Buscar

Pinho, Patricia - A Bahia no Atlântico Negro - Cap 1

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 20 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 20 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 20 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Capítulo 1 
A Bahia no Atlântico Negro 
"O mar: um abrigo que lá está ... " 3 
Desde a colonização do Novo Mundo e a dispersão de africanos 
· ·cravizados, a África tem sido a principal fonte de inspiração para as 
·hamadas culturas negras que se criam e se recriam por toda a diáspora. A 
/'rica da qual se fala aqui não é o imenso continente africano, que abriga 
dezenas de diferentes países e centenas de diferentes povos. É uma África 
que pode até ser muitas Áfricas, mas que permanece una.4 África que é 
tribal, vinculada ao passado e aos ancestrais, mas que seria sobretudo fiel 
11os seus descendentes, quer estes habitem ou não em suas terras, pois o 
que importa é que a África, possuindo a totalidade indivisível de um signo, 
resida no campo fértil e criativo dos imaginários afrodescendentes. 
Este capítulo procura mostrar a centralidade da África para o processo 
d criação de identidades negras na diáspora. Analisando a importância da 
África enquanto um signo nas narrativas e representações de negritude, 
descrevo, em primeiro lugar a busca da África pela diáspora, isto é, a crença 
cm uma África mítica e idealizada por parte de comunidades negras 
diaspóricas, e como essa idéia tem permeado a criação e recriação de culturas 
n gras em diferentes tempos e espaços. Em seguida, será demonstrado como 
•s e processo tem ocorrido na Bahia, mais especificamente na cidade de 
Salvador, onde se encontra a cultura negra mais visível do Brasil. Veremos 
que a busca da África na Bahia tem tornado Salvador ainda mais 
"africanizada", ampliando assim sua "aura de negritude" e tomando a Bahia 
l , Da canção "Jeito Faceiro", de Jaupery e Pierre Onassis, Olodum. 
4. Uma das apostilas elaboradas pelo Ilê Aiyê afirma que a África está dividida em quatro 
regiões geográficas (Oeste, Leste, Central e Austral), ainda assim, haveria uma única 
Identidade que as atravessaria: "Essas regiões representam duas grandes áreas culturais 
( .. . ) sem perder a força de uma identidade cultural, para além de barreiras, de limites 
impostos pelos colonizadores europeus" (Jlê Aiyê, África: Ventre Fértil do Mundo , 
2000:02) . 
28 Reinvenções da África na Bahia 
extremamente atraente tanto para militantes negros de outros Estados do 
Brasil como para turistas afro-americanos que visitam a Bahia, em número 
cada vez maior, em busca da africanidade que esta teria a oferecer. Seguindo 
a perspectiva adotada neste livro, defende-se aqui a idéia de que as culturas 
negras, muito mais do que resultantes de uma herança africana original, têm 
se construído a partir de dinâmicos processos ocorridos no interior do 
Atlântico Negro. 5 Nesse sentido, além de tratar das influências da diáspora 
negra para a criação de uma "cultura negra afro-baiana", irei analisar também 
como a diáspora tem buscado a Bahia, avaliando o lugar que esta ocupa 
dentro da rede mundial que conecta os imaginários de negritude e 
africanidade, expandindo a multicentralidade do Atlântico Negro. 
1.1 A diáspora em busca da África 
A África sempre teve extrema importância para os negros desterri-
torializados e reterritorializados no continente americano. Inicialmente, a 
saudade, a nostalgia e a depressão, muitas vezes chamada de banzo, refletiam 
o desejo de retorno à terra natal, ao lugar de origem de onde se fora retirado 
à força, mas que não tinha ainda, para os escravizados, o nome de África. Foi 
só a partir do século 19 que se começou a pensar que os africanos e seus 
descendentes na diáspora compartilhariam de uma identidade específica. 
Os movimentos sociais negros marcaram presença na história das 
Américas, permeando todo o século XX com fortes manifestações dos 
descendentes de africanos. Na primeira década de 1900, o Pau-Africanismo 
começou a se organizar, primeiramente na Europa e depois em várias partes 
da América, reivindicando a unificação do continente africano e a aliança 
concreta e progressista com uma diáspora unida. Desde então, a África tem 
existido como urna "comunidade imaginada" (Anderson, 1989) para os negros 
na diáspora. Poderíamos chamá-la também -e talvez mais apropriadamente -
de "comunidade imaginária", já que, diferentemente de um estado-nação, e 
exceto em casos muito específicos como Serra Leoa e a Libéria, a África não 
tem sido freqüentemente habitada pelos negros da diáspora.6 
Nas décadas de 1910 e 1920, o pensamento do intelectual jamaicano 
Marcus Garvey influenciou negros na Jamaica, nos EUA e na África, 
originando um movimento transnacional em torno das suas idéias, criando 
5. Paul Gilroy, The Black Atlantic, Modernity and Double Consciousness, 1993. 
6. Sobre o retomo de negros da diãspora para a África, é imprescindível citar também 
os chamados "escravos retornados", dentre os quais os agudãs, brasileiros que se 
instalaram no Benin. Sobre o tema, ver: Cunha, 1985 e Guran, 1999. 
Patrlcia de Santana Pinho 29 
um movimento negro de dimensão mundial. Garvey criou impacto, 
mundialmente, ao pensar o negro como um ser universal. Os negros, embora 
presentes em diversas partes do mundo, teriam todos a mesma filiação: seriam 
filhos da Mama África e, portanto, irmãos entre si. Dentre seus objetivos, 
arvey queria que a África se transformasse numa nação negra com poder 
mundial, um lugar para onde os negros pudessem retornar (Barret, 1988). 
Na década de 1930, o movimento da Negritude ganhava adeptos na 
Europa, África e Américas. Dentre suas diversas reivindicações, a Negritude 
pregava o resgate dos valores da civilização africana, recuperando a memória 
africana para trazer orgulho aos negros na Europa e Américas. A Negritude 
urgiu primeiramente na literatura, como uma forma de recusa à dominação 
da cultura européia e como tentativa de retorno àquilo que seria primordial 
da "raça negra", representado pelas tradições e valores africanos 
(Nascimento, 1981). Da literatura, a Negritude se espalha para outras áreas 
da cultura, adquirindo ainda novos significados e influenciando as 
manifestações negras que se seguem por todo o século XX. 
Os anos 60 inauguram um novo elo entre culturas negras diaspóricas e 
a Mama África. A sou/ music norte-americana servia de trilha sonora para o 
Movimento dos Direitos Civis, e os discursos dos líderes negros Martin 
Luther King e Malcom X clamavam pelo processo de conscientização de 
negros em várias partes do mundo.7 A publicação do best-seller Roots de 
Alex Haley, na década de 70, funcionou como um dos grandes propulsores 
do movimento de busca da África por parte dos negros norte-americanos 
que visavam reconstruir seu passado étnico. Ainda antes disso, nos anos 
50, o livro de Richard Wright, Black Power, já havia inspirado os negros 
americanos a olharem de novo, e de modo novo, para a África. Os súnbolos 
que remetessem à África tornaram-se presentes por todo os EUA. Mapas 
africanos foram desenhados em roupas e adornos, e estilos de cabelos 
africanos viraram moda. A estética, assim como a música, tomou-se parte 
importante das demonstrações públicas de identidade e de orgulho. 
Para Stuart Hall, as diásporas forçadas - cujo maior exemplo é a diáspora 
negra - produzem imagens que propõem uma coerência imaginária à 
experiência da dispersão e fragmentação. O triângulo da diáspora negra está 
centrado na África como mãe de várias civilizações diferentes. "África é o 
nome do termo ausente, a grande aporia, que jaz no centro de nossa identidade 
7. Confirmando a influência negra internacional sobre os movimentos brasileiros, um 
membro do !lê Aiyê afirmou: "O flê Aiyêfoifundado e se baseou muito nos negros 
norte-americanos, os Black Power, Ma/com X, Martin Luther King, Mandela e 
muitos outros africanos que lutaram pela libertação do seu país. Então essas 
pessoas, nós fazemos questão de que sejam lembradas, porque é uma força, é uma 
maneira de mostrar que os negros lutam em todo o mundo para libertar o se11povo. " Osvalrísio, diretor do Ilê Aiyê, em entrevista à TV Cultura. 
30 Reinvenções da África na Bahia 
cultural e dá-lhe um sentido que ela, até recentemente, não tinha" (Hall, 1996, 
69). As conexões esquecidas são mais wna vez restabelecidas, de forma 
nova e criativa, produzindo identidades baseadas no mi.to de uma africanidade 
unificadora e formulando as imagens e discursos diaspóricos. 
Evidentemente, o uso do termo "mi.to" não é aqui feito para diminuir a 
força ou questionar a veracidade da crença em uma unidade africana na 
diáspora, a qual estou chamando de Mito da Mama África. Ao contrário, 
utilizo o termo mi.to exatamente por este conter as dimensões mais sutis e ao 
mesmo tempo poderosas das estórias sagradas que construímos para explicar 
e interpretar o mundo. Carregando valores, mensagens e ideais, os mi.tos são 
centrais para as narrativas e representações produzidas por povos em 
contextos diaspóricos. 
A linguagem da diáspora é criada por povos que sentem, vivem e 
inventam uma conexão com um lar primordial. Este sentido de conexão se 
modifica através de processos de esquecimento, assimilação e opressão. 
Para Safran8 (1991 ), as diásporas são "comunidades minoritárias expatriadas" 
que são dispersas a partir de um centro original para pelo menos duas 
periferias; mantêm uma memória, visão ou mi.to sobre seu lar original; acreditam 
que não são totalmente aceitas no país para o qual foram levadas; enxergam 
o seu lar ancestral como wn local de possível retomo; acreditam que estão 
comprometidas na manutenção e recuperação de sua terra original; acreditam 
que sua consciência e sua solidariedade são prioritariamente definidas através 
da relação continuada com a terra-mãe original. 
"Diáspora" é uma palavra de origem grega que significa dispersão. 
