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Sociologia da Educação FERNANDA SANSÃO RAMOS MATTOS 1ª Edição Brasília/DF - 2018 Autores Fernanda Sansão Ramos Mattos Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa ..................................................................................................... 4 Introdução ............................................................................................................................................................................. 6 Aula 1 Sociologia e Educação ................................................................................................................................................ 7 Aula 2 Em busca de uma ciência para entender a sociedade ..................................................................................28 Aula 3 Max Weber e a ação social ......................................................................................................................................45 Aula 4 Émile Durkheim e os fatos sociais ........................................................................................................................58 Aula 5 Karl Marx e a educação transformadora ............................................................................................................74 Aula 6 Dos clássicos ao pensamento contemporâneo ................................................................................................90 Referências ....................................................................................................................................................................104 4 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. 5 ORgAnIzAçãO DO CADERnO DE EStuDOS E PESquISA Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução A Sociologia da Educação pode ser entendida como uma área específica de estudo em que o olhar sociológico é utilizado como forma de melhor compreender as dinâmicas da vida social, as relações que se estabelecem no processo educativo e as disputas de força pertinentes ao fazer educacional enquanto aspecto político da vida em sociedade. Para estabelecer com segurança esta discussão, nosso estudo está dividido em seis capítulos. No primeiro, justificaremos a presença da disciplina Sociologia da Educação na grade curricular de formação docente, apresentando, de forma ampla, as contribuições das reflexões sociológicas para o fazer cotidiano do professor. No segundo capítulo, definiremos Sociologia enquanto estudo das sociedades, que prima pela observação objetiva, sistemática e metódica dos fenômenos sociais, em sintonia com o tipo de construção de conhecimento proposto pelas ciências da natureza. Posteriormente, iniciaremos o estudo teórico dos autores clássicos da Sociologia, que se estenderá ao longo de três capítulos. No capítulo 3 estudaremos o sociólogo alemão Max Weber; no 4 a obra do funcionalista francês Émile Durkheim e, por fim, no capítulo 5 analisaremos a sociologia de Karl Marx. A compreensão do pensamento desses três autores será fundamental para que no capítulo 6 possamos analisar as correntes mais contemporâneas da Sociologia da Educação, aquelas que, nos dias de hoje, vêm dando sustentação à reflexão teórica e metodológica a respeito da prática docente e dos demais aspectos das relações de ensino e aprendizagem. Esperamos que ao final deste material você tenha compreendido a importância da reflexão sociológica para o fazer do professor, e que se sinta estimulado a desenvolver suas próprias investigações e reflexões sobre o tema. Objetivos » Justificar a importância da Sociologia na grade curricular dos cursos de licenciatura, apresentando a educação enquanto uma instituição social que precisa ser compreendida de acordo com o contexto em que está inserida. » Relacionar o surgimento da Sociologia com o contexto das grandes transformações da modernidade. » Apresentar as teorias sociológicas de Weber, Durkheim e Marx, para fundamentar todas as reflexões posteriores sobre a educação. » Investigar as correntes contemporâneas da Sociologia da Educação, em especial o neocolonialismo, os estudos culturais e a Nova Sociologia da Educação. 7 Introdução Neste primeiro capítulo, justificaremos a presença da disciplina Sociologia da Educação na sua grade curricular de formação docente, apresentando, de forma ampla, as contribuições das reflexões sociológicas para o fazer cotidiano do professor. Esperamos que, através desta discussão, você seja capaz de contextualizar a educação enquanto uma instituição social, que precisa ser compreendida dentro dos contextos específicos em que está inserida. Veremos ainda, que a prática cotidiana do professor precisa estar alinhada com os desafios sociais para a educação, e que o referencial teórico da sociologia pode auxiliá-lo a situar-se em relação a estas questões. Objetivos » Refletir a respeito dos fatores que fazem com que um aprendizado possa ser considerado significativo. » Justificar a inclusão da Sociologia da Educação nas grades dos cursos de licenciatura. » Analisar a educação enquanto instituição social. » Refletir a respeito dos objetivos determinados juridicamente para a educação nacional. » Definir os conceitos de etnocentrismo, violência simbólica e relativismo cultural. » Refletir sobre os dilemas contemporâneos da educação e a necessidade de o professor estar preparado para lidar com eles. 1AULASOCIOLOgIA E EDuCAçãO 8 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO Por que estudar Sociologia da Educação? Ao nos aproximarmos de uma nova temática de estudo, é comum, e inclusivedesejável, que nos indaguemos a respeito da necessidade e importância deste conhecimento, habilidade ou competência a ser desenvolvido. Devemos sempre tentar responder à pergunta “por que eu preciso saber sobre isso?”, pois ao termos consciência dos usos e aplicações que poderemos fazer daquele novo conhecimento em nossa atividade prática, estaremos muito mais engajados no processo de aprendizagem, que deixará de ser um ato mecânico de mero cumprimento formal de uma grade disciplinar predefinida e passará a ser significativo. De acordo com Carl Rogers (2001), a aprendizagem significativa é aquela que vai muito além da simples acumulação de fatos e conceitos, realmente penetrando todas as esferas da vida do indivíduo. Este é o tipo de educação em que ocorre uma verdadeira modificação no aprendiz, seja ela no comportamento, na personalidade, nas atitudes ou na forma como ele orientará as suas ações futuras. Segundo, ainda, Rogers (2001), uma das tendências mais básicas da educação, aquela em que podemos sempre confiar, é a de que o aluno possui um desejo natural de aprender, descobrir e aumentar seus conhecimentos e suas experiências. No entanto, esse desejo muitas vezes é neutralizado pelo sistema educacional, que não compreende que para que uma aprendizagem seja significativa, a matéria de estudo precisa ser percebida pelo aluno como algo relevante para que ele atinja seus objetivos. A pessoa aprende significantemente apenas aquilo que ela percebe como envolvido na manutenção e engrandecimento do seu próprio eu (tendência à autorrealização). Rogers dá como exemplo dois alunos em um curso de estatística: um deles desenvolvendo um projeto no qual necessita usar o conteúdo, e o outro fazendo-o apenas porque é obrigatório. Indiscutivelmente, as aprendizagens serão diferentes. Além disso, quando o aluno percebe que o conteúdo é relevante para atingir certo objetivo, a aprendizagem é muito mais rápida. (MOREIRA, 1999, p. 142). 9 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 Saiba mais Carl Rogers foi um psicólogo americano que desenvolveu uma abordagem terapêutica que recusava a visão do paciente como um doente que necessitava de cura, mas, sim, como um ser autônomo que precisaria reencontrar seu próprio equilíbrio natural. Este pensamento foi adaptado também para a educação, baseando-se na premissa de que o aluno possui um desejo natural para o aprendizado, que se concretiza quando reduzimos os fatores de ameaça do contexto educacional. Algumas de suas principais obras são: » Tornar-se pessoa (1961). » Sobre o poder pessoal (1977). » A pessoa como centro (1977). » Um jeito de ser (1980). Fonte: <https://medium.com/@dan.musashi/uma-defini%C3%A7% C3%A3o-de-empatia-por-carl-rogers-acb7386cbfbf> Imagine que no primeiro dia de aula no ensino superior você recebe de presente uma caixa de ferramentas vazia e, ao longo do curso e das disciplinas, você vai equipando esta caixa com todas as habilidades, competências e conceitos que serão, no futuro, as suas ferramentas de trabalho, aquelas que serão utilizadas para solucionar os desafios da prática profissional. Essa caixa de ferramentas é preciosa e, por isso, deverá ser tratada com carinho e respeito, sendo atualizada de acordo com a transformação dos problemas a que elas se propõem a solucionar. Iniciaremos, então, esta conversa sobre Sociologia justificando a presença dela na sua grade curricular. Por que um professor competente precisa entender de Sociologia da Educação? Isso é necessário, mesmo que futuramente ele vá lecionar disciplinas de outras áreas, como Matemática ou Ciências? Por que a Sociologia da Educação merece um espacinho na minha caixa de ferramentas? A resposta para estas perguntas se encontra nos seguintes fatores: » A educação é uma instituição social, portanto não pode ser compreendida separadamente do contexto social, e a Sociologia nos ajuda a compreender este contexto. » A Sociologia nos dá o suporte necessário para refletir criticamente sobre a prática docente, questionando nosso papel enquanto educadores e desnaturalizando tudo o que fazemos cotidianamente. » A Sociologia nos auxilia a lidar com os desafios sociais contemporâneos, com os quais o professor precisa lidar em sua prática profissional. 