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AAA TTTeeemmmpppeeessstttaaadddeee William Shakespeare Adaptação em Português de Sônia Rodrigues Mota OO©©®®BBRR Sobre a Digitalização desta Obra: Esta obra foi digitalizada para proporcionar os benefícios da sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que usam meios eletrônicos para ler. Dessa forma é totalmente condenável a venda desse e-livro em qualquer circunstância. Distribua-o livremente! “Para o Sr. ‘Aldique’, que me apresentou ao Sr. William” Quem foi William Shakespeare? No verão de 1587, um rapaz interiorano andava pelas ruas de Londres. Tinha consigo apenas algumas libras, mas finalmente encontrava-se no ambiente propício para desenvolver a sua vocação — a literatura. A capital inglesa havia sido, por muito tempo, apenas um sonho para William Shakespeare. Nascido em 1564 em Stratford-upon-Avon, gozou de uma vida abastada até os 12 anos. A partir de então, com a falência de seu pai, viu-se obrigado a trocar os estudos pelo trabalho árduo, passando a contribuir para o sustento da família. Guardava, entretanto, os conhecimentos adquiridos na escola elementar, onde havia iniciado seus estudos de inglês, grego e latim; por sua própria conta, continuou a ler os autores clássicos, poemas, novelas e crônicas históricas. Era também um profundo conhecedor da Bíblia. Aos 18 anos já estava casado com a rica Anne Hathaway, com quem teve três filhos. Não se sabe ao certo por que motivo seguiu sozinho para Londres, quando contava 23 anos; o fato é que veio a tornar-se a figura mais expressiva da literatura inglesa. Foi o maior poeta e dramaturgo do Renascimento de seu país. De maneira bem simples, podemos definir o Renascimento como a retomada da cultura da Antigüidade clássica, baseada na valorização de todas as capacidades do homem e no estudo e conhecimento da natureza, que se desencadeou em vários países da Europa nos séculos XIV, XV e XVI, reformulando as artes, as letras e as ciências. Esses princípios eram bem diferentes daqueles que nortearam a cultura medieval, centralizada na adoração a Deus e no estudo exclusivo dos livros sagrados e dos assuntos espirituais. Vários foram os fatores que determinaram esse processo: a centralização do poder na figura dos reis, que estimulavam a produção artística esperando obter dessa forma promoção pessoal; o desenvolvimento do comércio e das cidades; e o enriquecimento dos comerciantes, que passaram a pagar para que artistas e literatos produzissem obras que divulgassem os valores dessa classe em ascensão. Tal efervescência cultural era bastante acentuada em Londres, onde se desenvolvia uma intensa atividade teatral. Shakespeare iniciou sua carreira como ator, na companhia teatral do Conde de Leicester. Pouco tempo depois, passou a dedicar-se à adaptação de textos alheios para o palco. O sucesso obtido nessa atividade levou-o a escrever suas próprias peças. Nos dez anos seguintes — já com sua companhia teatral — escreveu quinze peças, quase todas comédias leves e dramas históricos ou sentimentais, como Sonho de uma noite de verão, A megera domada, Muito barulho por nada, Ricardo III e Romeu e Julieta. A partir de 1601, durante um período de recolhimento e meditação, elaborou a maior parte de suas tragédias, como Otelo, Hamlet, Rei Lear e Macbeth. Alguns críticos consideram esse período a sua "fase sombria". Em A tempestade, escrita provavelmente em 1611, é notória a composição de elementos variados que guarda a arte de Shakespeare. Nesse texto, ele mistura a elementos próprios do universo medieval, como as bruxas, fantasmas, espíritos, símbolos mágicos, personagens-síntese da mentalidade renascentista, como Próspero, um humanista típico, estudioso empenhado em elaborar um novo código de valores e comportamentos, centrados no indivíduo e em sua capacidade realizadora; ou Gonçalo, um utopista, que almeja instituir uma comunidade ideal, onde os homens vivam felizes, com fartura, paz e mantendo relações fraternais, sob um poder altamente centralizado, porém justo e racional. No Renascimento têm origem a reflexão histórica e social e a ciência política. É um momento em que se intensifica tanto a avidez de conhecimento como a do poder e do lucro, tornando-as indissociáveis em nossa sociedade e que são representadas aqui por Próspero e seu irmão Antônio. Na Itália, o berço da cultura renascentista, as cidades mercantis, organizadas depois de uma longa e árdua luta em cidades-Estado ou em repúblicas independentes, prosperaram economicamente. Isso fomentou conflitos de toda espécie, tanto envolvendo as repúblicas em guerras contínuas na disputa pelas melhores oportunidades comerciais quanto mantendo em permanente confronto os trabalhadores e artesãos contra os poderosos comerciantes que controlavam as cidades. É nesse cenário tempestuoso que se desenvolveram os ideais da Renascença, voltados para os princípios do equilíbrio, da harmonia, do naturalismo, do racionalismo. Num período de caos e opressão, seu comprometimento era com a ordem e a liberdade do espírito. A prosperidade mercantil, assim, estava atrelada à atitude racional, organizadora, mas também agressiva, conquistadora, sequiosa de independência, de espaço, de saber e de distinção. A tempestade, um dos últimos trabalhos de Shakespeare, aqui adaptado para a forma de narrativa, é uma preciosa criação fruto desses ideais que representam um dos momentos mais fascinantes da aventura intelectual da humanidade. CAPÍTULO I O Mar Em algum lugar do imenso oceano, num ponto perdido entre a cidade de Túnis, na África, e o reino de Nápoles, no Mediterrâneo, um navio se debatia contra uma terrível tormenta, em meio a incessantes trovões e relâmpagos. O capitão, homem experiente como convém a um comandante que conduz um rei e sua comitiva em seu navio, conclamava o contramestre e os marinheiros para lutar contra o mar bravio. As ordens de baixar velas na popa e depois alinhá-las e aparelhá-las para alto-mar eram gritadas para os marujos, encharcados pelas ondas que se abatiam sobre o navio, tornando o convés cada vez mais escorregadio. Os marinheiros eram rápidos em cumprir as ordens do capitão, na esperança de escapar da pavorosa tempestade. Navegar pelo oceano é quase sempre uma grande aventura, muitas vezes cheia de realizações e descobertas importantes. Mas é também um risco incalculável: por maior que seja a competência dos capitães, os marujos Sabem que o mar é ao mesmo tempo um espaço a ser conquistado e um lugar cheio de perigos. Muitas são as lendas e os relatos terríveis sobre os naufrágios: frotas bem equipadas, tripulações inteiras, sonhos de riquezas colhidas em terras distantes tragados pelo mar implacável em noites de tempestade como aquela. Não fazia muito tempo, uma frota inglesa naufragara em algum ponto entre a Europa e o Novo Mundo. Uns poucos tripulantes conseguiram chegar até uma ilha selvagem que chamaram de Ilha do Diabo e lá permaneceram entre os nativos por dez longos meses. A história desse naufrágio correra os portos da Europa, aumentando ainda mais o fascínio que o mar exerciasobre as pessoas, mas também o medo. Medo de ser engolido pelas ondas gigantescas como se o navio fosse uma frágil casca de noz. Medo de sobreviver à tempestade mas morrer antes de alcançar terra firme. Medo de ver-se preso em uma ilha habitada por selvagens hostis sem esperança de voltar para a terra natal. Existiam ainda as histórias sobre monstros marinhos, sereias, espíritos maléficos e toda a sorte de perigos a rondar os que faziam do mar seu trabalho e seu destino. Apesar de ter lutado contra a tempestade por toda a noite enquanto os nobres da comitiva real rezavam apavorados em seus camarotes ou atrapalhavam com suas perguntas o esforço de salvamento, chegou ummomento em que a tripulação se reconheceu derrotada. Uns bebiam, certos de ser aquele o último trago; outros, desesperados, gritavam pela família que deixaram em terra distante. Alguns choravam e rezavam. Gonçalo, o velho conselheiro de Alonso, rei de Nápoles, ao ver que estava tudo perdido, pensou, antes de se dirigir ao camarote de seu senhor: — "Daria, com prazer, milhares de braças de mar por um pedaço de terra, terra seca, com espinhos, com urtigas, terra sem nada. Que se cumpra a vontade de Deus, mas eu preferia morrer uma morte seca!" CAPÍTULO II O Mago e sua filha Açoitado pelos ventos e atingido por raios que acabaram por incendiar o madeirame, o navio naufragava, e os nobres, apavorados, atiraram-se ao mar, acreditando que o inferno estava vazio e que todos os demônios estavam ali. Não havia mais salvação e, entre a morte pelo fogo e a morte pela água, escolheram mergulhar no túmulo marinho. Perto dali, no interior de uma estranha caverna na ilha onde moravam, invisível aos olhos dos náufragos, Miranda pedia a Próspero: — Se foi sua arte, meu pai querido, que provocou a tempestade, faça com que as águas selvagens se acalmem. Como sofri com aqueles que vi sofrer! O céu parecia derramar breu fervente enquanto o mar subia a apagar o fogo. O navio fez-se em pedaços. Morreram todos, pobres criaturas. Seus gritos feriram meu coração. Se eu fosse um deus poderoso, impediria o mar de tragar o navio e as pobres almas de perecerem junto com ele. Até onde conseguia se lembrar, Miranda crescera naquela ilha, vivendo com seu pai, Próspero, em uma caverna. Linda como a mais linda das princesas e sábia como a maioria delas não costuma ser, teve como professor Próspero, que dedicara a vida ao aperfeiçoamento do espírito. Nada sabia sobre o seu passado e, se às vezes sentia curiosidade a respeito, calava-se, porque pressentia que