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MERCADO FINANCEIRO (56)

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Em publicação no volume Regulação Financeira, organizado por Rogério Sobreira
para a Editora Atlas.
INOVAÇÃO FINANCEIRA E REGULAÇÃO PRUDENCIAL: DA REGULAÇÃO
DE LIQUIDEZ AOS ACORDOS DA BASILEIA
Fernando J. Cardim de Carvalho*
1. Introdução: Risco Sistêmico e Regulação Prudencial
Entre os poucos consensos estabelecidos no pensamento econômico, ainda que não se
tenha transformado numa unanimidade, está o de que o sistema financeiro exibe uma
dinâmica de funcionamento especial em pelo menos um aspecto chave, quando
comparado aos outros setores da economia: a existência do chamado risco sistêmico.
Risco sistêmico refere-se à possibilidade de que um choque localizado em algum ponto
do sistema financeiro possa se transmitir ao sistema como um todo e, eventualmente,
levar a um colapso da própria economia. Uma instituição financeira é uma empresa. A
atuação de qualquer empresa em uma economia de mercado é cercada de riscos. A lógica
essencial de uma economia capitalista, dita de livre empresa, é que nela o agente privado
decide livremente como dispor dos recursos de que dispõe, mas é também inteiramente
responsável pelos resultados que obtem. Os prêmios da atividade bem-sucedida devem
ser apropriados privadamente pela empresa, mas a ela cabe também absorver sozinha as
perdas resultantes de um eventual fracasso. Uma empresa está, assim, exposta a riscos
variados, como o de ser gerida de forma incompetente, ser atingida por desastres naturais
ou acidentes, ou ainda cair em desgraça aos olhos do publico, seja por problemas de
reputação, seja por problemas de mudança de preferências dos clientes.
Uma empresa individual está exposta, portanto, a choques que poderíamos chamar de
idiossincráticos ou localizados. Quando uma empresa sofre tais choques, não há porque
se esperar que as dificuldades sejam transmitidas a outras empresas do mesmo setor. Ao
2
contrário, pode-se esperar que as outras empresas se beneficiem com os problemas
passados pelo competidor. Se uma empresa do setor automobilístico sofrer perdas que a
levem a encerrar suas atividades, as outras empresas do setor irão se beneficiar com a
possibilidade de ocupar o espaço deixado vazio. Não há, assim, porque esperar que possa
haver o contágio das dificuldades sofridas pela empresa atingida para as outras empresas
do setor, antes pelo contrário: é de se esperar que outras empresas se beneficiem com o
desaparecimento de um competidor e a abertura da possibilidade de expansão para ocupar
o espaço aberto.
No setor financeiro, em contraste, o fenômeno do contágio se oferece como uma distinta
possibilidade quando uma instituição passa por problemas. Pode-se avançar várias
hipóteses para explicar a elevada probabilidade a priori de contágio nesse setor, a maior
parte das quais repousa sobre o papel singular que a confiança do publico joga nos
mercados financeiros. Contratos financeiros são transações que envolvem obrigações e
direitos a serem exercidos em uma data futura. A factibilidade, e portanto o valor, desses
contratos depende da confiança que se tenha em que no futuro aqueles contratos possam
ser honrados do modo esperado. Se dificuldades com instituições financeiras que operam
com determinado conjunto de contratos sinalizarem dificuldades com os cenários
esperados, outras instituições podem também ser atingidas por dúvidas semelhantes. O
mercado se retrairá com o fracasso de uma empresa financeira, e ao invés da ocupação do
espaço vazio por concorrentes, o que o fracasso de uma instituição causará é o fracasso
de outras, em uma reação em cadeia. Este risco está presente mesmo quando o problema
original, com a primeira instituição, tenha se devido à incompetência de seus gestores e
quando as instituições que podem sofrer o contágio estejam perfeitamente sãs. Na
verdade, é este o cerne do problema do contágio, e das dificuldades que ele causará para
o desenho de uma estratégia eficaz de regulação financeira: contágio se refere ao risco de
que problemas em uma dada instituição venham a contagiar todo o mercado, mesmo que
as outras instituições estejam tomando todos os cuidados possíveis para manter a solidez
de suas operações. A possibilidade de contágio dos problemas de uma empresa para o
resto do setor, portanto, é um fenômeno especifico do sistema financeiro, em grande parte
 
* Do Instituto de Economia da UFRJ. O autor agradece o apoio do CNPq.
3
por causa do papel especial que a confiança do publico exerce neste mercado e da
fragilidade característica de elementos de natureza tão subjetiva quanto este.
O fenômeno do contágio e do risco sistêmico, contudo, não se esgota na possibilidade de
dificuldades de uma empresa do setor se transmitirem para outras empresas do mesmo
setor. Há uma segunda dimensão de risco sistêmico, certamente ainda mais preocupante
que a anterior, que diz respeito à inserção especifica do sistema financeiro em uma
economia capitalista moderna. Trata-se da possibilidade de contágio de problemas do
sistema financeiro para a economia como um todo.
Novamente, em condições normais, não há muitos setores da economia cujo eventual
desaparecimento possa levar a economia como um todo ao colapso. Em economias mais
primitivas (ou pouco diversificadas), alguns setores podem concentrar de tal forma o
emprego dos fatores de produção disponíveis, que uma interrupção de atividades neles
possa significar a paralisia da economia como um todo. Em alguns países, a produção de
um determinado bem ou conjunto limitado de bens é responsável pela geração de fração
significativa da renda nacional. Problemas no setor causariam dificuldades para todo a
país. Neste caso, porem, não há contágio: o que há é a impossibilidade de distinguir-se a
dimensão micro da macroeconômica.
A possibilidade de contágio seria relevante se, ao invés do ocorrido no primeiro caso, de
transmissão de problemas de uma empresa para o restante do setor, agora se tratasse da
transmissão de problemas setoriais para a economia como um todo. Novamente, também
aqui o setor financeiro é peculiar. Economias podem seguir funcionando quando
praticamente qualquer um dentre todos os outros setores sofra um colapso, mas
dificilmente poderá fazê-lo se o setor atingido for o setor financeiro, ou mais
precisamente o sistema bancário. Em outras palavras, uma crise no setor bancário
fatalmente se transmitirá (contagiará) o resto da economia, arrastando-a consigo para a
crise.
4
Como no caso anterior, as razões pelas quais problemas no sistema bancário ameaçam o
resto da economia não são ainda inteiramente conhecidas, apesar do fenômeno interessar
a acadêmicos e reguladores há décadas. Há pelo menos dois canais de contágio que são,
de qualquer forma, obviamente relevantes. Por um lado, o mais evidente, ainda que não
necessariamente o mais importante, é o papel do sistema bancário na criação de um
insumo de uso generalizado, o crédito. Por outro, e ao que tudo indica mais importante
ainda que muito menos conhecido, o sistema bancário é responsável pela operação do
sistema de pagamentos mais essencial de uma economia moderna, baseado na
transferência de depósitos à vista entre bancos comerciais.