10 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO Ao analisar esses três fatores, esperamos que fique claro para você o porquê de a compreensão dos conceitos e reflexões da Sociologia fazerem desta disciplina uma ferramenta valiosa para estar na sua caixa de ferramentas. A educação enquanto instituição social De acordo com Reinaldo Dias (2010), instituições sociais podem ser definidas como sistemas abstratos e complexos que incorporam os valores fundamentais adotados pela sociedade, estabelecendo um conjunto de normas, padrões de comportamento e relações sociais que deverão ser seguidos em prol da satisfação de uma necessidade básica específica. Por se relacionarem a temas fundamentais da vida social, são relativamente duradouras e qualquer modificação significativa em um destes sistemas provavelmente afetará os demais. Muito complicado? Não se preocupe, pois vamos entender cada uma das partes desta definição utilizando como referência a instituição social da Educação, que é a que nos interessa neste momento. Figura 1. Exemplos de instituições sociais básicas. Instituições sociais básicas Família Economia Religião Educação Política Fonte: Adaptado de Dias (2010, p. 239). Como vimos na imagem acima, existem diferentes tipos de instituições sociais, e cada uma delas se organiza a partir de uma necessidade coletiva fundamental. Todas as sociedades humanas possuem, por exemplo, a necessidade de transmitir às novas gerações os conhecimentos acumulados pelas gerações anteriores, bem como de preparar seus indivíduos mais jovens para desempenhar os papéis sociais que são esperados deles. Nenhum de nós nasce sabendo viver em sociedade, é preciso que sejamos socializados para que passemos a nos comportar da maneira vista como adequada. Na tentativa de atender a esta demanda, surge a educação enquanto instituição social, um sistema, que como afirma a definição anterior, é complexo e abstrato. 11 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 O primeiro ponto a ser esclarecido diz respeito à caracterização da instituição social enquanto um sistema. Isso quer dizer que ela é composta por um conjunto de elementos que atuam de forma integrada para o seu bom funcionamento. Figura 2. Elementos da instituição social Fonte: Desenvolvida a partir dos conceitos de Dias (2010, p. 239). A complexidade deste sistema está no fato de que todos os seus elementos interagem entre si, influenciando uns aos outros e criando, através da sua relação, algo novo, que vai além da simples soma das partes. Imagine, por exemplo, os grandes projetos que podem ser concretizados quando um bom professor tem acesso a recursos materiais de ponta; ou quando a secretaria de educação consegue trabalhar de verdade em parceria com as escolas e as famílias. No que diz respeito à abstração, queremos dizer que a instituição social existe enquanto ideia, mas não é tangível fisicamente, sendo os elementos que a compõem responsáveis por garantir a sua materialidade. Você sempre pode visitar o prédio da escola, cumprimentar seu professor ao encontrá-lo na rua, segurar os livros que utiliza para estudar, mas a educação em si é algo que você não pode enxergar ou tocar. Ela é uma ideia que organiza todos estes elementos concretos. Prosseguindo com a análise de nossa definição inicial, temos a afirmação de que as instituições incorporam valores que são compartilhados pela sociedade, ou, ao menos, pela sua maioria. No caso da educação, podemos assinalar como exemplo valores como o respeito à pessoa, a universalização da educação,a lisura na gestão dos recursos destinados às escolas, etc. Estes valores são tão relevantes para a sociedade, que mesmo aqueles indivíduos que não se beneficiam diretamente deles reconhecem a sua importância. Como no caso de um indivíduo adulto, já escolarizado e sem filhos, que, ainda assim, se revolta diante de um caso de desvio de dinheiro da merenda, de crianças em comunidades rurais que caminham horas para chegar à escola mais próxima, etc. 12 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO Estes valores servem de base reguladora para o estabelecimento do conjunto de normas, padrões de comportamento e relações sociais a partir dos quais a instituição social buscará atender a sua finalidade. Figura 3. Organização das instituições sociais Necessidade fundamental a ser atendida Valores sociais Determinam e orientam as estratégias coletivas que serão usadas para o atendimento das necessidades. Normas Auxiliam o objetivo a ser cumprido, sem desrespeitar os valores Comportamentos Auxiliam o objetivo a ser cumprido, sem desrespeitar os valores Relações Auxiliam o objetivo a ser cumprido, sem desrespeitar os valores Fonte: Desenvolvida a partir dos conceitos de Dias (2010). A educação tem como função atender à necessidade básica de formar as novas gerações para viver em sociedade e dominar os conhecimentos, valores e condutas acumulados pelas gerações anteriores. A realização deste objetivo será perseguida a partir de normas, comportamentos e relações sociais padronizadas, que jamais poderão ir contra os valores daquela sociedade. Todos esperamos, por exemplo, que a escola seja um espaço de socialização onde os indivíduos aprendam a controlar suas vontades individuais de acordo com as regras coletivas. A disciplina, neste contexto, será um valor norteador para a educação, sendo criadas estratégias que nos levem à finalidade inicial de socializar para a convivência. Em determinado momento histórico, as punições físicas eram vistas como estratégia legítima para atingir este valor, mas com a mudança social e a inclusão de novos valores, como o de respeito à dignidade humana e o repúdio à tortura, as escolas precisaram se reorganizar para continuar servindo ao seu propósito sem, contudo, ferir os valores da sociedade. E esta é uma transformação que, normalmente, não se restringe apenas a uma das instituições sociais, visto que estes valores perpassam toda a vida social. Há entre as instituições um alto grau de interdependência, que faz com que as transformações ocorridas em uma delas se multipliquem nas demais. As instituições exercem tal influência que suas atividades ocupam um lugar central dentro da sociedade; uma mudança drástica em uma instituição provavelmente provocará mudanças em outras. 13 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 Por exemplo, as mudanças econômicas de um modo geral afetam enormemente as outras instituições. Elas influenciarão a estabilidade da família, a capacidade de o governo atender às demandas por seus serviços, podendo afetar até mesmo a qualidade da educação. As mudanças que ocorrem na educação podem influenciar os relacionamentos familiares, as instituições religiosas e o desenvolvimento econômico. (DIAS, 2010, p. 242). Vale destacar, no entanto, que ainda que os valores de uma sociedade eventualmente se transformem, fazendo com que as normas, comportamentos e relações precisem ser revistas, a finalidade básica a que se destina a instituição social é permanente, não sendo modificada com o passar do tempo ou de acordo com os diferentes contextos sociais. Para que haja continuidade e previsão nas relações sociais, deve haver uma certa rotina nos procedimentos e meios aceitos de lidar com os problemas que surgem. Cada nova geração não precisa inventar seus próprios métodos e crenças para lidar com tais problemas; as gerações anteriores já criaram as instituições. Essas, por sua vez, permanecerão por bastante tempo. É certo que sofrerão algumas alterações, mas, em sua essência, elas continuaram a suprir aquelas mesmas necessidades para as quais foram criadas. (DIAS, 2010, p. 239). De acordo com Reinaldo Dias (2010, p. 243), esta função básica das Instituições Sociais é composta por diferentes tópicos, que podem ser gerais – quando se aplicam a todas as Instituições Sociais – ou específicos – quando se aplicam a apenas uma ou algumas Instituições. No caso da educação, Dias (2010, p. 243) apresenta a seguinte relação de objetivos: » Gerais (se aplicam a todas as instituições sociais) › Contribuir para o processo de socialização, pois as pessoas aprendem com maior facilidade a diferenciar a forma certa e errada de agir em um contexto institucional. › Estabelecer um grande número de papéis sociais atrelando a eles modelos de comportamento tidos como adequados. › Dar estabilidade e consistência aos membros da sociedade através do comportamento institucionalizado. » Específicos da Educação › Familiarizar os indivíduos com os diversos papéis sociais existentes na sociedade; › Preparar os alunos para desempenharem os papéis sociais esperados deles, especialmente os ocupacionais e profissionais; › Transmitir às novas gerações a herança cultural acumulada pelas gerações anteriores; 14 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO › Estimular a adaptação pessoal e aprimorar os relacionamentos sociais. Através da leitura cuidadosa destes objetivos, percebemos que a educação enquanto instituição social está diretamente relacionada à compreensão pelo indivíduo da sociedade em que vive. Devemos, portanto, permitir