ainda não chegara o momento de interrogar o pai sobre suas origens. Próspero era um homem já velho, com o aspecto frágil daqueles que passam o tempo trancados em bibliotecas, entregues aos livros e às aventuras do pensamento. Ouvindo-a lamentar as conseqüências da tempestade, como o mais meigo dos pais explicou à filha: — Não se preocupe, minha querida. Não aconteceu nada de mal e tudo o que fiz foi por você, que nada sabe sobre quem é ou sobre quem sou eu, além de ser Próspero, senhor desta pobre gruta, seu pai. — Nunca pensei em saber mais que isso. — É tempo de dizer mais. Ajude-me a tirar o manto mágico, instrumento de minha arte. Enxugue os olhos, Miranda, fique tranqüila. O horrível espetáculo do naufrágio, que despertou sua compaixão, eu o criei sim, graças à minha arte. Mas fui previdente, pois ninguém se perdeu. Ninguém perdeu um fio de cabelo no naufrágio. Agora você precisa saber mais do que sabe. Atenta, Miranda escutou a história a respeito da qual muitas vezes tivera curiosidade. Em diversas ocasiões, sentira-se tentada a perguntar por que suas lembranças do passado eram tão vagas. A única imagem que guardara de antes de chegarem à ilha era a de várias mulheres cuidando, banhando e arrumando uma criança bem pequena, que supunha ser ela mesma, porque sentia, numa lembrança confusa, os cheiros perfumados do banho, o carinho daquelas que cuidavam dela. Não se lembrava de outra coisa, do navio que os trouxera, de casa, da família. A memória é uma coisa estranha. Às vezes, um fato aparentemente insignificante permanece gravado e coisas mais importantes não. Daí o interesse com que seguia a história que o pai começava a lhe contar. Próspero era, na verdade, o sábio duque de Milão, que vivia em seu ducado com a filhinha Miranda. Desde que ficara viúvo, deixara os assuntos de governo por conta de seu irmão Antônio e passara a viver cada vez mais mergulhado nos livros de artes e magia da biblioteca de seu castelo. Amante da Arte e da Ciência, Próspero buscava dominar todo o conhecimento disponível sobre o espírito, a natureza, os astros, o universo. A biblioteca do duque de Milão não encontrava rival em toda a Itália. Sua paixão pelos livros era tão conhecida que era presenteado, nas grandes ocasiões, por quem tinha interesse em lhe agradar, com obras raras em vez de jóias, cavalos de raça ou objetos de arte. Os livros que Próspero acumulara em toda uma vida de estudos versavam sobre o conhecimento humano de mais de dois mil anos, em todas as áreas. Havia em sua biblioteca o Livro da água, com desenhos de tudo o que se associava ao meio líquido — rios, córregos, oceanos, naufrágios, tempestades, lágrimas —, esquemas de maquinário hidráulico e mapas meteorológicos. Estavam registradas nesse livro descobertas e lendas inspiradas aos homens pela água, numa mistura de ciência e poesia. Ali encontravam-se também o Livro dos espelhos, com suas páginas cobertas de mercúrio; o Livro de Arquitetura e Música, com edificações e pautas musicais de todas as épocas; o Livro das cores, contendo matizes das cores que pintavam as obras dos homens e da natureza; o Livro de Geometria, com seus números dourados, expressões logarítmicas e ângulos; um Atlas com os mapas do Inferno atribuídos a Orfeu, que, segundo os gregos, teria descido ao reino dos mortos para buscar sua amada Eurídice; o Livro de Anatomia, que descrevia com detalhes o corpo humano e questionava a eficiência da natureza e de Deus; o Livro da terra, grosso e encadernado em tecido escuro, com as páginas impregnadas de minerais, ácidos e seivas da terra; o Livro das ervas, uma verdadeira enciclopédia de pólen e perfume; o Livro dos viajantes, com relatos de viagens recentes e remotas por lugares reais e imaginários e as mais inusitadas informações sobre os povos e seus costumes; o Livro da Mitologia, um dos mais preciosos da biblioteca, um compêndio de todos os mitos com suas variantes, a narrativa mais completa das relações entre os deuses e os homens. O isolamento de Próspero, que sempre apreciou mais os livros do que os assuntos de governo, acabou por despertar no ambicioso e inescrupuloso Antônio o desejo pelo poder. De tanto administrar o ducado, o irmão do duque convenceu-se de que tinha mais direito ao título do que o duque de verdade. Perfeito na arte de conceder favores e de negá-los, Antônio transformou os súditos de Próspero em seus súditos. Para que o papel que representava se tornasse realidade, precisava se fazer senhor absoluto de Milão. Com esse intento, aliou-se a Alonso, rei de Nápoles, e em troca de um tributo anual e de tornar Milão — até então um ducado independente — submisso ao reino de Nápoles, conseguiu que Alonso, inimigo de Próspero, enviasse um exército para destroná-lo. Numa noite sombria, o exército invasor chegou ao ducado e encontrou as portas da cidade abertas por Antônio e as sentinelas dominadas por seus asseclas. Entretanto, temendo a revolta do povo, que amava muito seu duque, faltou ao exército inimigo e ao irmão traiçoeiro coragem para matar Próspero. Embarcaram-no e a sua filha num velho escaler, sem instrumentos de navegação, sem velas e sem marinheiros (até os ratos fugiram do barco, tais eram os indícios de que seu destino era naufragar) e os deixaram entregues à fúria do mar e do vento, sem outra companhia a não ser a de alguns livros que Gonçalo, nobre napolitano encarregado por Alonso de comandar o exército invasor, por piedade, entregou a Próspero na hora do embarque, juntamente com uma pequena quantidade de mantimentos, um pouco de água fresca e algumas roupas. Apesar de tudo ter sido planejado por Antônio para que Próspero e sua pequena herdeira encontrassem a morte no fundo do mar, tal não aconteceu. O sorriso de Miranda, criança muito bem-humorada, deu alento ao pai, que enfrentou as terríveis condições daquela viagem, e os dois acabaram aportando naquela ilha tão singular onde viviam desde então.Assim aconteceu e assim contou Próspero a Miranda, que, no entanto, ainda permanecia com uma dúvida: — Meu pai, por que causou esta tempestade? — Por uma coincidência estranha, quis a Sorte que me protege trazer meus inimigos para estas costas. Graças à minha magia, descobri que o meu apogeu se encontra sob o domínio de uma estrela auspiciosa a cuja influência devo ceder. E agora chega de perguntas. O sono se aproxima, não resista a ele. Durma, minha filhinha. O que Próspero não contou é como seus inimigos chegaram até ali. Enquanto Miranda, na ilha, comemorava quinze anos, saía de Nápoles uma grande comitiva para assistir ao casamento de Claribel, filha do Rei Alonso, com o rei de Túnis. Foram dias e dias de festa à que compareceram, além dos convivas locais, Alonso, seu filho Fernando, Antônio, usurpador do ducado de Milão, Sebastião, irmão do rei de Nápoles, Gonçalo, o conselheiro real, e outros nobres napolitanos e milaneses. A magia de Próspero descobriu a comitiva na volta de Túnis. Não estava nos seus planos contar à filha todos os fatos e suas implicações. A tempestade fora um ardil seu para trazer ,os inimigos à ilha. CAPÍTULO III A Ilha Encantada A ilha em que moravam agora Próspero e Miranda não era uma ilha qualquer. Anos antes de aportar o barquinho carcomido de Próspero, fora o reduto de Sycorax, uma bruxa cujos feitos horrendos faziam tremer os piores seres humanos. Banida pelo rei da Argélia, os marinheiros encarregados de executá-la não o fizeram porque ela estava grávida. Assim, fora abandonada na ilha, onde encontrou Ariel, um gênio capaz de assumir qualquer forma e executar, num piscar de olhos, as tarefas mais difíceis. Ariel, entretanto, recusou-se a cumprir as ordens abomináveis de Sycorax, e por isso a bruxa o aprisionou num pinheiro. Quando Próspero e Miranda chegaram à ilha, Sycorax já havia morrido, e por toda a parte se ouviam os grunhidos de seu filho Caliban e os gemidos de Ariel, há doze anos preso no interior da árvore. Os gemidos de Ariel eram tão tristes que até as feras se comoviam. Próspero, graças ao saber adquirido em seus livros de magia, libertou o gênio, que, em troca, se comprometeu a servi-lo por alguns anos, no fim dos quais seria novamente um espírito livre, sem mais senhor. Quanto a Caliban, Próspero ensinou-lhe sua língua e a executar pequenos serviços. Como nunca conhecera outro ser além de sua mãe, Caliban, de início, gostou do ex-duque. Mostrou-lhe todas as riquezas da ilha: as fontes de água, as terras férteis, as frutas estranhas, porém saborosas, que existiam por ali. Ensinou-lhe também a evitar os lugares insalubres e aqueles onde viviam feras. E durante anos viveram assim, numa mesma gruta, Próspero tratando Caliban como amo condescendente e Caliban retribuindo como servo agradecido. Mas o tempo passou e Miranda tornou-se uma moça linda; Caliban começou a pensar em fazer dela sua mulher e povoar a ilha com pequenos Calibans, o ,que enfureceu Próspero, que desejava para a filha outro destino que não uni-la a um nativo feio e ignorante e, além do mais, descendente de uma feiticeira. Caliban foi então expulso da gruta e, escravizado por Próspero, acabou por voltar-se contra ele, fazendo suas tarefas da pior maneira possível e amaldiçoando-o enquanto trabalhava: — Maldito seja ele e sua mágica, que me traz tantas dores quando tento me libertar de suas ordens. Eu não devia ter-lhe mostrado as riquezas da ilha, que é minha porque foi de Sycorax, minha mãe. Hoje sou seu único súdito, quando antes eu era meu próprio rei. Devia tê-lo deixado morrer de sede e de fome, a ele e a sua filha. Às vezes, Próspero escutava o resmungo solitário de Caliban e respondia: — Selvagem, repugnante e ingrato. Eu