Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 1/15 A figura da violação positiva do contrato: como tratar as grandes controvérsias sobre a matéria? A FIGURA DA VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO: COMO TRATAR AS GRANDES CONTROVÉRSIAS SOBRE A MATÉRIA? The positive breach of contract: how to deal with relevant controversies of the subject? Revista de Direito Privado | vol. 97/2019 | p. 47 - 73 | Jan - Fev / 2019 DTR\2019\98 Leonardo Fajngold Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Conselho Assessor da Revista Brasileira de Direito Civil (RBDCivil). Pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Advogado. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. leofajngold@gmail.com Área do Direito: Civil Resumo: Este artigo aborda as ainda acaloradas polêmicas que pairam sobre a figura da violação positiva do contrato. Em princípio, são analisados os argumentos favoráveis e contrários à compatibilidade da teoria com o ordenamento jurídico brasileiro. Na sequência, trata-se das particularidades do inadimplemento no direito pátrio, com apontamentos sobre a sua sistematização. Como último passo, à luz desse cenário, indicam-se diretrizes para balizar a atuação do intérprete na solução do caso concreto. Palavras-chave: Violação positiva do contrato ‒ Inadimplemento ‒ Obrigações Abstract: The present article addresses the still heated issues that hover the concept of positive breach of contract. Initially, arguments in favor and against the compatibility of the theory with the Brazilian legal system are analyzed. Subsequently, the particularities of default in the country’s legal framework is discussed, with notes on its systematization. In light of this scenario, guidelines for the fulfilment of the interpreter task in the solution of the concrete cases are indicated. Keywords: Positive breach of contract ‒ Default ‒ Obligations Sumário: 1 Introdução - 2 Da origem na Alemanha aos dias atuais: entre a delimitação e as polêmicas - 3 Existe espaço para a figura no ordenamento brasileiro? - 4 Os efeitos da admissão da violação positiva - 5 Conclusão - 6 Referências 1 Introdução No campo das obrigações, poucos são os temas atualmente tão controvertidos quanto a figura da violação positiva do contrato. Muito embora sua criação, em solo alemão, date de mais de um século,1 entre nós o assunto apenas passou a ser referido e examinado, com maior detalhe, nas últimas três décadas,2 o que bem explica o fato de ainda se encontrar envolto em inúmeras polêmicas. A primeira delas, até intuitiva, por se tratar de teoria surgida no direito estrangeiro, é a adequação ao ordenamento jurídico brasileiro. É dizer, o direito nacional precisa importar a figura ou outros institutos fazem (ou deveriam fazer, em uma interpretação aplicativa)3 as vezes da violação positiva do contrato? O que se verá a seguir é que justificar o posicionamento de uma forma ou de outra não tem sido tarefa fácil, apesar do considerável esforço doutrinário para construir uma posição sólida em relação ao tema. Para aqueles que imaginam que a (não pouca) dificuldade quanto à temática termina por aí, um pequeno aviso: é só o começo. Por incrível que pareça, ainda que se defenda a importância da figura, a análise do objeto de incidência e das inúmeras repercussões jurídicas tem gerado, na prática, caminhos bastante distintos entre si.4 O mesmo se pode dizer em relação aos que afirmam a desnecessidade de um novo instituto, já que as justificativas também variam consideravelmente.5 Em síntese, diante de um assunto tão intrincado e polarizado, o que se viu ao longo dos anos, considerando os trabalhos acadêmicos desenvolvidos, é um árduo esforço doutrinário para avaliar e testar, com detido cuidado, os argumentos apresentados pela corrente contrária, como uma espécie de 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 2/15 metodologia para se definir a própria opinião a respeito do assunto (em especial, a partir da desconstrução ou do enaltecimento das hipóteses sistematizadas pela doutrina alemã). Logo, o estudo sobre a figura, em boa medida, tem como ponto de partida os acertos e equívocos que permearam (e permeiam) cada uma das correntes doutrinárias. Sem sombra de dúvida, essa forma de raciocínio, de alta