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O_ROMANCE narrativas modernas

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O ROMANCE
	Nesta unidade, destacaremos as narrativas da época moderna. A época moderna refere-se a um momento da civilização ocidental que se inicia com a consolidação de uma interpretação racional do mundo, com o advento e crescimento de um sistema econômico chamado capitalismo, e uma abordagem filosófica e sociológica mais centrada no indivíduo que na coletividade. A época moderna pode ser localizada no período que se inicia no século XVI até os dias atuais. 
Não confunda “Modernidade” com “Modernismo”. O Modernismo, embora ocorrido durante o período da modernidade, refere-se a um momento estético que se deu no século XX. Já a Modernidade é um período histórico, que se relaciona com a consolidação do individualismo e do capitalismo.
	
	
		Chamado por Hegel de a epopeia dos tempos modernos, o romance será a forma narrativa para atender a essa nova concepção de sociedade, menos rígida e menos homogênea que a anterior. Para Lukács (2000, p. 55), “o romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”. Em outras palavras, em um mundo em que os deuses já não decidem as grandes tramas da vida pessoal e da nação, sem herois com poderes mágicos e superiores aos homens comuns, em um mundo de fissuras e instabilidades, as narrativas maravilhosas da epopeia não mais poderiam representar o indivíduo e a sociedade. Era necessário criar uma epopeia do homem comum, e o romance veio atender a esta necessidade.
	O romance retratou, desde suas primeiras manifestações, os conflitos individuais da vida cotidiana, distinguindo-se de outras formas narrativas pelo seu caráter popular. Desde seus primórdios, o romance, então, constituiu-se em uma forma literária escrita em uma linguagem que visava um público menos privilegiado, característica que o levará a ser considerado como uma literatura menor até o século XIX. 
	Apesar da falta de um consenso crítico, podemos dizer que supostamente o romance moderno inicia-se no século XVIII, na Inglaterra. Daniel Defoe, Samuel Richardson e Henry Fielding teriam sido os primeiros grandes escritores que construíram narrativas sem se basear na mitologia, na História, na lenda, ou em outras fontes literárias do passado. Esses autores escreveram narrativas sobre o dia a dia de uma Inglaterra que se industrializava e modernizava, a partir de enredos “ou inteiramente inventados ou baseados parcialmente num incidente contemporâneo.” (WATT, 2010, p. 15).
	Além desse rompimento com o passado, o romance moderno deslocaria a ênfase do coletivo, que marca a epopeia, para o indivíduo. Tal indivíduo, porém, constituía-se em um ser em conflito com a sociedade, um heroi problemático, que, ao contrário do heroi da epopeia, não tinha a função de se ajustar a um mundo com regras pré-estabelecidas. O indivíduo, no romance, está sempre à busca de si mesmo, e este movimento não termina em uma perfeita adequação a um mundo instável.
	As primeiras manifestações do gênero com os aspectos supracitados podem ser rastreadas já no século XVI. Neste momento, surgem narrativas que apresentam um heroi jovem, pobre e ardiloso, completamente oposto ao perfil aristocrático do heroi nobre e superior da epopeia. Este heroi, malandro, desonesto mas simpático, o “pícaro” (velhaco, aventureiro, astuto), representava uma parte da sociedade pobre e desprotegida, que usava de recursos nada louváveis para sobreviver. Destaca-se, dentro dessas narrativas a anônima Vida de Lazarillo de Tormes, publicada em 1554. Escrita em primeira pessoa, narra, em estilo epistolar a vida de Lázaro de Tormes, com pinceladas de realismo, em um tom bastante pessimista, iniciando um ciclo de narrativas que receberiam o nome de “romances picarescos”. 