Praticamente todas as operações relevantes praticadas entre agentes privados não-
bancários em uma economia de mercado moderna são liquidadas através da transferência
de direitos sobre depósitos à vista mantidos nos bancos comerciais. Economistas não são
normalmente treinados para perceber a importância deste mecanismo. Aprende-se que
mercados se equilibram quando as curvas de oferta e demanda por um determinado bem
ou serviço, se interceptam, determinando o preço que satisfaza ambos os grupos de
transacionadores, como se a operação de troca terminasse ali. Nenhum manual de
microeconomia se pergunta o que acontece em seguida, particularmente como a operação
é completada com a entrega da mercadoria e com a liquidação do pagamento por parte do
comprador do bem. Grande parte da teoria econômica, e neste caso não apenas a
ortodoxa, ainda mereceria o irônico qualificativo cunhado por Minsky de teorias da “feira
da aldeia” no que se refere à sofisticação com que concebe a liquidação de obrigações.
Pensa-se na entrega de papel-moeda ou mesmo na entrega de alguma outra mercadoria na
liquidação da obrigação gerada pela aquisição do bem, quando na verdade o processo é
muito mais complexo e arriscado, já que consiste não na simples entrega de papel-moeda
criada pelo governo mas, principalmente, no reconhecimento e transferência de direitos
sobre obrigações privadas, que são os depósitos à vista nos bancos comerciais.
Ao contrário do papel-moeda, cuja aceitação é geralmente obrigatória, de acordo com as
leis de contratos de cada país (que define sua moeda legal), o depósito à vista é uma
obrigação privada de aceitação estritamente voluntária. Um depósito à vista nada mais é
5
do que a promessa feita por um agente privado, o banco, de entrega de um montante
determinado de moeda legal a qualquer momento em que o detentor desta obrigação
assim o deseje. A equivalência entre depósitos à vista e moeda legal, aos olhos do
público, que os transforma em substitutos perfeitos (e os depósitos à vista em meios de
pagamento) depende da confiança que o publico tenha de que aquela promessa possa
efetivamente ser honrada a qualquer momento por parte do banco que aceitou o depósito.
A eventual perda, ou mesmo o abalo desta confiança, pode levar os depositantes a
testarem a capacidade de um banco em resgatar os depósitos como prometido. Se isto
ocorrer, nos encontraremos no limiar do que se chama de corrida bancária.
Para entender-se o fenômeno da corrida bancária é preciso partir-se do reconhecimento
de que bancos modernos operam no chamado sistema de reserva fracionária. Bancos
comerciais definem-se pela exclusividade na aceitação de depósitos à vista, forma de
captação cujas características são únicas dentre o universo de contratos financeiros.
Depósitos à vista tem maturidade zero e valor fixado, ao par, em termos da moeda legal.
Estas duas características tornam este tipo de aplicação um substituto perfeito da moeda
legal, se o público perceber o risco de crédito do banco como nulo. Em outras palavras, o
publico será indiferente entre manter saldos transacionais sob a forma de moeda legal ou
sob a forma de depósitos à vista nos bancos comerciais sempre que não houver dúvidas
sobre a capacidade dos bancos de honrar as características do contrato. Os próprios
bancos comerciais, contudo, não podem dar esta garantia. Na verdade, a operação normal
destas instituições expõe os depósitos a um elevadíssimo risco de crédito. À medida em
que o publico se acostume à conveniência do uso de depósitos como meio de pagamento,
em substituição à moeda legal, as retiradas tenderão a diminuir de freqüência e valor.
Contando com sua própria experiência, bancos aprenderão que dos depósitos existentes a
qualquer momento, apenas uma pequena fração estará sendo provavelmente resgatada.
Isto permite a bancos criar depósitos muito alem de suas reservas em moeda legal, no
processo conhecido como multiplicador bancário. Deste modo, a cada momento há um
valor muito maior em depósitos aceitos pelos bancos do que reservas em moeda no caixa
dos bancos, fazendo com que, na realidade, bancos estejam prontos a honrar apenas uma
6
fração dos compromissos criados sob esta forma.1 Do ponto de vista do depositante,
portanto, o risco de crédito dos depósitos à vista deveria ser extremamente elevado. É
importante lembrar que, às duas características do depósito à vista já mencionadas dve-se
agregar uma terceira, a de que resgates são realizados por ordem de pedido, de modo que
os primeiros depositantes a resgatarem seus depósitos poderão fazê-lo integralmente, até
que as reservas sejam exauridas, a partir do que os depositantes que estiverem no final da
fila nada receberão.2 As três características juntas praticamente garantem a repetição
periódica de corridas bancárias na ausência de medidas específicas para impedi-las.
Qualquer razão que faça um depositante tornar-se mais consciente do risco de crédito que
está correndo ao deixar recursos depositados em um banco poderá detonar uma corrida.
Assim, a substitubilidade entre moeda legal e depósitos à vista só pode ser obtida se o
risco de crédito associado aos depósitos seja percebido como nulo, isto é, equivalente ao
risco de crédito que cerca a moeda legal.
Para que o risco de crédito seja zero, é preciso criar instituições que garantam que bancos
poderão cobrir retiradas em quaisquer circunstâncias, inclusive aquelas em que o próprio
banco está sendo incapaz de realizar seus ativos. Esta garantia não pode ser dada por
instituições privadas que, por definição, são vulneráveis a falências. Ela tem de vir do
Estado, que, tendo o monopólio de emissão da moeda legal, tem sempre a possibilidade
de suprir aos bancos a quantidade de moeda que for necessária para permitir que os
resgates desejados sejam honrados.
As razões que levam o Estado a estender estas garantias (através da criação de bancos
centrais como emprestadores-de-última-instância ao setor bancário, por exemplo ou de
instituições de seguros de depósitos) não podem ser exploradas neste artigo, já que tem a
ver com o aumento da eficácia do processo de política monetária. Aceitando-se, contudo,
como um fato empírico que esta garantia será estendida, chega-se a um quadro
relativamente instável em que o publico aceita manter seus saldos transacionais sob a
forma de depósitos à vista enquanto houver a confiança em que os bancos serão capazes
 
1 Para uma introdução à operação do sistema de reserva fracionária, veja-se Carvalho et alli (2000), cap. 14.
2 Este sistema se contrasta com o rateio, característico de outras formas de aplicação.
7
de honrar os resgates desejados, seja por seus recursos próprios, seja pela ajuda do
emprestador-de-última-instância. Este quadro pode ser instável pelas dúvidas que podem
subsistir na mente do público quanto à capacidade, vontade ou agilidade do Estado em
fazer valer as garantias que oferece.