investigação científica, foi fundamental não só para destrinchar as possíveis hipóteses de aplicação, mas para se amadurecer a própria ideia de adimplemento no ordenamento nacional, rumo a uma melhor compreensão do tratamento que deve ser dado ao instituto da violação positiva do contrato (se é que deve ser dado algum). Entretanto, parece que outro dado, atentado em menor escala, mostra-se extremamente relevante nessa discussão. Como se sabe, houve intensa transformação em sede de responsabilidade civil no século XX, por meio de um celebrado “giro conceitual” (com mudança de eixo paradigmático do ato ilícito para o dano injusto), fazendo repousar sobre a vítima os olhares e cuidados nessa seara.6 A reboque, surgiram outras mudanças absolutamente impactantes, como a eleição da reparação integral a verdadeira bússola na interpretação dos inúmeros litígios que modernamente se amontoam.7 E é precisamente aqui que se encontra a premissa que deveria guiar o estudo – no mínimo, com igual peso que a averiguação das hipóteses de incidência. A despeito da importância de uma lapidação teórica da figura, para verificar se há ou não um possível enquadramento dentro do sistema, o que se deve ter em vista é a impossibilidade de se reconhecer que a prática de algum ato contrário ao ordenamento jurídico possa ficar à margem de apreciação pelo intérprete e de compatível reparação. É, portanto, sob esse enfoque que se convida à leitura do presente artigo: partindo do pressuposto de que a vítima deverá ser sempre integralmente reparada, qual a forma de abordagem da matéria apta a garantir que não haja qualquer situação a ser relegada a uma verdadeira zona cinzenta, em que o dano passará despercebido? 2 Da origem na Alemanha aos dias atuais: entre a delimitação e as polêmicas Em linhas gerais, a criação da teoria remonta ao já distante ano de 1902, momento em que foi trazida a público pelo alemão Hermann Staub, no seu trabalho intitulado “Sobre as violações positivas do contrato e suas consequências jurídicas” (Über die positiven Vertragsverletzungen und ihre Rechtsfolgen).8 Diferentemente da atual legislação brasileira, o Código Civil alemão (BGB) possuía, à época, disposição dicotômica sobre o descumprimento da prestação, de modo que eventual irregularidade somente poderia ser reconduzida ao inadimplemento absoluto ou ao limitado conceito de mora.9 Como explicou Staub, as estreitas demarcações de configuração do inadimplemento relativo na antiga redação do BGB apenas alcançavam o não cumprimento da obrigação ajustada (espécie de violação negativa), inexistindo disciplina mais aprofundada quanto a outros tantos defeitos identificados no cotidiano, como aqueles advindos da própria forma de prestar.10 Nesse sentido, portanto, é que o afirmado espaço vazio no ordenamento seria ocupado pela figura da violação positiva, até como expressão de um “sentimento de justiça”.11 Visando à aplicação prática, como forma de coibir danos e deformidades no cumprimento da obrigação (isto é, de um fazer), a teoria veio acompanhada de sugestões de hipóteses específicas de incidência, resumidas nas palavras de Carlos Nelson Konder: Originalmente, diversas hipóteses eram previstas como violações positivas do contrato: o mau cumprimento dos deveres principais do contrato, em virtude da prestação realizada de forma defeituosa (cumprimento imperfeito);o descumprimento de deveres laterais (sejam de cuidado e proteção, sejam de informação e de colaboração); a recusa antecipada em cumprir a prestação, expressa ou em virtude de comportamento concludente do devedor no sentido do inadimplemento (resultante no inadimplemento antecipado); o descumprimento de uma obrigação negativa (obrigação de não fazer); o mau cumprimento de uma obrigação duradoura e as hipóteses de culpa post pactum finitum.12 Apesar da sensibilidade nas percepções, em sintonia com anseios sociais que não encontravam tratamento legislativo, a teoria difundida em larguíssima escala, inclusive ultrapassando as fronteiras alemãs e aportando a outros ordenamentos (a ponto de se estar aqui, em outro continente e mais de cem anos depois, desbravando suas implicações em pesquisa inteiramente dedicada), não passou imune a críticas.13 Muito ao contrário. 