Durante muito tempo, o termo foi usado sobretudo para designar o processo 
de dispersão dos judeus, bem como os próprios grupos de judeus localizados 
fora da sua terra de origem. No final do século 19, a expressão "diáspora" foi 
utilizada para se referir aos africanos espalhados mundo afora por conta da 
escravidão. Atribui-se ao intelectual caribenho Edward Blyden a primeira 
menção a wna "diáspora africana". Em 1880, Blyden teria afirmado que haveria 
muita semelhança entre a dispersão dos judeus e a dos africanos, com a 
diferença de que os judeus circularam pelo mundo como pessoas livres e 
economicamente independentes, enquanto os africanos foram levados como 
"coisas'', representando o maior exemplo existente de diáspora forçada. A 
expressão diáspora africana, ou negra, só se popularizou, contudo, em meados 
da década de 1960, inicialmente nos Estados Unidos e no Caribe e, em seguida, 
cm toda a "diáspora", tendo sido amplamente divulgada por intelectuais e 
movimentos políticos negros.9 
8. William Safran, "Diasporas in Modern Society: Mytbs of Homeland and Return", 
1991 , citado em Clifford, 1994 . 
9. ll11cyclopedia of African American Culture and History (1996:762). 
Palricia de Santana Pinho 31 
As comunidades que se autodefinem diaspóricas mantêm uma memória 
ou mito sobre sua terra de origem e, por isso, estão comprometidas com a 
restauração simbólica da mesma, alimentando o imaginário que se constrói 
em tomo da "terra-mãe". O conceito de diáspora pressupõe então longas 
distâncias e uma separação parecida com o exílio e o tabu do retorno, 
conectando as múltiplas comunidades de uma população que foi espalhada 
geograficamente . É interessante perceber, no entanto, como mostra Clifford 
( 1994), que muitos grupos minoritários que antes não se identificavam desta 
forma estão agora rei vindicando origens e afiliações diaspóricas. As conexões 
transnacionais elaboradas pelo discurso diaspórico criam, para alguns grupos 
desprivilegiados, uma sensação de expansão sobre os limites da nação na 
qual são minorias. Dessa forma, a diáspora contribui para fortalecer conceitos 
como "double consciousness", de W.E.B. Du Bois (1999), porque seu discurso 
reflete o sentimento de pertencer a uma rede transnacional, que inclui a terra-
mãe não como algo que ficou para trás, mas como um local de conexão com 
a modernidade. O conceito de "double consciousness", ou consciência 
dupla, desenvolvido por W.E.B. Du Bois em seu livro The Souls of Black 
Folk (1903), expressa a cultura híbrida do negro norte-americano, isto é, a 
tensão permanente de ser ao mesmo tempo negro e norte-americano. A 
sinalização do múltiplo e do diverso das gentes negras é considerada um 
dos traços da modernidade de Du Bois, onde ele demonstra as interconexões 
entre África, América e Europa que deram origem ao negro moderno. 
Descrevendo os "modos africanos de autoconstrução", 1º o cientista 
político Achille Mbembe (2000) afirma que pensadores africanos e 
afrodescendentes adotaram elementos do modelo judeu de reflexão e 
construção da própria história, a exemplo do sofrimento, da contingência e 
da finitude, que têm sido então considerados pontos de partida para a criação 
de imagens sobre a história e a identidade africanas divulgadas no senso 
comum. Através da repetição constante, um conjunto de dogmas e sonhos 
teria sido imposto ao discurso moderno elaborado sobre a África pelos 
insiders, gerando duas correntes principais de pensamento: uma 
instrumentalista, que, afirmando-se como radical e progressiva, busca 
manipular e determinar o discurso que seria autenticamente africano, e a 
outra, reducionista, que enfatiza a diferença e a condição nativa para 
promover a idéia de uma identidade africana única fundada sobre o 
pertencirnento a uma mesma "raça negra". Para Mbembe, ambas as correntes 
se baseiam em mi.tos e perpetuam noções fantasiosas sobre a África. 
No Brasil, a idealização de uma África mítica e o estabelecimento de 
vínculos com outros pontos da diáspora estão muito presentes nas 
10. "African Modes of Self-Writing". 
32 Reinvenções da África na Bahia 
manifestações e movimentos negros. A busca da África para recriar tradições 
negras brasileiras pode ser percebida em várias esferas da nossa vida cultural. 
Na música, a África mítica está presente nas composições do samba, da 
MPB, e também dos blocos afro e afoxés. A estética afro-brasileira tem ganhado 
cada vez mais novos elementos, através de roupas, adereços, penteados, 
estampas. Recentemente, têm aparecido no mercado os "brinquedos étnicos", 
com bonecas negras vestidas como "africanas". Na esfera da religião, também 
ocorre um movimento de reafricanização que recria as relações simbólicas 
entre o Brasil e a África. Na Bahia, este movimento é liderado por Mãe Stella 
de Oxóssi, do Ilê Axé Opô Afonjá, que defende o rompimento com o catolicismo 
e a dissociação entre os orixás e os santos católicos, como parte da estratégia 
de reafricanizar e purificar o candomblé.11 
Buscar a África para reencontrar as "raízes perdidas" tem sido algo de 
fundamental importância para os movimentos negros brasileiros. A 
vinculação do presente brasileiro ao passado africano não é uma simples 
reconstrução de uma história vivida pelos descendentes dos escravos no 
Brasil. A busca da África se constitui num mito de africanidade, na medida 
em que o discurso sobre o passado opera reconstruções e legitima a formação 
de uma narrativa útil à formação da identidade étnica. Neste sentido, as 
tradições são (re)inventadas tentando estabelecer uma continuidade com 
um passado histórico apropriado. 12 Como afirma Eric Hobsbawm, adaptam-
se as tradições quando é "necessário conservar velhos costumes em 
condições novas ou usar velhos moldes para novos fins" (Hobsbawm, 
1984: 12). Evidentemente, não pretendo aqui negar a existência das 
continuidades históricas com a África, nem tampouco a presença dos 
africanismos remanescentes no Brasil. A intenção é analisar as representações 
sobre a Mama África e os elementos que a esta se relacionam, como as 
noçõesde africanidade, negritude, autenticidade e originalidade a fim de 
compreender seus sentidos políticos. 
11. Matory (1997 e 1999) mostra que, desde o final do século XIX, líderes do 
candomblé começaram a fazer contatos com a África, iniciando uma apologia da 
religião e do povo iorubás, cuja grandeza passou a ser celebrada intencionalmente. 
Esta idéia da sofisticação do iorubá reverberou pelo mundo afro-latino e 
aparentemente tornou-se a bandeira para aqueles que reivindicam a pureza africana 
nas culturas negras no Novo Mundo . 
12. As tradições inventadas freqüentemente reafirmam a existência das essências, como 
é possível verificar na apostil a elaborada pelo Ilê Aiyê : "A lguns valores são 
essenciais à vida do po vo africano: a família é o núcleo essencial; conhecer e 
respeitar os antepassados é um dever sagrado para a fa mília africana; cada 
sociedade tem suas crenças, seus costumes, suas tradições; a solidariedade é um 
traço essencial das comunidades tradicionais africanas, uns ajudam os outros em 
todos os momentos da vida; ( .. .)"(África: Ventre Fértil do Mundo, 2000:04). 
Patricia de Santana Pinho 33 
No interior de uma grande heterogeneidade cultural, movimentos negros 
do Brasil e de vários países da América, do Caribe e da Europa têm 
reivindicado a sua singularidade com base numa unidade cultural localizada 
externamente: a filiação à Mãe-África. Embora o Pan-Africanismo tenha 
representado a primeira tentativa explícita de interseção do continente 
africano com as comunidades negras da diáspora, tendo impulsionado muitos 
outros movimentos neste sentido, atualmente se reconhece que a criação de 
uma suposta "identidade africana" teve início bem antes disso, como veremos 
ao longo deste capítulo. 
1.2 A Bahia em busca da África 
Dentre os muitos lugares da diáspora negra marcados por forte presença 
cultural africana, a Bahia tem se destacado por possuir um imenso legado de 
africanismos. O antropólogo Melville Herskovits, nas décadas de 1940 e 
1950, encantando-se com o manancial de "reminiscências" e "retenções 
culturais" africanas na Bahia, classificou-a em alta posição na sua "escala de 
africanismos" . O candomblé, os ritmos musicais, a capoeira, e a culinária do 
dendê são os principais exemplos de expressões culturais de origem africana 
reelaborados em solo baiano e que têm servido para caracterizar a Bahia 
como "negra" e "africana" . 
Recentemente, além do estoque de africanismos que comprovam a 
continuidade histórica com a Terra-Mãe, a aura de negritude da Bahia tem 
resultado também da busca e afirmação dos laços com a África, através de 
tLm movimento iniciado nos anos 1970, quando eram veiculadas as notícias 
das lutas pró-independência das então colônias africanas, e quando ainda 
ecoavam as mensagens da sou/ music norte-americana. Foi nesse contexto 
que os movimentos negros no Brasil começaram a buscar o fortalecimento 
de seus vínculos com a África, ainda que isso tenha se dado mais no plano 
do imaginário e da produção cultural do que na esfera da política internacional 
u da diplomacia. Os elementos culturais afro-brasileiros foram então 
ressignificados com o intuito de reafirmar a ligação com a África-Mãe. 
Na Bahia, os !Jlocos afro, surgidos nos anos 1970, no bojo do processo 
de formação de uma cultura negra internacional contemporânea, têm sido, 
desde então, os principais condutores desta conexão. Através das letras de 
uas canções, da criação de vestuários e penteados "afro", e da elaboração 
de uma rica narrativa identitária, os blocos afro recriam e perpetuam o mito da 
Mama África, a terra-mãe dos negros na diáspora, onde residiriam o 
" fundamento" e a "originalidade" . 