ao aluno utilizar os conhecimentos, habilidades e competências curriculares para, através deles, agir no mundo; ser membro consciente e participativo na sociedade. Por este motivo, é impossível pensar a educação desatrelada do contexto social em que ela acontece. Afirmamos, desta maneira, que mesmo que um professor esteja em sala de aula ensinando conceitos puramente teóricos da Matemática, ele deverá estar o tempo todo consciente dos usos sociais da Matemática na vida cotidiana dos alunos. Ele deverá também estar atento, enquanto ensina Matemática, para todos os fatores socioculturais envolvidos no processo, que podem estar contribuindo ou dificultando a aprendizagem. Ser professor implica, portanto, saber ler o contexto social e se posicionar diante dele. E a Sociologia é a ciência que nos ensina a fazer isso. Sociologia e atividade docente Ainda que a função social da educação enquanto instituição social seja bem delimitada, como vimos na anteriormente, existe, ainda, muita disputa com relação aos significados, valores e delimitações destes objetivos, especialmente no que diz respeito à educação que acontece dentro dos muros da escola. Existem grupos sociais que defendem a participação da escola no desenvolvimento global dos sujeitos, enquanto outros acreditam que a escola deve se ater apenas a transmitir conteúdos disciplinares para o preparo do aluno para exercer seus papéis sociais relacionados ao trabalho. Esta é uma discussão longa, baseada em diferentes formas de entender o mundo, mas muito produtiva, uma vez que é através do debate de ideias que somos capazes de nos aprimorar tanto como indivíduos quanto como sociedade. Não podemos deixar de considerar, contudo, que ao assumir um cargo docente, estamos assumindo, como em qualquer outra atividade profissional, um compromisso legal e ético de agir de acordo com o que determina a nossa legislação, que nada mais é do que a vontade popular concretizada democraticamente através do Poder Legislativo. Por mais que discutamos o papel da educação, investigando diferentes aspectos de diferentes correntes de pensamento social e político, existe no ordenamento jurídico brasileiro uma definição clara e precisa do papel da educação em nossa sociedade, combase na qual todo professor deve orientar a sua prática docente. 15 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 A Constituição Federal de 1988, que é o ponto mais alto do ordenamento jurídico brasileiro e, portanto, se sobrepõe a qualquer tipo de legislação estadual ou municipal, define o seguinte: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 2016, p. 123). Como vimos, a Constituição Federal afirma especificamente que cabe à educação não só apresentar ao aluno os conteúdos específicos das disciplinas curriculares, mas, também, contribuir para que ele se desenvolva plenamente, ou seja, em seus aspectos intelectual, físico, emocional, cultural e social. Cabe a ela ainda preparar o indivíduo para exercer a sua cidadania e estar pronto para ingressar no mercado de trabalho. Durante a formação profissional para lecionar, você está se preparando para fazer parte deste sistema da educação, desempenhando um papel importantíssimo que é o de professor. Portanto, é fundamental que não perca de vista que estas recomendações deverão ser o norte em direção ao qual caminha a sua prática, seja ela na educação infantil, no ensino médio, na educação de jovens e adultos ou em qualquer outro espaço em que se desenvolvam práticas educativas. É um desafio e tanto! Mas é um desafio possível! E é justamente para nos ajudar a enfrentar este desafio que se justifica a presença desta disciplina de Sociologia na sua grade de formação docente, ainda que muitos alunos ainda se mantenham resistentes quanto ao seu estudo. Isto se dá pelo fato de a Sociologia ser uma ciência incômoda, que tende a nos tirar da nossa zona de conforto ao nos fazer refletir a respeito de temas complexos da realidade, como sexualidade, religiosidade, ideologia, identidades, entre tantas outras temáticas polêmicas. Ela nos propõe, a partir destes temas, um olhar o mundo com outros olhos, tentando se colocar no lugar do outro para buscar compreender a realidade a partir do ponto de vista dele. Isso é assustador! Faz com que, mesmo que por um minuto, eu precise me afastar das minhas certezas para dar uma oportunidade à compreensão das certezas do outro. E, com isso, passo a refletir não só sobre ele, mas, também, sobre mim mesmo. De acordo com Rogers (2001), toda aprendizagem que envolve uma mudança na percepção que o indivíduo tem de si mesmo tende a suscitar resistência, por ser compreendida por ele como algo ameaçador, que está ali para eliminar as certezas sobre as quais organiza o seu próprio eu. Para a maioria das pessoas parece que na medida que outros estão certos, elas estão erradas. Então, a aceitação de valores externos pode ser profundamente ameaçadora aos valores que a pessoa já tem, daí a resistência a este tipo de aprendizagem. (MOREIRA, 1999, p. 142). 16 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO Tomemos um exemplo simples. No Japão, o feijão é regularmente consumido pela população como uma iguaria doce. O anko é uma pasta que serve de recheio para diversas sobremesas populares nos países asiáticos e é feita à base de feijão vermelho e açúcar ou mel. Nós brasileiros, por outro lado, consumimos o feijão salgado diariamente e tendemos a ver com estranheza o costume oriental. É como se a mera existência de uma forma diferente de comer feijão ameaçasse a sacralidade da nossa maneira de fazê-lo. Quem está certo? Eles ou nós? Será que provar que os japoneses estão errados me ajuda também a provar que eu estou certo? É este tipo de reflexão incômoda que Rogers (2001) caracteriza como ameaçadora e, portanto, dificultadora do processo de aprendizagem, uma vez que o aluno passa a não estar mais predisposto a aprender. A Sociologia, neste sentido, nos auxilia a ver que aceitar que é certo para os japoneses comer o feijão doce não faz com que seja errado para nós comer o feijão salgado. São apenas duas formas diferentes de comer feijão e eu nem preciso passar a comer anko, apenas tenho que respeitar o direito dos japoneses de apreciar essa iguaria. Esse olhar específico das Ciências Sociais, que nos ajuda a tentar colocar as lentes do outro para entender como ele percebe o mundo, é denominado relativismo e deve ser analisado como uma oposição direta ao etnocentrismo. Etnocentrismo Consiste na atitude de julgar as práticas, crenças e valores de determinada cultura ou grupo social, tomando como base os critérios da cultura do próprio observador, ou seja, quando julgamos o outro a partir de nós mesmos. Este comportamento, como define Allan de Paula Oliveira (2018, p. 73), não é inscrito em um momento histórico específico ou mesmo restrito a apenas algumas sociedades: A história das relações entre as sociedades humanas é, em grande medida, uma história do etnocentrismo. Quando os gregos [...] classificaram os povos que não falavam a sua língua como bárbaros, havia nisso um componente etnocêntrico. O ponto de vista central nesse julgamento era a própria cultura grega. Nessa perspectiva, bárbaros eram os outros. Da mesma forma, quando os europeus, no século XVI, chegaram às Américas e julgaram as práticas de muitas sociedades americanas como bestiais e selvagens ou, ainda, negaram o estatuto de humanidade aos indígenas, seus posicionamentos foram marcados por um caráter etnocêntrico. Em ambos os casos, tratava-se de julgar a alteridade, as diferenças, a partir dos valores da própria sociedade. É interessante observar que o contrário também 17 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 é verdadeiro: os índios da América do Sul duvidavam do caráter humano dos europeus. [...] Lévi-Strauss evidencia, em um texto célebre, relatos do século XVI sobre como os indígenas americanos mantinham submersos os corpos de espanhóis (vistos como seres estranhos) mortos para descobrir se eram sujeitos a putrefação. Na mesma época, do outro lado do Atlântico, teólogos e juristas espanhóis travavam discussões intermináveis para determinar se os indígenas americanos tinham alma. Nesses exemplos, o etnocentrismo aparece como uma forma de julgamento das diferenças e de autoconfirmação das sociedades. Os gregos se consideravam superiores aos bárbaros, assim como os europeus, no século XVI, viam-se como o centro do mundo diante dos indígenas americanos. Estas relações entre sociedades ou grupos estabelecidos com base no etnocentrismo, ou seja, na crença de que a cultura do observador é superior à do observado, pode causar sérias repercussões, como guerras, preconceitos, segregação e, até mesmo, o extermínio daqueles considerados diferentes. Pensamos, automaticamente, em casos extremos, como os campos de concentração na Alemanha nazista, as guerras constantes entre grupos étnicos nos Balcãs, as disputas entre judeus e mulçumanos na Palestina, a segregação dos negros na África do Sul durante a vigência do Apartheid. E, por isso, você pode estar se perguntando: mas o que tem o etnocentrismo e estes grandes conflitos e situações de violência a ver com a prática docente? O etnocentrismo ocorre também em situações cotidianas, no interior de uma mesma sociedade, quando a incompreensão diante de comportamentos diferentes ao do nosso próprio grupo nos fazem criar uma linha hierárquica que tende sempre a colocar a nós mesmos em situação de superioridade. Oliveira (2018) apresenta o exemplo do uso da palavra religião, que costuma ser utilizada para designar alguns conjuntos de práticas, enquanto outros são tratados como crenças ou cultos. Temos, assim, um discurso no qual se fala sobre religião católica, religião budista, religião protestante e crenças indígenas e cultos afro-brasileiros. A utilização dos termos culto e crença, como defende o autor, são “formas de diminuiras práticas e as concepções sagradas daqueles considerados outros” (2018, p. 77). Pense ainda no exemplo de uma escola pública dentro de uma comunidade carente, em que o professor que leciona – muitas vezes pertencente à classe média e morador de bairros considerados mais abastados – propõe uma atividade aos alunos com base em uma música. Ele escolherá para a atividade uma música que esteja de acordo com o gosto de sua própria classe, em detrimento, por exemplo, do funk, que pode ser uma predileção daquela comunidade escolar. Muitas vezes, este estilo musical é, inclusive, tratado pelas elites como “barulho” e não como música. 