lhe ensinei a recobrir os gestos de palavras. Ensinei-lhe a trabalhar, a viver como um ser humano decente. Tratei-o bem enquanto não ousou levantar os olhos para minha filha. Mas você é um caso perdido, porque nem gratidão existe nesse coração de filho de feiticeira. — De que me adianta falar, estrangeiro, se você me obriga a ser escravo e me faz sofrer terríveis dores quando lhe desobedeço? Que a peste vermelha o carregue por me ter ensinado sua língua. — Saia daqui depressa, coisa-ruim, vá trabalhar ou farei com que, à noite, dores insuportáveis não lhe permitam dormir. Caliban obedecia porque considerava a arte de Próspero mais poderosa do que a de Setebos, o deus de Sycorax, e por isso o temia. CAPÍTULO IV Próspero e Ariel Enquanto Miranda dormia, Próspero vestiu novamente seu manto mágico e chamou Ariel, para que lhe contasse como se desencumbira da tarefa de desencadear violenta tempestade que navio algum conseguisse enfrentar, por mais bem aparelhado que fosse. Ariel atendeu imediatamente ao chamado do mestre. Próspero perguntou-lhe: — Ouça, espírito. A tempestade foi executada da maneira como ordenei? — Nos mínimos detalhes — respondeu Ariel. — Assaltei o navio com raios terríveis, trovões assustadores, encapelei gigantescas ondas e levei passageiros e tripulação ao desespero. Finalmente, incendiei a embarcação, levando todos a se lançarem ao mar. O restante da frota real seguiu viagem, certos os passageiros de que o Rei Alonso e seu filho Fernando morreram. — E alguém foi firme o bastante para não perder a razão nesse momento? — perguntou Próspero. — Não, mestre. Todos se desesperaram e, afora os marinheiros, se atiraram ao mar bravio, abandonando o navio em chamas. O filho do rei, Fernando, foi o primeiro a mergulhar, gritando: "O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui". Bem se via o quanto Ariel estava orgulhoso de ter cumprido com perfeição as ordens de Próspero. — E isso se passou perto da praia? Eles estão vivos, Ariel? — Bem vivos, mestre. Não perderam um fio de cabelo e suas roupas estão mais novas do que antes. Eu os dispersei pela praia, em grupos. O filho do rei está sozinho, triste, num recanto deserto da ilha. — E o navio com os tripulantes? — Está escondido naquela enseada, onde certa vez meu mestre ordenou que eu recolhesse o orvalho das Ilhas Bermudas. Eu acrescentei um encantamento ao seu cansaço e os homens dormem. — Ariel, sua tarefa foi perfeitamente cumprida. Mas ainda existe mais trabalho. Que horas são? — Já passa de meio-dia. — Duas ampulhetas, pelo menos. Temos de aproveitar o tempo que nos resta até às seis horas. Próspero tinha pressa porque os astros estariam a seu favor por um dia; nada^além de um dia para executar seus planos. Daí a pressão sobre Ariel. — Mais trabalho, mestre?! Já que ainda me restam outras tarefas, me atrevo a lembrar sua promessa que ainda não foi cumprida. — O que é isso? — espantou-se Próspero. — O que você quer pedir? — Minha liberdade. — Antes do tempo? De jeito nenhum. — Imploro, mestre, que lembre todos os valiosos serviços que já lhe prestei. O senhor prometeu descontar um ano inteiro. — Ah! Você já está cansada de percorrer as profundezas do mar, correr no vento gelado do norte, trabalhar para mim nas veias da terra calcinadas pelo gelo. Já esqueceu, coisa maligna, de que ao chegar a esta ilha encontrei-o chorando desesperado, preso numa fenda de pinheiro, sofrendo os tormentos do inferno por ter se recusado a cumprir as ordens de Sycorax, a bruxa? — Não esqueci, senhor — admitiu Ariel cabisbaixo. — Foi minha arte, minha magia que fez com que o pinheiro se abrisse e você pudesse sair. — E eu agradeço, mestre. Por isso lhe sirvo. — Se continuar resmungando, vou abrir um carvalho e encravar você em suas entranhas por mais doze anos. — Perdão, mestre — pediu Ariel humilde. — Hei de obedecer às suas ordens e cumprir sem reclamar minhas tarefas de espírito. — Vai, depressa. Quero você invisível a todos os olhares,menos ao meu. Quando Ariel partiu, Próspero acordou Miranda, que adormecera depois de ouvir a triste história do passado de seu pai. Ariel, transformado em ninfa do mar, dirigiu-se ao ponto da ilha onde se encontrava o Príncipe Fernando. Cantando uma melodia envolvente, acalmou a tristeza do rapaz e fez com que ele seguisse o som até o local onde estavam Próspero e Miranda. — Que som mágico será esse? — encantou-se o príncipe. — Não parece humano, nem vir da terra. Faz lembrar-me de meu pobre pai, afogado durante a tempestade terrível. O som parece flutuar sobre mim. Enquanto Fernando seguia o som de Ariel, Próspero mostrava a Miranda o rapaz que se encaminhava para eles. — Quem será ele, meu pai? — perguntou Miranda tímida. — Um espírito como Ariel? Parece desorientado, coitado! Mas como é belo! Por artes de Ariel e por ordens de Próspero, as roupas de Fernando estavam novas como no dia em que as vestira pela primeira vez. Jovem, bonito e com suas luxuosas roupas de príncipe, era uma figura que impressionava Miranda. — É gente como nós, minha filha. Come, dorme, seus sentidos são como os nossos. É um dos náufragos. Ele perdeu seus companheiros e anda pela ilha sem rumo. Se não fosse o sofrimento, seria realmente um belo rapaz. — Nunca vi alguém mais lindo —disse Miranda admirada. Próspero pensou satisfeito que as coisas se encaminhavam bem de acordo com seus planos. Resolveu libertar Ariel dentro de dois dias, tão bem o vinha servindo o gênio. Fernando parou espantado diante de Miranda supondo encontrar uma miragem naquela ilha estranha. — Sem dúvida, estou diante da deusa a quem essa melodia mágica se dirige — o rapaz se curvou diante dela. — É preciso que me ensine como proceder em seus domínios, senhora. Mas o que gostaria mesmo de saber é se o que estou vendo é um ser humano, mortal como eu, ou não. — Não sou deusa, meu senhor. Sou humana também. O rapaz ficou feliz ao perceber que Miranda falava a sua língua. Quando ele, que só tinha olhos para a moça, começou a explicar que, se estivesse em Nápoles, seria o rei, foi interrompido bruscamente por Próspero: — O que diria o rei de Nápoles se o ouvisse falando assim? — Infelizmente, sou agora o rei de Nápoles, senhor, pois vi meu pai afogar-se durante a tempestade. — Que tristeza! — lamentou Miranda, comovida. — Sim, naufragou junto com outros nobres, inclusive o duque de Milão. Próspero não pôde deixar de pensar que o verdadeiro duque de Milão e sua filha poderiam desmenti-lo se isso fosse conveniente, mas não valia a pena. Tudo se encaminhava segundo seus planos. Os dois jovens pareciam fascinados um pelo outro. — Um momento, rapaz — disse Próspero fingindo-se ofendido. — Temo que esteja confundindo as coisas. — Meu pai, por que está sendo grosseiro assim com o terceiro homem que vejo e o único que me encanta? — perguntou Miranda espantada. — Eu a farei rainha de Nápoles — disse audacioso o rapaz, que só tinha olhos para Miranda —, se seu corpo e seu coração forem virgens. Próspero, disposto a atrapalhar o namoro para que a facilidade não desmerecesse o prêmio, atalhou com severidade: — Alto lá, meu rapaz! Você está usurpando um nome que não lhe pertence e chegou a esta ilha como espião para roubá-la de mim, seu dono. — Eu lhe asseguro que não — assustou-se Fernando. — Dou minha palavra de honra. — Pai, nenhum mal poderia vir de alguém tão belo! — Minha filha, não fale em defesa de um traidor — Próspero dirigiu-se, então, a Fernando: — Venha. Eu acorrentarei seu pescoço, lhe darei a comer mexilhões, raízes e cascas de frutos e beberá apenas a água salgada do mar. Venha comigo. — Resistirei a semelhante tratamento — retrucou Fernando indignado, puxando a espada. Só que a mágica de Próspero o paralisou imediatamente e de nada adiantou Miranda implorar ao pai que não tratasse o rapaz com tanta dureza. — Silêncio — ordenou Próspero —, você pensa que não há no mundo figura semelhante porque só viu a ele e a Caliban. Não defenda um impostor, menina tola! Fernando, enfraquecido pela magia, desistiu de lutar: — A perda de meu pai, a fraqueza que sinto, o naufrágio de meus amigos e as ameaças desse homem que não conheço não são nada para mim se eu puder contemplar pelo menos uma vez por dia esta donzela que me encanta. Não me importa a liberdade. Tenho espaço suficiente nesta prisão. — Ânimo, senhor — buscou consolá-lo Miranda. — Meu pai não costuma agir e falar dessa maneira. Ele é melhor do que aparenta ser. — Não o acorrentarei, se obedecer às minhas ordens. — Próspero continuou fingindo severidade. — Me acompanhe. CAPÍTULO V Os Velhos Companheiros e seus Acompanhantes Em outra parte da ilha, vagavam, tentando se orientar, Alonso, o rei de Nápoles, seu velho conselheiro Gonçalo, Sebastião, irmão de Alonso, e Antônio, irmão de Próspero. Alguns nobres, membros da comitiva que estava no navio real no momento da tempestade, os acompanhavam. Vagavam todos por aquela terra desconhecida sem a menor idéia de onde estavam e ignorando totalmente que Fernando também se salvara e que a ilha era habitada por Próspero, o verdadeiro duque de Milão. Gonçalo era o único que podia se sentir minimamente satisfeito, porque seu último desejo, antes de mergulhar no mar revolto, fora uma "morte seca". Encontrando-se, de repente, vivo e em terra firme, tentava animar os companheiros: — Alegre-se, meu rei. Todos nós temos motivos para nos contentar. Nosso salvamento vale mais do que nossa perda. Tristezas como essas são comuns. Todos os dias, a mulher de algum marinheiro, o dono de algum navio ou o mercador que colocou sua carga no mar choram de tristeza com a perda em um naufrágio. Nosso salvamento foi um milagre