A escolha do tema do Carnaval de 2001 por parte do bloco afro Ilê Aiyê 
confirma a crença em uma África-fonte-de-todo-conhecimento, através de 
34 Reinvenções da África na Bahia 
seu título: África: Ventre Fértil do Mundo. Na apostila produzida pelo bloco 
para informar e orientar os compositores sobre o tema do ano, lê-se: 
"A África nasce no Egito e na inter-relação entre África do Norte 
e África do Sul, os grandes Reinos do T ASETI, na NUBIA e 
KENET no Egito, o que significa CIDADE NEGRA ou 
COMUNIDADE NEGRA, se encontram e abrem caminhos de 
civilizações para o mundo inteiro. São as pirâmides do Egito; são 
os templos do Zirnbábue; ( ... )a arte de reunir as palavras, que cria 
contos, cantos, lendas, histórias e provérbios; a tradição oral que 
se organiza e cria legitimidade, enquanto a voz e a tradição dos 
ancestrais. Tudo isso é a África produzindo e jorrando vida, 
conhecimento, espiritualidade, ritmo, música, de seu Ventre Fértil 
para o mundo inteiro".13 
Os blocos afro criam uma África mítica que funciona como referencial 
para a construção da narrativa de uma identidade étnica, resultando na criação 
de uma África específica e especificante dos africanismos, das tradições 
ditas africanas e da invenção daquilo que se considera "afro". É certo que as 
criações dos blocos afro não se limitam às quadras onde ensaiam, ou ao 
número dos seus membros. Ao se apoderarem simbolicamente da "Mama 
África" e recriar seus significados, os blocos afro criam "tradições" e 
produzem novos conceitos de ser e se sentir negro, conferindo orgulho e um 
sentido de "autenticidade" para quem assim se define. 
A história da dor e do sofrimento vividos nos navios negreiros ou nas 
plantações de cana-de-açúcar oferece pouca coisa que vale a pena ser 
lembrada, principalmente se comparada à grandeza das civilizações africanas 
anteriores à modernidade. 
"Os negros são incitados, ou a esquecerem a experiência da 
escravidão, que é uma aberração da estória de grandeza contada na 
história africana, ou a recolocarem-na no centro do nosso 
pensamento, através de uma noção mística ou impiedosamente 
positiva da África, que é indiferente à variação intra-racial, e que 
se congelou no ponto em que os negros foram embarcados nos 
navios que os carregariam para as mágoas e os horrores da middle 
passage" (Gilroy, 1987:189). !4 
13. África: Ventre Fértil do Mundo, apostila elaborada pelo llê Aiyê, 2000: 01. Grifos 
do texto original. 
14. O conceito rniddle passage tem sido traduzido como "passagem do meio". Trata-
se de uma expressão de uso consagrado na historiografia de língua inglesa, sendo 
utilizada para designar o trecho mais longo e de maior sofrimento da travessia do 
Patricia de Santana Pinho 35 
Seguindo este mesmo movimento, os blocos afro têm procurado 
esquecer os horrores da escravidão, preferindo invocar a grandeza do Egito 
e da Etiópia e a tradicionalidade contida na África tribal, como pode ser 
conferido respectivamente nos dois trechos das canções do Olodum e do Ilê 
Aiyê, a seguir: 
"( ... )Pelourinho uma pequena comunidade 
que porém Olodum unirá 
em laços de confraternidade 
Despertai-vos 
para a cultura egípcia no Brasil 
Em vez de cabelos trançados 
veremos turbantes de Tutankhamon 
E as cabeças enchem-se de liberdade 
O povo negro pede igualdade 
deixando de lado as separações 
Cadê Tutankhamon, ê Gizé, Akhaenaton, 
Gizé, Tutankhamon, ê Gizé, Akhaenaton ê 
Eu/alei Faraó, ê Faraó ... "15 
"OllêAiyê 
Traz como tema este ano 
Congo Brazzawille 
Mais um país africano 
No século quinze 
As potências do Velho Mundo 
Voltaram seus olhos para o continente 
Buscou conhecimentos 
mais profundos(..)" 16 
O mito da Mama África na Bahia inclui, portanto, o grande avanço das 
civilizações antigas e o fundamento dos povos "primitivos". Além disso, a 
noção de África perpetuada na Bahia encerra em si a própria diáspora africana, 
projetando países como a Jamaica, Cuba e os Estados Unidos como 
ramificações da Mãe África. Exemplo disso é o bloco afro Muzenza, que se 
nfricaniza pela rota da Jamaica, não importando o fator tisico desta não se 
Atlântico realizada pelos navios negreiros. A middle passagerefere-se também à 
transformação, metaforicamente representada pelo momento vivido no navio 
negreiro, das identidades daqueles indjvíduos oriundos de diversas etnias específicas 
para uma nova forma de identificação como africanos genéricos ou "negros". 
1 S. Da canção "Faraó Divindade do Egito", de Lazinho, compositor do Olodurn. 
16. Da canção "Civilização do Congo", de Ademário, compositor do Ilê Aiyê. 
' 
36 Reinvenções da África na Bahia 
situar na África, pois é como se fosse wn braço estendido da velha mãe a 
abrigar seus filhos negros. O Muzenza foi criado em 1981, a partir de uma 
dissidência do Olodum. Vários temas "africanos" são emblemáticos para o 
bloco, mas nenhwn é tão importante quanto Bob Marley e o rastafarianismo.17 
Por isso, o Muzenza é muitas vezes chamado de "Muzenza do Reggae" e 
atrai wn tipo especial de folião que forma wna ala exclusiva durante o Carnaval: 
os rastas, que desfilam carregando wna imensa bandeira da Etiópia sobre os 
dreads.18 
O Olodwn, bloco afro mais conhecido nacional e internacionalmente, 
também se apropria dos temas do reggae e do rastafarianismo, contudo, 
numa perspectiva diferente do Muzenza: em vez de exaltar Bob Marley e a 
Jamaica, vai direto à origem dos mitos, celebrando Hailê Selassiê e a Etiópia 
(Cunha, 1991). O Olodumfoifundadoem 1979porex-membros doilêAiyê. 
Este, por sua vez, é considerado o primeiro bloco afro de Salvador, tendo 
sidofundadonoanode 1974.19 Como todo bloco afro, o Ilê Aiyê se caracteriza 
essencialmente pela indumentária e pela música. As roupas são feitas pelo 
próprio bloco, a partir de pesquisa bibliográfica sobre wn povo ou país da 
África Negra, conforme o tema escolhido para o Carnaval daquele ano (Risério, 
1981). 
Gostaria de comentar brevemente a respeito da música produzida pelos 
blocos afro da Bahia e de como esta música tem feito suas próprias incursões 
pela diáspora negra, ainda que estas viagens tenham ocorrido no plano da 
poesia e da imaginação. Enveredarei por essa seara muito mais enfocando as 
canções criadas pelos poetas e compositores dos blocos do que os ritmos 
musicais propriamente ditos, como o afoxé, o ijexá, o samba-reggae, o samba-
afro, e tantas outras batidas que se apresentam como sendo ou velhas e 
tradicionais ou novas e atuais, mas que são todas indubitavelmente 
modernas. 
Muito já foi dito sobre os ritmos afro ou negros produzidos na Bahia, 
mas acredito que há muito mais por dizer, principalmente se considerarmos a 
tendência, ainda presente nas análises sobre cultura negra, de buscar o que 
haveria de "originalmente africano" na música negra produzida em Salvador 
ou em outros lugares do mundo. Essa tendência se deve principalmente à 
noção - a meu ver equivocada - de que seria a preservação desta "origem 
comum" que serviria para conectar os descendentes de africanos espalhados 
pelos mais diversos pontos da diáspora. 
17. Sobre o rastafarianismo, ver Pinho, 1995. 
18 . Tal como o !lê Aiyê, o Muzenza se localiza no bairro da Liberdade, mas 
diferentemente do primeiro, que só aceita indivíduos de cor e fenótipo negros, o 
Muzcaza aceita mestiços e brancos entre os seus componentes . 
1 Q. O ll ê Aiyê está localizado no bairro da Liberdade, onde se concentra o maior 
contingente negro da população de Salvador. 
Patricia de Santana Pinho 37 
E é exatamente sobre a diáspora, ou sobre como se imagina a diáspora, 
que eu gostaria de me ater aqui, analisando o discurso contido nas letras das 
canções dos blocos afro, a fim de entender como a diáspora africana é neste 
contexto imaginada, concebida e representada. Embora a denominação 
"diáspora" inevitavelmente remeta a um universo amplo, irrestrito e 
caracterizado por infinitas possibilidades de comunicação e troca, esta mesma 
palavra, assim como ocorre com os significantes de wn modo geral, pode 
adquirir significados bastante distintos e até mesmo contrários à concepção 
explicitada no esquema do Atlântico Negro de Gilroy ( 1993). 
Muitas vezes, como indica Risério (1981), o "passado africano" 
resgatado pelos blocos é encontrado nos livros e enciclopédias. As letras 
das músicas e as indwnentárias usadas pelos blocos são criadas a partir de 
pesquisas onde a bibliografia acadêmica é wna das principais fontes de 
informações sobre as tradições inventadas. A africanidade ostentada pelos 
membros dos blocos inspira-se no desejo de afirmação de wna nova negritude 
afro-referenciada. O conhecimento buscado na enciclopédia é refletido nas 
letras das canções, que muitas vezes se assemelham a verbetes, que destacam 
elementos da geografia e da história de países africanos, descrevendo a 
localização de rios, montanhas, desertos, florestas, e oferecendo até mesmo 
dados estatísticos sobre a população, como as etnias, atividades econômicas 
e as religiões predominantes. Aprendemos assim que "Congo região tem 
muitos pântanos e rios, dos quais se destacam o Rio Congo, o Motaba e o 
Ubamgui, tendo os Montes Leketi como ponto culminante, essencialmente 
da agricultura vivem os seus habitantes."2º 
Durante os carnavais dos fins dos anos 70 e de toda a década de 80, a 
história e a geografia de países como o Egito, a Etiópia, Madagascar, Senegal, 
Congo, foram entoadas pelas ruas de Salvador, levando a população local a 
saber de cor as lendas sobre Osíris, Tutankhamamon e os faraós do Egito; 
ou repetindo as estrofes que informavam que "Senegal faz fronteira com 
Mauritânia e Mali";21 que, em Madagascar, "alienado pelos seus poderes, o 
rei Radama foi considerado wn verdadeiro meiji, que levava seu reino a 
bailar", ou que "bantos, indonésios e árabes se integraram à cultura 
malgaxe";22 e que Osei Tutu foi rei do império Ashanti de Gana, com suas 
riquezas do ouro e do cacau; e que "Ranelique Segundo venceu a batalha, 
expulsando os italianos de Axum".23 
A ênfase dada à natureza (rios, desertos, etc.), bem como aos feitos 
heróicos dos povos negros, que além de expulsarem seus colonizadores, 
20. Da canção "Civilização do Congo", de Ademário, Ilê Aiyê. 
2 l. Da canção "Canto para o Senegal", Banda Reflexus. 