18 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO Estes dois exemplos, como vimos, não implicam necessariamente a violência física contra o outro. No entanto, concretizam um tipo de violência igualmente perigosa, a violência simbólica. Violência simbólica De acordo com Pierre Bourdieu (1992 e 2007), a socialização do indivíduo às normas da sociedade em que vive consiste na construção de seu habitus, ou seja, na apreensão pelos indivíduos – de maneira mais ou menos consciente – dos esquemas de percepções, de apreciação e ação específicos daquela sociedade. Figura 4. Socialização. H a b it u s Esquemas de percepção Maneiras de perceber o mundo Esquemas de apreciação Maneiras de julgar o mundo Esquemas de ação Maneiras de comportar-se no mundo Fonte: Desenvolvida a partir dos conceitos de Jourdain e noulin (2017). Este processo ocorre ao longo de toda a vida do indivíduo e divide-se nas seguintes etapas de socialização: » Socialização primária: que acontece durante a infância, quando o sujeito é apresentado pela primeira vez aos significados atribuídos aos diversos aspectos da vida social. É, portanto, mais profunda e mais difícil de ser modificada. » Socialização secundária: que acontece já na vida adulta, quando o sujeito modifica seus esquemas de percepção, apreciação e ação. Sendo assim, temos mais enraizados aqueles esquemas adquiridos na família e na escola, e os utilizaremos no futuro em outras situações sociais, como o mercado de trabalho. Isso implica dizer, por exemplo, que um indivíduo aprende ainda na infância a respeitar as figuras de autoridade como os pais e os professores, e isso vai orientar futuramente a forma como ele se comportará diante do chefe. Vale ressaltar, no entanto, que os habitus dentro de uma sociedade não são uniformizados, eles variam de acordo com as condições de vida de cada sujeito e a sua trajetória social. Imaginemos um grupo de crianças que vivam na mesma cidadezinha rural. Todas construirão um mesmo habitus, uma vez que as condições socioeconômicas em que vivem são as mesmas. Bourdieu (1992 e 2007) chama isso de habitus de classe. Imaginemos, no entanto, que uma destas crianças, 19 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 já na vida adulta, se mude para um grande centro urbano, ou que outra delas seja eleita prefeito daquela cidade. Estas trajetórias de vida individuais trarão diversas modificações em seu habitus em relação àquelas que se mantiveram de forma inalterada dentro do mesmo contexto de sua socialização primária. Podemos dizer, assim, que: As disposições do habitus são duráveis à medida que, sendo enraizadas nas pessoas, elas tendem a se perpetuar e a resistir à mudança. Salvo uma mudança radical nas condições socioeconômicas do entorno, os indivíduos tendem a conservar as disposições adquiridas ao longo de sua socialização. (JOURDAIN e NOULIN, 2017, p. 51). Bourdieu salienta ainda que toda sociedade se divide internamente entre dominantes e dominados, sendo o primeiro grupo formado pela elite intelectual e econômica, e o segundo pelas camadas populares. Estas classes dominantes, segundo ele, possuem o poder para definir o valor que será atribuído a cada prática ou aspecto da vida cultural. São elas que determinaram a legitimidade da cultura, criando com isso uma divisão entre aquilo que é de “bom gosto” ou de “mal gosto”, sendo o primeiro sempre aquele que se refere às práticas das classes dominantes e o segundo às práticas das classes dominadas. Bourdieu apresenta, assim, que a hierarquia socioeconômica cria uma hierarquia cultural a medida que as classes mais abastadas impõem o seu próprio habitus de classe sobre as demais, pois a cultura não possui valor em si mesma, mas, sim, aquele que é atribuído pela sociedade. Cabelo, por exemplo, é apenas cabelo, mas aprendemos desde que somos muito jovens que existe uma distinção social muito bem delimitada entre o que é um “cabelo bom” e um “cabelo ruim”. O cabelo bom é liso, enquanto o cabelo ruim é crespo, mas ninguém nos explica que em sua origem esta distinção tinha um objetivo muito específico de desclassificar a ancestralidade africana do possuidor do cabelo. Negros ocupam historicamente no Brasil as posições mais baixas na hierarquia social e, portanto, aquilo que faz parte do seu habitus específico é desqualificado: o cabelo, as músicas, a religião, etc. E isso continua sendo reproduzido até os dias de hoje, disfarçado de senso comum, de bom gosto ou mesmo como sinônimo para pessoas bem ou mal-educadas. De acordo com Bourdieu estes esquemas de dominação consistem em um tipo de violência simbólica, pois eles submetem a própria vontade do dominado em perpetuar a dominação, uma vez que o habitus das classes dominantes é ensinado dentro do processo de socialização como única cultura legítima. Sendo assim, o indivíduo apreende aqueles valores, comportamentos e formas de ver o mundo como corretos e desejáveis, reproduzindo-os sem os questionar. Pense, por exemplo, em quantas meninas negras alisam seus cabelos crespos para se sentirem de acordo com a norma, para conquistarem melhores empregos, para serem levadas a sério 20 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO e respeitadas em diversos contextos sociais. Isso ocorre porque a socialização a que somos submetidos diz que o cabelo crespo é ruim, sujo, malcuidado, e que a pessoa que o tem é desorganizada, descuidada, descomprometida. Novamente, cabelo é apenas cabelo e os significados culturais que atrelamos a eles são construídos pela sociedade, tendo como referência as classes dominantes. Vale destacar ainda, que, de acordo com Bourdieu, uma das principais ferramentas desse processo de dominação é a escola, quando ensina a cultura das classes dominantes como única cultura legítima. Para este autor, a escola é reprodutora do status social vigente justamente por perpetuar as relações de dominação. Retomemos o exemplo apresentado anteriormente de uma atividade proposta em sala de aula tendo uma música como referência. A música utilizada na atividade proposta será escolhida de acordo com o gosto do professor que, independentemente de sua classe econômica, é membro de uma elite intelectual, e estilos musicais como o funk ou o rap, que são típicos das periferias e das camadas mais populares da população, usualmente são classificados como música de “mau gosto” ou de “má qualidade”, não havendo, portanto, espaço para eles dentro do contexto escolar. Perceba que, neste caso, o professor atua como reprodutor das relações de poder, muitas vezes sem sequer ter consciência disto. O aluno, da mesma forma, aceita a dominação ao não se questionar sobre a legitimidade da música erudita em detrimento da música popular. Este é um ciclo cruel de manutenção das desigualdades e a consciência de sua existência ajuda o professor a retirar-se da equação, dando aos seus alunos maiores chances de entenderem também o seu papel nestas relações. Falamos sobre o exemplo do cabelo e da música, mas poderíamos nos alongar a respeito das próprias expectativas relacionadas à educação popular, como as ideias de que nas escolas públicas as famílias não se importam, os alunos são fracos, desinteressados, acomodados,sem ambições para o futuro. E estes preconceitos, em alguns casos, acabam sendo absorvidos pelo professor, que passa a nortear sua prática profissional com base neles. Quem gosta de perder tempo com causas perdidas? Quem deseja investir tempo e esforço em um projeto em que os bons resultados são impossíveis? Pra que vou chamar a família para participar do processo educativo se ela não vai comparecer mesmo? Saiba mais Para uma reflexão mais aprofundada a respeito deste tema, escute o programa 173 do podcast Mamilos, onde é abordada a questão do racismo e toda a violência simbólica a que é submetida a cultura negra. O programa está disponível gratuitamente em www. b9.com.br/100487/mamilos-173-eu-nao-sou-racista/. 