que bem poucos conseguem alcançar. Alonso, porém, recusava-se a ser consolado. E, enquanto Gonçalo insistia em animar o rei, Antônio e Sebastião uniam-se para ironizar o esforço do velho conselheiro. Nem a situação crítica em que se encontravam era capaz de melhorar suas personalidades mesquinhas. O fato de apenas o primogênito herdar o título de nobreza e as riquezas suscitava com freqüência as rivalidades fraternas. Daí a facilidade com que Sebastião aceitava participar do jogo de Antônio, sabotando as tentativas de Gonçalo de animar o rei. — Esta ilha, apesar de deserta, tem o clima ameno — observou Adriano, um jovem nobre que os acompanhava, partilhando do esforço de Gonçalo. — É verdade — concordou Gonçalo —, tudo aqui é favorável à vida. — Só faltam recursos para viver — contrariou Antônio. — Como a grama é forte e exuberante! — Gonçalo comentou. — Como é verde! — O chão me parece meio pardo — discordou Antônio. — É quase inacreditável — continuou Gonçalo, ignorando o empenho deles em contrariá-lo — como nossas roupas, encharcadas como foram pela água do mar, continuam tão novas como no dia em que as vestimos pela primeira vez, na África, no casamento da filha do Rei Alonso. — Foi um belo casamento. E o nosso retorno, então, foi melhor ainda — comentou Sebastião com sarcasmo. — Chega! — disse Alonso, dirigindo-se irado a Gonçalo. — Suas palavras ferem meus ouvidos. Antes não tivesse casado minha filha em Túnis, pois ao regressar perdi meu filho e também a ela, que se encontra tão longe da Itália. Meu herdeiro de Nápoles e de Milão, que estranho peixe o terá devorado? — Senhor, ele pode estar vivo. Eu vi quando o Príncipe Fernando se atirou ao mar. Ele nadava em direção à praia a última vez que o avistei — tentou ponderar Adriano. — Não — desesperou-se o rei —, ele se foi. — E tudo porque meu irmão resolveu casar a filha com um africano em vez de casá-la com um príncipe europeu — atiçou Sebastião. — A culpa é toda sua. — Deixe-me em paz,Sebastião, por favor. — Até sua filha hesitou entre a rebeldia e a obediência. Nós perdemos Fernando e, quando chegarmos a Nápoles e Milão, não existirão homens para consolar todas as viúvas desta aventura. A culpa é toda de meu irmão. — Senhor Sebastião — ponderou o velho Gonçalo —, esta verdade que o senhor fala, além de indeliçada, é dita no momento errado. Piora a ferida em vez de curá-la. A intervenção de Gonçalo serviu para conter um pouco os ataques diretos que Sebastião resolvera desferir contra Alonso. O rei nada poderia fazer para defender-se naquele instante. Sentia-se arrasado e culpado por ter perdido o filho e por estar ali, numa ilha desconhecida, com um punhado de nobres, sem navio, sem castelos, sem poder. Entretanto, nada impedia que Sebastião dissesse ao rei o que a própria consciência real já dissera. Em outras circunstâncias, talvez Sebastião não se expressasse dessa maneira. Mas ali o irmão nada poderia fazer contra ele. Resolvera suspender por ora seus ataques verbais a Alonso por causa da interferência de Gonçalo, mas manteve junto com Antônio a ironia, porque a certas pessoas nem a adversidade consegue conter o prazer de perturbar as outras ao seu redor. — Se eu fosse rei desta ilha — divagou Gonçalo tentando estabelecer uma conversa amena —, faria as coisas todas ao contrário. Não permitiria comércio, nem juizes. Ninguém saberia ler ou escrever. Nada de ricos, pobres ou servos. Não permitiria contratos, heranças, terras demarcadas, lavouras. Ninguém trabalharia. Todos os homens seriam desocupados. E as mulheres também, mas inocentes e puras. Não existiria governo. — E mesmo assim ele seria o rei — falou Sebastião para Antônio. — Todas as coisas dadas pela natureza seriam partilhadas, sem suor ou esforço. Não existiria traição, nem crimes, nem armas. Não seriam necessários os instrumentos de guerra. A natureza, por si só, alimentaria meu povo inocente, com abundância. — E os súditos não se casariam? — perguntou malicioso Sebastião. — Não, todos seriam vadios, prostitutas e malandros — respondeu Antônio. — Eu faria um governo perfeito, meu rei — disse Gonçalo para Alonso, ignorando os dois. — Viva o Rei Gonçalo — gritaram Antônio e Sebastião, zombeteiros. — Chega, Gonçalo — pediu Alonso, impaciente —, seu discurso não me diz nada. — Acredito, senhor — respondeu humilde Gonçalo. — Eu estava apenas procurando ocupar esses nobres senhores que costumam rir à toa. — Nós estávamos rindo de você — disse Antônio. Gonçalo não lhes deu muita atenção. Homem inteligente, sabia que, sendo os dois da espécie de gente que se diverte com a irritação alheia, qualquer demonstração de suscetibilidade de sua parte só faria alegrá-los. Cansado, recostou-se para dormir em um trecho de grama sombreado por uma árvore desconhecida, mas cujas flores perfumavam o ar de tal forma que o cheiro doce e a sombra refrescante eram tudo o que o velho conselheiro do rei queria para descansar dos movimentados acontecimentos e da difícil companhia. Um a um, os outros nobres foram seguindo-lhe o exemplo, sendo Alonso o último a se dar o direito ao sono, que, se não resolve os problemas, pelo menos os interrompe por alguns momentos, dando à alma chance de recuperação. Sebastião e Antônio encarregaram-se de velar pela segurança real, enquanto Ariel, invisível, os observava. Vendo que os outros dormiam, Antônio e Sebastião conversaram mais livremente: — Gonçalo, além de velho, está ficando tolo. Como pode Fernando ter-se salvado de uma tempestade violenta como a que nos atingiu? A ocasião o chama, Sebastião. Minha imaginação vê uma coroa sobre sua cabeça. — O quê, você está acordado? Que estranho sonho é este? — Estou mais sério do que é o meu costume. Você deve seguir meu exemplo e assim será mais poderoso. — Ora, Antônio, eu sou água parada. Minha preguiça é hereditária. — Se você soubesse o quanto essa idéia fala aos seus interesses, enquanto você não a leva a sério. Às vezes, o medo e a preguiça põem a perder os homens fracos. — Fale claro, Antônio — impacientou-se Sebastião. — Esteja atento, Sebastião, porque com o príncipe morto e Alonso arrasado pela dor você está muito próximo do trono de Nápoles. — Meu caro Antônio, o rei ainda está vivo e você se esquece de minha sobrinha, a cujo casamento assistimos antes do naufrágio — falou Sebastião disfarçando sua cobiça. — Sua sobrinha não pode governar Nápoles estando tão longe, em Túnis. Sebastião ouvia Antônio meio fascinado, meio escandalizado, ou pelo menos achando que ficar escandalizado era sua obrigação, como irmão de Alonso. De natureza preguiçosa, como ele próprio admitia, a capacidade de o outro, algumas horas depois do naufrágio, já estar conspirando parecia-lhe extraordinária. — Lembro-me agora que você destronou Próspero, seu irmão — constatou pensativo. — É verdade. E veja como as roupas de duque me ficam bem. Os que junto comigo serviam a Próspero hoje são meus criados. — Não lhe dói a consciência? — Sebastião perguntou curioso. — Consciência? Meu coração não conhece tal deusa — zombou Antônio. — Agora mesmo, seu irmão está dormindo, parece morto. Com minha espada obediente eu o faria dormir para sempre. E se Gonçalo, sempre prudente, fosse por você eliminado, ninguém se atreveria a contestar que Sebastião deveria reinar sobre Nápoles. Ariel, invisível, a tudo assistia, enviado que fora por Próspero. — Seu caso, querido amigo, será meu precedente — decidiu-se Sebastião. — Assim como você ganhou Milão, ganharei Nápoles. Desembainhe a espada. Um golpe e estará livre do tributo que Milão paga a Nápoles, porque eu, o rei, serei sempre seu amigo. — Atacaremos juntos. Quando eu levantar minha mão, você faz o mesmo e liquida Gonçalo. O acordo feito entre os dois beneficiava Antônio, que se fortaleceria como aliado de Sebastião, e poupava este de qualquer remorso maior no futuro, já que não mataria pessoalmente o irmão, mas apenas eliminaria Gonçalo, por quem, aliás, não nutria simpatia alguma. Convencido Sebastião da oportunidade de usurpar o trono do irmão, prepararam-se os dois para acabar com o rei e seu conselheiro. Não podiam, no entanto, prever o despertar de Alonso e de Gonçalo, por artes de Ariel, no momento em que desembainhavam as espadas. Surpreendidos, evitaram suspeitas alegando terem ouvido ruído de feras a rondar por ali. CAPÍTULO VI Caliban Também Conspira Alheio a tudo o que acontecia, Caliban cuidava de suas odiadas tarefas, apartado de Próspero e Miranda por sua revolta e submetido a Ariel e aos espíritos que o mago comandava. Ignorando o que se passava na ilha que um dia fora apenas sua, Caliban carregava lenha e resmungava contra seu amo: — Que todas as doenças que o sol aspira dos pântanos e do lodo caiam sobre Próspero e que ele fique coberto de feridas. Os espíritos dele me escutam, mas não posso deixar de amaldiçoá-lo. Eles não vão me beliscar, me assustar como assombrações no escuro, me enterrar na lama, a menos que Próspero ordene. Eles gostam de me atormentar à toa, se transformando num macaco que me morde ou num porco-espinho que me espeta o pé descalço... Na ilha, naquele mesmo dia, duas tramas se desenrolavam: próximo à caverna de Próspero, nascia o amor entre Fernando e Miranda; em outro ponto, os nobres que acompanhavam o rei tinham a oportunidade de mostrar suas verdadeiras naturezas, porque estavam desprovidos de qualquer dos elementos cotidianos que faziam da vida na corte de Nápoles um espetáculo socialmente adequado. Apenas Próspero e Ariel conheciam os enredos, um porque contava com seu conhecimento da natureza humana e da magia para manipular as ambições e desejos de cada um dos náufragos a fim de realizar seus