				Ilustração do pícaro, de Hans SebaldBeham
Victor Aguiar e Silva explica o que é o romance picaresco:
O romance picaresco, através de numerosas traduções e imitações, exerceu larga influência nas literaturas europeias, encaminhando o gênero romanesco para a descrição realista da sociedade e dos costumes contemporâneos. O significado do romance picaresco, na história do romance, transcende todavia esta lição de realismo. O pícaro, pela sua origem, pela sua natureza e pelo seu comportamento, é um anti-herói, um eversor dos mitos heroicos e épicos, que anuncia uma nova época e uma nova mentalidade – época e mentalidade refractárias à representação artística operada através da epopeia ou da tragédia. Através da sua rebeldia, do seu conflito radical com a sociedade, o pícaro afirma-se como um indivíduo que tem consciência da legitimidade da sua oposição ao mundo e que ousa considerar, em desafio aos cânones dominantes, a sua vida mesquinha e reles como digna de ser narrada. Ora o romance moderno é indissociável desta confrontação do indivíduo, bem consciente do carácter legítimo da sua autonomia, com o mundo que o rodeia. (Aguiar e Silva, 1976, p.255).
	
	No século XVII, é publicada uma obra que viria a ser considerada como o primeiro romance da literatura ocidental - Dom Quixote, do espanhol Cervantes. O enredo apresenta um fazendeiro que enlouquece de tanto ler histórias de cavalaria, sai pelo país em uma viagem delirante, na qual se imagina um cavaleiro andante, pronto para salvar o mundo. Entre ações desastradas, como quando confunde moinhos de vento com gigantes, e até ridículas, D. Quixote vive seu delírio juntamente com o prosaico Sancho Pança, um vizinho bastante simplório e realista. Mesmo várias vezes advertido por Sancho, D. Quixote mantém-se na ilusão, no objetivo de provar e merecer o amor de D. Dulcineia de El Toboso, suposta mulher aristocrática e delicada que, na verdade, era uma vizinha grosseira e tosca.
	
 D. Quixote – Ilustração de GerhartKraaz
	Nesta obra que satiriza os medievais ideais cavalheirescos, a realidade concreta aponta para um mundo em que a fantasia e os sonhos não mais se sustentam por si só, sendo necessário a presença de um realista Sancho Pança para balancear o idealista Quixote. Esta seria a grande alegoria dos tempos modernos, tempos em que o cotidiano se impõe em sua inexorabilidade. Veja o comentário do romancista Milan Kundera sobre D. Quixote e a modernidade:
Quando Deus deixava lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e sua ordem de valores, separado o bem do mal e dado um sentido a cada coisa, Dom Quixote saiu de sua casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do Juiz supremo, surgiu subitamente numa temível ambiguidade; a única verdade divina se decompôs em centenas de verdades relativas que os homens dividiam entre si. Assim, o mundo dos Tempos Modernos nasceu e, com ele, o romance, sua imagem e modelo. (KUNDERA, 1988, p. 12).
	É desta instabilidade do mundo, e como o sujeito se localiza neste novo cosmo, que o romance trata. As narrativas desistem dos grandes ideais, dos combates valiosos. O que interessa é vencer o dia a dia, em seus meandros, suas minúcias e toda sua alienação.
	No século XVIII, o gênero floresce. Considerado obra frívola, por seu público pouco culto e nada exigente, o romance foi visto também como perigoso pela questão passional e a corrupção dos bons costumes, já que o modelo cada vez mais se afastava de seu antecessor, as histórias de santo e de instrução religiosa. O fato é que o Século das Luzes (XVIII), marcado pela ascensão da burguesia, que fortaleceu a indústria e o comércio, foi o “solo propício ao desenvolvimento do romance”. (SCHÜLER, 1989, p. 7). 
	Durante esta época, várias serão as formas de romance que serão disseminadas no ocidente, como o romance epistolar, o romance romântico, o romance de formação, e o romance moderno. 