21 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 Assim, quando assumimos o discurso de que os alunos não são capazes, simplesmente paramos de tentar, de estimular, de buscar novas estratégias, e, com isso, a profecia se autorrealiza, os alunos de fato não progridem e a violência simbólica se perpetua. Tomemos como exemplo o experimento desenvolvido na década de 1960 pelos pesquisadores Rosenthal e Jacobson: O objetivo dos autores era testar a hipótese de que, em situação escolar, aquelas crianças das quais os professores esperam um maior crescimento intelectual, realmente mostram tal progresso. Como justificativa para o estudo foi dito às professoras que havia necessidade de avaliar a eficiência de um novo tipo de teste, planejado para predizer o progresso intelectual das crianças. Utilizou-se o Teste de Capacidade Geral de Flanagan (TOGA), que é um teste padronizado de inteligência e desconhecido pelas professoras na época, por ser relativamente novo. Este teste é formado por dois subtestes relativamente independentes, destinados a avaliar a capacidade verbal (compreensão da língua) e o raciocínio. O teste foi aplicado a todas as crianças da escola pelas professoras. Em cada uma das 18 classes cerca de 20% das crianças foram aleatoriamente escolhidas e indicadas a suas professoras como potencialmente capazes de rápido desenvolvimento intelectual, a partir dos resultados obtidos no teste. A apresentação dos nomes das crianças para as professoras foi intencionalmente informal. O tratamento experimental constituiu-se, pois, apenas em indicar os nomes de algumas crianças a suas professoras como sendo crianças das quais se poderia esperar progressos intelectuais rápidos no ano que se iniciava. Portanto, a diferença entre as crianças do grupo experimental e as crianças do grupo controle (todas as outras que não foram indicadas), estavam apenas na mente das professoras. Todas as crianças responderam novamente aos testes 4 meses depois do início das aulas e ao fim do ano escolar. Os resultados, de maneira geral, indicaram que as crianças de quem as professoras esperavam melhores resultados intelectuais mostraram tais progressos. (BRITTO e LOMONACO, 1983, p. 60). Não se pretende com isso atribuir a responsabilidade pelo fracasso escolar apenas ao professor, pois sabemos que ele é causado por uma complexa rede de fatores sociais, culturais, históricos, econômicos e culturais. No entanto, precisamos entender que somos também parte do problema, e que, ao termos consciência disso, somos capazes de refletir criticamente e buscar maneiras de modificar este quadro. Uma estratégia fundamental para o combate à violência simbólica nas escolas é a adoção, especialmente por parte dos professores, da atitude relativista. 22 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO Relativismo cultural O relativismo cultural consiste em compreender a cultura do outro a partir dos seus próprios termos, buscando entender os significados que as pessoas que fazem parte daquele grupo atribuem aos fatos e valores de sua cultura. Deixa-se, assim, de julgar os costumes e valores do outro com base nos do próprio observador e aquilo que, para o senso comum, poderia ser classificado como irracional ou carente de sentido passa a ser encarado como algo significativo para aquele grupo específico de pessoas. Vejamos o exemplo a seguir: O francês Loïc Wacquant (2002) realizou um trabalho de campo em uma academia de boxe em um bairro pobre de Chicago. Se, para muitos, o boxe é um ritual de violência gratuita, sem sentido algum, Wacquant revela a importância desse esporte para muitos jovens do bairro. Para eles, o boxe é fonte de disciplina moral, corporal e estética, além de oferecer projetos de vida em um contexto marcado por segregação e exclusões sociais. (OLIVEIRA, 2018, p. 93). As aplicações deste conceito para a realidade educacional e a violência simbólica nas escolas são inúmeras. No que diz respeito à postura do professor, representa uma modificação moral no comportamento com relação aos estudantes, pois, antes de julgar e condenar certas práticas, deve tentar compreendê-las de acordo com o contexto em que estão inseridas. Podemos refletir sobre esta possibilidade partindo do exemplo hipotético de um aluno muito comunicativo, desenvolto na forma de falar, mas que utiliza muitas gírias e comete muitos erros de concordância. Para um professor de Língua Portuguesa etnocêntrico, esta conduta pode ser julgada como desinteresse e falta de competência, pois se baseia na utilização da forma culta da língua enquanto único marco de referência para o “falar bem”. A conduta deste professor, em consequência, será normatizada por este valor e o aluno será tratado como fraco, punido com notas baixas, ou mesmo ignorado por não manifestar qualquer tipo de inclinação especial para o estudo de línguas. Um segundo professor de Língua Portuguesa, no entanto, compreende que este aluno vem de um contexto social em que as pessoas falam desta forma, que ele foi socializado desde que nasceu nesta estrutura linguística e com aquele tipo de vocabulário. Percebendo a fala do aluno a partir dos seus próprios critérios, ele percebe um desempenho acima da média na comunicação do aluno, na forma como organiza seu pensamento e transmite suas ideias. A partir daí, o que antes foi visto como deficiência será tratado como potencialidade e o aprendizado da norma culta será apresentado ao aluno como uma nova estratégia de comunicação que se acredita que ele é completamente capaz de dominar. 23 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 Qual professor você imagina que obterá os melhores resultados no desempenho deste aluno na disciplina de Língua Portuguesa? O que apresenta a norma culta como resolução para um defeito ou o que a trabalha como forma de aprimorar uma qualidade? No mesmo sentido, no exemplo da música utilizada como motivador para uma atividade em sala de aula, um professor que relativize o contexto sociocultural de seus alunos escolherá uma música que se adéque ao tema a ser trabalhado, mas que igualmente seja interessante e faça sentido para os alunos. Este é um ponto de partida, no qual o aluno se identifica, sente o seu próprio saber valorizado e, posteriormente, se interessa em saber mais sobre o assunto. O professor pode, então, com muito mais sucesso, apresentar outras propostas musicais. Trata-se, neste sentido, de ampliar o conhecimento e não de substituir. Não é necessário desqualificar aquilo que o aluno entende, gosta e identifica como seu, para apresentar a ele novas formas de ver o mundo. Tampouco significa permitir que os alunos se mantenham em sua zona de conforto, com o repertório limitado àquilo que ele traz de casa e da comunidade para a escola. O que estamos propondo é um diálogo entre os referenciais já utilizados pelo aluno e aqueles novos referenciais que serão apresentados pela escola. Cuidado Tratar com respeito e empatia os referenciais do outro não equivale a aceitar qualquer coisa com a justificativa da diversidade cultural. Não é uma questão de vale-tudo! A proposta é não criar generalizações do tipo “tudo nesteuniverso é bom” e “tudo naquele universo é ruim”. No entanto, qualquer conteúdo cultural que faça alusão a crime, violência ou a desrespeito aos direitos humanos deverá ser questionado e, por isso mesmo, o processo é orientado pelo professor. Cabe a ele decidir pedagogicamente as estratégias a serem adotadas para trabalhar diferentes conteúdos culturais e a adequação de cada um deles de acordo com as turmas em que serão trabalhados. Sociologia e os desafios contemporâneos da educação Por fim, a Sociologia da educação justifica a sua presença nos cursos de licenciatura por nos oferecerem os conceitos teóricos e metodológicos que nos permitam lidar com os inúmeros desafios sociais que se apresentam no cotidiano da sala de aula. Não é possível que o professor se mantenha vendado para as transformações sociais, acreditando que a escola seja uma espécie de Ogígia, ilha mitológica afastada de toda a realidade exterior, onde o tempo não passa e nenhuma influência externa pode penetrar. Este posicionamento, fundado num saudosismo romantizado de que “no meu tempo tudo era melhor”, não traz qualquer contribuição para a prática docente, apenas rancor e nenhuma motivação. 24 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO A educação, como vimos, é uma instituição social e, portanto, a escola, os alunos, os conteúdos, as metodologias e qualquer outro referencial atrelado a ela não podem ser entendidos isoladamente. O preço a pagar por esta tentativa de afastamento do docente entre a sua prática e a realidade é aos poucos ele ir deixando de ser um professor e transformar-se no que Celso Antunes (2007) define como um “professauro”, ou seja, aquele professor que pretende a qualquer custo fazer com que os novos tempos se adéquem a ele, e não o contrário. Como defende o autor, é impossível desejar, nos dias de hoje, os mesmos resultados alcançados com uma aula planejada há 30 anos: Há trinta anos não havia o celular, os computadores não eram o que hoje são e uma simples viagem de São Paulo a Ubatuba não demorava menos que seis horas. Nesses trinta anos o mundo mudou, a medicina evoluiu, a tecnologia avançou, os transportes se aceleraram. Mas ainda existem aulas em que o professor é o centro do processo de aprendizagem. Nem todos os dinossauros foram extintos. (ANTUNES, 2007, p. 16) O autor prossegue deixando claro que a utilização do vocábulo dinossauro, neste contexto, não tem a intenção de ser ofensiva, mas designa aqueles profissionais que insistem em conduzir a sua prática segundo procedimentos e expectativas de uma escola que não existe mais. O mundo muda, as sociedades se transformam e a educação precisa acompanhar este processo. Se definimos no início deste capítulo que o objetivo da educação enquanto instituição social é formar os indivíduos para a vida em sociedade, precisamos