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 3/15 Em realidade, não foram poucos os autores que passaram a examinar, com rigor científico, em que medida as situações abstratamente descritas careciam ou não de adequação e razoabilidade.14 Uma dessas críticas, em especial, merece destaque. Curiosamente, as severas considerações de outro autor alemão, Heinrich Stoll, que tinha a intenção de justificar o descabimento da figura (o título do seu trabalho é autoexplicativo: “Adeus à doutrina da violação positiva do contrato”)15 foram determinantes para uma melhor sistematização da teoria, levando ao não pretendido efeito de renovar o fôlego da exposição inicialmente apresentada. Nas palavras de Jorge Cesa Ferreira: “Desta forma, a crítica ajudou a confirmar a doutrina e o ‘adeus’ pretendido mais serviu para sedimentar o já declarado ‘Willkommen’ [...]”.16 O impacto dos diversos estudos devotados à matéria, por anos a fio, foi sentido não só em sede doutrinária e jurisprudencial, mas também – e de forma profunda – na legislação alemã, a partir da ampla reforma no BGB em 2002. Precisamente, a questão foi contemplada no § 280, I, que assim dispõe: “if the debtor fails to comply with a duty arising under the contract, the creditor is entitled to claim compensation for the loss caused by such breach of his duty. This does not apply if the debtor is not responsible for the breach of duty”.17 Tal como ocorreu no estrangeiro (ressalvadas algumas décadas de atraso), a temática apareceu no Brasil apresentando similar complexidade no tratamento e ampla divergência de opiniões – com o embaraço adicional de ter sido elaborada dentro de um contexto e de um ordenamento particular, o que traz justificadas dúvidas sobre a compatibilidade com o sistema pátrio e desafios para uma eventual adequação.18 Um dos mais prestigiosos e pioneiros estudos sobre o assunto, empreendido por Jorge Cesa Ferreira, bem demonstra, de um lado, as tortuosas dificuldades que pairam sobre a matéria, e de outro, as possibilidades de utilização da figura em sede nacional. Para esse último fim, o autor assim delimita o conceito (que, até hoje, é utilizado em larga escala): “No direito brasileiro, portanto, pode-se definir a violação positiva do contrato como inadimplemento decorrente do descumprimento culposo de dever lateral quando este dever não tenha uma vinculação direta com os interesses do credor na prestação”.19 A teoria, logo ao chegar, também acabou sendo indiretamente referida no Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, que possui o seguinte teor: “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil (LGL\2002\400), a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.20 Conquanto o enunciado tenha sido um grande pontapé para o que viria a ser, anos mais tarde, um tema bastante reportado jurisprudencialmente, fato é que chama a atenção a diferença entre as visões sobre o instituto, notadamente pela controvérsia com relação ao requisito da culpa e quanto à ordem de deveres que integraria a definição (se deveres laterais sem vinculação direta com o interesse na prestação ou se simplesmente deveres anexos). A bem da verdade, uma das poucas convergências doutrinárias em relação à figura é a oposição, de todas as correntes, à nomenclatura “violação positiva do contrato”, ainda que, vale dizer, nenhuma outra a tenha substituído com igual relevo. Parte dessas críticas está reservada ao termo “positiva”, justamente por sugerir, de um lado, a inclusão de condutas que não necessariamente estão abarcadas no conceito (como o descumprimento de obrigação negativa) e, de outro, o afastamento de outras que são por ele alcançadas (a exemplo da violação do dever lateral de agir).21 Outra parte das objeções se relaciona à palavra “contrato”, havendo defesa no sentido de que seria mais técnica a referência a “crédito”, uma vez que não só as violações no bojo de relações contratuais permitiriam a incidência da figura.22 Não fosse suficiente, também se controverte sobre a própria possibilidade de um conceito único, dada a diversidade de hipóteses que se enquadrariam na definição, conforme explica António Menezes Cordeiro (a comprovar, inclusive, que a indagação também é pertinente em outros ordenamentos, como o português): A diversidade foi-se ampliando à medida