Uma vez que esta substitutibilidade entre moeda legal e depósitos à vista se enraíze na
economia, um novo tipo de risco sistêmico emerge, que é o de que a possibilidade de um
colapso de um banco comercial comprometa o sistema bancário (pelos canais discutidos
anteriormente, como a perda de confiança em um dado banco que pode resultar da
observação de que outro banco foi fechado ou enfrentou graves dificuldades) e que o
eventual colapso do sistema bancário paralise a economia como um todo e que os
mecanismos de proteção criados não se mostrem suficientes para evitar perdas aos
depositantes. Assim, se a corrida bancária ocorrer, esta segunda manifestação de risco
sistêmico simplesmente consiste na percepção de que um colapso do sistema bancário
paralisaria o principal sistema de pagamentos da economia, aquele através da
transferência de titularidade sobre depósitos à vista mantidos nos bancos comerciais.
Neste caso, o contágio se dá do sistema bancário para o resto da economia, pelo simples
fato de que praticamente nenhuma operação senão aquelas de valor muito baixo pode ser,
hoje em dia, liquidada através da entrega de papel moeda. O eventual fechamento dos
bancos comerciais impediria que se completasse quaisquer outras transações de mercado
que não aquelas de valor muito pequeno.A paralisação do sistema bancário nos primeiros
meses do Plano Collor, em 1990, ou a testemunhada na Argentina em seguida ao colapso
de 2001 e introdução do “corralito”, ilustra a redução de atividade econômica que resulta
do bloqueio do sistema de pagamentos via depósitos.
Contágio, assim, é uma manifestação especifica ao sistema financeiro da noção de
externalidade, um tipo de imperfeição de mercado que exige uma intervenção corretiva.
No caso do sistema financeiro, esta intervenção toma duas formas: a criação de redes de
segurança, para evitar que choques possam causar os problemas sistêmicos descritos, e a
definição de regras de regulação e supervisão que reforcem a capacidade do sistema de
evitar ou absorver choques. Esta forma de regulação será chamada de prudencial,
8
indicando que se destina a reduzir a exposição do sistema financeiro a riscos que possam
se propagar por toda a economia. Como a possibilidade de contágio é, ao que tudo indica,
única ao setor financeiro, a regulação prudencial será igualmente uma exigência
praticamente única ao setor.3
2. A Estratégia Tradicional da Regulação Financeira: O Foco em Liquidez
Como visto, o problema que desafia o regulador é a possibilidade de contágio, isto é, o
risco sistêmico criado na atividade do setor financeiro. Idealmente, a regulação deveria
estar voltada para o controle (ou, idealmente, a eliminação) dos canais de contágio de
problemas, de forma a que se pudesse restaurar no setor financeiro a regra central de
disciplina de mercado pela qual uma empresa faz o que quiser com os recursos que
controla, mas paga sozinha os custos de decisões que se mostrem a posteriori
inadequadas. A principal dificuldade para aplicar este princípio reside, em grande
medida, na importância desmedida que a variável confiança tem para a operação do setor.
A falência de uma instituição financeira traz consigo um possível aumento do grau de
desconfiança com relação a instituições semelhantes que pode levar o público a esperar a
repetição de problemas semelhantes e, por conseguinte, a se precaver, liquidando seus
negócios com a instituição ameaçada e, com isso, efetivamente condenando-a a
desaparecer. Idealmente, o papel da autoridade responsável por garantir a estabilidade do
sistema financeiro deveria estar confinado à sinalização de que problemas em uma
instituição são isolados e que não colocam em risco o resto do sistema. Tal tarefa,
contudo, tem se mostrado impossível, até mesmo pelo pouco conhecimento que ainda
hoje se tem (e talvez nunca possa ser significativamente aumentado) dos determinantes
dos estados de confiança do público.
Nestas circunstâncias, as estratégias regulatórias até hoje adotadas buscam uma
alternativa, um second best: se o ideal de permitir que instituições paguem
individualmente por seus erros, sem contagiar terceiras empresas, é inatingível, será
melhor (ou, pelo menos, assim se tem acreditado) tomar todas as medidas necessárias
 
3 Uma discussão que diverge desta nas ênfases dadas a cada fator é oferecida em Goodhart et alli (1998).
9
para minimizar a freqüência com que instituições financeiras se vêem às voltas com
dificuldades que criam temores no público em geral. Por esta razão, a estratégia
alternativa da regulação financeira focalizará não os processos de transmissão de
dificuldades, mas as próprias instituições financeiras. Será visto como necessário
garantir que tais instituições, dentre as quais, particularmente, bancos, se exponham o
menos possível a riscos que venham a comprometer efetivamente sua existência, porque
se teme que uma vez observada a falência de uma instituição individual, todas as outras
possam ser ameaçadas pela redução da confiança dos depositantes no mercado financeiro
em geral. A manutenção da confiança é meta tão importante que o Estado criará também,
paralelamente, a rede de segurança para garantir que se, apesar das precauções, ainda
assim bancos incorrerem em dificuldades, os depósitos à vista serão honrados de
qualquer forma. A combinação regulação/rede de segurança se constitui, deste modo, em
um único fenômeno, dois lados da mesma moeda.
A implicação da argumentação feita até aqui é que o foco da regulação prudencial,
voltada para o setor bancário por ser onde o risco do sistema financeiro pode se
transformar em risco global (em função dos efeitos de um colapso do sistema de
pagamentos), será o banco individual e não as relações interbancárias que podem ser vir
de canal de contágio de crises.
Tendo em conta que a manifestação mais visível da crise sistêmica consistia na corrida
bancária, não deveria surpreender que o foco original da atividade reguladora fosse
justamente a liquidez dos depósitos. O emprestador-de-última-instância (e, mais tarde, os
seguros de depósitos) serviria, naturalmente, de última linha de resistência na garantia da
segurança do sistema bancário. No entanto, havia muitas razões pelas quais este
instrumento devesse ser mantido em reserva, para ativação apenas em ocasiões
excepcionais. Em primeiro lugar, a existência deste emprestador representa um subsídio
que a sociedade (através do Estado) dá ao setor bancário4. Como todo subsidio, sua
 
4 Mesmo que a disponibilização dos recursos seja feita a custos punitivos, como, por exemplo, se a
facilidade usada é o redesconto de liquidez, a taxas de juros superiores às do mercado. O subsídio existe à
medida em que em circunstâncias semelhantes empresas que operam em qualquer outro setor
10
concessão é sempre polêmica em termos políticos e econômicos, já que pode gerar
incentivos perversos.5 Por outro lado, o emprestador entra em cena quando o mercado
bancário já está sob tensão, quando as fontes de financiamento normais com que conta
um banco (por exemplo, o mercado interbancário de reservas) já se fechou para a
instituição que busca apoio. Dinâmicas destrutivas se tornam muito mais prováveis nestas
circunstâncias. Se o instrumento ativado for o seguro de depósitos, ao invés do
redesconto, a situação será certamente ainda pior, pois isto só se dá quando o banco já
sofreu algum tipo de intervenção aberta, criando comoção no mercado. Do ponto de vista
do depositante, a existência de um seguro de depósito, se bem serve para tranqüilizá-lo
quanto à perda de seus recursos, não é suficiente, porem, para evitar perdas de bem-estar.