22. Da canção "Madagascar Olodum", de Rey Zulu, Olodum. 
23. Das canções "Negrice Cristal", de César Maravilha, Ilê Aiyê, e "Denúncia", de Tita 
Lopes, Olodum. 
38 Reinvenções da África na Bahia 
inventaram a metalurgia e os fundamentos da matemática, revela a crença 
predominante em uma África-fonte-de-todo-saber. Transformando verbetes 
de enciclopédia em poesia, as canções dos blocos afro exaltam sobretudo a 
grandeza dos povos africanos, e a origem e, portanto, filiação dos negros 
baianos à Mama África. A "origem nagô" é a preferida dos poetas que 
escrevem as letras destas canções, transformando o adjetivo iorubá num 
distintivo que serve para rotular a negritude ao mesmo tempo em que produz 
uma imaginada "baianidade nagô".24 
Como afirmam em seus discursos, os blocos afro de Salvador concebem 
a diáspora como um panorama da mitologia da raça negra. Suas canções 
invocam portanto a grandeza das Grandes Civilizações Africanas, como o 
Egito e a Etiópia, e a originalidade e a sabedoria fundamentais que estariam 
contidas na África tribal. O "fundamento" e a base da africanidade tribal são 
cantadas nas letras que exaltam o Congo, o Daomé, Gana, Togo, Benin, ao 
mesmo tempo em que se bebe da fonte contemporânea do discurso 
afrocentrista norte-americano para exaltar a nobreza das "Grandes Civilizações 
Africanas'', a exemplo do Olodum que cantava: "Despertai-vos para a cultura 
egípcia no Brasil, em vez de cabelos trançados, veremos turbantes de 
Tutankhamon". 25 
Inserido numa perspectiva de fortalecimento do ideal da negritude, o 
discurso das canções dos blocos celebra também a beleza negra, que é 
associada sobretudo aos elementos do corpo: a cor, os traços e os cabelos. 
Cantam-se os temas das "deusas do ébano", o "perfil azeviche que a negritude 
criou", as"tranças cheias de originalidade"; enfatizando-se que "o negro se 
farta do canto da sua beleza", ou que a negritude "constitui um universo de 
beleza, explorado pela raça negra". 26 
A consciência da própria negritude geralmente está associada à 
necessidade de "preservar as tradições africanas" e então as canções dos 
blocos descrevem os arquétipos dos orixás e narram as lendas do candomblé, 
sempre destacando que os deuses viajaram da África para a Bahia, numa 
rota pré-estabelecida e uni-direcionada. Assim, canta-se que o "Pelourinho 
é uma pequena comunidade que porém o Olodum unirá em laços de 
confraternidade" e que "Salvador se mostrou mais alerta com o Afro Olodum 
a cantar'', reforçando assim o papel dos blocos afro enquanto "semeadores 
de negritude e africanidade".27 
24. Da canção "Baianidade Nagô", de Evany Ed Stalo, Banda Mel. 
25 . Da canção "Faraó Divindade do Egito", de Luciano Gomes dos Santos, Olodum. 
26. Trechos das canções do llê Aiyê : "Deusa do Ébano", de Geraldo Lima, "Negrume uo Noite", de Paulinho do Reco, e "Canto da Cor", de Moisés e Simão. 
canções "Faraó Divindade do Egito'', de Luciano Gomes dos Santos, e "Salvador 
N1 o Incri ", de Bobôco e Beto Jamaica, Olodum. 
Patricia de Santana Pinho 39 
Foi no final dos anos 80 que a música afro-baiana estourou nas rádios 
de todo o país, só que muito mais pelas interpretações de cantoras brancas 
e de bandas de trios elétricos - que então passaram a investir nesse filão - do 
que pelas vozes dos cantores e compositores dos blocos afro, que já 
produziam esse tipo de música havia mais de quinze anos. Naquele momento, 
jovens da classe média baiana repetiam em coro: "Eu sou negão, meu coração 
6 a Liberdade", e mesmo morando no Itaigara ou no Caminho das Árvores 
diziam: "Sou do Curuzu, Ilê, essa é a minha verdade".28 O sucesso da música 
afro, ainda que cantada por intérpretes que tinham pouca ou nenhuma 
conexão com os blocos, consolidou a fama de Salvador como "Meca da 
negritude brasileira", e então muitos afoxés e blocos afro começaram a ser 
criados em São Paulo, no Rio e em outros estados do Nordeste, enviando 
seus líderes para "fazerem estágio" nos blocos afro "originais", em especial 
no Ilê Aiyê, que é considerado unanimemente como o "guardião das tradições 
africanas na Bahia". 
Naquele mesmo período, no final dos anos 80, os blocos afro começaram 
a criar canções que exaltavam a grandeza de outros países reconhecidamente 
marcados por forte cultura negra, porém localizados fora da África. Revelava-
se então que, além da África, outro manancial simbólico possível seria a rede 
composta por países de grande população negra, em especial aqueles 
localizados no Caribe, que passaram a ser definidos como "latinamente 
negros", unindo "latinamente um povo negro a cantar, latinamente um povo 
em comum pensar". 29 
Foi então que Cuba e a Jamaica começaram a ser cantadas, 
principalmente pelos blocos Olodum, Malê de Balê e Muzenza, enquanto 
que o Ilê Aiyê, optando por uma postura mais tradicionalista, preferiu guardar 
fidelidade aos países localizados internamente à Mama África. O Olodurn 
assume então uma postura de vanguarda, apontando as conexões da diáspora 
de forma mais dinâmica, mostrando, por exemplo, que "Hailê Salassiê -
Rastafari- ê - surgiu na Etiópia, virou filosofia que a Jamaica acolhia". 10 Ao 
lado do Malê de Balê, o Olodum encanta-se com Cuba e com as semelhanças 
que uniriam os povos baiano e cubano; e, em consonância com o Muzenza, 
celebra a Jamaica e o rastafarianismo, celebrando o poder da luta dos 
"guerrilheiros de Jah". A noção de África difundida nas canções dos blocos 
afro na Bahia inclui assim a própria diáspora africana, representada por países 
como Cuba, a Jamaica e os Estados Unidos. 
28 . Trechos da canção "Eu sou negão'', de Gerônimo. 
29. Trechos da canção "Um Povo Comum Pensar", de Suka, Olodum. 
30. Da canção "Denúncia'', de Tita Lopes, Olodum. 
Reinvenções da África na Bahia 
Vemos que, apesar destes países localizados fora da África começarem 
n ser celebrados nas canções dos blocos, e mesmo considerando que os 
lcnnos "diáspora negra" e "diáspora africana" passaram a ser muito citados 
n discursos dos blocos de um modo geral, isso foi feito através de uma 
p 1 pectiva que destacava o que haveria de mais "africano" naqueles países, 
elegendo-os por serem considerados sítios detentores de africanidade. Dessa 
maneira, a "diáspora" é entendida a partir de uma concepção que continua 
privilegiando a África como centro aglutinador dos negros no mundo, seja 
b a forma das particularidades étnicas (as africanidades), ou seja sob o 
formato mesmo de "nação africana", a unir os negros do mundo. 
No caso dos blocos afro-baianos, é certo que eles surgiram num período 
marcado mundialmente por esse desejo de resgatar a Mama África, portanto 
a base de seus discursos identitários enfatiza a necessidade de preservação 
das tradições, o que evidentemente tem levado a um intenso processo de 
criação e invenção daquilo que se imagina como sendo africano. A busca e 
as conseqüentes invenções das tradições na cultura afro-baiana 
contemporânea criaram novas demandas por informações e símbolos da 
África, contribuindo para fortàlecer generalizações sobre a "natureza" do 
povo africano/negro e para fixar pedaços essencializados de uma suposta -
e única - "cultura africana". 
Mesmo quando a metáfora do mar é utilizada nas canções dos blocos, 
as referências são muito mais sobre a costa (da Bahia, do Marfim) ou sobre 
os golfos e baías (de Todos os Santos, de Luanda), do que sobre o oceano 
e as águas que unem os continentes. Nessa concepção de diáspora, prioriza-
se muito mais a terra - talvez por esta representar a solidez de urna cultura 
que se quer homogênea - do que o mar, que com sua movimentação constante 
e incessante, está sempre a transformar e misturar. 
Percebe-se que, além da África, a rede de símbolos composta por países 
de grande população negra, especialmente os EUA e os países caribenhos, 
constitui um manancial simbólico fundamental para os blocos afro. As 
músicas-temas, inspiradas por países africanos, incluíram, em suas versões 
posteriores, outros países de maioria negra abrangidos pela diáspora. A 
reelaboração dos dados históricos apresentou resultados surpreendentes, 
exemplificados na aproximação proposta entre Bahia e Jamaica (Muzenza), 
ahia e Cuba (Malê de Balê) e Bahia e Egito (Olodum). O estudo do passado 
a fri cano tomou rumos ecléticos, dando lugar a reelaborações de conteúdos 
ele acordo com a tônica necessária à personalização do bloco afro que a 
empregava(Risério, 1981). 
Os movimentos culturais negros no Brasil têm mesclado raízes com 
internacionalismo, em um contexto no qual as expressões negras norte-
nmeri canas têm servido como referenciais importantes (Vianna, 1988). Em 
S 1l vndor, o soul e o funk tiveram um desenvolvimento único, talvez a 
1 .ilrlcla de Santana Pinho 41 
rnncretização do sonho dos ideólogos do movimento negro: "conscientizar" 
11 massa negra. 31 Antônio Risério mostra como o bailefank foi o território 
pura a revitalização do afoxé baiano e para o nascimento do primeiro bloco 
1 f'ro. Um dos fundadores do Ilê Aiyê, Jorge Watusi, declarou a Risério: "No 
Ri de Janeiro, a coisa teve um impacto mais comercial, aparentemente 
ilienado, porque eles não tinham uma relação tão intensa com a raiz cultural 
negra. Aqui, na Bahia, foi muito diferente. A consciência veio como moda, é 
·!aro. Tinha aquele som, aquelas roupas, etc. Depois, com o tempo, a gente 
vi u que esse lance todo da moda não era lá tão importante. Foi aí que pintou 
o Ilê Aiyê. Eu acho que foi com o Ilê Aiyê que pintou a passagem, que a 
gente passou de uma coisa pra outra. Por que com o Ilê, veio a coisa de se 
manifestar no carnaval já com uma orientação mais real, afro-brasileira" 
(R.isério, 1981:31). 
