisar certas condutas de pacientes em rela<;:aoadeterminadas prescri<;:oes medicas, adesao ou abandono de urn tratamento. No caso da Psiquiatria e da Psicologia Clfnica, 0 tratamen- to psicoterapeutico ainda e considerado pela popula<;:ao como tratamento de loucos ou mes- mo como perda de tempo. As representac;:oes sociais concetnem aos conteudos dos pensamentos do cotidiano e ao , . estoque de ideiasque da coerencia, as nossas cren<;:as religiosas, as ideias poifticas e as cone- xoes que criamos tao espontaneamente quanto respiramos.lO Odenominador comum as multi- plas defini<;:oes das representa<;:6es sociais e que esse tipo de conhecimento e urn conjunto de cren<;:as, imagens, metaforas e sfmbolos compar- tilhados coletivamente por urn grupo, uma co-, munidade, sociedade ou cultura.lO Estudos sobre as representa<;:oes sociaisde algumas enfermidades, como 0 cancer ou doen- <;:asmentais, apontam para algumas concep<;:oes , de determinados grupos, desvelando como atin" gir usuarios que estejam em contato com tais fen6menos. Mesmo prescrevendo determinado medicamento que,em princfpio, e essencial para urn paciente, em fun<;:aodas suas representa<;:oes sociais, pod era omitir sua resistencia ou mesmo nao fazer uso da indica\=ao medica. A morfina· .exemplifica bem 0 processo psicol6gico segun~ do 0 qual alguns pacientes se recusam a utili- za-Ia. Muitos sac os mitos sobre 0 usoda morfi- na como, por exemplo, de que 0 paciente esteja morrendo. Portanto, a rela\=ao rnedico-paciente ou de qualquer outro profissional nao ocorre no vacuo, mesmo acreditando que sua conduta esteja pau- tada pelo princfpio da beneficencia, muitas va- . riaveis (cren\=as religiosas, condi\=ao socioeco- namica, op\=ao sexual e outras) van compor 0 in- trincado tecido das rela\=oes interpessoais. Aspectos inconscientes, tanto dos profissio- nais como dos usuarios/c1ientes; dimensoes cuI- turais, fatores ontol6gicos e filogeneticos, irao constituir complexas contingencias que irao se traduzir em atos e condutas. Uma vez que e im- possIvel a vigencia de urn esperanto cientffico, a solu\=ao para 0 manejo de ambientes e compor- tamentos tao complexos indica 0 exercfcio pro- fissional realizado em equipe. Em 1995, 0 professor Reich caracterizou a Bioetica como "0 estudo sistematico das dimen- soes morais - inc1uindo visao moral, decis6es, condutas e polfticas - das ciencias da vida e aten- \=ao a saude, utilizando uma variedade de meto- dologias eticas em urn cenario interdisciplinar". Anteriormente, em 1979,0 professor David Roy afirmava que a Bioetica e: "0 estudointerdisciplinar dos conjuntos das condi- ~oes exigidas para uma administrac;:ao responsavel da vida humana, ou da pessoa humana, tendo em vista os progressos rapidos e complexos do saber e das tecnologias biomedicas". o reconhecimento da Bioetica como urn cam- po interdisciplinar foi fundamental.3 Conc1ui-se que a prudencia, quando pauta 0 agir pelo princfpio da busca do que e born e do que e mal, traduz aplica\=ao eticamente correta dos princfpios da beneficencia e da nao-male- ficencia.5 0 cotidiano da pratica assistencial, in- dividual oucoletiva,. constitui-se num· desafio permanente e riao raro se depara com fename- , ': nos e circunsrancias em que as de.cisoes devarn .~. ser submetidas a uma equipe ou pelo menos ser . objeto de reflexao. Siqueira9, ao refletir sobre a obra do fil6sofo .~ Hans Jonas, ~onclui que a responsabilidade e," portanto, na Erica, a articula\=ao entre duas reali~ ;; dades, uma subjetiva e outra objetiva. E forjada .~ por essa fusao entre 0 sujeito e a a\=ao. A ordern $ etica esta presente nao como realidade visfvel, ~ mas como urn apelo previdente que pedecalma,' prudencia e equillbrio. ; , Se~do assim, a princfpia da beneficencia· e :i-, da nao-maleficencia sera produto de urn exercf- .'}; cio perene, que faz uso de dad os objetivos, cien- .~. tfficos, mas tambem valida e coloca em plano de<. igualdadea dimensao subjetiva dos humanos ~ :;:::;~~:::a::BLlOGRAFICASI 1. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of Biomedical Ethics. New York: OUP, 1994. 2. Fernandez JG. Dez Palavras-Chave em Bioetica: bioetica, aborto, eutanasia, penda de morte, reproduc;ao assistida, manipula~aogenetica, AIDS, drogas, transplantes de 6rgaos, ecologia. Sao Paulo: Paulinas, 2000. 3. Goldim JR. 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