planos, e o outro porque espionava para o duquedestronado, invisível, certo de que em poucas horas conquistaria sua liberdade. Próspero não se preocupava com Caliban, uma vez que não desempenhava qualquer papel em seus planos. Enquanto Caliban se lamentava, raivoso, de sua má sorte, aproximou-se Trínculo, um tripulante perdido do navio real que, acreditando ser o único sobrevivente do naufrágio, vagueava explorando a ilha. — Aí vem outro maldito espírito mandado por Próspero para me atormentar — disse Caliban ao avistá-lo. — Vou me deitar no chão. Pode ser que ele não repare em mim. — Aqui não existe árvore ou moita em que eu possa me abrigar e já escuto trovões anunciando outra tempestade. — Trínculo, preocupado, percebeu Caliban deitado no chão. — O que temos aqui? Um homem ou um peixe? Estará vivo ou morto? Um estranho peixe! Se eu estivesse na Inglaterra agora, iria ganhar muito dinheiro, mostrando este peixe na feira. Lá, quem tiver um monstro desses fica rico. Eles não dão um tostão para um mendigo, mas dão dez para ver um índio morto. — Examinou Caliban com atenção. — Estranho! Ele tem pernas como gente e suas barbatanas parecem braços. Começo a mudar de opinião: não é um peixe, é um habitante da ilha, fulminado por um raio, talvez. Nesse instante, um barulho de trovões assustou Trínculo que, não enxergando opção melhor por ali, se abrigou embaixo de Caliban. O filho de Sycorax permaneceu quieto, sem entender o que estava acontecendo e sem saber quem era aquele ser, na aparência semelhante a Próspero, mas que se expressava de forma tão estranha. Para aumentar a confusão, outro tripulante desgarrado do navio real apareceu trocando as pernas e cantando numa voz esganiçada de bêbado. Era Estéfano, copeiro do rei, que se lançara ao mar com um barril de vinho, no momento do naufrágio. Ao chegar em terra firme, viu-se sozinho, com o temor comum aos marinheiros de aportar em uma ilha desconhecida e lá permanecer isolado para todo o sempre. Só lhe restara a opção de fazer uma garrafa de casca de árvore e se embebedar. Bêbado, ao avistar dois homens embolados no chão e um deles, o mais estranho, resmungando como se estivesse no meio de um pesadelo, acreditou estar diante de um monstro de quatro pernas. — Não me atormente — implorou Caliban ao ver mais um estranho à sua volta. — É um monstro da ilha! E tem quatro pernas a criatura! Com que diabo ele aprendeu minha língua? Só por isso vou ajudá-lo. Se eu conseguir domesticá-lo e levá- lo para Nápoles comigo, será um presente digno de qualquer imperador. — Me deixe em paz, por favor. Vou levar a lenha rápido para casa. — Ele não fala coisa com coisa, deve estar delirando. Vou lhe dar um gole de minha garrafa. Se ele nunca bebeu vinho, é capaz de ficar curado. Se eu puder curá-lo e domesticá-lo, vou conseguir um bom dinheiro vendendo-o. — Deu um gole a Caliban com a solicitude que, às vezes, têm os muito embriagados. — Isto vai acabar com sua tremedeira e lhe ensinar a reconhecer um amigo. A essa altura dos acontecimentos, Trínculo, escondido debaixo de Caliban, começou a acreditar em demônios porque reconheceu a voz de Estéfano, que acreditava afogado: — Eu conheço essa voz; deve ser do... mas ele se afogou, e os afogados são do diabo. Socorro, socorro! Estéfano, ao ouvir a voz de Trínculo, ficou mais alegre ainda: — Que beleza de monstro! Quatro pernas e duas vozes! Deixe eu dar de beber à outra boca. Vou curá-lo, nem que me custe todo o vinho, e ficar rico.. — Estéfano! — Trínculo gritou, reconhecendo o companheiro. — A outra boca me chamou! Valha-me Deus! Não é um monstro, é um demônio! Vou-me embora, já, já! — Estéfano, sou seu amigo, Trínculo! — Se você é Trínculo, saia já daí! Vou puxar as pernas mais curtas que vejo. — Estéfano, tropeçando, conseguiu arrastar o amigo de baixo de Caliban. — Mas não é que é Trínculo, mesmo? Como foi que você conseguiu virar bosta de monstro? — Pensei que um raio tivesse fulminado você, Estéfano. Espero não estar falando com um afogado. — Trínculo andou ao redor do amigo certificando-se de que não era um fantasma. — E a tempestade já passou? De medo dela me escondi debaixo do monstro. Oh! Estéfano, dois napolitanos se salvaram! — Pare de me rodear, Trínculo! Meu estômago está embrulhado — pediu Estéfano, tonto com a bebida e a surpresa. Os dois, felizes, confraternizaram-se com a garrafa de vinho contando como chegaram à ilha. Naquele momento, o futuro lhes parecia risonho. Tinham um ao outro, um barril de vinho escondido num rochedo perto da praia e aquele monstro que os olhava aparvalhado e que Estéfano pensava vender por um bom dinheiro quando voltassem a Nápoles. Como voltariam não era preocupação naquela hora. Quem era realmente Caliban também não lhes interessava. Para o povo simples, no seio do qual eram recrutados os marinheiros, qualquer ser de outra cultura que não a européia era, no mínimo, exótico, misterioso, alguém a ser temido ou explorado. Para Caliban, aqueles dois se assemelhavam a deuses, principalmente o que tinha lhe dado o líquido desconhecido e saboroso que ele acreditava ser uma poção mágica. Dirigiu-se respeitoso a Estéfano: — Juro por essa garrafa mágica, que deve ter caído do céu com vocês, que serei um súdito fiel e obedecerei a todas as suas ordens. — Não caí do céu, monstrinho — disse Estéfano, divertido —, eu vim diretamente da lua. — Não foi do céu? — perguntou Caliban espantado. — Não, foi da lua, garanto. — Passou a garrafa de novo para Caliban beber o vinho. — Isto. Beba desta garrafa santa que logo vou enchê-la de novo. — Pela luz divina, que monstro idiota! — impacientou-se Trínculo. — E eu estava com medo dele. — Vou mostrar a vocês cada pedaço fértil da ilha — prometeu Caliban entusiasmado. — Vocês serão meus deuses. — Que monstro mais fingido e bêbado. Aposto que assim que dormirmos vai nos roubar a garrafa — desconfiou Estéfano. — Não, eu juro! Serei um súdito fiel — insistiu Caliban. — O pobre monstro está bêbado, Estéfano. — Trínculo riu. — Que ser mais abominável! — Vou mostrar-lhe as melhores nascentes, trarei sempre lenha, peixes e frutas. — Caliban agora dirigia-se apenas a Estéfano. — Partilharei todos os segredos da ilha com você, a partir de hoje o meu único deus. Que a peste destrua o tirano a quem sempre servi. — Que monstro mais ridículo — zombou Trínculo. — Acreditar que um bêbado qualquer é um deus. — Deixe de bobagem, Trínculo — falou sério de repente Estéfano. — Agora que o rei e toda a tripulação morreram afogados, tudo isto aqui será nosso. Chega de conversa, monstro. Mostre-nos logo o lugar. Caliban levou os dois para conhecer a ilha, cantando feliz e embriagado, acreditando ser este seu primeiro dia de liberdade; não precisaria mais se matar de trabalhar para cortar lenha, pescar e lavar pratos para Próspero e Miranda. Seu novo amo parecia-lhe muito mais simpático. CAPÍTULO VII O Príncipe Vira Servo Em frente à gruta que servia de palácio a Próspero e Miranda, o Príncipe Fernando carregava às costas feixes de lenha. As ordens do duque destronado haviam sido muito claras: ele deveria abastecer a caverna com mil feixes de madeira, antes do pôr-do-sol, independentemente da necessidade daquela tarefa tão desmedida. Quanto mais Fernando se esforçava para cumprir o que Próspero impusera, não apenas uma ordem e sim um áspero castigo, mais Miranda se apiedava dele e buscava consolá-lo em todos os momentos em que o pai não estava por perto. Pelo menos ela acreditava que Próspero não se encontrava por ali quando tentava animar o príncipe a suportar a dura prova. Entretanto, com sua magia, Próspero podia se esconder facilmente ou encarregar Anel de espioná-los para ter certeza de que os dois jovens, naturalmente atraídos um pelo outro, se aproximavam cada vez maispor verem seu amor contrariado pela inexplicável antipatia que o ex-duque parecia nutrir contra o jovem herdeiro de Nápoles. Miranda chorava de pena pelo sacrifício imposto a Fernando e este sentia que o peso da lenha se tornava leve por causa da atenção e da delicadeza da moça. Fernando acabava de empilhar um monte de feixes de lenha na entrada da gruta quando chegou Miranda, seguida de perto por Próspero, que se manteve escondido para não ser visto pelos jovens. — Não trabalhe tanto, meu amigo. Assim o cansaço vai acabar por derrotá-lo — disse Miranda, compadecida do esforço do jovem. — Eu gostaria que um raio incendiasse a madeira que você empilha! Descanse um pouco, eu juntarei a lenha em seu lugar. — De jeito nenhum. Eu não permitiria que uma moça tão bela estragasse suas mãos em tarefa rude como esta. Seu pai foi bem claro: antes do pôr-do-sol, meu trabalho deverá estar pronto. — Meu pai está envolvido com seus livros. Não virá aqui tão cedo. Eu o substituirei de boa vontade nesse serviço. — Não, minha amada. Diga apenas o seu nome para que eu possa murmurá-lo em minhas preces. — Miranda — respondeu a moça para logo em seguida se arrepender. — Oh, meu Deus, dizendo meu nome, desobedeci às ordens de meu pai! — Admirável Miranda. Muitas vezes me encantei por outras mulheres, mas sempre a sombra de um defeito desfazia o encantamento. Mas você é rara e perfeita. É como se fosse feita com o que existe de melhor em cada criatura. — Não conheço outra mulher. Não me recordo de outra face feminina, além da minha refletida no espelho. De homens, só conheço meu pai, nosso horrível servo, Caliban, e agora você, meu amigo. Mas juro que não desejo outra companhia que não seja a sua. Infelizmente estou mais uma vez desobedecendo às palavras de meu pai. — Sou um príncipe, Miranda, e talvez, infelizmente, seja um rei, se meu pobre pai estiver