Paul Gilroy (1993)mostra que a música negra tem andado lado a lado 
om as lutas negras, tendo um poder de comunicar informação, organizar a 
onsciência e expressar a subjetividade individual e coletiva. A cultura hip 
hop, por exemplo, surgiu entre negros pobres nos Estados Unidos e a partir 
daí se criou um movimento jovem de dimensão global, alcançando diversos 
pa íses mundo afora, inclusive o Brasil. Os componentes musicais do hip 
hop são uma forma híbrida criada através das relações sociais do South 
Bronx, para onde a cultura jamaicana do Sound System foi transplantada 
durante os anos 70, criando novas raízes. Em conjunção com inovações 
tecnológicas específicas, esta cultura caribenha reterritorializada nos Estados 
Unidos iniciou um processo que transformou a identidade negra norte-
americana, além de influenciar decisivamente na indústria da música popular. 
O estilo, a retórica e a autoridade moral do Movimento dos Direitos 
Civis e do Black Power tiveram destinos parecidos. Ambos foram destacados 
de suas origens étnicas e históricas para serem exportados e adaptados a 
lugares diferentes com necessidades parecidas. É interessante perceber que 
a apropriação destas formas, estilos e histórias de luta foi possível mesmo a 
uma grande distância fisica e social. A sua adaptação foi facilitada por um 
pano de fundo comum de experiências urbanas e pelo efeito de formas 
similares, porém não idênticas, de segregação racial, bem como por uma 
memória da escravidão, um legado de africanismos e wn estoque de experiência 
31. Herm ano Vianna ex.plica que a adoção de sí mbolos trans nacionais também 
aconteceu nos bailes funks cariocas, nos quais "os dançarinos que acompanhavam 
a Soul Grand Prix ( ... ) criaram um estil o de se ves t ir que mesclava as vári as 
informações visuais que estavam recebendo, incluindo as ca pas de discos. Fo i o 
período dos cabelos afro , dos sapatos conhecidos como pisantes (sol as altas e 
multicoloridas), das calças de boca estreita, das danças a James Brown, tudo 
vinculado à expressão Black is BeautifuI'' (Vianna, 1988:27). 
' 
42 Reinvenções da África na Bahia 
religiosa. Deslocados de suas condições originais de existência, os elementos 
dessa cultura afro-americana alimentaram uma nova metafísica de negritude, 
elaborada em espaços públicos através de uma cultura expressiva dominada 
pela música. A linguagem política da cidadania, da justiça racial e da igualdade 
tomou-se uma das narrativas presentes na transferência de formas políticas 
e culturais através do Atlântico Negro (Gilroy, 1993). 
No interior deste sistema internacional de trocas de símbolos, idéias e 
imagens, há vários centros emanadores de "negritude", além da própria África 
e dos hegemônicos Estados Unidos. Ainda restrita a um pequeno raio de 
alcance, mas destituída de qualquer grau de timidez, a Bahia tem despontado 
como um pólo produtor de símbolos negros, que aos poucos começa a 
ganhar espaço e afirmar sua posição nas rotas do Atlântico Negro. 
1.3 A diáspora em busca da Bahia 
Após esta nossa rápida viagem pelas rotas do Atlântico Negro, 
aportando em lugares da diáspora onde a África tem sido constantemente 
ressignificada para servir como referência para a construção de identidades 
negras não apenas locais, mas também transnacionais, visitaremos a Bahia 
para vermos como esta, enquanto lócus produtor de "símbolos étnicos 
negros", se insere no importante sistema de trocas simbólicas. 
A posição da Bahia como um dos centros do Atlântico Negro teve 
inicio ainda durante o período colonial, quando o tráfico de escravos inseriu 
definitivamente o Brasil nas redes do con:ércio transatlântico. Análises 
recentes têm mostrado que a formação do Brasil se deu muito mais em função 
da sua relação com a África do que com Portugal. Luís Felipe de Alencastro 
(2000), por exemplo, demonstra que a Bahia e o Rio de Janeiro estavam mais 
conectados a Luanda e Benguela do que a outras cidades brasileiras do 
período. Os portos baianos negociavam com navios estrangeiros muito antes 
da abertura oficial dos portos brasileiros. No final do século 18, negociantes 
brasileiros já dominavam o tráfico de escravos, que passou então a ser 
organizado a partir da Bahia, e não mais a partir de Lisboa. Além de beneficiar-
se de sua posição geográfica, o que permitiu uma grande autonomia em 
relação a Portugal, a Bahia era o único estado do Brasil a produzir tabaco, 
que era então uma das principais moedas utilizadas no comércio de escravos. 
O nome "Bahia" tem sido utilizado tanto por brasileiros quanto por 
estrangeiros para se referir à cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, 
a capital do estado da Bahia. Devendo seu nome à baía em tomo da qual se 
1 caliza o Recôncavo, bem como à data de todos os santos, quando foi 
dcs oberta e batizada pelos portugueses em primeiro de novembro de 150 l , 
l idade que aí cresceu tornou-se conhecida como Bahia. Tanto para aqueles 
l '.1lrlcla de Santana Pinho 43 
que vivem no interior do estado, quanto para aqueles que vivem no exterior 
d país, Salvador tornou-se internacionalmente conhecida como "Bahia", 
ugundo Pierre Verger (1999a) "como se outras baías não existissem". na eando-me nesta designação previamente estabelecida, tomo a liberdade 
d também utilizar neste livro o nome "Bahia" para me referir a Salvador e às 
·idades também negras do Recôncavo. 
A majoritária população negra da Bahia contribuiu para que viajantes 
e exploradores que visitaram a cidade durante os séculos 18 e 19 a 
descrevessem como uma cidade negra, apelidando-a de "nova Guiné" e 
"Negrolândia" (Verger, 1999a). Mais tarde, a Bahia recebeu ainda os títulos 
de "Roma Negra" e "Meca da Negritude", designações que apontam para 
sua condição central na rede de circulação de povos e símbolos negros. 
"Roma Negra" e "Meca da Negritude" são termos que enfatizam claramente 
caráter da Bahia como uma cidade-mundial, primeiro porque destaca sua 
centralidade no Atlântico Negro -que, como vimos, é um sistema que permite 
a existência de muitos centros em sua configuração diaspórica - e, em segundo 
lugar, porque caracteriza a Bahia como um ponto de convergência, contato e 
peregrinação. 
Acredito que a Bahia pode ser considerada uma "cidade mundial" por 
haver ocupado na época colonial um espaço urbano de central importância 
no mundo. As cidades mundiais definem-se como centros de poder cultural 
e político na constituição do sistema de mundo moderno. Possuem diversos 
significados e uma grande variedade de papéis, mas são, acima de tudo, 
zonas de contato, onde variados grupos se encontram e vivenciam trocas e 
conflitos. Diferentemente das "cidades globais" (Sassen, 1991 ), conceito 
que enfatiza os papéis econômicos das megalópoles, as cidades mundiais 
caracterizam-se por sua capacidade de interferir na hierarquia global da 
concentração de poder e produção do conhecimento, o que Aníbal Quijano 
(2000) chama de "colonialidade do poder". Além disso, enquanto o termo 
"cidade global" geralmente é usado para definir os centros econômicos do 
estágio atual da globalização, marcado pelo aumento do capital financeiro 
desde a década de 1970, as "cidades mundiais" têm ido centrais para o 
mundo moderno desde o começo da história do capitalismo. 
Ao longo do século 19, muitos negros baianos emancipados passaram 
a participar do comércio com a África. Dentre as mui ta mercadorias trazidas 
do golfo do Benin para a Bahia, destacavam-se produtos usados no 
candomblé . Penas vermelhas, tinturas e tecidos eram algumas das 
mercadorias cobiçadas por praticantes do candomblé na Bahia, junto com a 
troca de recados pessoais e segredos religiosos que conectava pessoas dos 
dois lados do Atlântico. O intercâmbio transatlântico feito inicialmente por 
comerciantes ganhou novos mediadores com a entrada, neste cenário, de 
pesquisadores, dentre os quais Pierre Verger tornou-se omais conhecido. 
44 Reinvenções da África na Bahia 
Transportando presentes, mensagens, objetos e segredos e servindo como 
um intermediário entre a Bahia e a África Ocidental, Verger agradou os 
praticantes mais puristas do candomblé, ansiosos em se reconectar com a 
fonte original africana, ao mesmo tempo em que desagradou os pesquisadores 
igualmente puristas, que acreditavam que o legado de "sobrevivências 
africanas" no Novo Mundo deveria ser cuidadosamente preservado de modo 
a ser, através de suas pesquisas, descoberto e mapeado. Melville Herskovits, 
por exemplo, havia ficado bastante incomodado com as perambulações de 
Verger e por este ficar carregando tradições de um lado ao outro do Atlântico, 
bagunçando assim os pedaços de seu gigantesco quebra-cabeça: seu 
laboratório de retenções e sobrevivências culturais. No momento presente, 
mães e pais de santo fazem, eles mesmos, suas próprias viagens "de volta" 
à África em busca das tradições perdidas. Por outro lado, religiosos do 
continente africano, especialmente de cultos bantu, também viajam para a 
Bahia para encontrar tradições que se perderam na África mas que foram 
preservadas nos candomblés baianos. 32 
Segundo Vivaldo da Costa Lima, o termo "Roma Negra" seria resultado 
da expressão "Roma Africana", cunhada por Mãe Aninha, fundadora do 
terreiro Ilê Axé Apô Afonjá. A famosa ialorixá havia declarado à antropóloga 
Ruth Landes nos anos 1940 que a Bahia era a Roma Africana, não apenas por 
seu grande número de terreiros de candomblé, mas principalmente pela sua 
centralidade no culto transatlântico dos orixás. A metáfora, inspirada pela fé 
católica da ialorixá, expressava que, se Roma seria o centro do catolicismo, 
Salvador seria o centro do candomblé, portanto uma Roma africana. O termo 
teria sido traduzido para a lingua inglesa por Ruth Landes em Cidade das 
Mulheres, como Negro Rome e depois re-traduzida para o português como 
"Roma Negra".33 
O título de "Meca da Negritude" também deve muito à religião dos 
orixás e não, como poderia parecer, à grande presença de escravos 
muçulmanos. Trata-se de um termo mais recente e que tem sido promovido 
principalmente por militantes negros e produtores culturais de outros estados 
do Brasil que consideram a Bahia a principal fonte de cultura africana do 
país. Pais e mães de santo de São Paulo e do Rio de Janeiro freqüentemente 
vinculam a ancestralidade de seus terreiros, bem como a sua "feitura" religiosa, 
32. Membros da ACBANTU (Associação Cultural de Preservação do Patrimônio 
Bantu), ONG baiana que tem por objetivo principal contribuir para o resgate das 
tradições de origem bantu e manter intercâmbio com entidades congêneres no 
âmbito nacional e internacional, comentaram sobre a vinda de Angolanos para a 
Oahi a, em busca de tradições bantu que foram "perdidas" na África porém 
prc ·ervadas na Bahia. 
