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Local e situação da observação O evento observado pela estudante tratava-se de um encontro de anime, o “Anime Outono 2017”, gratuito, organizado e divulgado através da rede social Facebook. O evento criado na rede social tinha mais de 500 convidados confirmados e mais de 1,000 pessoas interessadas. Ele aconteceu domingo, dia 11 de junho, entre as 13h e as 16:30h, no Parque da Redenção, Porto Alegre. O evento foi observado em sua totalidade. O ponto de concentração e encontro anunciado era nos arredores do Templo do Buda. Estavam programadas diversas atividades como cosplay, concurso cosplay, swordplay e torneio de swordplay (batalha de espadas), gincanas, venda de produtos, sorteios e premiação. Motivação inicial da escolha O motivo desta escolha está relacionado, em grande parte, com a curiosidade. Não sou familiar com animes em geral, mas tive contato com alguma coisa durante a adolescência. Mesmo assim nunca tive a oportunidade de presenciar um evento deste tipo. O que acha que vai encontrar Minhas expectativas são bastante óbvias, ou estereotipadas, acredito eu. Imagino que irei encontrar em vasta maioria jovens e adolescentes, muitos deles estereotipicamente interpretados pela categoria nerds e okatu. Imagino encontrar também muitas pessoas fantasiadas e também espero encontrar fantasias bem elaboradas. Pessoas descontraídas, reencenando cenas de batalhas. Espero encontrar muitas pessoas tirando fotos e muitos curiosos também, já que o encontro é em um lugar bem central. Espero encontrar bastantes referências orientais, não só de anime, mas relacionados a referências culturais em geral. Diário de Campo Domingo, dia 11 de junho. Temperatura baixa, com uma leve brisa gelada. O caminho da estudante para chegar no ambiente a ser observado parte de Canoas. Uma viagem de ônibus integração, uma viagem de trem e depois mais uma viagem de ônibus até o Parque Farroupilha, em Porto Alegre. O Parque Farroupilha parece um formigueiro, cheios de pessoas. Apesar do barro e das grandes poças de água acumuladas, um vestígio das últimas semanas de chuva sem trégua, muitas pessoas circulam, de um lado para outro. Os objetivos de seus frequentadores são muitos: desde a caminhada no sol na tarde de domingo, o passeio com o cachorro, a voltinha de bicicleta, até motivos mais econômicos, como a onda crescente de pessoas que fazem da grama seu brechó e dispõem roupas, livros, calçados e outros itens a venda, ou aqueles que utilizam-se do espaço borbulhante de pessoas para divulgar sua arte e ganhar uns troquinhos. Motivos políticos também, neste dia estava marcada uma manifestação “Fora Temer”, quando passo perto do ponto de concentração deste evento visualizo inúmeras pessoas já esperando o desenrolar do evento. O trajeto por entre as árvores se cruza com diversas pessoas utilizando adesivos de apoio a esta manifestação política. O Parque é um espaço democrático, ele abriga diversos grupos, se molda a diversos objetivos, das bolhas de sabão a roda de capoeira, da parada do orgulho lgbt à aula de yoga canina. E hoje ele vai receber mais um evento: o encontro “Anime Outono 2017”. Apesar da curiosidade que me guia, eu não tenho muito conhecimento sobre o funcionamento e lógica do mundo anime, e nem dos seus eventos e atividades. Mesmo assim alguns elementos deste acontecimento me chamam atenção. Primeiramente este é um evento que poderia ser chamado de “amador”. Isso porque ele difere do padrão “profissional” de outros eventos de anime e cultura asiática em Porto Alegre. O acontecimento deste domingo é gratuito, ou seja, não cobra ingresso para a participação. Ele é vivenciado em um espaço público, o Parque Farroupilha, ao contrário de eventos mais profissionais, que alugam espaços com maior estrutura, como centro de eventos, pavilhões e ginásios de escolas particulares. Esta diferença financeira muda aspectos importantes do evento e pode-se pensar se ela influencia no público do evento. Um encontro “profissional”, com acesso aos recursos financeiros derivados da compra de ingressos e patrocínio, teria os fundos necessários para contratar figuras importantes dentro no cenário “nerd” nacional e até internacional, podendo confirmar a presença de dubladores de animes, cosplay famosos, youtubers/vloggers, que atrairiam até mesmo um novo público, um novo nicho. Nesse sentido, os eventos “profissionais” de anime tornaram-se um negócio lucrativo, não que isso seja negativo, e moldaram um perfil de frequentadores. O evento observado pela estudante é organizado pelo “Tio dos Bottons”. Ele possui uma página no Facebook com o mesmo nome e através dela, cria, organiza e divulga o evento, que