Isto porque durante o período em que a validade dos registros de depósitos é examinada,
previamente à liberação dos seguros, o depositante vê seus saldos transacionais se
transformarem involuntariamente em aplicações financeiras de curto prazo (já que sua
liberação deixa de ser imediata), sem o concorrente pagamento de juros. Por esta razão,
ainda que exista o seguro de depósito, este pode não ser suficiente para prevenir corridas
contra bancos saudáveis por parte de depositantes que queiram se antecipar a possíveis
períodos de indisponibilidade no caso de seus bancos também sofrerem dificuldades
semelhantes.
Por todas estas razões, o regulador buscará atuar ao nível da instituição bancária
individual no sentido de minimizar a probabilidade de ocorrência de situações onde o
banco se veja impedido de funcionar normalmente. A evolução dos meios e modos de
perseguir esta meta servirá para diferenciar o método de regulação e supervisão
utilizados desde o início do século XX, da regulação de liquidez aos acordos da Basiléia.
A meta, no entanto, não mudou em todo este período.
O foco na liquidez dos depósitos foi funcional enquanto a instituição bancária manteve
um perfil relativamente simples de atividades. Durante grande parte do século XX,provavelmente verão negado seu acesso a qualquer fonte de recursos, enquanto que bancos podem ficar
seguros que as demandas serão satisfeitas, mesmo se a custos mais altos que o normal.
5 Este é o núcleo do argumento dos que criticam a existência de redes de segurança pelo risco moral que
criam.
11
bancos depositários captaram recursos principalmente através de depósitos à vista, e
aplicaram-nos em empréstimos de maturidades curtas e, no máximo, médias. O
envolvimento destas instituições com mercados de capitais era limitado, seja por força de
regulação, como no caso dos Estados Unidos a partir da grande depressão dos anos 1930,,
seja pela inexistência de mercados de títulos significativos, como no caso da Europa
ocidental e do Japão.
A transformação da atividade bancária foi relativamente lenta no período anterior à
segunda guerra e nas primeiras duas décadas que se lhe seguiram. Em grande medida, as
mudanças relevantes havidas neste período deveram-se à própria existência da regulação
nos termos descritos. À medida em que a regulação de liquidez focalizava mais
concentradamente os depósitos à vista, ela própria acabava por servir de estímulo aos
bancos para procurar outras fontes de captação, que preocupassem menos os reguladores
e, com isto, estivesse sujeita a um conjunto menor de restrições regulatórias. Mas os
depósitos à vista não eram apenas de interesse de reguladores prudenciais. Também a
política monetária voltava-se principalmente para o comportamento dos depósitos, na
busca por controle do estoque de meios de pagamento em circulação. Algumas das mais
importantes inovações financeiras dos anos 1950 no setor bancário dos Estados Unidos, o
surgimento de CDBs e o desenvolvimento do mercado interbancário de reservas, foram
respostas a pressões de política monetária pelo Federal Reserve.6
As inovações mais radicais, no entanto, tiveram lugar a partir da década de 1970, quando
se abriu um processo de transformação dos métodos de suprimento de serviços
financeiros cujo fim ainda não está à vista. Os intensos choques macroeconômicos
sofridos a partir da aceleração da inflação americana nos anos 1960, como os aumentos
de preços das matérias primas (especialmente o petróleo) em 1973 e 1979, o colapso do
sistema de taxas de câmbio fixas mas ajustáveis de Bretton Woods, entre 1971 e 1973, a
adoção de políticas monetárias contracionistas por praticamente todos os países
industrializados no final daquela década, e os movimentos de desregulação financeira
doméstica e, posteriormente, de liberalização de movimentos internacionais de capitais,
 
6 Veja-se Minsky (1982), cap.7.
12
particularmente no mundo desenvolvido, tiveram como resultado o crescimento
dramático da volatilidade de preços, taxas de câmbio e taxas de juros em praticamente
todo o mundo. A incerteza que cerca transações financeiras cresceu de forma aguda
forçando as instituições e mercados financeiros a modificarem suas práticas de modo a
permitir sua adaptação à operação neste quadro.
Novos mercados surgiram, notadamente aqueles voltados para negociar não mais
recursos financeiros propriamente, mas os riscos envolvidos nestes negócios. Os
mercados de derivativos expandiram-se precisamente em resposta à demanda por
proteção por parte de agentes privados e de instituições financeiras desconfortáveis com
os riscos que assumiam mesmo em operações tradicionais no novo contexto. Contratos
com derivativos permitem decompor os riscos implícitos na obrigação para negociação
em separado. Um simples empréstimo, por exemplo, está exposto a riscos que antes
passavam despercebidos, como o risco de que a atividade que está sendo financiada não
alcance os retornos esperados, não por incompetência do tomador de recursos mas por
causa de movimentos inesperados de preços relativos, que podem ser intensos quando a
inflação se acelera, ou de variações bruscas nas taxas de juros causadas por mudanças
imprevistas na política monetária ou, ainda, se se tratar de operações em mercados
externos, por causa de flutuações do câmbio que antes não podiam ocorrer em função do
acordo de Bretton Woods. O aumento da volatilidade apontado acima mostrou que estes
movimentos, a partir dos anos 1970, poderiam ser fatais.