que as investigações posteriores, impulsionadas pelas necessidades práticas, foram multiplicando as modalidades iniciais. A ponto de se tornar inviável uma noção afirmativa de violação positiva do contrato: esta acabaria por ser definível, apenas por exclusão, como abrangendo violações culposas de uma vinculação que não pudessem integrar nem a impossibilidade, nem a mora do devedor.23 A despeito de essas considerações já indicarem, por si sós, grandes obstáculos a serem superados para se harmonizar a figura, um dos maiores entraves à conformidade do instituto à legislação brasileira 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 4/15 (senão o maior) é a comparação entre a abrangência da acepção de mora no direito nacional e a sua estreita compreensão na antiga redação do BGB, circunstância que impulsionou a sua criação na Alemanha.24 Realmente, ressalvado o posicionamento de corrente minoritária,25 não é possível desconsiderar a vasta amplitude legislativa do inadimplemento relativo no ordenamento brasileiro (art. 394 do CC/2002 (LGL\2002\400)), com alusão ao descumprimento no tempo, lugar e forma, apta a englobar diversas hipóteses que não teriam amparo jurídico se considerada a discreta normativa alemã originária (sobretudo a partir da previsão aberta do vocábulo “forma”).26 Como se nota, a própria literalidade do dispositivo específico do Código Civil (LGL\2002\400) já garante uma ampla margem de acomodação das hipóteses de descumprimento contratual. Todavia, é preciso ir além. Apurando ainda mais a intepretação, é de se reconhecer que três outros fatores proporcionam um alcance ainda maior ao instituto da mora, a saber: (i) compreensão da relação obrigacional como processo; (ii) o notável influxo do princípio da boa-fé objetiva; e (iii) a necessidade de observância ao aspecto funcional dos institutos. O primeiro deles vem da consagrada compreensão de Clóvis do Couto e Silva de que não há como se apreender a relação entre as partes mediante um olhar estanque para a obrigação em exame; para tanto, há de se perceber a obrigação de forma dinâmica, como um processo, cujos atos e interesses se inter-relacionam e influenciam mutuamente os contratantes.27 Sobre o princípio da boa-fé, integrante do bloco dos chamados novos princípios contratuais (e, entre eles, o que nitidamente obteve maior consagração doutrinária e jurisprudencial), surge em consonância com uma nova tábua axiológica centrada nas normas constitucionais, e passa a remodelar a relação obrigacional, exigindo uma condutaleal e proba dos contratantes para que se atenda, inteiramente, aos fins perseguidos por cada uma das partes envolvidas – e não só a estrita e isolada prestação pactuada.28 Essa situação é reforçada pela atual necessidade de desapego de uma visão meramente estrutural dos institutos (o que são), com redutora atenção apenas à prestação principal, nas rígidas modalidades de dar, fazer ou não fazer, e emprego de uma visão em perspectiva funcional (para que servem), mais sensível ao complexo de deveres e interesses na relação obrigacional.29 Esse quadro é bem sintetizado nas palavras de Aline de Miranda Valverde Terra: Nesse cenário, o adimplemento, assim como a própria obrigação, exsurge como unidade complexa, cuja configuração exige não só o cumprimento do dever principal de prestação, mas a observância dos deveres acessórios e de conduta incidentes na relação jurídica concreta, de modo contínuo e ininterrupto. Mas não é só. Se adimplemento e inadimplemento se conectam lógica e funcionalmente, é inevitável que todas as ponderações até aqui formuladas repercutam na teoria do inadimplemento. [...] A ampliação do conceito de adimplemento diante dos deveres de conduta impostos ao devedor implica, na mesma medida, o alargamento da noção de inadimplemento. Vale dizer, se para se reputar o devedor adimplente se impõe a observância não apenas do dever principal de prestação, mas também, com a mesma acuidade, dos deveres de conduta, significa dizer que se considera inadimplente o devedor que não cumpre o dever principal de prestação ou os deveres de conduta impostos pela sistemática obrigacional. Em sentido amplo, portanto, inadimplemento significa a inexecução da prestação satisfativa, e não o mero descumprimento da prestação