este ano está em sua 3ª edição. Quando chego ao ponto de encontro do evento no Parque Farroupilha me deparo imediatamente com o “Tio dos Bottons”, ele não corresponde a imagem que eu tinha elaborado em minha cabeça (de um senhor de idade, influenciada principalmente pela dominação de “tio” assumida na internet). Em carne e osso o Tio dos Bottons se revela um rapaz novo, menos de 30 anos, branco, magro, com cabelo escuro, vestindo tênis all star preto e casaco de couro, cujo comprimento ia até seus pés. Se eu não estivesse vendo ele interagir no evento, se tivesse cruzado com ele em outra parte do parque, eu com certeza atribuiria a ele uma outra identidade, provavelmente referenciada no grupo dos góticos. Quando chego no ponto de encontro várias pessoas já estão ali, e algumas atividades iniciam até mesmo antes do horário marcado. O local demarcado pelos organizadores não é muito grande, mas ali já estão montados um ringue de batalha (que na verdade não são nada mais do que pedaços de tnt amarrados a pedaços de canos de PVC). Em volta dele, timidamente, os participantes que chegam e os curiosos que param para ver o que estava acontecendo se inscrevem para participar. As fantasias/cosplay daqueles que formam a comissão organizadora do evento e atuam como monitores nas atividades, apesar de algumas serem bem completas, não são tão sofisticadas quanto as que a observadora tinha visto na internet, ao procurar eventos passados de anime na cidade, principalmente as fantasias/cosplay registrados naqueles eventos que cobraram ingresso. Logo atrás do ringue de batalha, se encontram bancas com diversas quinquilharias relacionados a esfera de animes e cultura asiática, mas também a diversos outros temas. A banca do organizador está localizada em um dos piores espaços, muito perto de outras atividades, o que não permite a livre circulação das pessoas e dificulta o acesso a banca. Nela estão expostos em uma tela diversos Bottons, estampados com personagens de animes, com frases de filmes, bandas e mais. Também estão expostos chaveiros de personagens, etc. Na banca ao lado são vendidas canecas de plástico, do tipo que são dadas como lembrancinhas em chás de bebês e aniversários. As canecas eram tematizadas com personagens de anime, principalmente Naturo. Ao perguntar o preço, sou surpreendida pelo valor requerido, entre R$35,00 e R$40,00. Me espanta, pois, a qualidade do produto era péssima, na minha avaliação obviamente, e com o valor estipulado seria possível adquirir o mesmo produto (uma caneca tematizada) em shoppings e lojas de artigos nerd, com uma qualidade muito superior à que estava sendo oferecida ali. Apesar desta banca não faz tanto sucesso quanto outras, ela é procurada e consegue repassar uma parte da sua mercadoria. Perto dali outra banca se destaca, nela estão expostos diversos itens de vestuário, mas o que se destaca são as toucas. Com o formato do rosto de diversos personagens de anime e outras referências asiáticas. Elas têm o mesmopreço das canecas, mas são vendidas em números bem maiores. As vendas de quinquilharias em geral são bem mais fortes nestas duas últimas bancas do que em outras. A explicação do sucesso da venda de toucas em relação as canecas têm a ver com as características de uso de cada item. As canecas, após serem compradas, são guardadas na mochila para serem utilizadas em casa, enquanto que as toucas podem ser vestidas na hora. Naquele cenário a touca era uma forma singela de integrar o grupo. Não era tão “sofisticada” quanto o cosplay, mas permitia uma identificação com o evento, principalmente daqueles que estavam participando pela primeira vez, tanto os que planejaram sua presença antes de sair de casa e aqueles que pela curiosidade se aproximaram e participaram do evento. Perto deste estande com a exposição de toucas encontra-se uma banca ocupada por uma senhora de mais idade, com lanches a venda, oferecendo pasteis e refrigerante. Acredito que ela tenha alguma relação com o Tio dos Bottons, mas não fui capaz de descobrir qual. O que me leva a pensar isso é o fato de que o Tio dos Bottons paralisa a batalha de espadas de 15 em 15 minutos, continuadamente, para avisar em voz elevada, que está acontecendo a venda de pasteis (1 é R$3,00 e 2 fica R$5,00) e de refrigerante (copo por R$1,00) na banca daquela senhora. Fica bem claro que, quando a atividade começa a “bombar”, diversos vendedores ambulantes da Redenção visualizam uma oportunidade e se acomodam ao redor do evento, oferecendo refrigerante, trufa, cocada, etc. Não ocorre uma indisposição entre os organizadores do evento e estes ambulantes, pelo contrário, quando o Tio dos Bottons percebe a presença destes indivíduos ele começa, ao