Intermediários financeiros em geral, e bancos em particular, vão sentir este aumento de
incerteza de modo mais intenso, já que a intermediação financeira internaliza esses riscos
no balanço da instituição. O banco passa a concentrar em seu balanço riscos de toda
natureza, como resultado dos descasamentos de maturidades, de liquidez, de câmbio, etc,
que eram sua própria razão de existência, em escala que tudo indicava ter passado a ser
inadministrável.7
 
7 A noção tradicional de firma bancária sempre acentuou seu papel de transformador de maturidades e de
liquidez, vendendo obrigações de curto e curtíssimo prazo ao publico aplicador (como depósitos, por
13
Depois de uma década particularmente problemática para as instituições financeiras,
especialmente nos Estados Unidos, como foi a década de 1980, mudanças profundas
tiveram lugar no sistema financeiro que inviabilizaram definitivamente as estratégias de
regulação tradicionais. As inovações financeiras mais importantes que resultaram deste
quadro foram o impulso ao processo de securitização, o desenvolvimento dos mercados
específicos para risco (derivativos) e a transformação da firma bancária.8
O processo de securitização não abarcou apenas a expansão rápida dos mercados de
títulos tradicionais, como as ações e títulos de dívidas de empresas, mas incluiu também
dois outros tipos de canais antes servidos pela intermediação bancária. Por um lado,
certas demandas de recursos, antes atendidas por bancos, passarão a ser atendidas pelo
mercado de títulos. O exemplo mais importante desta modalidade de securitização foi a
expansão dos mercados de papéis de curto prazo, os commercial papers. A oferta de
recursos de curto prazo, para capital de giro, foi por muito tempo a área por excelência de
atuação dos bancos comerciais. Durante os anos 1980, contudo, nos Estados Unidos,
grandes empresas verificaram que poderiam captar recursos colocando papéis
diretamente junto a investidores (evitando a intermediação bancária, portanto) pagando
taxas de juros menores que aquelas pagas pelos próprios bancos para captar depósitos.
Note-se que bancos ainda imporiam um spread (diferencial de juros) sobre estas taxas de
captação para colocar os recursos obtidos à disposição de empresas, tornando o crédito
bancário excepcionalmente caro quando comparado à colocação direta de commercial
papers. Esta situação era resultado da percepção por parte dos investidores de que, nos
anos 1980, bancos eram tomadores especialmente arriscados, já que estavam envolvidos
em diversas crises, como as dos empréstimos para países subdesenvolvidos, ao setor de
energia e à construção que estavam se desenrolando naqueles anos. Assim, os aplicadores
cobrariam mais dos bancos do que cobrariam das empresas, já que estas não estavam
sofrendo dificuldades tão graves quanto as do setor bancário.
 
exemplo) e emprestando a prazos maiores aos tomadores. O mesmo se daria em termos de liquidez, de
moedas de denominação, etc. O ganho do banco decorreria exatamente da aceitação destes riscos.
8 Para uma discussão destas tendências enfatizando implicações para a teoria de operação dos mercados
financeiros, veja-se Carvalho (1997).
14
Outra manifestação importante do processo de securitização teve lugar no financiamento
hipotecário. A década de 1980testemunhou o colapso dos bancos de poupança e das
associações de poupança e empréstimo nos Estados Unidos. Estas instituições eram
caracterizadas pelo agudo descasamento de maturidades entre seus ativos (muito longos)
e seus passivos (muito curtos) que as tornava extremamente vulneráveis a aumentos da
taxa de juros, como os que se deram a partir de 1979 naquele país. A falência das
instituições financeiras do setor obrigou a criação de um novo mercado para o
financiamento hipotecário. Neste novo mercado, as instituições financeiras apenas
originam empréstimos, empacotam-nos e os revendem a investidores, principalmente
investidores institucionais como fundos de pensão ou de investimento. Securitização aqui
significa transformar ativos que antes permaneciam nos balanços dos bancos em ativos
que possam ser negociados com investidores.
Os bancos comerciais e bancos de poupança que perdem participação no mercado
financeiro como resultado do processo de securitização têm de adaptar sua forma de
operação para encontrar algum espaço de operação nestas novas condições. O mercado
de títulos abre vários espaços deste tipo para os bancos capazes de se adaptar. Estes
papéis são normalmente vendidos apoiados por reforços de credito (credit enhancement),
dispositivos que servem para aumentar a liquidez dos papéis. O suprimento destes
reforços de crédito permitiu a muitos bancos encontrar um nicho nos novos mercados e
defender seus lucros sem se expor aos riscos de anteriormente.
Genericamente, as transformações por que passa o setor bancário, envolvem o
crescimento da participação nos mercados de títulos, emulando (e concorrendo com)
bancos de investimento. Depósitos perdem importância relativa para este banco que se
transforma, já que, como no caso de bancos de investimento, formas permanentes de
financiamento não têm tanta importância para instituições que não precisarão reter os
ativos por muito tempo em seus balanços. Poucos bancos abandonarão inteiramente, ou
mesmo a maior parte, de seus negócios tradicionais. Em tese, os bancos diversificados,
com atuação tanto como intermediário financeiro quanto como corretor nos mercados de
15
títulos, teriam melhores condições de sobreviver a turbulências financeiras e
macroeconômicas do que instituições capazes de concentrar suas atividades em apenas
um segmento. Durante os anos 1990, o modelo de banco universal, uma instituição em
tese capaz de operar em todos os segmentos relevantes do mercado financeiro, converte-
se no modelo ideal de firma bancária, aos olhos do setor, especialmente para aqueles
bancos comerciais que querem reduzir sua exposição aos riscos antes mencionados.
A eficácia do banco universal permanece tema polêmico até o presente. As evidências
não são conclusivas nem a favor nem contra a existência de economias de escopo na
atividade financeira. Os exemplos históricos são pouco relevantes, já que praticamente
toda a historia do setor bancário nos Estados Unidos do século XX se deu em um
contexto de um sistema financeiro segmentado em compartimentos estanques, enquanto
países como a Alemanha, que permitiam a existência de bancos universais, nunca tiveram
mercados de capitais significativos que servissem como fronteira de expansão para suas
instituições bancárias. O banco universal, até a década dos 1990, era apenas um conceito
teórico, cujas características empíricas ainda estavam (e estão) por ser conhecidas.
De qualquer forma, as inovações financeiras que tiveram lugar em torno da expansão dos
mercados de títulos não eram movidas por preocupações teóricas ou mesmo regulatórias,
mas, sim, por pressões do mundo real, que mantem-se fortes ainda hoje. Assim, as
incertezas sobre os méritos teóricos do banco universal não detiveram os bancos
comerciais que buscaram desesperadamente abrir canais mais promissores de expansão
do que a atividade bancária tradicional. Depósitos à vista perderam importância relativa,
como também perderam os empréstimos, desenvolveram-se novas formas de hedge por
parte dos bancos, como o apelo ao mercado de derivativos, e novos produtos.9 Com este
movimento, a vulnerabilidade a riscos, preocupação central do regulador prudencial,
perdeu nitidez, forçando a mudança nos métodos de regulação e supervisão financeira até
então aceitos. A percepção da inadequação dos métodos de regulação e supervisão
empregados até então, porem, não se estabelecerá de forma clara imediatamente. Ao
contrário, o processo de transformação das estratégias de regulação será incerto e
 
9 Uma excelente discussão destas tendências é oferecida em Kregel (1998).
16
tateante, de modo muito semelhante à evolução do próprio mercado. O próprio passo
inicial do processo de modernização da estratégia regulatória não será, ao que tudo
indica, percebido como tal senão após sua própria introdução na década dos 1990 e da
verificação de seus efeitos.