principal.30 Desse modo, afora uma previsão normativa que ostenta considerável abertura, assiste-se a uma substancial transformação da noção de adimplemento no direito brasileiro, tudo a direcionar as relações contratuais em favor não mais de um mero adimplemento da obrigação, mas de um adimplemento satisfativo, capaz de efetivamente corresponder à gama de interesses relacionados à prestação em determinado programa contratual.31 Sem prejuízo desse panorama, há ainda que se notar a igualmente vasta disciplina de vícios na legislação brasileira, seja no Código Civil (LGL\2002\400), a exemplo dos artigos 44132 e seguintes, 61833 e 754,34 ou em outros diplomas normativos no direito privado (servindo como maior símbolo o Código de Defesa do Consumidor, com inúmeros dispositivos exclusivamente voltados a essa preocupação). A combinação de ambas as constatações particulares do direito brasileiro – extensão do conceito de mora e meticuloso tratamento de vícios na legislação – desponta, assim, como principal argumento35 de resistência à importação da teoria da violação positiva do contrato.36 Em suma, essa corrente defende que, acaso não se cuide de um vício específico, as hipóteses de descumprimento, diante desse alargado conceito de adimplemento e de inadimplemento (duas faces da 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 5/15 mesma moeda), poderão ser perfeitamente enquadradas no conceito de mora e de inadimplemento absoluto, funcionando como demarcador do limite entre ambas as situações a aferição de permanência do interesse do credor.37 Apesar de se concordar que boa parte das hipóteses originariamente surgidas no contexto alemão seriam alcançadas ora pelo inadimplemento, ora pelo regime de vícios, é preciso investigar, tal como anunciado no início deste trabalho, se, a seguir esse raciocínio, alguma hipótese de dano, ainda que mínima dentro de tantas situações possíveis (é dizer, como raríssima exceção), passaria incólume, justamente pela falta de remédios aptos a reprimi-la, o que não se pode admitir. É o que se pretende analisar no tópico seguinte. 3 Existe espaço para a figura no ordenamento brasileiro? Como se viu até aqui, o estudo da matéria, de acordo com a metodologia proposta, traduz-se, basicamente, em uma junção de duas eloquentes frases de estudiosos sobre o assunto. A primeira, de Hermann Staub, no sentido de que “ninguém duvidará que, nestes casos, a parte que viola os deveres deve compensar a contraparte pelos danos causados por esta violação”,38 a demonstrar que qualquer violação a deveres contratuais deve ser notada e reparada. A segunda, a partir da oportuna observação de António Menezes Cordeiro: “As críticas a Staub e à violação positiva do contrato só ganhariam peso decisivo se lhe fossem contrapostas soluções alternativas”.39 Dessa forma, para verificar se a nova concepção de adimplemento acolhe todas as hipóteses de violação positiva (afinal, se houver um único esparso caso não alcançado, é preciso entender o que se fará com ele), sugere-se, aqui, a avaliação de exemplos reais e fictícios. O primeiro deles, bastante referido quando esse tema está posto em debate, é uma clássica ilustração trazida por Clóvis do Couto e Silva (ainda que tenha sido originalmente apresentado para mostrar a relação entre boa-fé e motivo). Segundo explica, um comerciante A convenciona com B a fabricação e a colocação de anúncio luminoso, para efeitos de propaganda. B fabrica o anúncio, conforme combinado, mas escolhe local de baixo tráfego para colocá-lo.40 Nessa exposição, Clóvis do Couto e Silva afirma, explicitamente, que não haveria “adimplemento satisfatório”, já que “B deveria levar em consideração que quem contratara era comerciante e, por conseguinte, o anúncio somente poderia ter interesse se situado em lugar adequado a sua finalidade”.41 Embora largamente utilizado ao se tratar da figura objeto do presente exame, o exemplo se adéqua, com visível facilidade, ao não cumprimento da obrigação na forma intencionada pelo contratante, servindo principalmente para confirmar tudo quanto se disse sobre a ampla abrangência do conceito de mora. É dizer, diante da pouca (ou, mesmo, nenhuma) controvérsia, outras hipóteses aparentam ser mais frutíferas para testar os instrumentos e institutos