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Publicado em 19/02/2014 | Atualizado em 19/02/2014 http://cienciahoje.uol.com.br/alo-professor/intervalo/2014/02/a-ascensao-da-neurobobagem-popula/view A ASCENSÃO DA NEUROBOBAGEM POPULAR Bióloga e educadora comenta como a apropriação indevida do conhecimento e a deturpação de dados de pesquisa vêm alavancando a comercialização de produtos que nada têm de científicos. Vera Rita da Costa Talvez o leitor ache o título muito agressivo. Pode ser. No entanto, ele não desagradaria totalmente aos neurocientistas sérios, que têm visto seus dados de pesquisa, assim como os de outros colegas dessa área do conhecimento, serem apropriados, distorcidos e extrapolados por pessoas interessadas em vender manchetes em jornais e revistas, livros de autoajuda ou programas de treinamento e outros ‘neuroprodutos’ pseudocientíficos. Para compreender melhor o que menciono, sugiro conhecer a opinião da neurocientista Molly Crockett, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, apresentada na conferência que ela realizou para a fundação Technology, Entertainment, Design (TED) – mais conhecida como TED Conference – e disponível na internet. Nela, a pesquisadora conta como os dados de uma pesquisa da qual foi coautora foram mal compreendidos e transformados em manchetes equivocadas, sendo replicados e deturpados para servir a interesses totalmente alheios aos seus ou da pesquisa original. Para se ter uma ideia do que aconteceu, basta dizer que a divulgação da pesquisa de Molly Crockett, cujo objetivo principal era testar como as substâncias químicas do cérebro influenciam as escolhas que fazemos, rendeu manchetes do tipo: “Um sanduíche de queijo é tudo o que você precisa para tomar decisões difíceis”; “Comer queijo e carne pode aumentar o autocontrole” e “Comprovado! O chocolate não deixa você ficar ranzinza”. Em nome do humor e bem-estar “Onde está o problema?”, questiona-se Molly Crockett. “Está na frequência com que isso está acontecendo e no fato de os conhecimentos neurocientíficos (realmente interessantes) estarem sendo apropriados de maneira indevida e deturpados para alavancar a comercialização de produtos.” Como exemplo, Crockett cita seu próprio trabalho: quando as primeiras manchetes sobre a pesquisa de que participou apareceram na imprensa, ela foi procurada por empresários interessados em contar com seu “respaldo científico” para o lançamento de “bebidas para melhorar o humor” ou “comidas reconfortantes”, capazes de fazer com que nos sintamos melhor. Embora não tenha aceitado a proposta, os produtos não deixaram de ir para as prateleiras dos mercados. Há nos Estados Unidos atualmente toda uma linha de ‘neurodrinques’ ou ‘neurobebidas’ anunciadas como “capazes de diminuir o estresse, melhorar o humor, aumentar a concentração e promover uma postura positiva”. Sem endossos científicos ou testes controlados. Apenas a imagem de um cérebro na embalagem, como forma de certificar a pseudodescoberta e alavancar as vendas. O avanço nas pesquisas em neurociências e sua maior divulgação têm, assim, dado margem a extrapolações indevidas. Além disso, como comentei anteriormente, certos ‘achados’ em neurociências não necessariamente estão respaldados ou passaram pelos crivos científicos estabelecidos. E são tomados pela população, de modo amplo, e pela imprensa, em particular, como fatos inequívocos, quando na realidade não passam de ‘ciência de má qualidade’ ou de pura especulação. Segundo Crockett, basta associar a imagem de um produto a informações consideradas neurocientíficas ou a imagens de cérebros para aumentar sua credibilidade. E, longe de ser apenas uma impressão da pesquisadora, deve-se frisar: seu alerta está baseado em resultados de pesquisas que envolveram, entre outros, os próprios especialistas em neurociências e professores. Neuromitos Em um desses estudos, 'The Seductive Allure of Neuroscience Explanations', realizado na Universidade Yale (Estados Unidos) e publicado no Journal of Cognitive Neuroscience, verificou-se, por exemplo, que a mera descrição de fenômenos psicológicos gera mais interesse público quando contém informações neurocientíficas, mesmo que essas informações sejam irrelevantes para a compreensão dos fenômenos e que o grupo testado seja de especialistas da área. Ou seja, conforme os dados obtidos nessa pesquisa, nem mesmo especialistas no assunto estão totalmente imunes ao apelo ‘neurocientífico’. Em outro artigo, 'Neuromyths in education: Prevalence and predictors of misconceptions among teachers', realizado em parceria entre pesquisadores das universidades de Amsterdam (Holanda) e Bristol (Reino Unido) e publicado em 2012 em Frontiers in Psysichology, sugere-se que professores, entusiasmados com a possibilidade de aplicação dos resultados da neurociência, têm dificuldade em distinguir ciência de pseudociência e que apenas possuir conhecimentos gerais sobre o cérebro “não parece protegê-los da crença em