3. O Acordo da Basiléia de 1988
O Comitê da Basiléia para a Regulação Bancária é um dos comitês mantidos pelo BIS
para servir como fórum de debates entre representantes dos governos do G10, acionistas
da instituição. Desde o inicio dos anos 1980 este comitê examinava a possibilidade e a
oportunidade de introduzir mudanças nos métodos de regulação bancária nos países do
G10. Regulação e supervisão financeiras são áreas de decisão doméstica. Não há
autoridades internacionais encarregadas de definir e aplicar regras ao sistema financeiro.
O Comitê da Basiléia, neste quadro, não tem poder para determinar a implementação de
qualquer estratégia. Reunindo autoridades do grupo de países mais avançados, contudo,
suas recomendações são, espera-se, muito influentes e têm alta probabilidade de serem
absorvidas pelos sistemas domésticos de regulação e supervisão financeiras.
O Acordo da Basiléia de 1988, na verdade, foi um resultado mais da globalização
nascente do que da que percepção da necessidade de uma reorientação estratégica dos
métodos de regulação financeira pelas razões referidas acima. O objetivo do acordo era,
na verdade, bastante modesto, se comparado com o papel que veio a assumir na década
dos 1990. Seu móvel principal foi o nivelamento do campo de jogo, na expressão
americana, para a concorrência entre grandes bancos. De fato, logo no inicio do
documento é explicado que as recomendações ali feitas tinham como alvo apenas os
bancos internacionalmente ativos. Na introdução ao acordo, temos assim definidos os
seus objetivos:
“Dois objetivos fundamentais estão no coração do trabalho do Comitê sobre a
convergência regulatória. Estes são, primeiro, que a nova estrutura deveria servir para
reforçar a saúde e a estabilidade do sistema bancário internacional; e, em segundo lugar,
17
que a estrutura deveria ser justa e ter um alto grau de consistência em sua aplicação a
bancos em diferentes países com vistas a diminuir uma fonte existente de desigualdade
competitiva entre bancos internacionais. ... a estrutura [proposta] pelo Comitê é dirigida
mais especificamente a bancos que participem do mercado internacional.” (BCBS, 1988,
pp. 1-2; ênfases acrescentadas)
O processo de liberalização financeira e globalização tinha colocado em confronto direto
bancos americanos, bancos europeus e bancos japoneses. No início dos anos 80, os
bancos americanos parecem ser os mais frágeis neste confronto, envolvidos por crises, e
limitados nas suas escolhas de diversificação de atividades pela lei Glass/Steagal. Ao
mesmo tempo em que estes bancos enfrentavam a concorrência dos novos mercados que
surgiam, como os criados pela securitização, tinham de enfrentar também bancos
estrangeiros em sua própria estreita área de atuação. Bancos comerciais e autoridades do
setor passam a fazer pressão por mudançasde regras que superassem o que era percebido
como desvantagens competitivas injustas impostas às instituições americanas, seja pela
legislação doméstica, como no caso da lei Glass/Steagal, seja por outras características do
setor nos Estados Unidos, que se comparavam desfavoravelmente com o encontrado em
outros países. Uma desvantagem que foi particularizada era a característica dos bancos
americanos de operar com capital próprio relativamente elevado, enquanto bancos
europeus e japoneses operavam praticamente apenas com recursos de terceiros. Esta
diferença implicava custos de capital mais elevados para bancos americanos, que tinham
de emitir ações ou outras formas de papéis para constituir um patrimônio líquido que
bancos concorrentes estavam dispensados de obter. O Acordo da Basiléia de 1988
consistirá principalmente na transformação da exigência de capital próprio numa norma
regulatória aplicável a todos os competidores. Por esta razão, o acordo estava voltado
apenas para os bancos internacionalmente ativos. A definição de uma exigência de
coeficientes de capital próprio para os bancos não tinha como razão central a busca de
normas prudenciais alternativas ao foco sobre liquidez, que tinha sido característico do
período anterior, mas, sim, a equalização de condições competitivas entre bancos
americanos, europeus e japoneses. O acordo resultou mais da percepção, portanto, de que
18
a competição era injusta do que da percepção de que os sistemas até então usados de
regulação prudencial tinham perdido sua eficiência.
Deste modo, o acordo consistiu simplesmente na exigência de que os bancos que
efetivamente concorressem com bancos americanos na arena internacional sofressem as
mesmas restrições que se abatiam sobre estes últimos. Neste sentido, dada a estreiteza do
objetivo principal do acordo, ele poderia perfeitamente ter consistido não na exigência de
coeficientes de capital para todos os bancos internacionalmente ativos, mas na eliminação
desta exigência para os bancos americanos.
O acordo, no entanto, acabou sendo utilizado de um modo, ao que tudo indica,
inesperado. Não apenas os países do G10 adotaram suas recomendações centrais (ainda
que impondo adaptações locais que diluíam em certo grau a força do acordo), como o
fizeram para todo o setor bancário e não apenas para os bancos internacionalmente
ativos.10 Em outras palavras, o acordo passou de um acerto de regras competitivas para
um marco na reorientação das estratégias de regulação prudencial no final do século XX.
De fato, não apenas os países industrializados adotaram-no de forma muito mais
generalizada que o previsto, mas também o fizeram praticamente todo os outros países
considerados desenvolvidos e um grande número de países emergentes e em
desenvolvimento.11 No final da década dos 1990, o FMI e o Banco Mundial tornaram a
adesão ao acordo o elemento principal da avaliação da solidez financeira dos países
membros, no programa conhecido como Padrões e Códigos.
Na verdade, a adesão ampla ao acordo de 1988 não foi acidental. Como visto, há muito
tempo alimentava-se uma certa ansiedade com relação à crescente inadequação da
estratégia regulatória anterior às novas condições de operação dos bancos. Por outro lado,
o estabelecimento de coeficientes de capital, principio central do acordo de 1988, parecia
se constituir numa alternativa capaz de resolver os piores problemas gerados pela
estratégia anterior. Esta nova opção parecia satisfazer tanto aqueles que estavam
 
10 No caso da Europa ocidental, os coeficientes de capital passaram a ser exigidos inclusive de instituições
voltadas para outros segmentos do mercado financeiro.
19
preocupados apenas com o estabelecimento de condições competitivas equânimes entre
grandes bancos quanto aqueles que julgavam que a estratégia regulatória anterior estava
alimentando mais que controlando os riscos sistêmicos gerados pelos mercados
financeiros.