já previstos no ordenamento jurídico. Uma primeira, apreciada pelo antigo Reichsgericht (Supremo Tribunal alemão que perdurou até 1945), diz respeito a um telhador que foi tirar medidas para instalação de uma placa de zinco na casa de determinado indivíduo, que contratara seus serviços. Ao subir no telhado, caiu e se feriu gravemente por conta de uma tábua podre ali presente, não informada pelo contratante (que dela tinha ciência).42 Um outro, fictício, também auxilia na análise. Imagine-se que duas grandes sociedades estão desenvolvendo em conjunto uma nova tecnologia, mediante contrato específico para esse fim. Em uma das reuniões, realizada na sede de uma delas, o representante da outra, por comprovada negligência, descuida de um dos equipamentos, que superaquece e incendeia o local (mas, apesar dos danos, sem gerar impedimento à normal sequência do cronograma contratual). Nas duas situações, aparentemente não se mostra confortável dizer que o proprietário ou que a sociedade incendiária estava em mora, por força de um descumprimento em relação à forma, na medida em que a prestação estipulada não foi impactada (ao menos, não como em outros casos, tal como no do anúncio luminoso). Igualmente, diante de eventos que surgiram não só a partir de um negócio jurídico, mas que ocorreram no momento de execução das obrigações ali previstas, tampouco parece simples afirmar que as situações são perfeitamente captadas pela lógica do ilícito extracontratual (tal como se uma colisão de veículos fosse).43 Se não há cômoda adequação ao regime de inadimplemento no direito brasileiro, nem típica inserção na sistemática da responsabilidade aquiliana, cumpre, então, verificar a abordagem que melhor permite reparar o dano (e, em determinados casos, evitar que se prolongue), avaliando se a violação positiva do contrato cumpre esse papel. Costumeiramente,como se apontou no item introdutório deste texto, a pesquisa em muito se confunde com a avaliação das hipóteses originárias no direito alemão e amadurecidas em sede doutrinária e jurisprudencial (até como expressão da abordagem que historicamente prevaleceu sobre a matéria).44 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 6/15 Nada obstante a essa forma de explorar o assunto, que, é bem verdade, trouxe ricos avanços no campo das obrigações, acredita-se que uma metodologia distinta, por meio de criteriosa avaliação do complexo de deveres e interesses na relação estabelecida entre as partes, pode melhor servir ao escopo aqui pretendido. Em última análise, a busca é por um sólido enquadramento técnico de eventuais violações nessa seara, a fim de que possa nortear o tratamento de qualquer caso concreto que porventura se amolde a essa configuração (sem necessidade de se empregar uma espécie de subsunção a uma pré-determinada lista de hipóteses). Para tanto, é importante, de início, revisitar o impacto da (enérgica) incidência do princípio da boa-fé objetiva sobre as relações obrigacionais, mas agora sob outro prisma. Já se encontra bastante consolidada a noção que empresta a esse princípio uma tríplice função: (i) interpretativa, estampada no art. 113 do Código Civil (LGL\2002\400),45 a orientar a hermenêutica dos contratos de acordo com o postulado da boa-fé; (ii) fonte criadora de deveres, ou seja, com a imposição de obrigações aos contratantes além daquelas expressamente previstas no negócio jurídico celebrado; (iii) limitativa ao exercício abusivo de direitos, impedindo a prática de atos na contramão da postura de cooperação que se espera dos contratantes.46 Sem prejuízo da elevada relevância das três funções, com substanciosa aplicação prática, é precisamente a segunda função mencionada que importa à discussão da violação positiva do contrato. Isso porque, conforme reconhece parte da doutrina, os deveres criados se ramificariam em duas vias: deveres anexos ou instrumentais à prestação e deveres de proteção.47 Logo, no total, seria possível enxergar três categorias distintas de deveres, assim arrumadas: (i) deveres de prestação principais e secundários;48 (ii) deveres anexos ou instrumentais aos deveres de prestação; e (iii) deveres de proteção contra danos relacionados ao negócio jurídico.49 Pela importância, releva mencionar o signo distintivo entre os