repousando no fundo do mar, e lhe dou minha palavra de que, rei, escravo ou lenhador, tudo o que quero é amá-la, desde o momento em que a vi pela primeira vez. — Então você me ama? — Mais do que tudo. Eu a adoro. — Pois serei sua mulher, se assim quiser. Se não, morrerei sua serva, queira ou não. — Miranda, Miranda. — Fernando se aproximou apaixonado. — Você será minha rainha e eu serei seu escravo. — Meu esposo, então? — Sim, aqui tem minha mão. — E aqui a minha. E agora nos separaremos, por instantes. — Pelo tempo que for necessário, minha amada. — Fernando apertou à mão de Miranda, carinhoso. — Até o momento em que estaremos juntos sempre. Miranda entrou na gruta e Fernando retornou a seu trabalho, ambos felizes e, ao mesmo tempo, temerosos em relação ao futuro. Tudo era incerto, com exceção do amor que haviam declarado um ao outro. Esse sentimento, que fazia Fernando esquecer do mundo — pais, pátria, perigos — e que dava a Miranda coragem para desobedecer a Próspero, seu pai e único amigo e companheiro até então, dava aos dois a sensação de tudo poder, de tudo sonhar. Mas, ao mesmo tempo, eles não sabiam como resolver a aversão de Próspero pelo Príncipe Fernando, nem ao menos como enfrentá-la. Próspero, este sim capaz de ver o futuro, assistira àquela cena de amor com o coração pleno de alegria. Acreditava que, se outro fosse o seu comportamento que não o de contrariar o sentimento dos jovens, talvez a atração entre eles não tivesse se manifestado tão forte e rapidamente. Enquanto Fernando se esforçava para cumprir sua prova e Miranda sonhava dentro da gruta com o recém-descoberto amor, Próspero podia voltar aos seus livros, e a trama desencadeada pela tempestade podia seguir seu curso. CAPÍTULO VIII A Descoberta de Ariel Caliban, Trínculo e Estéfano continuavam a beber o vinho que restava no barril salvo do naufrágio. Para Caliban, o vinho era uma novidade fantástica e dava-lhe ânimo para sonhar com o momento em que o bêbado Estéfano o libertaria de Próspero. Trínculo, no entanto, não lhe parecia confiável. Era compreensível. Um não acreditava no outro. O marinheiro, apesar de embriagado, também não podia aceitar que alguém tão repulsivo quanto Caliban pudesse entregar um reino de riquezas nas mãos dele e de Estéfano. Além da feiúra, o deslumbre de Caliban com o vinho e com Estéfano fazia Trínculo pensar que o nativo era um imbecil completo, um doido perdido numa ilha estranha, de onde eles sequer sabiam como sair. Para Caliban, Trínculo era apenas um covarde, e certamente não existia poder divino naquele marinheiro que duvidava de suas palavras. Estéfano tentava, mesmo embriagado como estava, conter Trínculo e descobrir como tirar vantagem da adoração de Caliban. Essa disputa ocorria quando chegou, perto do rochedo onde os três bebiam, o gênio Ariel, invisível como sempre. — Como já disse — tentava explicar novamente Caliban a Estéfano —, eu sou escravo de um tirano, um feiticeiro que com sua magia me tomou a ilha. — É mentira dele — disse Ariel imitando Trínculo. — Eu não minto — gritou Caliban furioso para Trínculo. — Trínculo, se você criar problemas de novo com o meu monstrinho, vou lhe dar um pescoção — ameaçou Estéfano. — Mas eu estou quieto — protestou Trínculo. — Seu amigo é um covarde — disse Caliban para Esté-fano. — Você, que tem coragem, poderá ser o senhor da ilha e eu seu criado. — E como encontrar esse homem? — Posso levá-lo até ele. É só aproveitar o momento em que estiver dormindo e enfiar um prego na cabeça dele. — É mentira. Vocês não podem fazer isso — novamente Ariel imitou Trínculo. Estéfano perdeu a paciência e bateu em Trínculo, que protestou: — Você ficou louco? Maldita garrafa! Tudo isso é coisa de bêbado. Que a peste carregue esse monstro e o diabo coma seus dedos, Estéfano! Caliban achou graça da briga deles até Estéfano mandá-lo continuar. — Como eu dizia — Caliban continuou seu plano —, ele dorme de tarde, o tirano. Você pode arrebentar a cabeça dele, mas deve tomar-lhe os livros primeiro. Pode enfiar uma estaca na barriga dele também, ou cortar seu pescoço com uma faca. Mas não esqueça de pegar os livros antes, porque sem os livros ele é um idiota como eu. Sem os livros ele não comanda os espíritos e todos o odeiam como eu o odeio. Destrua seus livros, mas deixe as outras coisas que ele tem. Servirão para enfeitar sua casa mais tarde como hoje servem para fazer da gruta do feiticeiro um palácio. Ele tem também uma linda filha. Muitas vezes mais bonita do que minha mãe, Sycorax. — É assim tão bonita? — perguntou Estéfano cobiçoso. — Ela é digna de partilhar sua cama e lhe dará esplêndidos filhos — garantiu Caliban. — Monstro, eu vou matar esse homem — decidiu Estéfano. — Sua filha e eu seremos rei e rainha desta ilha. Farei de você e de Trínculo vice-reis. Que tal a idéia, Trínculo? — Excelente — resmungou o outro irônico. — Vamos, não fique zangado e trate de dominar sua língua. Daqui a pouco irei matar esse feiticeiro. Caliban e Estéfano puseram-se a cantar bêbados e felizes com seus planos, e Ariel, que a tudo assistira e que já decidira contar a Próspero sobre a conspiração, tocou uma melodia em sua flauta, assustando Estéfano: — Que é isso? — Algum fantasma tocando nossa música — respondeu Trínculo. — Não tenham medo — tranqüilizou Caliban. — A ilha é cheia de sons, melodias suaves, que encantam e não fazem mal. Às vezes, mil instrumentos ressoam em meus ouvidos. Outras vezes, vozes de duendes me fazem dormir de novo mesmo que tenha acabado de acordar. E aí eu sonho como se as nuvens se abrissem e o céu descesse sobre mim. — Este reino é feito na medida para mim — comemorou Estéfano. — Aqui terei música de graça. — Quando Próspero for destruído. — Já cuidaremos disso. Vamos seguir o som. Depois faremos nosso serviço — disse Trínculo.— Siga na frente, monstro — ordenou Estéfano. — Gostaria de ver esse tocador de flauta. Ele é muito bom. Caliban, Estéfano e Trínculo seguiram o som da flauta de Ariel. CAPÍTULO IX O Banquete dos Culpados A ilha encantada era uma espécie de labirinto para os náufragos. Os nobres, entre os quais o Rei Alonso, andavam e andavam por trilhas tortuosas sem encontrar ninguém ou chegar a algum lugar. O que eles buscavam não sabiam ao certo. O Príncipe Fernando, de preferência vivo. Pelo menos, essa era a esperança que animava seu pai, o velho Gonçalo e um ou outro fidalgo que os acompanhava. Antônio, a quem, apesar da situação incerta, a cobiça não abandonara, via uma oportunidade de aperfeiçoar a perfídia que empreendera anos antes: destronara o irmão e agora pretendia ajudar o irmão do rei de Nápoles a destroná-lo. Sebastião, que até então assumira sua indolência, despertara para a idéia de sair das sombras e reinar, mesmo sem ter idéia de como deixar aquela ilha estranha. Os dois conspira-dores procuravam a oportunidade de concretizar sua traição e meios de voltar a Nápoles. Não poderiam imaginar que faziam parte de um enredo montado por Próspero, o duque usurpado, e que o navio real encontrava-se inteiro e escondido por Ariel, com a tripulação a salvo, dormindo e sonhando com portos seguros. Nem poderiam supor que o Príncipe Fernando estava trabalhando como servo de Próspero e era noivo secreto da linda jovem que um dia, bem criança ainda, fora levada com o pai para morrer no mar, em noite de tempestade como a que os trouxera ali. Apenas Estéfano e Trínculo eram peças inesperadas no xadrez mágico que Próspero, invisível, jogava com seus opositores. Cansados, o grupo de nobres parou. Alonso começava a admitir, enfim, que Fernando se afogara. Antônio e Sebastião aproveitaram o descanso para conspirar em voz baixa: — Ainda bem que ele perdeu a esperança—disse Antônio. — Espero que você não tenha desistido no primeiro fracasso. — Aproveitaremos a próxima oportunidade — assegurou Sebastião. — Esta noite — propôs Antônio. — Eles ficarão cansados com as idas e vindas em busca não se sabe de quê. Estarão menos vigilantes. — Esta noite — concordou Sebastião. — Agora chega. Subitamente, soou uma música estranha e solene. Próspero, invisível, aproximou-se e assistiu ao espanto de todos. O rei foi o primeiro a comentar: — Que melodia é essa? Escutem, meus amigos. — Maravilhosa e doce música — comentou Gonçalo. Figuras estranhas aproximaram-se, dançando e saudando os nobres, e começaram a montar uma grande mesa de banquete com as iguarias mais finas, convidando-os para comer. Da mesma maneira misteriosa como surgiram, elas desapareceram. — Céus! — exclamou o rei. — Quem seriam eles? — Marionetes vivas! — arriscou Sebastião assustado. — Agora vou acreditar que existem unicórnios, que existe na Arábia um pássaro chamado Fênix e que esse pássaro reina por lá. — Eu acredito em ambos —jurou Antônio. — O que mais disserem de incrível eu confirmo. Os viajantes nunca mentiram, apesar de os tolos afirmarem o contrário. — Se eu contasse isso em Nápoles, quem acreditaria em mim? — perguntou Gonçalo. — Se eu dissesse que vi esses seres, que devem ser habitantes da ilha, meio monstruosos apesar de mais gentis do que muitos de nossos semelhantes, ninguém em Nápoles me acreditaria. Ouvindo Gonçalo, ocorreu a Próspero que, com certeza, os espíritos que comandava eram, pelo menos, melhores do que Antônio e Sebastião. — Desapareceram estranhamente — comentou Adriano preocupado. — Não importa — disse Sebastião. — Deixaram comida para trás e eu estou com fome. Vocês me acompanham? — Eu não — recusou o rei. — Não tenha medo, senhor. Quando nós éramos crianças, quem acreditaria que nas montanhas existia gente com papadas penduradas no pescoço, como os touros?