O debate acadêmico girava em torno, principalmente, da possibilidade de risco moral
envolvida no binômio rede de segurança/regulação financeira que vinha sendo praticado.
O argumento central neste debate era o de que a operação do sistema bancário sob aquele
binômio ilustrava os efeitos de um modelo agente/principal sob assimetria de
informações. O banco era o agente dos depositantes, o principal, representando-os como
intermediário financeiro na escolha do destino dos recursos que tivessem disponíveis para
aplicação. Sob a rede de segurança que cerca os depósitos à vista, o depositante tem
pouco interesse em saber o que o banco, seu agente, faz com seu dinheiro, já que seu
retorno será zero e o risco de crédito envolvido será igualmente zero em qualquer
circunstância. Os bancos se encontram, assim, livres para decidir o que fazer com os
recursos recebidos em depósito. Suponhamos que o banco possa escolher entre duas
classes de empréstimos: uma classe de tomadores bastante arriscados, mas que, por isto
mesmo, terão de pagar uma elevada taxa de juros pelo empréstimo; outra classe de
tomadores muito seguros, dos quais só se pode extrair, portanto, uma taxa de juros muito
menor. Operando com recursos alheios, a escolha do banco é clara: os tomadores mais
arriscados são os preferidos, já que o custo dos recursos é o mesmo (depositantes não se
importam com os riscos corridos pelo banco, já que seus depósitos estão protegidos pela
rede de segurança), e no caso do empréstimo ser bem sucedido, o retorno para o banco
será alto, enquanto que se houver default, quem pagará os depositantes será o gestor da
rede de segurança. Deste modo, o agente não era incentivado, nesse sistema, a considerar
os interesses do principal, nem este era incentivado a tomar precauções na escolha do
banco onde fazer seus depósitos. A estratégia de regulação falhava, portanto, em levar os
bancos a construir posições mais seguras, minimizando a probabilidade de crises.
 
11 O Brasil aderiu ao acordo em 1994. Sobre a adesão brasileira, veja-se Alexandre (2003).
20
A imposição de coeficientes de capital aos bancos serviria como resposta também para o
problema descrito acima. O modo mais eficaz de reduzir a divergência de interesses entre
agente e principal é fazer com que aquele compartilhe em algum grau a natureza e os
móveis deste último. Deste modo, se o banco pusesse seu próprio capital em risco quando
fizesse empréstimos, expondo-se a perdas em caso de default, seria de se esperar que
fosse mais cauteloso em suas decisões. A imposição de coeficientes de capital poderia
ser, assim, uma medida de regulação prudencial mais efetiva que as até então usadas,
voltadas para a liquidez dos depósitos. Mas a ser uma estratégia alternativa de regulação
prudencial, e não apenas instrumento de nivelação competitiva, o acordo não deveria ser
aplicado apenas aos bancos maiores e mais internacionalizados, mas a todos os bancos,
em qualquer país. Foi isto exatamente o que aconteceu, disseminando-se a prática da
imposição de coeficientes de capital por um grande número de países e tornando-se, algo
inesperadamente, o acordo de 1988 o novo paradigma de regulação prudencial.
O acordo, porém, sofria de várias limitações, algumas das quais foram imediatamente
percebidas, abrindo aos bancos oportunidades inesperadas de ganhos arbitrando as
diferenças entre o que ocorria efetivamente nos mercados de crédito e aquilo que o acordo
assumia estar ocorrendo.
O acordo de 1988 compartilhava com a estratégia anterior a natureza tutelar da
supervisão financeira. Voltado para a administração do risco de crédito, o procedimento
do comitê não consistiuapenas na prescrição de instrumentos de gestão de riscos, mas
também na definição quantitativa daqueles riscos. Em outras palavras, o comitê não
apenas criou instrumentos para gerir os riscos de crédito como também calculou quais
seriam os riscos envolvidos nas diversas operações de crédito, emitindo uma tabela onde
a cada classe de ativos identificada correspondia uma medida de risco. Dada a
diversidade de operações realizadas por um único banco, não deveria ser surpreendente a
conclusão de que uma tabela produzida pelo comitê, ou por qualquer comitê, teria de ser
extremamente grosseira e inexata. O resultado desta tentativa de tutelar instituições,
dizendo a elas qual o risco a que cada uma estava sujeita em suas operações, não foi o
reforço do sistema, mas, sim, a ampliação de suas distorções. Novas distorções de
21
incentivos foram introduzidas pela própria tentativa de melhorar o sistema. Ao classificar
certas operações com uma ponderação de risco diversa daquela efetivamente reconhecida
pelo mercado, o acordo abriu a possibilidade de ganhos de arbitragem que derrotavam o
propósito do próprio acordo. Por exemplo, ao classificar empréstimos a países da OECD
como tendo risco zero, o comitê estava na verdade incentivando a realização de
empréstimos àqueles países mais arriscados dentro do grupo, já que na determinação das
taxas de juros a serem pagas prevaleciam as avaliações de risco dos mercados, mas na
determinação do custo regulatório destes empréstimos prevalecia a recomendação da
Basiléia de que países da OECD não ofereciam risco.
Na verdade, como concebido inicialmente, o acordo tendia a introduzir distorções ainda
maiores. A concepção de atividade bancária implícita no acordo de 1988 estava se
tornando rapidamente obsoleta já quando o seu texto foi preparado e o processo de
obsolescência foi, na verdade, acelerado pela nova regulação. De fato, o comitê concebeu
o banco comercial como operando dentro das fronteiras tradicionais, isto é, como uma
instituição que capta depósitos para fazer empréstimos. Neste período, os avanços do
processo de securitização já desafiavam os bancos a buscar novas fronteiras de expansão,
particularmente nos mercados de títulos. Quando o acordo de 1988 definiu uma estratégia
regulatória voltada exclusivamente para o risco de crédito, não apenas deixou lacunas
importantes (não formulou regras prudenciais para a atuação nos mercados de títulos),
como, na verdade, estimulou os bancos que pudessem fazê-lo a mudar o mais
rapidamente o seu mix de serviços em favor do aumento da participação nos mercados de
títulos, sobre a qual não incidiam quaisquer obrigações de natureza regulatoria. Em outras
palavras, ao “punir” a atividade de crédito com o peso de regulações, deixando livre a
operação nos mercados de papéis, o acordo estimulou os bancos a minimizarem seus
custos operacionais privilegiando a participação nos processos de securitização.