entender que sociedade é essa, ou estaremos falhando em nossa missão. Sendo assim, podemos estabelecer os seguintes itens como principais características da sociedade de nossos tempos a causar impacto sobre a realidade das salas de aula: » Diversidade: as escolas contam com uma diversidade de pessoas nunca anteriormente vistas e precisa estar pronta para lidar com ela. No contexto crescente de imigrantes e refugiados, temos escolas cujos alunos sequer dominam o uso mais básico da Língua Portuguesa; com os programas de inclusão, as pessoas com deficiência deixaram de ser segregadas e passaram a fazer parte do cotidiano escolar. Temos, ainda, diversos grupos que se organizam em torno de identidades coletivas compartilhadas, que coexistem dentro da escola, sejam estas identidades religiosas, étnicas relacionadas à sexualidade, a estilos de vida e tantos outros, que possuem valores e comportamentos expectativas tão diferentes umas das outras que transformam a escola em um grande exercício de convivência e tolerância. » Sociedade tecnológica: o mundo conheceu, nas últimas décadas, uma série de avanços tecnológicos, especialmente nas áreas de informação e conectividade, que reconstruíram completamente aquilo que esperamos da educação. Se antes chamávamos de sociedade 25 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 da informação o contexto em que o possuidor de determinado conhecimento era altamente valorizado, hoje o conhecimento está largamente difundido e disponível a qualquer um apenas com um clique. O diferencial, portanto, é formar o aluno para saber fazer bom uso desse recurso inesgotável de informações disponíveis. Parte deste processo inclui a preparação do professor para falar a mesma língua dos alunos, pois é impossível o diálogo entre um sujeito que no ensino fundamental já consegue programar e um professor que mal sabe ligar o próprio computador. » Conectividade: os alunos que entram hoje no ensino formal nunca conheceram o mundo analógico. Eles já nasceram conectados à internet e toda a sua forma de lidar com o mundo real está diretamente associada à relação estabelecida como virtual. Estes indivíduos possuem uma noção de intimidade e privacidade completamente diferente das gerações anteriores, bem como as relações estabelecidas com as pessoas, o tempo e o espaço são completamente diferentes e mais aceleradas. » Novo mercado de trabalho: era comum no passado que um indivíduo planejasse e desejasse, ao longo de toda a sua carreira escolar, atingir futuramente uma carreira específica. Alunos e suas famílias organizavam suas expectativas e habilidades em torno de profissões tradicionais como advogados, médicos e engenheiros. Atualmente, no entanto, o mercado de trabalho sofre modificações tão rápidas para acompanhar as transformações sociais que o professor Jorge Luis Nicolas Audy, superintendente de Inovação e Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), estima que setenta por cento dos alunos que estão concluindo o ensino médio e ingressando no ensino superior, no futuro trabalharão em atividades que hoje ainda nem foram inventadas (G1 RS, 2018). Considerando que um dos maiores desafios da escola sempre foi o de formar os alunos para se integrarem ao mercado de trabalho, podemos dizer que este desafio aumenta enormemente quando nos referimos a um mercado de trabalho que não entendemos e que sequer existe ainda. Estes são apenas alguns entre os tantos fatores que um docente precisa considerar ao organizar a sua prática de forma reflexiva e contextualizada no Brasil contemporâneo. E, com isso, sequer nos aproximamos dos tantos desafios locais e regionais que se apresentam ao professor. No entanto, podemos garantir que o estudo da Sociologia lhe ajudará a lançar uma boa luz sobre estes temas, o que faz desta disciplina uma ferramenta indispensável na sua caixa de ferramentas docente. 26 AULA 1 • SOCIOLOgIA E EDuCAçãO Para refletir Professores & professauros (um exercício de ficção) Que se imagine outra galáxia e, nesta, um planeta habitado. Com civilização bem mais antiga que a da Terra, apresenta progresso material e moral bem mais avançado que o nosso. Nesse planeta, um pesquisador resolve conhecer um pouco sobre como se desenvolve a educação em outro mundo habitado, agora bem mais atrasado, e que se chama Terra. Valendo- se da notável tecnologia que sua avançada cultura alcançou, disfarça-se em estudante terráqueo e, após muitas aulas que observa, prepara seu relatório, destacando que no planeta visitado encontrou dois tipos de ensinantes que, trabalhando com as mesmas dificuldades e regalias no mesmo espaço, apresentam significativas diferenças entre si. Para diferenciar profissionais assim tão dispares, chama o primeiro de professores e os outros de professauros, por identificar, nestes últimos, formas de pensamento comuns ao período Cretáceo, dominado pelos grandes dinossauros. Segue, extraído deste original relatório, algumas diferenças essenciais entre os dois. Quanto aoano letivo que se inicia: Para os professores, uma oportunidade ímpar de aprender e crescer, um momento mágico de revisão crítica e decisões corajosas; para os professauros, o angustiante retorno a uma rotina odiosa, o eterno repetir amanhã tudo quanto de certo e de errado se fez ontem. Quanto aos alunos que acolhem: Para os professores, a alegria de percebê-los cada vez mais sabidos e curiosos e a vontade de fazê-los efetivos protagonistas das aulas que ministrarão. A certeza de que não os ensinarão, mas poderão contribuir de forma decisiva para iluminar suas inteligências e afiar suas muitas competências. Para os professauros, nada mais que chatíssimos clientes que transformados em espectadores pensarão sempre mais na indisciplina que na aprendizagem, na vagabundice que no crescimento interior. Quanto às aulas que deverão ministrar: Para os professores, um momento especial para propor novas situações de aprendizagens pesquisadas e através das mesmas provocar reflexões, despertar argumentações, estimular competências e habilidades; para os professauros, nada além que a repetitividade de informações que estão nos livros e apostilas e a solicitação de esforço agudo das memórias para acolher o que se transmite, ainda que sem qualquer significação e poder de contextualização ao mundo em que se vive. Quanto aos saberes que se trabalhará: Para os professores, um volume de informações que necessitará ser transformado em conhecimentos, uma série de veículos para que com eles se aprenda a pensar, criar, imaginar e viver; para os professauros, trechos cansativos de programas estáticos que precisam ser ditos, ainda que não se saiba por que fazê-lo. Quanto à vida que se vive e os sonhos que se acalenta: Para os professores, desafios a superar, esperanças a aguardar, conhecimentos para cada vez mais se aprender, a fim de se fazer da arte de amar o segredo de viver; para os professauros, a rotina de se trabalhar por imposição, casar por obrigação, fazer filhos por tradição, empanturrar-se para depressa se aposentar e quanto antes morrer. O relatório do pesquisador espacial prossegue, mas não é objetivo desta crônica pelo mesmo avançar. O que com a mesma, efetivamente, se pretende são duas singelas interrogações. Você descobre em colegas que conhece quem pertence a uma e a outra categoria? E você, prezado amigo, com sinceridade, a que categoria pertence? (ANTUNES, 2007, p. 13-14). 27 SOCIOLOgIA E EDuCAçãO • AULA 1 Sintetizando Vimos até agora: » Para que uma aprendizagem possa ser considerada significativa, o aluno deve compreendê-la como relevante para a obtenção de seus objetivos. » A presença da Sociologia da Educação nos cursos de formação de professores pode se justificar pelos seguintes motivos: A educação é uma instituição social, que, portanto, não pode ser compreendida separadamente do contexto social, e a Sociologia nos ajuda a compreender este contexto. A Sociologia nos dá o suporte necessário para refletir criticamente sobre a prática docente, questionando nosso papel enquanto educadores e desnaturalizando tudo o que fazemos cotidianamente. A Sociologia nos auxilia a lidar com os desafios sociais contemporâneos, com os quais o professor precisa lidar em sua prática profissional. » Instituições sociais podem ser definidas como sistemas abstratos e complexos que incorporam os valores fundamentais adotados pela sociedade, estabelecendo um conjunto de normas, padrões de comportamento e relações sociais que deverão ser seguidos em prol da satisfação de uma necessidade básica específica. Por se relacionarem a temas fundamentais da vida social, são relativamente duradouras e qualquer modificação significativa em um destes sistemas provavelmente afetará os demais. » A educação é uma instituição social que visa atender à necessidade básica de formar as novas gerações para viver em sociedade e dominar os conhecimentos, valores e condutas acumulados pelas gerações anteriores. » De acordo com a Constituição Federal, cabe à educação não só apresentar ao aluno os conteúdos específicos das disciplinas curriculares, mas, também, contribuir para que ele se desenvolva plenamente, ou seja, em seus aspectos intelectual, físico, emocional, cultural e social. Cabe a ela, ainda, preparar o indivíduo para exercer a sua cidadania e estar pronto para ingressar no mercado de trabalho. » O conceito de etnocentrismo consiste na atitude de julgar as práticas, crenças e valores de determinada cultura ou grupo social, tomando como base os critérios da cultura do próprio observador, ou seja, quando julgamos o outro a partir de nós mesmos. » A violência simbólica ocorre quando os esquemas de dominação submetem a própria vontade do dominado em perpetuar a dominação, uma vez que o habitus das classes dominantes é ensinado dentro do processo de socialização como única cultura legítima. » O relativismo cultural consiste em compreender a cultura do outro a partir dos seus próprios termos, buscando entender os significados que as pessoas que fazem parte daquele grupo atribuem aos fatos e valores de sua cultura. » As transformações na sociedade implicam também transformações no campo da educação, com relação às quais o professor precisa manter-se atualizado. 