deveres anexos e os de proteção – que está justamente na vinculação à prestação. No primeiro caso, tem-se os deveres que se referem à forma de prestar e, como tal, são sempre reconduzidos à ideia de prestação satisfativa, ou seja, aptos a resguardar o cumprimento da prestação atendendo às finalidades da relação. Já os segundos, independem da prestação, ao menos diretamente (vínculo mediato), e se concentram, exclusivamente, no cuidado voltado a evitar a ocorrência de danos à pessoa ou ao patrimônio do outro figurante.50 Essa última classe é cuidadosamente examinada e discriminada na obra de Judith Martins-Costa: Correspondem aos interesses de proteção: (a) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; (b) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares; e (c) os deveres referentes ao resguardo da esfera jurídica de terceiros eventualmente atingidos pelo contrato. Excepcionalmente, se apresentam, sob a forma de ônus jurídico, em relação à proteção da própria esfera de interesses do credor, implicando, porém, colaboração com interesses de terceiros.51 Ainda, oportuno atentar ao objeto de incidência desses deveres de proteção, a fim de averiguar em que medida integram a relação desenvolvida entre as partes. A esse respeito, nota-se que, diferentemente dos deveres de prestação (que, naturalmente, dependem da existência do negócio jurídico, capaz de fazer surgir a prestação), os deveres de proteção podem se mostrar presentes, além da fase contratual, na pré-contratual e na pós-contratual. Por certo, é plenamente possível que não haja o que prestar, mas exista interesse de proteção da esfera jurídica dos envolvidos.52 A despeito de todas essas considerações, retomando-se os exemplos preliminares desse capítulo (e as dificuldades ali sentidas), vê-se que, somente quando há violação relacionada a uma prestação, a larga abstração legislativa sobre a forma de prestar vem ao socorro para resolver confortavelmente a questão. Em outras palavras, a trajetória percorrida demonstra que os interesses de proteção, diversamente dos de prestação (sejam eles voltados aos deveres de prestação principais e secundários ou a deveres anexos), reclamam tratamento não alcançado pela disciplina dos vícios e da mora na legislação. Mais, uma refinação técnica do encadeamento de deveres e interesses permite afirmar que a lacuna identificada poderia, em tese, ser suprida por uma construção como a violação positiva do contrato, desde que considerados os parâmetros aqui apresentados (ainda que não haja um claro dado normativo nesse sentido).53 Aqui, outra vez mais, são esclarecedoras as lições de Judith Martins-Costa: Quem iguala ou confunde os interesses à prestação (inclusivos da obrigação principal, dos deveres secundários e dos anexos) com os interesses à proteção, tenderá a considerar que a figura da violação positiva do contrato é inútil entre nós, pois o conceito de mora no Direito brasileiro é amplo (Código 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 7/15 Civil (LGL\2002\400), art. 394), englobando tempo, lugar e modo da prestação. Essa posição é equivocada, pois tempo, lugar e modo atinem à prestação (interesses à prestação), sejam principais, secundários ou anexos, e não diretamente aos interesses à proteção (deveres laterais). É a violação desses interesses que é apanhada pela noção de violação positiva do contrato.54 Todavia, conforme se comentará adiante, além de a frequente referência à figura em âmbito jurisprudencial se mostrar desacompanhada de maior preocupação técnica (aumentando, com isso, o coro pelo seu suposto descabimento), o seu simples reconhecimento, ainda que sob preceitos teóricos adequados, não é suficiente para eliminar todas as muitas indagações que rondam o tema. 4 Os efeitos da admissão da violação positiva Em pesquisa subjacente a esse artigo, realizada em agosto de 2018, foram localizados, somente no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 284 julgados fazendo menção à expressão “violação positiva do contrato”. Por mais que as referências se contem às centenas, todas as decisões ocorreram a partir de 2006, a indicar, no mínimo, duas pertinentes conclusões: a matéria é ainda bastante nova na experiência dos tribunais (afinal, se está falando de pouco mais