— perguntou Gonçalo. — Ou que havia homens pequenos a ponto de terem a cabeça no peito? E hoje qualquer um que viaje nos traz notícias dessas coisas. — Você tem razão, Gonçalo — assentiu Alonso. — Vou comer, mesmo que seja pela última vez. Não importa. O melhor de minha vida já passou. Enganou-se Alonso. Ele não comeria do magnífico banquete porque nesse instante, entre relâmpagos e trovões, surgiu Ariel, em forma de harpia e, batendo as asas sobre a mesa, fez desaparecer o banquete. Nada poderia assustar mais os nobres. As harpias eram mitológicos monstros alados que poluíam tudo aquilo que se colocasse à mesa. Contavam as lendas que elas quase mataram de fome o Rei Fineu, da Trácia, que acabou sendo salvo pelos argonautas. Ver de perto um monstro que se imaginava criação de poetas de mais de dois mil anos atrás foi o suficiente para abalar aqueles homens. — Vocês são três criminosos — disse Ariel transfigurado em harpia, fazendo com que os nobres inutilmente desembainhassem as espadas e tentassem atingi-lo. — O Destino que controla os instrumentos desse mundo mentiroso fez com que o mar insaciável os lançasse nesta ilha porque vocês não merecem viver entre os homens. Eu os fiz enlouquecer e vocês não podem me ferir porque sou invulnerável. Mas posso lembrar-lhes do passado, quando deixaram Próspero e sua criança inocente entregues ao mar que agora os desgraçou. Por causa disso, as forças do Destino ergueram contra vocês os mares, os ventos e todas as criaturas. A Alonso tiraram o filho, e através de mim anunciam sua perdição. Nesta ilha desolada, nada os fará escapar ao sofrimento. — Dizendo isso, a harpia desapareceu em meio a trovões, deixando os nobres estarrecidos. Próspero, sempre invisível, parabenizou Ariel: — Você desempenhou esplendidamente seu papel, Ariel. Os outros espíritos também. Meus encantamentos surtiram efeito, meus inimigos estão dementes por causa do medo e em meu poder. Vamos visitar, agora, Fernando, a quem imaginam afogado, e minha filha. Próspero rumou com Ariel para a gruta e deixou seus inimigos entregues à loucura. — É monstruoso — disse Alonso. — É como se as ondas e o vento falassem de meu crime e pronunciassem o nome de Próspero, denunciando minha trapaça. Por causa disso meu filho dorme no seio do mar. Hei de buscá-lo até as profundezas para deitar- me junto dele. Alonso afastou-se transtornado, deixando Antônio e Sebastião bravateando para esconder o medo. Dispunham-se a procurar os demônios que os atormentavam e derrotá-los um a um. Gonçalo, que a tudo assistira sem interferir, comentou com os outros nobres: — Todos os três estão desesperados. A culpa os persegue como um veneno que fizesse efeito muito tempo depois de ingerido. Vou atrás deles para impedir que cometam alguma loucura. Os outros nobres acompanharam Gonçalo, sem entender bem o que se passava, pois o discurso vingativo de Ariel transformado em harpia só foi ouvido por aqueles que dentro de seus corações sabiam que o passado sojnbrio mais cedo ou mais tarde ressurgiria e cobraria o preço da traição. CAPÍTULO X Felicidade Inesperada A caminho da gruta, Ariel, esvoaçando ao redor de Próspero, falou-lhe sobre as façanhas de Caliban. Conhecendo o duque como conhecia, todo cuidado era pouco. Não queria correr o risco de ver confundido o portador com as más notícias: — Mestre, acho que nem tudo está correndo bem... — Qual, Ariel! Meus planos estão sendo magnificamente bem executados. Tudo está saindo a contento. Nenhuma falha. — O mestre não previu a possibilidade de Caliban... — Caliban! — Próspero interrompeu brusco o gênio, que teve de dar uma cambalhota no ar para não se chocar com o amo. — O filhote de feiticeira não conta. Ele está lá em seu chiqueiro na rocha, cuidando de seus afazeres. — Este é o problema, mestre. Caliban não está em seu lugar e também não está sozinho. Ele se envolveu numa conspiração para matá-lo.— Matar-me?! — Próspero espantou-se. — Como isso aconteceu? Os nobres estão juntos, nós acabamos de deixá-los! Antônio não se separou deles em momento algum. Quem poderia querer matar-me? — Caliban, mestre — explicou o espírito com suavidade. — Caliban o odeia. Ele encontrou, ou melhor, ele foi encontrado por dois tripulantes do navio real. Um deles embriagou Caliban, que está convencido de que o bêbado napolitano é um deus que veio libertá-lo da magia de Próspero. Pronto. Estava dito. Ariel cumprira seu dever de lealdade ao duque e podia sentir a fúria que se avolumava dentro dele em resposta à rebeldia de Caliban. — De onde menos se espera vem a traição — disse Próspero, enraivecido. — Deixe. Não me conte mais. Nada disso teria acontecido se todos os tripulantes estivessem dormindo no navio como eu planejei desde o início. — Mestre, mesmo os deuses são surpreendidos, às vezes, por pequenos imprevistos. Como poderíamos imaginar que dois insignificantes tripulantes se desgarrariam e viriam parar na ilha, ainda mais com vinho? — Agora não tenho condições de avaliar esta falha, Ariel — confessou Próspero cansado. — Vou cumprir mais uma etapa de meus planos e depois conversaremos sobre Caliban e seus cúmplices. O final da tarde se aproximava quando os dois chegaram ao lugar onde Fernando e Miranda conversavam embevecidos com o sentimento recém-descoberto em seus corações. Miranda assustou-se ao ver chegar o pai, mas a fisionomia serena dele acalmou um pouco suas preocupações. Próspero chamou os dois jovens para dentro da gruta, pediu que se sentassem e dirigiu-se ao príncipe: — Eu o fiz passar por tantos tormentos, impondo uma tarefa que sabia acima de suas forças, para que pudesse provar o seu amor. E você se saiu muito bem. — Fernando não conseguia esconder o espanto com o ambiente inesperado, misto de palácio e biblioteca, tantas eram as sedas, tantos eram os livros. O espanto era ainda maior com o tom subitamente amigável daquele velho senhor à sua frente. — Em recompensa ao seu esforço eu lhe darei minha filha, um pedaço de mim mesmo, a razão pela qual eu vivo. Não ria, Fernando, por eu admirá-la tanto. Você verá que ela é maior do que todos os elogios. — Eu acreditaria nisso mesmo que um oráculo me dissesse o contrário — assegurou Fernando, feliz com o inesperado desfecho de sua breve escravidão. — Então receba minha filha como merecida conquista. Você tem de me prometer, no entanto, que respeitará a virgindade dela até a cerimônia sagrada, porque senão o ódio, o desprezo e a discórdia hão de cobrir de espinhos o leito de núpcias de vocês. — Senhor, como eu espero dias tranqüilos, filhos e vida longa para o meu amor, nem o antro mais escuro, o lugar mais oportuno ou a mais forte sugestão me fará abrir mão de minha honra para impedir essa celebração. Nesse dia, será como se o sol permanecesse brilhando eternamente e a noite, acorrentada para sempre. — Muito bem — disse Próspero observando a felicidade da filha por vê-los finalmente se entendendo. — Em homenagem ao amor de vocês, vou presentear-lhes com uma surpresa. Anel — chamou o duque. — O que deseja meu poderoso mestre? Aqui estou. — Imediatamente o espírito encantado apresentou-se. — Você executou bem a última missão e eu necessito agora de outra artimanha. Chame os espíritos que mantenho em seu poder e traga-os para cá. Quero oferecer aos olhos desse jovem casal um pouco de minha arte. Prometi isso e eles estão esperando. — Neste momento? — Sim, num piscar de olhos — respondeu Próspero. Ariel saiu voando em busca dos espíritos que o mago convocara e fez surgir diante dos jovens, maravilhados e em silêncio, as deusas Juno, Ceres e íris, dançando e abençoando o amor de Fernando e Miranda. Juno, esposa de Júpiter, deus dos deuses, era a protetora dos amores legítimos, o símbolo da fidelidade conjugai; íris, a personificação do arco-íris, representava a união entre o Céu e a Terra, entre os deuses e os homens, e Ceres era a deusa da fertilidade, da feliz relação dos homens com a natureza. — Esta é a visão mais majestosa e encantadora que já tive em minha vida! — Fernando deslumbrou-se. — Serão espíritos? — Espíritos que, com minha arte, trouxe de seus confins para que encenem minhas fantasias atuais — respondeu Próspero. — Espere, ainda temos mais. Realmente era um espetáculo de música, dança e poesia surpreendente: as deusas estavam acompanhadas de ninfas, divindades das fontes, rios e bosques. Elas rodeavam os jovens, fazendo da felicidade deles a sua alegria. De repente, Próspero estremeceu como se despertasse de um sonho: — Podem ir. — Dispensou bruscamente os espíritos. — Foi ótimo. Chega. Os espíritos dispersaram-se, desmanchando-se no ar em meio a ruídos confusos. — Tinha-me esquecido da louca conspiração do monstruoso Caliban e seus cúmplices contra minha vida — disse Próspero como se falasse consigo mesmo. — É estranho — cochichou Fernando para Miranda —, seu pai parece dominado por alguma emoção que o deixa transtornado. — Nunca até hoje eu tinha visto meu pai enraivecido assim — respondeu Miranda. — Você parece impressionado, meu filho. — Próspero, aos poucos, voltou ao seu normal. — Sossegue. Acabou-se nossa festa. Esses nossos atores eram apenas espíritos e desapareceram no ar. Assim como desapareceu nossa visão. Um dia as torres, os palácios suntuosos, os templos solenes e até mesmo o globo terrestre e tudo o que existe dentro dele se dissolverão sem deixar marcas, como se dissolveu esse espetáculo. Somos feitos da mesma matéria que os sonhos e nossas pequenas vidas são rodeadas pelo sono... Perdoe minha fraqueza, meu rapaz, minha velha mente está atormentada. Não se preocupe. Se você quiser, entre na gruta e descanse. Vou caminhar um pouco para me acalmar. Os dois jovens despediram-se