33 . orrcio da Bahia, 1 O de março de 2004 (Andréia Santana). 
Patricia de Santana Pinho 45 
u terreiros e ialorixás baianos. O mesmo acontece com grande número de 
academias de capoeira cujos mestres associam o seu aprendizado aos velhos 
capoeiristas baianos como forma de conferir legitimidade ao seu jogo. Da 
mesma maneira, os fundadores dos primeiros blocos afro têm emprestado 
seus conhecimentos de cultura afro-baiana através de serviços de consultoria 
a grupos culturais negros situados em outros estados do Brasil. A aura de 
negritude da Bahia, apesar de originada em tempos coloniais, tem sido 
constante e intensamente reelaborada. A década de 1970 inaugurou o 
processo de reafricanização nas esferas do carnaval, da música, dança e da 
estética, estabelecendo a Bahia como a Meca da Negritude, reatualizando 
assim seu significado enquanto centro cultural no Atlântico Negro.34 
O termo "Atlântico Negro" é utilizado por Paul Gilroy ( 1993) para explicar 
as estruturas transnacionais que se desenvolvem e se articulam em um sistema 
de comunicações globais, constituído por fluxos que transportam imagens, 
idéias e símbolos negros por todo o Atlântico. O autor utiliza a metáfora da 
imagem de navios se movendo entre a Europa, a América, a África e o Caribe. 
O navio - um sistema vivo, micro-cultural e micro-político em movimento - é 
uma imagem especialmente importante, por razões históricas e teóricas. O 
navio representa ainda as trocas ocorridas dentro dos sistemas circulatórios 
que abrangem os países do Atlântico Negro, cuja origem coincide com o 
período da escravidão, quando mulheres e homens negros de diferentes 
etnias passaram a ser identificados genericamente como "africanos". 
Gilroy defende que o processo que criou o negro produziu suas próprias 
e específicas contradições. Desta maneira, a música negra, as artes negras e 
o pensamento negro radical, seja ele político ou religioso, seriam expressões 
da vertente contracultural critica do Atlântico Negro, a partir do qual se teria 
gerado uma contra-interpretação da modernidade. Esta vertente tem suas 
genealogias e pode ser mapeada historicamente, reconstruindo laços e pontos 
de articulação. Um dos principais aspectos desta contracultura é a fusão de 
ética com estética, estimulando um contra-discurso que se posiciona para 
, lém do pressupostb ocidental da dualidade entre arte e política. 
A música e as práticas culturais e sociais de origem africana na diáspora 
são portadoras, ao mesmo tempo, da utopia de um mundo melhor e de uma 
crítica profunda ao capitalismo e ao ocidente. O que se verifica de diversas 
formas, em diversos pontos do Atlântico Negro seria, então, uma 
ioterpretação baseada na separação entre política e cultura, forjada no 
pensamento europeu, porém distante da realidade da diáspora. O Caribe, a 
África, a América Latina e a América do Norte contribuíram para que se 
4. A construção de uma imagem negra da Bahia também contou com a participação 
de pesquisadores e escritores, como veremos mais detidamente ao capítulo 5. 
46 Reinvenções da África na Bahia 
pudesse formar uma identidade racial negra transnacional. O contexto urbano 
no qual suas expressões culturais foram criadas propiciaram o apelo estilístico 
em que se baseiam as identificações étnicas locais. A criação e as trocas 
transnacionais dos símbolos étnicos negros representam peças fundamentais 
para a constituição das narrativas e discursos de negritude com os quais os 
grupos negros expressam suas lutas e experiências. 
Mais do que meros desdobramentos dos africanismos existentes, as 
culturas negras na diáspora formam-se, sobretudo, a partir da movimentação 
dos símbolos negros que viajam pelo Atlântico, recebendo novos 
significados onde aportam. Exemplo disso teria sido a entrada da música 
negra no domínio público no final do século 19, quando se iniciavam os 
entretenimentos de massa na Europa. Mas há ainda uma infinidade de 
exemplos de como as culturas negras de lugares distintos se comunicam, se 
conectam e se influenciam reciprocamente (Gilroy, 1993). 
Para visualizar a Bahia no Atlântico Negro, é necessário considerá-la 
tanto como receptora quanto como emissora dos objetos, símbolos e idéias 
que circulam por estas rotas. Os blocos afro oferecem um bom exemplo 
dessa "via de duas mãos'', já que surgiram no bojo do processo de formação 
de uma cultura negra internacional contemporânea, buscando as nações 
africanas como referência histórico-simbólica. Os blocos afro, assim como 
vários grupos produtores de cultura negra, utilizam símbolos importados da 
arena internacional de maneiras diferentes, atualizando seus significados e 
modificando suas mensagens. Neste sentido, os subúrbios do Rio de Janeiro 
estão ligados aos guetos negros norte-americanos através do soul e do 
fank. Da mesma maneira, o reggae une a Jamaica a Salvador, só para citar 
alguns dos muitos exemplos de absorção de elementos culturais 
transnacionais em diferentes contextos locais. O reggae, assimcomo os 
demais elementos transnacionais selecionados localmente, funciona como 
um decodificador de identidade de jovens negros e mestiços, sintonizando-
os com o fluxo global desta contracultura da diáspora. Como em outros 
contextos, processos de produção contra-discursiva realizam discursos 
estruturados de elaboração de experiência da alteridade, a partir da 
ressignificação de elementos da cultura popular transnacional. 
Um exemplo significativo da chegada de símbolos transnacionais aos 
"portos" da cultura afro-baiana pode ser encontrado na página do Olodum 
na Internet. Há um destaque para as "Personalidades" celebradas pelo grupo, 
acompanhadas de um breve histórico de cada uma delas, onde se exalta o 
que seria sua contribuição para a cultura negra local. Dentre estas, aparecem 
Zumbi dos Palmares; Gilberto Gil; Antônio Agostinho Neto, o presidente 
das Forças de Libertação de Angola (FAPLAS); Marcus Garvey, intelectual 
jamaicano, criador do UNIA; Samora Machel, presidente de Moçambique, 
morto em 1986; e o cantor de reggae Alpha Blondy. Segundo o que está 
Patricia de Santana Pinho 47 
escrito no site: "Alpha Blondy tem muito em comum com o Olodum: a luta 
política por um mundo melhor, a dureza da música militante, o apego à 
modernidade africanista, a valorização da história e da identidade negra( ... )." 
Além disso, dentre os vários objetivos do grupo, destaca-se a sua 
intenção em "promover o intercâmbio cultural entre o Olodum, pessoas e 
identidades da cultura negra no Brasil e no mundo; ( ... ) difundir 
internacionalmente a cultura de rua de Salvador( .. . ) e dos afro-brasileiros, 
conectando a cultura local às novas tendências da arte e da cultura no 
mundo".35 O circuito no qual estão presentes os símbolos transnacionais 
valorizados pelos blocos se insere na rede mais ampla do ímaginário simbólico. 
Embora sua produção cultural esteja situada nas rotas diaspóricas do 
Atlântico Negro, os blocos afro criam objetos e símbolos que ao mesmo 
tempo reforçam sua conexão com a Mama África, reatualizando assim as 
expressões culturais africanas na diáspora. ' 
É precisamente o que parece ter sido preservado da África na Bahia 
que tem atraído um número cada vez maior de turistas negros dos Estados 
Unidos. Desde a década de 1970, os afro-americanos têm viajado à Bahia 
para encontrar "africanidade". O que começou como uma viagem informal de 
um grupo de amigos se transformou ao longo das últimas décadas em um 
mercado estruturado e organizado que inclui agências de turismo do Brasil e 
dos EUA. Eu chamo este fenômeno de "turismo de raízes" porque é 
desenvolvido por pessoas que viajam para encontrar suas "raízes africanas", 
estejam estas localizadas no continente africano em países da diáspora com 
significativas populações negras. Os turistas de raízes afro-americanos 
buscam conhecer culturas negras diaspóricas e estabelecer uma conexão 
com povos afrodescendentes de outras partes da diáspora. 
Embora a busca simbólica - e, muitas vezes, física - pela África e, 
conseqüentemente, por africanidade, da parte de descendentes de africanos 
na diáspora tenha começado no século 19, a exemplo do Pau-Africanismo, 
foi só a partir da década de 1970 que o turismo afro-americano na África 
passou a existir de modo organizado. Ainda no final dos anos 70 e início dos 
unos 80, o turismo afro-americano expandiu-se de modo a incluir países 
localizados na diáspora. 
Salvador e as cidades do Recôncavo, reconhecidas por sua forte herança 
negra, têm sido locais de visitação cada vez mais freqüente por parte de 
militantes negros de outros estados do Brasil e de turistas afro-americanos 
cm suas viagens de "retomo às raízes" . Muitos negros norte-americanos 
visitam a Bahia a fim de conhecer de perto o que eles afirmam ser suas 
35. O Olodum tem divulgado a música afro-baiana mundo afora, faze ndo shows no 
Central Park, em Nova York, e em vários países europeus. Cantores mundialmente 
conhecidos como Paul Simon e Michael Jackson vieram ao Brasi l para gravar com 
o Olodum. 