Deste modo, enquanto, por um lado, predominou a percepção de que o uso de
coeficientes de capital era um avanço em relação ao foco anterior em liquidez de
depósitos, disseminou-se rapidamente a percepção de que o acordo tinha sido
estabelecido em termos grosseiros demais para induzirem nos bancos a seleção mais
22
segura dos riscos a correr. O fato de que o comitê parecia entender sua missão de forma
diferente, e bem mais estreita do que a reformulação ampla de estratégias de regulação,
tornou-se um detalhe frente à realidade do adesão generalizada aos termos do acordo.
Em meados da década dos 90, veio à luz uma primeira iniciativa de correção de rumos
por parte do comitê da Basiléia. Uma emenda ao acordo original foi aprovada em 1995,
estendendo a necessidade de constituição de coeficientes de capital também para o risco
de mercado (risco representado pela variação de preços dos títulos que se tenha em
carteira). Por outro lado, o cálculo deste risco já não era responsabilidade do regulador e,
sim, do próprio banco, cabendo ao supervisor aprovar o método de cálculo e as
estratégias de administração de risco correspondentes.12 Pelo menos no concernente ao
risco de mercado, a emenda abria uma nova possibilidade de relacionamento entre
regulador e regulado, pela qual se confiava a este último a responsabilidade pelo
dimensionamento do risco.
4. Epílogo: O Novo Acordo da Basiléia
A emenda de 1995 serviu para fechar as lacunas mais urgentes do acordo, mas sua
contribuição mais importante foi apontar o caminho que seria seguido numa
reformulação mais ampla do texto de 1988. A emenda já reconhecia que o banco
representativo dos anos 90 já não era mais aquela instituição dedicada apenas a captar
depósitos e fazer empréstimos. Tratava-se agora de regular e monitorar a operações de
firmas bancárias muito mais complexas e diversificadas, que encaravam riscos
igualmente muito mais complexos e diversificados. No entanto, o abandono da
perspectiva tutelar da supervisão financeira representava um rompimento com uma
tradição quase secular. Na verdade, tudo indica que este rompimento deu-se menos pela
persuasão de que se poderia confiar no mercado para tomar as precauções adequadas e
muito mais pela percepção da limitação da capacidade dos reguladores em antecipar
 
12 O cálculo do coeficiente de capital necessário para o banco precaver-se contra crises seria feito através da
formulação de modelos conhecidos como VAR (Value at Risk), que calculariam as perdas que o banco
sofreria na eventualidade dos preços dos títulos variarem em medidas definidas. Para exemplos destes
modelos, veja-se Goodhart et alli (1998), cap. 5.
23
movimentos adversos por parte dos bancos e criar os obstáculos adequados para detê-los.
A capacidade inovadora das instituições financeiras em ambiente de desregulação e
liberalização tornou a supervisão detalhista e intrusiva do século XX praticamente
impossível, a não ser que se decidisse reverter dramaticamente as mudanças por que
passaram os mercados até então. A focalização das atenções nas estratégias de risco, mais
do que nas suas manifestações especificas foi menos uma escolha por parte dos
reguladores do que um choque de realidade com respeito às suas limitações.
O novo acordo da Basiléia, ou Basiléia II como tem sido conhecido, consagra esta
reorientação estratégica ao estender a possibilidade do próprio banco definir e mensurar
os riscos a que está sujeito também ao risco de crédito.13 Há enormes dificuldades em
adaptar o tratamento dado ao risco de mercado ao risco de crédito, a começar pela
inexistência de dados adequados ao calculo das probabilidades efetivas de default que
permitam avaliar o valor-em-risco resultante de cada estratégia de administração de
riscos selecionada pelo banco. Limitações de espaço impendem o aprofundamento desta e
de outras disposições do texto do novo acordo neste trabalho. O aspecto mais importante
do novo acordo, contudo, assumindo que as difíceis negociações para estabelecer o novo
texto possam chegar a uma conclusão, é que ele completa o processo de transição para
um novo estilo de regulação e supervisão financeiras profundamente contrastante com as
práticas anteriores. A pequena matriz abaixo condensa visualmente este argumento.
EVOLUÇÃO DAS ESTRATEGIAS REGULATORIAS
Foco da Regulação Financeira
Sobre
Liquidez Sobre Solvência
Mé- Tutelar Até 1988 Basileia I e Emenda
to- De 1995
dos
Incentivo - - - Basileia II
 
13 Basiléia II inclui também nas suas prescrições medidas com relação ao chamado risco operacional. Este
risco, porem, é uma categoria omnibus, que inclui desde a possibilidade de acidentes até a verificação de
incompetência ou a ocorrência de fraudes. Seu tratamento é pragmático, nãocientifico como se quer seja o
caso com os riscos de credito e de mercado.
24
Grandes incertezas, de variadas naturezas, ainda cercam o novo acordo, inclusive a
respeito da capacidade dos supervisores financeiros de realmente avaliar estratégias de
risco adotadas por instituições bancárias que podem ser extremamente complexas. No
entanto, o que parece irreversível é a tendência de devolução de responsabilidades pelos
riscos assumidos aos próprios bancos. A década dos 1990 foi muito generosa com o setor
bancário dos países desenvolvidos, não servindo como um teste decisivo para a solidez
das novas regras. O único episódio de maior gravidade e com potencial mais ameaçador
ocorrido na década, contudo, em torno do fundo de hedge LTCM no segundo semestre de
1998 exigiu uma heterodoxa intervenção do Federal Reserve de Nova York para evitar
que a crise assumisse proporções mais ameaçadoras. É de supor, contudo, que apenas
crises de dimensões realmente catastróficas pudessem levar a uma reorientação drástica
das escolhas feitas até agora.
Referências
Basle Committee on Banking Supervision (BCBS), International Convergence of Capital
Measurement and Capital Standards, Julho de 1988, www.bis.org.
F. Carvalho, “Financial Innovation and the Post Keynesian approach to ‘the process of
capital formation’”, Journal of Post Keynesian Economics, 19 (3), Primavera de 1997.
F. Carvalho, F.E. Souza, J. Sicsú, L.F. de Paula e R. Studart, Economia Monetária e
Financeira. Teoria e Política, Rio de Janeiro: Campus, 2000.
C. Goodhart, P. Hartmann, D. Llewellyn, L. Rojas-Suarez e S. Weisbrod, Financial
Regulation. Why, how and where now?, Londres: Routledge e Banco da Inglaterra, 1998.
J. Kregel, The Past and Future of Banks, Quaderni di Ricerche 21, Bancaria Editrice,
1998.
H. Minsky, Can ‘It’ Happen Again?, Armonk: M.E. Sharpe, 1982.
Patricia Vieira Alexandre, Regulação e supervisão bancária: uma avaliação dos
impactos das regras de adequação de capital do acordo da Basiléia no Brasil, Tese de
mestrado submetida e aprovada pelo IE/UFRJ, 2003.

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