falar dos pasteis da referida senhora, a lembrar os participantes de que existem diversos vendedores de lanches no entorno das atividades. Penso que é positivo para a comissão organizadora que as pessoas não precisem se deslocar para se alimentar, o que pode causar uma dispersão dos participantes. No mesmo sentido, parece que quanto maior a concentração de pessoas maior a curiosidade das pessoas, que se aproximam e participam das atividades. Em um determinado momento o Tio dos Bottons paralisa novamente a batalha de espadas (que foi uma das atividades mais cheias) para avisar que logo atrás das bancas vai acontecer a gincana da Disney. As lonas coloridas e os balões pendurados não são estranhos para mim, eu os havia notado logo que cheguei. Assumi que se tratava de outro evento pois o que personagens da Disney tem a ver com um evento de anime? Neste momento entendo que minha percepção estava errada e que a gincana da Disney é parte do encontro de anime. Este fato pode ajudar a explicar a presença de tantas crianças pequenas acompanhadas dos pais, muito mais do que eu tinha em mente que encontraria em um evento relacionado a anime, afinal são os adolescentes que geralmente se aproximam desta parte da cultura asiática, ou pelo menos são aqueles que frequentam mais eventos relacionados a temática. A comissão organizadora/monitores chama minha atenção pela idade: a maioria deles aparenta ter mais de 30 anos. Ou talvez não seja pela idade em si, mas pelo comportamento socialmente aceitável associado a ela. Estes monitores (as bancas são quase todas ocupadas por mulheres e os monitores das atividades são todos homens), participam das atividades, consideradas infantis/juvenis, com muita “vontade”. Diversos elementos são percebidos. Na sua interação com os frequentadores, na batalha de espadas por exemplo, ao mesmo tempo em que eles tentam promover, chamar a atenção e convencer os expectadores a participar, eles constantemente tentam reafirmar a sua dominação/autoridade dos signos específicos do mundo do anime. Ou seja, eles querem promover o evento fazendo mais pessoas se interessarem no conteúdo, mas ao mesmo tempo eles querem o reconhecimento de que estão ali a mais tempo e que sabem mais do que você. Isto ficava claro principalmente na batalha de espadas e no cosplay. Foi recorrente durante os confrontos as falas dos monitores sobre o nível de habilidade no manejo das espadas dos competidores. Essas falas eram mais direcionadas a participantes “outsiders”, muitas vezes entoadas e reafirmadas pelos participantes “insiders”. Durante este processo eles usam termos e expressões que os “outsiders” não dominam, assumindo uma atitude ao mesmo tempo excludente ou de imposição de limites (eu sei/você não) e uma atitude quase professoral, de introdução ao campo. No momento destinado a avaliação dos cosplay se percebe uma atitude similar. Os monitores e conhecidos adeptos a prática (o Tio dos Bottons, apesar do longo casaco de couro preto, não faz cosplay) tentam centralizar a atenção tecendo avaliações e utilizando argumentos e expressões não familiares aos recém iniciados. Não chega a ser uma postura rude, mas sim de uma autoafirmação constante (mas quem não gosta de atenção?). Eles não são avaliados pelo progresso ou criatividade, mas sim pelo nível de detalhe da fantasia e até mesmo do comportamento do personagem. Esse tratamento parece mais claro no julgamento das meninas que fazem cosplay, que não são poucas por sinal. Na verdade, em relação a totalidade do evento, a grande presença de meninas/jovens mulheres era evidente. Uma das meninas “insiders”, ou seja, que tem algum domínio de elementos da cultura japonesa e já participou de eventos de anime mais “profissionais”, me diz que cosplay feminino tem seus desafios próprios. Principalmente porque os personagens femininos de animes são hiperssexualizados, com formas corporais exageradas e proeminentes e roupas justas e muito curtas. Ela me diz que mulher cosplay tem duas escolhas: adaptar as fantasias de modo que se sintam menos expostas e correr o risco de ter a fantasia criticada pela falta de atenção ao detalhe ou, replicar a fantasia exatamente como no anime (sexy) e correr o risco de ser criticada por ser vadia e querer chamar a atenção. Nesta altura do evento percebo que o sol já não cobre todas as atividades, o local foi mal escolhido, no meio da tarde já não tem mais sol e o frio aumenta. O chão úmido dos últimos dias incessantes de chuva se torna uma verdadeira lama, principalmente na área da batalha de espadas, o que para todos os efeitos deixou alguns participantes satisfeitos, pois segundo eles agora o cenário se tornava mais medieval. Isso tudo causa a