	O romance epistolar, como o próprio nome sugere, refere-se a narrativas que eram realizadas sob a estrutura de epístolas (cartas). Através da correspondênciaentre personagens, o enredo encaminhava a ação, esclarecendo os detalhes íntimos daqueles que conduziam a narrativa. Este tipo de romance apresentava um narrador em 1ª. pessoa, o que dava um aspecto de maior intimidade e sinceridade. A narração a partir de cartas é um recurso que pressupõe um ato autobiográfico, dando à história um aspecto mais verossímil. Alguns desses romances se tornaram célebres, como Pamela (1740), de Samuel Richardson; Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe; Ligações perigosas (1782),de Choderlos de Laclos; A nova Heloísa (1761),de Rousseau.
	Outra forma popular na época foi o romance de formação, o Bildungsroman, que tem como modelo Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, publicado em 8 volumes entre 1777 a 1786. Neste tipo de romance, é exposto todo o processo que leva uma pessoa, desde a sua infância até a maturidade a se tornar o que é, ou seja, narra-se todo o desenvolvimento físico moral e psicológico do sujeito, a sua formação subjetiva e social.
	O romance romântico, que se desenvolverá melhor no século XIX, vem atender ao público do gênero com grande ressonância. Através de seus desdobramentos em romance psicológico, como Adolphe (1816), de Benjamin Constant, ou de romance histórico, como em Walter Scott, ou no português Alexandre Herculano, ou mesmo como um romance que, na liberdade de forma, se desprende das regras dos gêneros literários e se aproxima da poesia, como Aurélia (1855), de Gérard de Nerval, torna-se a expressão narrativa da época.
	É neste século que o romance assume sua forma mais madura:
Com Flaubert, Maupassant e Henry James, a composição do romance adquire uma mestria e um rigor desconhecidos até então; com Tolstoi e Dostoievski, o universo romanesco alarga-se e enriquece-se com experiências humanas perturbantes pelo seu caráter abismal, estranho e demoníaco; com os realistas e naturalistas, em geral, a obra romanesca aspira à exactidão da monografia, de estudo científico dos temperamentos e dos meios sociais. Em vez dos heróis altivos e dominadores, relevantes quer no bem, quer no mal, tanto na alegria como na dor, característicos das narrativas românticas, aparecem nos romances realistas as personagens e os acontecimentos triviais e anódinos extraídos da baça e chata rotina da vida. (AGUIAR e SILVA, 1976, p. 262).
	
	O romance do século XX, por seu lado, apresenta grandes novidades na estrutura do gênero. De uma forma ou de outra, o romance moderno estabelece novas formas de se abordar a realidade, podendo, para isso, inclusive, proceder uma “desrealização”, termo usado por Anatol Rosenfeld (1969), para mostrar um processo de afastamento da realidade pela linguagem, pelo absurdo, ou pelo enfoque microscópico no sujeito.
	Em Marcel Proust, o enfoque se dá no ponto de vista do sujeito, que reconstrói sua narrativa a partir da memória. Este tipo de romance, totalmente voltado para a interioridade do indivíduo, que geralmente se vale do fluxo de consciência, vai ser uma das linhas mais profícuas do romance moderno e terá grandes nomes representando-o, como Virginia Woolf, James Joyce, ou mesmo a brasileira Clarice Lispector.
	Outra maneira de se promover essa “desrealização” no romance, pode ser vista pela adoção do absurdo, como em Kafka, que elabora uma narrativa a partir de componentes simbólicos e alegóricos. Um dia, Gregor Samsa acorda transformado em barata, e é este inseto que assumirá a narrativa, demonstrando, metaforicamente, o lugar do sujeito.
	Este processo de desrealização não significa que o romance se afastou de sua vocação realista, mas que a representa, agora de maneira ou focos diversos, inclusive mais radicais. Uma dessas maneiras são os romances em que a linguagem passa a protagonizar toda a ação. Como exemplo, podemos citar o brasileiro Grande sertão, veredas, de Guimarães Rosa.
Quatro marcas estruturais do romance
	Assim,o romance, desde o século XVIII, apresenta-se em várias formas. No livro A arte do romance, Milan Kundera (1988) aponta para a complexidade e orientação intertextual do romance:
O espírito do romance é o espírito de complexidade. Cada romance diz ao leitor: “As coisas são mais complicadas do que você pensa.” Esta é a eterna verdade do romance [...].