28 Introdução Neste capítulo, definiremos a Sociologia enquanto estudo das sociedades, que prima pela observação objetiva, sistemática e metódica dos fenômenos sociais, em sintonia com o tipo de construção de conhecimento proposto pelas Ciências da Natureza. Veremos que o pensamento científico não é a única forma através da qual os seres humanos explicam a sua própria realidade e analisaremos as transformações sociais desenroladas a partir do século XV que levaram à valorização deste tipo de saber. Com base nesta contextualização, localizaremos também o surgimento da Sociologia e apresentaremos o pensamento de Auguste Comte, um dos principais fundadores da disciplina. Objetivos » Apresentar as quatro principais formas de pensamento através das quais os indivíduos constroem conhecimento a respeito do mundo. » Definir a Sociologia como forma de investigação da realidade, que surge ancorada na valorização do pensamento e da metodologia científica. » Contextualizar o surgimento da Sociologia, deixando clara a sua relação com as transformações advindas da passagem da Idade Média para a Modernidade. » Apresentar o Positivismo e o pensamento de Auguste Comte. 2 AULA EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE 29 EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE • AULA 2 Como conhecemos o mundo Quando falamos sobre Sociologia, a primeira imagem que vem à mente da maioria das pessoas é a de um campo de estudos que pensa sobre a sociedade, buscando entender e explicar de que forma ela funciona. O propósito do sociólogo seria, portanto, responder a perguntas como: » Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem? » Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem da maneira que fazem? » Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem no momento em que fazem? » Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem nas condições que fazem? » Por que os indivíduos em sociedade fazem o que fazem com as pessoas que fazem? Certamente, uma infinidade de pessoas em lugares e épocas diferentes se fizeram perguntas como estas. Será possível afirmar então que a Sociologia sempre existiu? Será que podemos, por exemplo, dizer que o homem sentado no interior de uma caverna a sessenta mil anos atrás, que se perguntava por que todos as pessoas se abrigavam em suas cavernas quando começava a chover, já era um sociólogo? Ora, ele estava justamente tentando entender o comportamento coletivo do grupo em que vivia! Na verdade, este ato de se perguntar a respeito do mundo é o que nos torna diferentes de todosos outros animais. O ser humano não só pensa, como é capaz de utilizar este pensamento para interpretar o mundo, analisar seus próprios atos, planejar, criar e transmitir o conhecimento acumulado através das gerações. No entanto, é preciso compreender que existem diferentes tipos de conhecimentos que podem ser construídos através do pensamento, cada um deles partindo de uma premissa diferente para responder a um questionamento. Sendo assim, não é a pergunta em si que nos leva a uma resposta, mas o tipo de pensamento que utilizamos para abordar esta pergunta, que nos levará a um resultado entre muitos possíveis. Vejamos a seguir os quatro principais tipos de conhecimentos e as premissas a partir das quais cada um deles busca analisar os fatos: 30 AULA 2 • EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE Figura 5. tipos de conhecimento. Fonte: Elaboração da autora. » Conhecimento empírico ou de senso comum: produzido a partir da experiência cotidiana do indivíduo, sem aprofundamento ou verificação. É também aquele transmitido através da tradição de uma geração para a outra, quando os mais jovens repetem o que fazem os mais velhos sem se questionar ou tentar refutar aquele comportamento. » Conhecimento teológico: tipo de saber fundamentado na crença em um universo sobrenatural, com seres – deuses, espíritos, etc. – capazes de agir sobre a realidade e a vida dos indivíduos. Estão incluídos neste tipo de conhecimento todos os pontos de vista baseados em mitos, ou nas mais diversas religiões, cabendo ao indivíduo apenas ter fé e acreditar, sem questionar ou tentar refutar. » Conhecimento filosófico: aquele que tem como fundamento a reflexão racional a respeito do mundo, fazendo uso da observação e da reflexão para responder tanto sobre as questões materiais quanto imateriais da vida humana. Nele, a cada descoberta, novas problemáticas e indagações são geradas, fazendo com que o indivíduo continue sempre refletindo e questionando suas próprias respostas. » Conhecimento científico: tipo de conhecimento que busca analisar os fatos objetivamente, com base em evidências coletadas e testadas através de uma rigorosa metodologia. O cientista deve considerar apenas os fatos, baseando suas conclusões exclusivamente nos resultados de seus experimentos e não em valores, predileções ou crenças pessoais. 31 EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE • AULA 2 Qualquer evento da vida cotidiana pode ser analisado através destes diferentes tipos de abordagens e qualquer pergunta que nos façamos pode ser respondida utilizando um destes quatro tipos de conhecimentos, gerando provavelmente respostas completamente diferentes para uma mesma indagação. Imagine, por exemplo, que você está se preparando para ir ao cinema com os amigos e, ao abrir a porta para sair de casa, se depara com um céu carregado de nuvens escuras. Imediatamente você se pergunta: Será que vai chover? Devo ir ao cinema ou ficar em casa? Vamos imaginar algumas respostas possíveis para estes questionamentos: » Tenho certeza de que vai chover! Esse céu preto não me engana. Toda vez que fica assim cai um baita temporal. É melhor levar um guarda-chuva e, antes de sair, vou cobrir o espelho da penteadeira, pois minha avó sempre me disse que espelho descoberto em dia de temporal atrai raio. Não sei se isso é verdade, mas é melhor não arriscar. » Ah, não! Vai cair o maior temporal! É Deus me castigando porque eu disse pra minha mãe que ia ficar em casa estudando. Pode ser também um aviso divino de que se eu sair de casa uma coisa terrível vai acontecer, como um acidente ou um assalto. É melhor ficar em casa. Vou ligar pro pessoal e dizer que eu não vou. » Sempre que o céu está cheio de nuvens negras a probabilidade de que chova aumenta consideravelmente. Está tarde; o céu está cheio de nuvens negras, portanto é lógico afirmar que a probabilidade de que chova aumentou consideravelmente. Deixar de ir ao cinema, nesta situação, seria uma ação sábia, mas será que tal comportamento não seria antiético, uma vez que meus amigos já podem ter saído de casa e, portanto, estão expostos às consequências da chuva acreditando que eu honrarei a minha palavra e me encontrarei com eles na entrada do cinema? » Essa quantidade de nuvens negras no céu me leva a crer que vai chover, pois as nuvens de chuva normalmente são mais espessas por estarem carregadas de gotículas de água, o que dificulta a passagem dos raios de sol, explicando, assim, a coloração escura. No entanto, a mera aglomeração de nuvens e a sua coloração não me fornecem dados suficientes para determinar as chances de chover. Vou consultar a previsão do site do Instituto Nacional de Meteorologia, pois eles utilizam dados confiáveis coletados por satélite e uma metodologia de cálculo da possibilidade de chuva com uma alta taxa de acertos. Vou fazer esta pesquisa antes de tomar uma decisão sobre ir ou não ao cinema. Saiba mais Para visualizar as principais características de cada um dos quatro tipos de conhecimento estudados neste capítulo, convido você a pausar sua leitura e visitar a Trilha de Aprendizagem da primeira estação da disciplina, onde está disponibilizado um quadro comparativo para complementar e fixar o conhecimento construído até aqui. 32 AULA 2 • EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE Você consegue identificar a que tipo de conhecimento se relaciona cada uma das respostas apresentadas acima? No primeiro caso, temos um exemplo de conhecimento empírico ou de senso comum, pois a avaliação sobre a chuva se deu apenas através da experiência cotidiana do indivíduo. Ele percebeu que em diversas situações anteriores um grande temporal foi precedido por um céu coberto de nuvens negras e usou essa comparação para concluir que choveria. Percebemos também, nesta resposta, a menção a uma crença popular, de que cobrir espelhos durante um temporal impede que eles atraiam raios, mesmo que as pessoas que ainda mantêm este costume não saibam explicar o porquê. Já na segunda resposta, a questão sobre o mau tempo foi respondida com base no pensamento teológico, pois a possibilidade de chuva foi associada a um ato divino. Deus estaria punindo o sujeito por um mau