48 Reinvenções da África na Bahia 
"tradições perdidas". É comum encontrá-los, com suas roupas africanizadas, 
tranças e turbantes, nos ensaios dos blocos afro, nos terreiros de candomblé 
e nos locais onde as expressões culturais afro-baianas acontecem. 
Esses turistas negros vêm à Bahia com a intenção de reencontrar suas 
"raízes africanas", que não estariam apenas na África, mas em todos os 
lugares da diáspora onde a África tem sido recriada. A autora afro-americana 
Rachel J. Christmas, ao descrever uma destas visitas, descreve o "pulso 
africano" que a Bahia oferece para os afro-americanos: 
"Nós sentimos o pulso africano na batida do samba, conhecido 
como semba em Angola; o engolimos com a comida condimentada, 
feita com castanhas, leite de coco, gengibre e quiabo, também 
usados na cozinha africana; o testemunhamos nas cerimônias de 
Candomblé, enraizado na religião dos iorubás da Nigéria; o ouvimos 
no musical sotaque iorubano do português falado no estado da 
Bahia.( .. . ) Hoje, os baianos estão muito mais conscientes de suas 
origens do que estão os afro-americanos" (Christmas, 
1992:253/4). 36 
Sobre os blocos afro, a autora os definiu como sendo formados por 
pessoas que estariam vinculadas a ela própria por um passado comum, e que 
saberiam a importância de resgatar este passado africano: 
"Suas mãos voavam para cima e para baixo sobre os tambores 
enfileirados; os membros de um dos blocos afro da cidade 
colocavam muitos quadris em movimento.( ... ) Preparando-se para 
as festividades anuais, os membros estudam bantu, iorubá ou 
outra cultura africana a ser incorporada em sua música, suas canções 
e danças" (Christmas, 1992:25617).37 
36. A idéia de que os negros na Bahia ou no Brasil teriam mais consciência (awareness) 
sobre a sua origem africana está bastante presente no imaginário do militante negro 
norte-americano, como pode ser percebido no depoimento do rapper Ml , da banda 
norte -americana Dead Prez: "Quando eu penso no Brasil, penso em gente preta 
falando português, entendeu? Eu penso em africanos, penso na África( .. . ) Eu sinto 
que eles estão mais próximos ou mais conectados à África. Eu vejo um passo ganho 
na força do povo preto. Na espiritualidade do povo de lá eu vejo um passo ganho 
na resistência contra a dominação colonial, no entendimento da importância da 
África, vejo uma estratégia a menos de lavagem cerebral que tem sido aplicada aqui 
( ... )", Revista Rap Internacional, Ano 1, no 3, 2001. 
37. Este artigo de R. J. Christmas é parte de uma cole tânea organizada por David 
Hellwig (1 992), onde há vários outros artigos que se referem à importância da troca 
de experiên cias entre os negros brasileiros e os afro-americanos . Dentre estes, 
destacam-se os textos de R. L. Jackson, Niani D. Brown, Gloria Calomee. 
Patricia de Santana Pinho 49 
Através de sua produção cultural, os blocos afro exercem um papel 
fu ndamental nas novas formas tomadas pelo movimento negro 
contemporâneo, contribuindo para moldar a imagem da cidade da qual fazem 
parte e servindo como referência importante para outras organizações negras 
do Brasil e de outras partes do mundo. A estética, os ritmos musicais e 
diversos outros elementos que compõem as narrativas dos blocos afro 
certamente foram influenciados por discursos e símbolos que atravessaram 
o Atlântico Negro, mas é fundamental perceber que, assim como recebem 
influências, os blocos afro também recriam, ressignificam e produzem 
elementos novos que participam do cenário negro contemporâneo e 
internacional. Os blocos estão criando novos objetos de negritude que têm 
o gosto do passado, da tradição, da africanidade, correspondendo 
imediatamente ao que é buscado pelos turistas afro-americanos. 
Embora o mais velho dos blocos afro tenha apenas 30 anos de existência, 
sua sede tem adquirido a mesmareputação de tradicionalidade dos 
centenários terreiros de candomblé, funcionando como "local sagrado da 
peregrinação" dos visitantes afro-americanos, assim como tem acontecido 
com os restaurantes de comida afro-baiana e as academias de capoeira. Nesta 
busca, valoriza-se sempre aquele que é tido como o representante "mais 
tradicional" de cada um dos subconjuntos da africanidade baiana: o Ilê Axé 
Opô Afonjá, dentre os terreiros de candomblé;38 a capoeira angola, em 
contraposição à regional, que seria mais "misturada"; e o Ilê Aiyê, como o 
bloco afro que seria mais "fiel às suas tradições africanas". 
Exatamente por se tratar de uma troca simbólica transnacional, não 
podemos ignorar que a Bahia não apenas importa elementos da cultura negra 
universal para incorporá-los e atribuir a eles novos significados. A cultura 
negra de Salvador está inserida no contexto da cultura negra mundial também 
como criadora e exportadora de símbolos étnicos negros. Nesse contexto, a 
cidade de Salvador tem se tomado um referencial de africanidade para negros 
de outros países da diáspora africana. Se, por um lado, a Bahia busca objetos 
negros modernos no mercado internacional, por outro lado, especializa-se 
cm vendertradição.39 
8. Embora existam terreiros de candomblé mais antigos que o Opô Afonjá na Bahia, 
a exemplo do terreiro da Casa Branca, os turistas afro-americanos referem-se mais 
ao terreiro de Mãe Stella de Oxóssi . Acredito que isso se deva à compatibilidade 
existente entre os discursos afrocentrados dos afro-americanos e o de Mãe Stella, 
que rompe com o sincretismo e projeta na África a fon te do conhecimento 
fundamental. 
39. Na definição de Sansone (2000b), a Bahia vende produtos tradic ionais, como o 
candomblé, as imagens de orixás, a capoeira, comidas tradicionais africanas, 
instrumentos de percussão, etc.; produtos quase tradicionais como a world music, 
a pintura popular, as escolas de capoeira, os novos terreiros de candomblé e as 
companhias de danças populares que viajam pelo Ocidente; e os novos produtos 
50 Reinvenções da África na Bahia 
Observando de perto o "turismo de raízes" desenvolvido no Brasil, 
constata-se que os "roots tourists" vêm com o interesse de conhecer 
sobretudo a Bahia, em detrimento de outros estados do País. O Rio de Janeiro, 
por exemplo, é considerado por estes turistas como um local onde a "cultura 
africana" já teria sido "desvirtuada de suas origens", enquanto que na Bahia 
seria possível ainda encontrar "reminiscências africanas" e uma "cultura 
africana mais preservada". Acredita-se, portanto, que a Bahia produza 
símbolos negros carimbados com o selo da "autenticidade africana''.40 
Relatos científicos e o senso comum têm sempre associado o Rio de 
Janeiro a uma cultura afro-brasileira "miscigenada" e Salvador a uma cultura 
afro-brasileira "pura". Alguns elementos selecionados a partir de expressões 
culturais negras do Rio de Janeiro, como o samba, o carnaval e a umbanda, 
são utilizados para representar brasil idade. Muitas vezes, os negros cariocas 
buscam na Bahia a fonte da "pureza negra". "Por sua vez, nas representações 
da cultura afro-baiana feitas tanto externamente como por um grupo seleto 
de integrantes seus que operam como representantes e porta-vozes da 
comunidade negra, o que é considerado engenhoso e bonito é a capacidade 
de se à África ostensivamente e, mais geralmente, de ser leal às 
tradições" (Sansone, 2000a:3). Esses porta-vozes tentam (e conseguem) fazer 
da Bahia a "Roma Negra" das Américas. 
Pode-se considerar a presença cada vez mais constante dos "turistas 
de raízes" como uma das mais importantes redes de circulação dos objetos 
negros, já que eles conferem status de modernidade e etnicidade a expressões 
da cultura afro-baiana. Algumas expressões tomam-se mais étnicas do que 
nunca em função do carimbo batido por estes turistas sequiosos por encontrar 
suas raízes. Eles trazem formas de vestir, de falar e de pensar, que seduzem 
boa parte dos negros brasileiros, e muitos fazem estas viagens com o intuito 
de trocar sua "modernidade" - representada principalmente pelas conquistas 
obtidas pelos movimentos pelos direitos civis - pela "tradição" africana da 
Bahia - encontrada nas expressões culturais afro-baianas - como foi 
explicitado por vários deles.41 
tradicionais relacionados principalmente ao carnaval baiano, que seriam as 
vestimentas, os instrumentos musicais, os souvenirs, etc. Os produtos mais 
valorizados são vendidos nas boutiques do Olodum, llê Aiyê e Ara Ketu, no 
Pelourinho. 
40 . Informações colhidas em entrevistas com turistas afro-americanos em Cachoeira 
- BA, em agosto de 2000. 
41. A noção de que a experiência negra dos Estados Unidos seria mais 'moderna' que 
a brasileira encontra respaldo também em algumas formulações teóricas norte-
americanas. Sheila Walker (2002) defende que os afro-americanos intercambiem sua 
negritude (blackness) - representada por uma identidade racial politizada e moderna 
- pela africanidade (Africanity) dos negros brasileiros, ou seja sua capacidade de 
retenção cultural. 
l 'í! tricia de Santana Pinho 51 
Os turistas afro-americanos vêm à Bahia geralmente depois de já terem 
f"ito várias viagens ao continente africano e, às vezes, a outros países da 
diáspora negra, como Haiti, Cuba e a Jamaica. Nesse sentido, é possível 
desenhar um "mapa de africanidade", onde cada lugar visitado da diáspora 
p ssui diferentes significados: o Egito seria "o lugar do orgulho negro", a 
•rande prova de que teria havido uma civilização mais importante do que a 
grega (ou greco-romana) e, portanto, seria o ponto de partida para revidar o 
urocentrismo predominante na história com o afrocentrismo baseado nas 
riquezas e grandes descobertas do Nilo. O Oeste Africano seria o "lugar de 
origem" e é denominado por estes viajantes muito mais dessa forma 
•cneralizada - "West Africa" - do que pelos nomes dos países localizados 
nessa região (Benin, Togo, Gana, Nigéria, etc.), pelo motivo de que os afro-
11nericanos não sabem exatamente de quem são descendentes, sabendo 
npenas que seus antepassados vieram de "algum lugar do Oeste Africano''. 
l 'ortanto, toda essa área é tida como o "lugar de origem", de onde os ancestrais 
l artiram forçadamente para encarar os horrores da "passagem do meio". 