dele e entraram na gruta. Não tinham palavras para consolar o duque. Faltava-lhes experiência de vida para compreender Próspero e sua magia. Ele mesmo, apesar de seu imenso saber, não podia controlar todos os espetáculos. Não previra a conspiração de Caliban e isso o atormentava. CAPÍTULO XI Os Últimos Foram os Primeiros Próspero saíra de perto dos jovens para caminhar um pouco e se acalmar. Não foi difícil pôr em ordem suas emoções porque o sucesso de seus planos dependia de sua serenidade. Recuperado, chamou novamente Ariel, e o gênio lhe prestou conta dos últimos passos de Caliban: — Como já disse, mestre, eles estavam bêbados. Estavam tão cheios de valentia que açoitavam o vento por lhes soprar no rosto e fustigavam o chão por lhes beijar os pés. De qualquer forma, continuavam dispostos a levar adiante o projeto de matá-lo. Então, comecei a tocar e enfeiticei de tal forma seus ouvidos que me seguiram entre espinhos e carrapichos até um pântano atrás da gruta onde meu mestre vive. Eu os deixei dançando na lama imunda que aprisiona seus pés. — Isto foi bem feito, meu pássaro! Continue invisível e vá buscar roupas em minha gruta para prepararmos uma armadilha para esses ladrões. — Já vou — disse Ariel saindo para cumprir sua tarefa. — Um demônio — lamentou Próspero para si mesmo —, um demônio de nascença. Fiz tudo para educá-lo. De nada adiantou. Sua natureza não muda. Seu corpo é cada dia mais horroroso e seu caráter se corrompe cada vez mais. Vou atormentá-lo e a seus cúmplices até rugirem de dor. Ariel voltou com as roupas e pendurou-as numa corda. Ele e Próspero esperaram invisíveis Caliban, Estéfano e Trínculo, que chegaram em seguida. — Andem devagar—disse Caliban baixinho—para que o feiticeiro não escute nossos passos. Estamos perto de sua gruta. — Monstro, monstro — resmungou Estéfano, ameaçador —, seu duende protetor, que você disse ser de confiança, até agora só nos fez de bobos.— Monstro, estou cheirando a mijo de cavalo e meu nariz está indignado — esbravejou Trínculo. — O meu também. Você escutou, monstro? Se eu me aborrecer com você... — Era uma vez um monstro — completou Trínculo. — Meu bom senhor — pediu Caliban a Estéfano —, confie em mim. Seja paciente, que o prêmio vai compensar tudo isso. Agora, fale baixo. Está tudo quieto como se já fosse meia-noite. — E nossas garrafas no pântano — disse Trínculo, que além de tudo continuava implicando com Caliban. — Não é só a desgraça e a desonra, monstro, a perda da garrafa é uma perda irreparável — assegurou solene e bêbado Estéfano. — Perder a garrafa é pior para mim do que estar encharcado. Esse seu duende que canta, não sei não — Trínculo insistiu. — Vou atrás de minha garrafa — resolveu Estéfano. — Por favor, meu rei. Paciência — implorou Caliban. — Veja, esta é a entrada da gruta. Não faça barulho e entre. Mate Próspero e será o rei desta ilha para sempre, e eu, seu Caliban, lamberei seus pés eternamente. Enquanto Caliban tentava convencer Estéfano a matar Próspero imediatamente, Trínculo descobriu uma corda cheia de belas roupas. Vestiu um manto luxuoso e começou a brincar: — Oh, Rei Estéfano! Veja que maravilhosas roupas existem aqui à sua real disposição... — Tire esse manto, Trínculo. — Estéfano, cambaleando, tentou tirar o manto de Trínculo. — Quero essa coisa linda para mim. — Então será seu, majestade — o outro concordou com uma mesura irônica. — Imbecil, largue essa bobagem. — Caliban enraiveceu-se. — Você tem de matá-lo primeiro. Se ele acordar, vai tirar nossa pele. — Fique quieto, monstro — ordenou Estéfano, dirigindo-se cerimonioso à corda onde as roupas estavam penduradas. — Dona Corda, esta não é minha jaqueta? Agora a jaqueta está pendurada! Ouviu, jaqueta? Pronto, podemos pegá-la de volta. — Muito bem, majestade! Vamos roubar a corda — apoiou Trínculo. — Enquanto eu for rei desta ilha — prometeu Estéfano em tom de discurso —, o bom humor será recompensado. Anda, Trínculo, pode pegar outra veste como recompensa à sua piada. — Venha, monstro — convidou Trínculo magnânimo. — Fique com o resto. — Não quero nada disso — desesperou-se Caliban. — Nós estamos perdendo tempo, vamos ser transformados em gansos ou em macacos de cabeça chata. — Deixe de conversa, monstro, ajude a carregar essas coisas para onde está meu barril de vinho ou eu o expulso de meu reino... Estéfano foi interrompido por vários espíritos em forma de cães de caça, instigados por Próspero e Ariel. Ele, Caliban e Trínculo ficaram apavorados com os cães atrás de si. Próspero, não satisfeito, ordenou a Ariel: — Vá dizer aos meus duendes para moê-los de fisgadas, enchê-los de cãibras e de beliscões até que fiquem desesperados. — Já estão, mestre. Escute como rugem. — Quero que sejam duramente perseguidos. Agora tenho todos os meus inimigos em meu poder. Daqui a pouco meus trabalhos terminarão e você alcançará sua liberdade. Vá, você ainda tem de me prestar uns serviços. CAPÍTULO XII O Acerto de Contas Perto das seis horas da tarde, horário em que Próspero prometera libertar Ariel, os dois se encontraram em frente à gruta de Próspero, que vestia seu manto mágico. — Meu plano se encaminha para o fim. Os espíritos me obedeceram, meus encantamentos não falharam. Como estão o rei e seus companheiros? — Aprisionados juntos, no bosque de limoeiros que protege a gruta de meu mestre contra o mau tempo. O rei, o irmão dele e seu irmão continuam insanos, tomados pelo sofrimento e pelo desânimo. Aquele a quem o mestre chama de o velho e bom Gonçalo é o que mais sofre. Lágrimas escorrem-lhe pela barba como as chuvas de inverno. Sofrem tanto por causa de sua magia que se o mestre fosse vê-los agora ficaria comovido. — Você acha, espírito? — Se eu fosse humano, eu me comoveria. — Se você, que é feito de ar, parece sentir as aflições deles, imagine eu, que pertenço à mesma espécie e como eles me apaixono e sofro? Como não me comover? Apesar de terem eles me ferido com seus erros, farei prevalecer minha razão e não minha fúria. O melhor está no perdão, não na vingança. Não insistirei na punição. Vou quebrar o encantamento e devolver-lhes a razão. Eles voltarão a ser o que eram. — Vou buscá-los, mestre. Ariel saiu para cumprir mais essa tarefa e Próspero ficou entregue aos seus pensamentos, avaliando a trama que desencadeara com a tempestade: — Amotinei os ventos, deflagrei a guerra entre o mar e o céu e arranquei pela raiz as árvores. Sob minhas ordens, os mortos despertaram e saíram de seus túmulos. Agora, renuncio à minha magia e providenciarei música celestial para romper o encantamento que pesa sobre eles. Depois, quebrarei minha vara mágica e a enterrarei em um buraco bem fundo no chão. Jogarei meu livro no fundo do mar para que nunca mais possa ser usado. Ariel voltou com Alonso, Sebastião e Antônio, dementes, acompanhados de Gonçalo. Os outros nobres os seguiam e todos, ainda sob encantamento, entraram num círculo que Próspero traçara no chão. Próspero observou o estado em que se encontrava o grupo, pensativo: — Agora, estão todos aqui, vítimas do encantamento, o cérebro tomado de fúria inútil. — Dirigiu-se a Alonso: — Vossa Majestade, que foi tão cruel comigo e com minha filha, incentivado por seu irmão Sebastião, que hoje sofre também o castigo. — Próspero voltou-se para seu irmão: — E você, Antônio, minha carne e meu sangue, que sempre serviu à ambição, e junto com Sebastião quis matar seu rei e agora sofre os tormentos do inferno, eu lhe perdôo. Mesmo sabendo o quanto você é desumano, meu irmão, eu perdôo a você e aos outros. Quanto a você, Gonçalo, meu salvador apesar de fiel ao seu rei, eu o recompensarei por tudo. Vai, Ariel, busque minhas roupas de duque, meu chapéu e minha espada, porque eles já começam a recuperar a razão, mas não poderiam me reconhecer com as roupas que visto hoje... Ariel foi e voltou voando e cantando porque a cada momento estava mais próxima a sua liberdade. Ajudou Próspero a vestir-se enquanto escutava as últimas instruções: — Meu caprichoso Ariel! Vou sentir sua falta, mas você terá sua liberdade. Voe, o mais depressa que puder, ao navio real e, invisível como você tem estado até agora, acorde o capitão e o contramestre e traga-os aqui. Rápido. — Eu bebo o ar diante de mim e regresso antes que meu mestre respire. Enquanto Ariel partia, Gonçalo despertava do encanto: — Todos os tormentos e males assombrosos existem aqui — lamentou o velho conselheiro. — Que algum poder celestial nos guie para fora desta terra. — Majestade, diante do senhor está Próspero, o duque destronado de Milão. E para que tenha certeza de que estou vivo, abraço o rei e ofereço as boas-vindas ao senhor e a sua comitiva. Alonso, assombrado, deixou-se abraçar, assim como os outros nobres, sem saber o que pensar daquela estranha volta à realidade. — Não sei se estou diante do verdadeiro Próspero ou de algum encantamento para me iludir. Seu pulso bate como o de um corpo de verdade. E desde que o vi, a loucura se afastou de minha mente. De qualquer forma, é a mais estranha história que já se viu. Se assim é, renuncio ao seu ducado e peço que perdoe meus erros. Mas será possível que Próspero esteja mesmo vivo e aqui?! Próspero abraçou Gonçalo, ainda em dúvida também de que estivesse sendo abraçado por um vivo: — Deixe-me abraçar sua velhice, cuja honradez não pode ser medida. Vocês ainda estão sob o clima de encantamento que esta ilha tem. — Voltando-se em voz baixa para Antônio e Sebastião: — Eu poderia denunciar os dois ao rei, pela conspiração que há poucas horas tramavam contra sua vida. — O diabo fala por ele — resmungou baixinho Sebastião. — Não
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