comportamento ou enviando um presságio para protegê-lo de um infortúnio iminente. Neste caso, o conhecimento sobre a chuva se fundamenta estritamente na fé do indivíduo de que Deus tem o poder de transformar o tempo de acordo com a sua vontade, e não cabe ao devoto questionar este fato. No terceiro caso, o conhecimento utilizado para refletir sobre o tempo foi o filosófico. Perceba que o sujeito parte da observação racional e lógica para determinar que a chuva se aproxima e, partindo desta informação, conclui que a melhor ação a tomar seria não se arriscar saindo de casa. No entanto, esta conclusão o leva a uma nova reflexão, que diz respeito às implicações éticas atreladas ao seu não comparecimento ao cinema. Por fim, temos uma resposta fundamentada no conhecimento científico, pois o sujeito associa sua observação objetiva do tempo aos conhecimentos já testados e verificados a respeito da formação das nuvens de chuva. Complementando esta análise, ele decide verificar uma fonte de dados confiável, da qual ele conhece o método rigoroso de coleta e análise de informações, para chegar a uma resposta a mais próxima possível da realidade. Apenas quando todos estes fatores forem devidamente analisados será possível passar à próxima pergunta, que diz respeito a ida ou não ao cinema. Tanto no pensamento filosófico quanto no pensamento científico, percebemos pelos exemplos que a razão é o fundamento de partida para a construção do conhecimento, o que pode criar algumas dúvidas na diferenciação dos dois. O que distingue, afinal a filosofia da ciência? As principais diferenças entre essesdois tipos de conhecimento têm a ver com o objeto e o método de estudo. O objeto de estudo do conhecimento científico são dados materiais, que podem ser percebidos pelos sentidos e observados com a ajuda do método experimental. Já o objeto do conhecimento filosófico é bem diferente. A filosofia está interessada em temas que vão além do que os sentidos podem captar: ela parte da experiência material para a reflexão abstrata. 33 EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE • AULA 2 Aqui, usamos a reflexão para pensar sobre nós mesmos e sobre a realidade. (MASCARENHAS, 2012, p. 23). Da mesma forma, é possível argumentar que tanto a ciência quanto o senso comum podem partir da observação de um fato e da experimentação para construir um conhecimento. No entanto, a ciência precisa ser objetiva, e restringir as suas conclusões apenas àquilo que se pode avaliar e concluir através dos dados analisados, enquanto o senso comum é subjetivo e, portanto, abre espaço para a imaginação, as predileções, valores e afetos. Considere que um estudo conduzido cientificamente conclui que o chá de camomila e o chá de erva cidreira contêm um elemento em sua composição que possui propriedades calmantes. Uma pessoa que escute os conselhos da avó poderá chegar à mesma conclusão simplesmente tomando o chá em um dia estressante e sentindo-se mais calma depois disso. Se perguntarmos ao cientista qual dos dois chás é mais eficiente, sua resposta estará vinculada à composição química das ervas e de sua reação na bioquímica do corpo. Ele deverá ainda apresentar junto com suas conclusões o exato processo através do qual testou e investigou as propriedades calmantes das duas ervas, para que outro pesquisador, se desejar, possa reproduzir o experimento para comprovar ou refutar a sua hipótese. A pessoa que simplesmente toma o chá recomendado pela avó, por outro lado, poderá dizer que um deles é melhor porque é mais gostoso ou porque tem uma recordação afetiva da avó preparando o chá. E se fizermos a mesma pergunta a outro bebedor de chás, seu veredito pode ser exatamente oposto baseado nas mesmas justificativas. Você agora deve estar pensando: então, se a ciência me garante maior precisão nas respostas, posso dizer que o conhecimento científico é melhor do que todos os outros! Não necessariamente. Dentre os quatro tipos de conhecimento apresentados, o científico é o único que se baseia exclusivamente na análise dos fatos, sem permitir a utilização da subjetividade para modificar os seus resultados. Valores, ideais, predileções, opiniões e afetos variam de uma pessoa para outra, por isso não podem ser considerados para um resultado científico. Contudo, o que definirá o quão “melhor” será um tipo de conhecimento, será o contexto em que ele será necessário, seus objetivos e a utilização que será feita dele. Se você deseja construir uma ponte, aconselho que utilize o método científico; para decidir que sapato usar na festa de aniversário do seu irmão, o senso comum poderá ser mais indicado; no caso da perda de um ente querido, o conhecimento religioso pode ser capaz de trazer o conforto que nenhum dos outros trará; e o conhecimento filosófico pode ser essencial para que você analise todas as implicações envolvidas em contar para sua melhor amiga que o marido dela está tendo um caso extraconjugal. 34 AULA 2 • EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE Mas o que tudo isso tem a ver com a Sociologia? Como toda esta distinção entre tipos de conhecimento nos ajuda a saber se nosso amigo das cavernas, há sessenta mil anos, refletindo sobre as pessoas se abrigando da chuva já era um sociólogo? Estou certa de que, depois de discutirmos os diferentes tipos de conhecimentos, você pode imaginar que a resposta a que aquele sujeito chegou sobre o dilema da chuva foi baseada na reflexão religiosa ou do senso comum. A utilização da racionalidade na construção de conhecimento surgiu apenas na Grécia do século VI a.C., quando a insatisfação diante das respostas fornecidas pelos mitos fez com que os primeiros filósofos buscassem uma nova forma de explicar o mundo, não mais centrada no sobrenatural, mas, sim, na observação e na reflexão racional a respeito da realidade. Com o passar do tempo, esta observação racional da filosofia a respeito dos fenômenos da natureza foi se tornando cada vez mais metódica e especializada, dando origem, assim, a ciências como Biologia, Física, Química, etc. Entretanto, é apenas no século XV, com o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, que a ciência se tornará, como aponta Alessandro Paixão (2012), a forma dominante e aceita como verdadeira para explicar a realidade. Este, para nós, é um dado importante, pois foi apenas quando atribuímos à ciência a primazia enquanto forma de explicação da realidade, que estabelecemos o contexto propício para o surgimento da Sociologia. O contexto histórico para o surgimento da Sociologia Para de fato compreendermos o que é a Sociologia, seu objeto de estudo e o método através do qual ela se dedica a explicar a sociedade, é fundamental compreendermos o contexto histórico e social em que se dá o nascimento desta disciplina. Como apontado por Bomeny (2016), a Sociologia é uma filha da modernidade, criada na Europa no século XIX, mas herdeira das transformações sociais que se iniciaram a partir do século XV. Os “tempos modernos” se iniciaram no século XV, quando uma série de mudanças afetou as sociedades europeias e a vida urbana foi impulsionada, como reflexo das Grandes Navegações e do desenvolvimento do comércio no continente europeu e no ultramar. A nova maneira de viver e de ver o mundo contrastava, cada vez mais, com a da sociedade medieval, caracterizada por estratificação rígida e imobilidade social. A estratificação era reforçada pelo dogma cristão que atribuía à vontade de Deus o lugar que cada um ocupava na sociedade. A igreja também se encarregava de definir o que era certo ou errado nos campos político, econômico e cultural. Com isso, por muito tempo, as atividades ligadas ao comércio não tiveram a mesma importância social das atividades agrícolas. O século XVIII se destacou no processo de mudanças que caracterizou os “tempos modernos” porque foi berço de importantes revoluções: a Revolução 35 EM BuSCA DE uMA CIÊnCIA PARA EntEnDER A SOCIEDADE • AULA 2 Industrial e a Revolução Francesa. A primeira trouxe, para as cidades, novos contingentes originários das vilas rurais, o que gerou um profundo impacto social; a segunda buscou assegurar direitos da nova população que havia se instalado no ambiente urbano. A cidade foi o espaço privilegiado para transformações sociais, econômicas e políticas na Era Moderna. O ritmo urbano acelerado e as mudanças econômicas e políticas, bem como o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, alimentaram a ideia de que a vida em sociedade é fruto do trabalho e da invenção humana. Essa nova mentalidade contribuiu para o desenvolvimento, em meados do século XIX, de um campo de estudos dedicado a compreender o sentido das transformações sociais e como os indivíduos reagiam a elas. Com essa promessa, nasceu a sociologia. (BOMENY et al.., 2016, p. 23). Vejamos a seguir mais detidamente a contribuição de cada uma destas grandes transformações sociais para o surgimento da Sociologia: » Urbanização – a partir do século XV, a Europa, até então predominantemente rural, experimenta um grande fluxo de pessoas saídas do campo para povoar as cidades, que se viam cada vez mais populosas sem estarem devidamente preparadas para o novo contingente de habitantes. Esta proximidade constante entre vizinhos, muitas vezes de diferentes etnias, religiões e até mesmo classes sociais, fez aflorar uma série de novas problemáticas sociais. » Grandes Navegações – movimento de exploração marítima que se iniciou
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