O espírito do romance é o espírito de continuidade: cada obra é a resposta às obras precedentes, cada obra contém toda a experiência anterior do romance. (KUNDERA, 1988, p. 22).
	Assim, mais do que problematizar a relação do indivíduo com a sociedade, o romance problematiza o próprio gênero, e a cada novo momento, as questões se desdobram. A multiplicidade do romance é atestada por vários autores. Para Baudelaire, “o romance e a novela tem um maravilhoso privilégio da maleabilidade”. Um romance pode abordar praticamente todos os assuntos e tempos, em uma liberdade de expressão quase sem limites. 
	Apesar dessa vulnerabilidade do gênero, podemos destacar quatro marcas estruturais que fundamentam este tipo de narrativa. Vamos a elas.
	A RUPTURA COM A ORALIDADE
	O romance marca uma profunda e definitiva ruptura com a oralidade nas narrativas, e isto transcende as questões artísticas. Sendo um produto da escrita, o romance moderno compõe-se pelo paradigma das novas relações que se estabelecem entre o autor da obra literária, seu novo patrão, o livreiro, e seu público, que não possuía poder aquisitivo para comprar livros caros, e se dedicava a edições mais baratas, pirateadas, ou aos famosos folhetins. A estrutura do romance moderna vai se dar, então, para atender a esses novos critérios de produção.
	O mundo urbano decorrente da industrialização exigiu um investimento na alfabetização de uma população que, em outros tempos, não tinha acesso à escrita. Assim, no século XVIII, vê-se um aumento significativo, com relação aos períodos anteriores, de cidadãos menos abastados que aprenderam a ler e escrever, mesmo que em graus bastante incipientes. 
	Desse público ainda nascente, destaca-se a crescente popularização da leitura entre as mulheres, que, sem poderem participar ativamente dos processos trabalhistas, viviam em um incômodo ócio, como destaca Watt. Mesmo os trabalhos caseiros, como tecer, bordar, fazer pão, estavam cada vez mais vinculados às indústrias e aos trabalhadores especializados. As mulheres então, independente das classes sociais a que pertenciam, estavam à toa. Para ocupá-las e prevenir que elas se dedicassem a qualquer ato imoral, aconselhava-se que as mulheres se dedicassem à leitura, de preferência de obras com aspectos moralizantes e religiosos. Aos poucos, porém, essas histórias foram adquirindo um caráter mais secular, afastando-se de seus indícios de moralidade e religiosidade, e abordando temas sentimentais e do cotidiano.
	Outra questão importante diz respeito aos preços dos livros na época em que o romance se firmou como um gênero popular. As epopeias francesas eram caríssimas e luxuosas, e somente um leitor muito endinheirado poderia ter acesso a elas. Os romances custavam um preço médio, mas começaram a ser publicados em vários volumes, o que, apesar de encarecê-los permitia que se comprasse “à prestação” aquela história. Mais barato ainda eram os jornais, que publicavam em seus famosos folhetins capítulos dos romances, tornando acessível o contato com várias obras da época. Outra medida que popularizou o gênero, foram as bibliotecas circulantes, que por um preço módico, permitiam o empréstimo de livros, sendo o romance o tipo literário mais popular.
	O contador de história era agora substituído pelo autor, que, com o declínio da nobreza, perde seu patrocínio da corte e começa a trabalhar, como qualquer outro trabalhador, para seu patrão, no caso, o livreiro. Esse operário das letras devia “produzir” muitas páginas, pois era pago pela quantidade e não pela qualidade das mesmas, o que propiciou um estilo prolixo e descuidado, reiterando o caráter de literatura menor que o romance possuiu por longo tempo. Da mesma forma, isto contribuiu para a consolidação da prosa como a linguagem doromance, pois era bem mais fácil escrever em um estilo prosaico do que preocupar-se com as regras que o poema impunha na época, o que exigiria um trabalho linguístico mais demorado.