dispersão de algumas pessoas, mas para minha surpresa a maior parte das pessoas continua lá, na sombra, na lama, no frio. O encontro de anime observado dialoga com diversos temas dentro das suas atividades assim como com outros eventos acontecendo ao seu redor. Sendo geralmente associado exclusivamente com a temática japonesa, ele divide espaço para atividades clássicas como batalha de espadas e concurso cosplay com atividades associadas a outras temáticas, como o universo Disney. Coincidentemente ou não, neste domingo, ocorreu ao lado do evento de anime, na grama do Parque Farroupilha, um encontro de ouvintes de K-pop, gênero musical originário da Coréia do Sul. Mesmo que não tenha sido organizado pelo Tio dos Bottons e compartilhando o universo da temática asiática (japonesa e sul-coreana), não há um confronto entre os dois, um conflito de interesses. O Tio dos Bottons fala em voz alta diversas vezes, anunciando aos “perdidos” que o encontro de K-pop era do outro lado da grama. O que a sua ação aparenta é que não há uma disputa de público entre os dois eventos, apesar dos dois pautarem temáticas asiáticas. Algo que me chama atenção desde que cheguei no evento é a presença de adultos fantasiados de super-heróis. Eles não se misturam com as atividadese ao mesmo tempo não são procurados pelos participantes (para tirar fotos ou conversar). Na verdade, eles passam a tarde toda dentro e fora do evento, ao mesmo tempo. Apesar de estarem em um ponto central dentro do espaço das atividades, eles não se relacionam com ninguém além deles mesmos. Os três homens, todos aparentando mais de 35 anos, parecem profissionais, do tipo que se fantasiam para tirar fotos e cobrar com isso, suas fantasias são impecáveis, mesmo assim, não atraem a atenção de ninguém. Acredito que isto possa estar ligado a escolha dos personagens encarnados. São personagens criados e ambientados nos Estados Unidos, não tendo uma ligação tão clara com a temática do evento. Mesmo assim, o universo Disney também não tem forte relação com a temática japonesa e conseguiu angariar público para suas atividades. O que diferencia estes envolvimentos? Começo a sentir mais frio, a ausência de sol e a presença de vento não ajuda o conforto dos participantes. Ocorre a premiação do concurso de cosplay. Homem jovem, branco, vestindo um macacão laranja com insígnia oriental, usando uma peruca preta com o cabelo espigado. Eu sinto pena, pois, o macacão sem mangas deve estar proporcionando a ele uma gélida sensação. Eu penso bem e me identifico mais com as meninas que participaram do concurso, duas delas estão usando vestido curto. O prêmio, dois ingressos de cinema, não parece ser o suficiente para se submeter a este gelado sofrimento, pelo menos na opinião da observadora. As pessoas se dispersam muito depois da revelação do vencedor do concurso de cosplay. As bancas começam a se desmontar e guardar seus produtos. Os responsáveis pela gincana da Disney já foram embora mais cedo. O frio parece ter desestimulado os casais a ficarem ali com seus filhos, principalmente perto de toda aquela lama. “Levanto acampamento” e me direciono ao caminho de casa. Paro rapidinho em uma barraca e compro um copo de quentão e me coloco de volta no caminho da parada de ônibus. Hora de ir embora, “só” mais uma viagem de ônibus, uma de trem e outra de ônibus para chegar em casa. Esta mini observação participante me proporcionou vários questionamentos. Além do aprofundamento do assunto, através da revisão bibliográfica, algumas destas questões só serão esclarecidas com uma visita futura a um evento de anime de porte “oficial”. Será mesmo que este evento opera em outra lógica quando comparado aos eventos de anime “profissionais e não gratuitos”? Pode-se afirmar que este evento é realmente de anime ou de celebração da “cultura asiática”? O fato dele assumir outros contornos, introduzir outros conteúdos e promover novas dinâmicas o descaracteriza? A massiva presença de pessoas brancas em contraposição a ínfima participação de não- brancos é uma característica deste evento em específico ou faz parte de uma configuração mais geral dos eventos de anime? Mesmo que ele tenha perfil mais popular? Será que existe uma representação da população negra nas esferas desta temática pautada por um país oriental de maioria branca? Este evento, gratuito e transpassado por diversos temas é resultado de um esforço desses organizadores para promover, popularizar e democratizar está temática? Ou de percepção de um público-alvo (pessoas com poucas condições econômicas e/ou com escasso conhecimento do tema, ou os dois) pouco explorado economicamente? Ou os dois?
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