Nestes países, os turistas de raízes visitam as prisões e os porões onde os 
nfricanos escravizados eram confinados em condições desumanas até o 
momento da travessia do Atlântico. A Bahia tem um significado específico 
dentro das rotas percorridas por estes turistas. Assim como Cuba e o Haiti, 
11 Bahia é um "lugar de encontrar as tradições africanas", que eles entendem 
· mo sendo tradições que teriam sido "preservadas" entre os negros 
brasileiros e "perdidas" entre os negros norte-americanos. 
Embora os diversos países visitados pelos turistas afro-americanos 
devam ser compreendidos como partes complementares do mesmo "mapa 
te africanidade", há, no entanto, uma distinção fundamental entre o turismo 
d • raízes desenvolvido na África e aquele que se realiza no lado de cá do 
tlântico. Trata-se de uma diferença que envolve dor e alegria. A experiência 
de visitar os porões onde os escravos eram confinados, assim como as 
t rríveis "portas do não-retomo", invoca os horrores sofridos pelos 
1ntepassados. Diante dessa experiência, os turistas passam por experiências 
·utárticas e choram de dor, relembrando o passado daqueles que os 
1ntecederam. Inversamente, ao visitarem o Brasil, e mais especificamente a 
Bahia, os turistas sentem a alegria de re-conectar com uma cultura que, ao 
. ·u ver, ousou sobreviver, tendo sido capaz de resistir à opressão e manter 
o vinculo cultural com a África. Além disso, diferentemente do que ocorre no 
· ntinente africano, onde os turistas lidam com o doloroso fato de que 
muitos africanos participaram ativamente do tráficode escravos, no Brasil, 
·le se vêem diante de descendentes de africanos que, assim como eles, 
f' ram escravizados e trazidos à força para o continente americano. A história 
du participação (negra) brasileira no tráfico de escravos, especialmente 
durante o século 19, é assim totalmente apagada, levando os afro-americanos 
52 Reinvenções da África na Bahia 
a considerarem os negros brasileiros como "irmãos em destino'', termo que 
estou criando para representar a sensação por eles descrita ao se encontrarem 
com outros negros diaspóricos marcados por uma trajetória comum de abuso 
e opressão. 
Sabemos que a idéia de que os negros na diáspora formariam uma 
espécie de família não é algo novo e podia ser encontrada na retórica do Pan-
Africanismo, assim como no movimento liderado por Marcus Garvey e no 
discurso da Negritude. Os turistas afro-americanos no Brasil freqüentemente 
comentam que a chance de eles terem nascido no Brasil é a mesma de eles 
terem nascido nos Estados Unidos. A imprevisibilidade do destino de seus 
ancestrais é concebida junto com a certeza de seus destinos compartilhados, 
marcados pela escravidão, opressão, luta e resistência.42 
É certo que o sentimento de alegria dos turistas é sobretudo amplamente 
promovido pelas agências de turismo que têm pouco ou nenhum interesse 
em divulgar as enormes desigualdades sociais e raciais do Brasil. Embora 
existam agências em outras partes do Brasil que se especializam em explorar 
a pobreza, realizando "favela-tours", a Bahia ainda é rimada com "alegria", 
construindo uma imagem pública em que a cultura negra tem um papel central. 
Um exemplo sintomático disso é a maneira como o Pelourinho é atualmente 
representado pela indústria do turismo. Com a exceção de alguns poucos 
exemplos, como a música 'Haiti', de Gilberto Gil e Caetano Veloso, pouco se 
associa o Pelourinho ao local onde os escravos eram castigados. Pontilhada 
por lojinhas de lembranças e bugigangas, o Pelourinho é hoje a área mais 
visitada pelos turistas em Salvador. Ironicamente, baianos e visitantes dançam 
juntos, literal e metaforicamente pisando em cima das "cabeças de nêgo", 
como são chamadas as pedras arredondadas que compõem as ruas onde os 
escravos eram chicoteados não muito mais que um século atrás. 
Contudo, apesar da alegria e do contentamento, os turistas afro-
americanos também vivenciam frustrações e decepções em suas visitas ao 
Brasil, principalmente quando eles percebem que negros brasileiros possuem 
diferentes concepções de negritude e africanidade, como veremos mais 
42. Recentemente, o deputado Charles Rangel (Partido Democrata de Nova York) 
introduziu a resolução n. 47 da Câmara dos Deputados (House Concurrent Resolution 
4 7) que visa reforçar a conexão entre os descendentes de africanos no continente 
americano . Seu texto de abertura enfatiza essa noção de irmandade da diáspora: 
"Estas pessoas são nossos irmãos e irmãs através do tráfico de escravos e, como 
nós, estão sofrendo de problemas similares. Os navios que nos trouxeram para os 
EUA poderiam muito bem ter nos levado para a República Dominicana, a Colômbia 
ou o Brasil. Eu apresentei essa lei como uma forma de relembrarmos nossa história 
comum e a necessidade de trabalharmos juntos para resolvermos nossos problemas 
comuns". Informativo de imprensa do Global Afro Latino & Caribbean Initiative 
Latin American & Caribbean Studies, Hunter College. ' 
1·,11tlcia de Santana Pinho 53 
uliante. Farejando o mercado existente nesta procura pelas raízes, há agências 
1111c se especializam neste tipo de turismo, promovendo as viagens dos grupos 
I' ira os diversos pontos do mapa explicado acima. Geralmente, esses grupos 
o formados antes das viagens e não apenas por ocasião das mesmas, e se 
·onstituem de pessoas que possuem algum tipo de afinidade. Portanto, alguns 
rupos são compostos só por aposentados, ou por professores 
1111iversitários, ou mesmo por jovens que freqüentam um mesmo "college". 
agências propõem-se a guiar os turistas de raízes aos diferentes pontos 
da diáspora que "exalariam" africanidade. 
Assim como viajam para o Brasil para participarem da Festa da Irmandade 
ela Boa Morte,43 na cidade de Cachoeira, no interior da Bahia, os afro-
americanos participam também de outros eventos que recriam tradições 
níricanas. O Festival do Vodu, organizado na praia de Uidá, no Benin, pela 
racção tradicionalista de sacerdotes e reis, constitui um destes vários 
exemplos. O antropólogo Peter Sutherland (1999), que pesquisa o evento, 
nfi.rma que o festival desenvolve o conceito de consciência diaspórica para 
enfatizar o valor local da herança tradicional. Para tanto, o festival projeta a 
cultura do vodu em um contexto transnacional, representando o Benin como 
o lar dos irmãos que se encontram na diáspora e como a fonte da cultura 
dfaspórica das Américas. 
Esta reconstrução se dá através da adoração aos ancestrais e a partir 
de um fluxo de duas mãos, de pessoas e de deuses através do Atlântico, 
promovendo o "roots tourism". O festival reforça a idéia de uma unidade 
transatlântica dos praticantes de vodu. O simbolismo performado no festival 
encoraja os "irmãos" da diáspora que retomem à terra-mãe, tanto sob a 
forma de espíritos ancestrais, como também sob a forma de turistas em busca 
das suas raízes. A primeira vez que o autor ouviu falar do festival foi através 
de um afro-americano que havia lhe dito que o festival representaria um 
"pedido de perdão" dos africanos aos seus irmãos na diáspora, por terem 
colaborado com a escravidão. "Vários sacerdotes de Uidá disseram-no que 
o festival tinha a intenção de purificar o povo do Benin pela culpa contraída 
por seu envolvimento histórico com a venda de escravos para os mercadores 
europeus. Em outras palavras, seria um ritual de expiação" (Sutherland, 
1999: 196). Contudo, ao pesquisar o festival, Sutherland constatou que se 
trata do uso do poder exercido pelo turismo por parte dos sacerdotes e reis, 
que tentam assim preservar sua autoridade tradicional em contraposição aos 
43. A Irmandade da Boa Morte existe desde 1823, sendo constituída exclusivamente 
por mulheres negras, maiores de 50 anos, devotas de Nossa Senhora da Glória. As 
irmãs são ao mesmo tempo católicas e adeptas do candomblé. A festa é realizada 
sempre na segunda quinzena de agosto e inclui procissão, missas, uma ceia afro-
brasileira oferecida pelas irmãs à comunidade, sendo encerrada com samba de roda . 
54 Reinvenções da África na Bahia 
valores neocoloniais do governo do Benin. Esta descoberta é reveladora 
das contradições existentes entre, de um lado, o pensamento dos turistas 
afro-americanos, ansiosos por encontrarem suas raízes e provar que seus 
irmãos africanos estariam arrependidos por terem colaborado com o tráfico 
de escravos, e de outro lado, a preocupação dos sacerdotes do vodu em não 
perderem poder político em seu país. O festival adquire então significações 
distintas para cada um dos dois grupos, mas esta contradição passa 
despercebida sob as projeções feitas pelos afro-americanos. 
Na Festa da Boa Morte, em Cachoeira, ocorre um processo parecido de 
contradição de visões sobre o evento. É evidente que os significados são e 
serão sempre distintos para cada grupo, já que estes pertencem a realidades 
diferentes. Contudo, há uma tentativa por parte dos turistas em querer unificar 
o pensamento de todos ali presentes pelo fato de que seriam "irmãos negros" 
e que estariam portanto imbuídos das mesmas perspectivas. Um exemplo 
disso - e que indica um certo maniqueísmo no pensamento dos turistas - é 
a lamentação que fazem pelo fato de as velhas irmãs negras da Boa Morte 
louvarem uma santa branca, Nossa Senhora da Glória. 
Os turistas geralmente desconhecem que esta santa é cultuada pela 
Irmandade desde o início do século 19 e que seu culto situa-se em um contexto 
de sincretismo religioso

Continue navegando