neuromitos”. Entre as recomendações, um alerta: reforçar a formação (confiável) em neurociências para que os professores possam julgar melhor o que tem sido afirmado (e vendido) como conhecimento científico relacionado a essa nova área em formação. Além dessa recomendação, no entanto, vale uma ainda mais importante, prescrita por Carl Sagan e já discutida aqui em artigo anterior: é preciso que o ensino de ciências, inclusive aquele oferecido aos professores, foque mais como a ciência funciona, do que meramente o que a ciência descobre. Afinal, só compreendendo melhor como as neurociências funcionam (e em especial a forma como se obtêm os dados e as limitações de seus métodos) será possível aos professores diferenciá-las claramente das (neuro)pseudociências. Como opina Molly Crockett, o potencial das neurociências para tratar distúrbios mentais, e talvez até “para nos tornar melhores e mais espertos”, pode ser animador, mas o fato é que ainda estamos muito distantes disso. Não se encontrou um “botão de comprar no cérebro”, afirma a pesquisadora, assim como ainda não se pode dizer se alguém está mentindo ou amando apenas “olhando seus mapeamentos cerebrais”. Portanto, observa ela, é preciso ter cuidado para não deixar que afirmações exageradas desviem recursos e atenção da verdadeira ciência, e ficar alerta em relação aos “neuroabsurdos”. “Se alguém tentar vender algo com uma imagem de um cérebro junto, não confiem apenas em suas palavras. Questionem, peçam para ver as evidências, descubram a parte da história que não está sendo contada. As respostas não deveriam ser simples, porque o cérebro não é simples. Isso não nos impede, no entanto, de tentar entendê-lo”, diz a neurocientista. Pestilência intelectual Na mesma linha, vale a pena ler também o artigo ‘Your brain on pseudoscience: the rise of popular neurobollocksis’ (em uma tradução livre, ‘Seu cérebro sob o efeito da pseudociência: a ascensão da neurobobagem popular’), do jornalista Steven Poole, publicado originalmente em 2012, em New Statesman, e traduzido para o português em Opinião & Notícia. Em um ataque virulento ao que considera uma “pestilência intelectual”, Poole denuncia a enxurrada de livros que prometem explicar, por meio de estudos de ”imageamento cerebral bonitinhos, não apenas como o pensamento e as emoções funcionam, mas os mecanismos da política e da religião, bem como respostas a controvérsias filosóficas milenares”. É uma “praga de neurocientificismo”, que também pode ser chamada de “neurobaboseira, neurobobagem ou neurolixo”, diz ele. Segundo Poole, a explicação “neural” tem se tornado um “padrão áureo”, associado a todo um novo setor de “charlatanismointelectual”, que pretende desvendar até fenômenos socioculturais complexos. Basta adicionar o prefixo ‘neuro’ a qualquer assunto sobre o qual se está falando, para “vender ciência incompetente como ciência de verdade”. Uma visita rápida a uma livraria é suficiente para concordar com Poole. “Não é difícil encontrar livros cujos títulos ou subtítulos incluam o prefixo ‘neuro’: neuroeconomia, neurogastronomia, neuropolítica, neurocrítica, neuroteologia, neuromagia e até neuromarketing”, exemplifica. Mera e perigosa ilusão Voltando à educação – o tema de maior interesse aqui –, o médico britânico Bel Godacre, em seu livro Ciência picareta (Bad science, no original em inglês), publicado pela Civilização Brasileira no ano passado, relata um caso de espantar. Trata-se da ‘ginástica cerebral’, programa comercializado por altas cifras e instituído no sistema público de todo o Reino Unido que prescreve comportamentos e exercícios para desenvolver o cérebro. Entre as recomendações, conta Godacre, encontram-se muitas sem qualquer fundamento, como movimentar a cabeça para trás e para frente com o objetivo de “aumentar a circulação no lobo frontal, provocando maior compreensão e pensamento racional”. Segundo o médico, a adoção do programa em si é um absurdo e um ótimo exemplo de como ideias pseudocientíficas estão avançando sobre a educação. No entanto, para ele, mais absurdo ainda é o fato de os professores, principalmente os de ciências, terem se deixado “iludir” com palavras técnicas e imagens do cérebro e “engolido” esse programa sem resistência ou crítica. No Brasil, ainda não estamos bebendo ‘neurodrinques’ ou fazendo ‘ginástica cerebral’ em nossas escolas (que eu saiba), mas as prateleiras de nossas livrarias estão cheias de ‘neurolivros’. Além disso, qualquer um que transita no meio educacional percebe o encantamento dos professores com os conhecimentos gerados pelas neurociências e suas possíveis aplicações no campo da educação (realmente promissoras) e que isso se reflete, por exemplo, na busca (e no oferecimento) crescente de cursos de pós-graduação sobre o tema. É recomendável, portanto, estar atento e engajar-se nessa discussão: neurociência aplicada à educação é bem-vinda, mas (neuro)pseudociência, não.
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