	Assim, o romance moderno nasce sob o signo do mercado e suas regras de produção e lucro. E são essas novas diretrizes, e o efeito devastador que elas causam no indivíduo, que se desenvolverá neste novo gênero narrativo.
	O REALISMO FORMAL
	Para Watt, o realismo formal seria o mínimo denominador comum do gênero romance, e é este o fator que marcará a diferença entre ele e as formas anteriores de narrativa. O teórico inglês explica o realismo formal da seguinte maneira:
Na verdade o realismo formal é a expressão narrativa de uma premissa que Defoe e Richardson aceitaram ao pé da letra, mas que está implícita no gênero romance de modo geral: a premissa, ou convenção básica, de que o romance constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações – detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literárias. (WATT, 2010, p. 34).
	O romance, então, deveria oferecer ao leitor um panorama da sociedade e do indivíduo que centraliza a narrativa, com seus pormenores, em toda sua autenticidade. O compromisso do romance, seria, então, descrever com bastante detalhes a realidade histórica da narrativa. A linguagem, mais acessível e mais descuidada, às vezes até beirando a vulgaridade, vai marcar esta história da vida cotidiana, regida pelas leis do mercado, como afirma Goldmann (1976), que entende o romance como a transposição para o plano literário das normas da sociedade individualista nascida sob a égide do capitalismo. 
	O romance, que se volta para um indivíduo específico, é marcado por este aspecto biográfico, ao mesmo tempo que tem o compromisso de fazer uma crônica de seu tempo. A ambientação é fortemente valorizada, os detalhes são descritos demoradamente com minúcias. Os personagens, não mais aristocráticos e superiores como na estrutura da epopeia, são homens comuns, que lidam com este novo mundo. O tempo, que na epopeia era o guardião da tradição, aqui desloca-se para o presente, e o romance se torna responsável por registrar este novo momento histórico em suas mazelas e contradições.
	
	O INDIVIDUALISMO
	O individualismo surge com o grande aumento da especialização econômica decorrentes do fortalecimento do capitalismo, que propiciou uma estrutura social menos rígida e homogênea, aumentando a liberdade de escolha individual. Em uma sociedade em que o indivíduo faz uma parte específica, sem acesso a uma totalidade, cada um é cada um, e o senso coletivo não mais se legitima.
	O termo, que surgiu em meados do século XIX, vai indicar uma orientação para o eu à parte do outro e da sociedade, como Ian Watts explica:
Sem dúvida em todas as épocas e em todas as sociedades houve individualistas no sentido de egocêntricos, singulares ou independentes com relação às opiniões e aos hábitos vigentes; entretanto o conceito de individualismo envolve muito mais que isso. Pressupõe toda uma sociedade regida basicamente pela ideia da independência intrínseca de cada indivíduo em relação a outros indivíduos e à fidelidade os modelos de pensamento e conduta do passado designados pelo termo “tradição” – uma força que é sempre social, não individual. (WATT, 2010, p. 63).
	Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, seria o romance que marcaria essa característica em toda sua essência. Publicado em 1719, esse romance epistolar conta a história de um náufrago que vive praticamente sozinho durante quase 30 anos em uma ilha. Lá, ele aprende a sobreviver com os recursos que tem, sendo, inclusive, muito bem-sucedido em seu objetivo. Além de ressaltar o isolamento como algo que não esmaece de fato o indivíduo, essa narrativa é uma grande metáfora das relações de produção e consumo do capitalismo, destacando a necessidade de se portar como alguém à parte, fortalecendo essa ideia de individualismo. A história de Robinson Crusoé traz à cena o fato de que, em uma sociedade ávida, competitiva e nada solidária, é na solidão que o homem moderno consegue realizar seus desejos. 
	Ian Watt aponta um trecho em Daniel Defoe, em que esta orientação para o indivíduo é marcada:
O que são para nós as tristezas dos outros homens e suas alegrias? Algo que pode nos tocar com a força da compaixão e uma secreta reviravolta dos afetos; mas toda reflexão autêntica é sobre nós mesmos. Nossas meditações são todas solidão absoluta; nossas paixões exercem-se todas no isolamento; amamos, odiamos, desejamos, gozamos, tudo na intimidade e na solidão. Tudo que transmitimos aos outros tem por fim obter sua ajuda na realização de nossos desejos; o fim está em nós; o prazer, a contemplação, tudo é solidão e isolamento; divertimo-nos sozinhos, sofremos sozinhos. (DEFOE apud WATT, 2010, p. 97).
	No romance, esta orientação para o indivíduo, em uma forma radical de rompimento com a ideia de coletividade, se realiza. Rompido com o passado e sua tradição, o romance se coloca a serviço do indivíduo, de suas batalhas cotidianas, de seus rompimentos e de suas buscas.
	O HEROI PROBLEMÁTICO
	Este indivíduo, no entanto, será um heroi problemático. Esta teoria, que Lukács desenvolveu em seu Teoria do romance, apregoa que, ao contrário da epopeia, há uma ruptura inseparável entre o heroi e o mundo. O heroi do romance procuraria, em um mundo degredado, valores autênticos, estando, portanto, sempre em conflito com este mundo. A esta investigação, Lukács chamaria de “demoníaca”, já que o romance vai mostrar um mundo sem deuses:
O romance é a epopeia do mundo abandonado por deus; a psicologia do heroi romanesco é a demoníaca; a objetividade do romance, a percepção virilmente madura de que o sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas de que, sem ele, esta sucumbiria o nada da inessencialidade – tudo isso redunda numa única e mesma coisa, que define os limites produtivos, traçados a partir de dentro, das possibilidades de configuração do romance e ao mesmo tempo remete inequivocamente ao momento histórico-filosófico em que os grandes romances são possíveis, em que afloram em símbolo do essencial que há para dizer. (LUKÁCS, 2000, p. 89-90).
	Assim, o romance se torna uma “epopeia negativa” (termo que Adorno usa), pois, ao invés de representar a integração do indivíduo com seu mundo, o gênero aponta para a impossível relação entre os dois elementos. Esta ruptura se dá através de uma peregrinação que o indivíduo problemático promove rumo a si mesmo, em uma viagem de autoconhecimento. Mesmo quando esta viagem é bem realizada, e o indivíduo encontra um sentido em sua vida, a sociedade não é o lugar em que uma autêntica realização do sujeito pode se concretizar. 
	O romance, então, é o gênero que aponta de maneira mais direta a uma total falência do sistema, uma vez que o sucesso dos pressupostos econômicos e sociais não implicam em uma autêntica realização pessoal. Neste sentido, o heroi romanesco é aquele que denuncia esta incapacidade de o sistema capitalista tornar o sujeito integrado a si mesmo e à sociedade.
	Essa ruptura indelével entre o indivíduo e a sociedade serão, para Lukács, apontadas no romance a partir de 3 graus:
1) Romance de “idealismo abstrato” – Inadequação completa entre o indivíduo e o mundo. O sujeito estabelece uma ação contínua de confronto com o mundo, sem respaldo dos deuses. O heroi age muito, mas pensa pouco. Estreiteza de consciência X complexidade do mundo moderno. Ex.: Dom Quixote.
2) Romance psicológico – Neste tipo de romance, a história enfoca basilarmente a vida interior do heroi, que possui uma “consciência demasiado vasta para contentar-se com o que o mundo da convenção lhe pode propiciar”. (GOLDMANN, 1976, p. 10). A tônica é, aqui, a passividade, umavez que o heroi está voltado para seu mundo interior. Aqui, inverte-se a fórmula anterior, e o heroi pensa muito e age pouco. Ex.: Educação sentimental, de Flaubert.
3) Romance educativo – Síntese das anteriores, neste tipo de romance ocorre uma renúncia à pesquisa problemática, sem, no entanto, haver uma adequação do mundo convencional. Ex.: Wilhelm Meister, Goethe.

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