de uma década) e, por mais recente que seja, tem se reproduzido exponencialmente ao longo dos anos, a ponto de se poder afirmar, com segurança, que esse número rapidamente chegará à casa dos milhares. As duas observações levam a outra valiosa reflexão, sobretudo se considerado que a figura ainda não foi objeto de uma profunda e necessária análise pelo Superior Tribunal de Justiça, tanto com relação à sua efetiva compatibilidade com o ordenamento brasileiro, quanto no que toca às suas repercussões jurídicas. Diante de um assunto recente e que se espalha com tanta rapidez, é de se esperar dois caminhos: irá assumir, desde já, uma relevância condizente com os anseios sociais e a técnica jurídica ou será absorvido de forma equivocada, tornando-se refém, por longo tempo, do próprio vacilante tratamento, em bases frágeis (e dificultandoo discernimento do intérprete para aplicação adequada). Infelizmente, o cenário parece se inclinar ao segundo prognóstico. Essa assertiva é bem ilustrada por meio de dois recentíssimos julgados, um do Superior Tribunal de Justiça e outro do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O primeiro é o REsp 1.673.107/BA, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, no qual se afirmou que o atraso no cumprimento da prestação implicaria em violação a “dever de proteção e lealdade”: Com efeito, esta Corte possui precedentes no sentido de que o atraso injustificado e anormal na reparação de veículo pode caracterizar dano moral decorrente da má-prestação de serviço ao consumidor, pois gera a frustração de expectativa legítima deste, revelando violação do dever de proteção e lealdade (AgInt no AREsp 490.543/AM, 4ª Turma, DJe 18.04.2017; REsp 1.604.052/SP, 3ª Turma, DJe 26.08.2016).55 Com todo o respeito, não se nega a presença dos deveres de proteção e dos deveres de lealdade nas relações contratuais (esses últimos, abstratamente, integrariam a categoria dos deveres anexos à prestação), mas fato é que a hipótese de atraso mais se relaciona ao dever de prestação, atraindo, sem maiores dúvidas, a caracterização de mora (na própria literalidade do art. 394 do Código Civil (LGL\2002\400), pelo descumprimento da obrigação em viés temporal). A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em situação semelhante, é ainda mais sintomática, até pela explícita referência à violação positiva do contrato: O descumprimento pela ré dos deveres anexos à boa-fé objetiva, tendo praticado a chamada “violação positiva do contrato”, frustrando a legítima expectativa do autor de usufruir o veículo por ele comprado, permanecendo aguardando por meses a entrega do veículo que não foi efetuado, embora tenha pago à vista aproximadamente 62% do preço, configura falha na prestação do serviço, conduzindo à rescisão do contrato e à restituição simples do valor pago pelo consumidor.56 Aqui, verifica-se a mistura de conceitos específicos em matéria de obrigações, inclusive como se estivesse a tratar de um bloco conceitual único. Por mais que se entenda que os deveres seriam anexos à prestação (são impostos pela boa-fé objetiva, e não anexos a ela) e que a violação positiva do contrato não se ligaria, em regra, com a categoria de deveres anexos, o que mais sobressai é a equivocada menção à figura (talvez, até, como desacertado elemento de reforço), já que a hipótese descrita se ajustaria perfeitamente ao conceito de mora. Ao que parece, em um afã de robustecer a fundamentação do julgado, houve inadequada referência à violação positiva do contrato, perpetuando uma indesejada confusão quanto às delimitações técnicas de ambos os conceitos. Esses exemplos demonstram a conturbada visualização e aplicação prática da temática, com tendência, como se disse, a uma crescente replicação jurisprudencial. 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 8/15 A solução desse quadro, de fato, não é tão singela, dada à ausência de orientação normativa. Justamente por isso, as duas formas que despontaram para tentar desatar a questão, encerram, em algum grau, uma espécie de alargamento dentro do sistema. A se utilizar a via do inadimplemento, vislumbra-se um certo esforço de esticar o alcance (já abrangente) da mora, a um ponto tal de englobar hipóteses, que, a uma primeira vista, não aparentam ser moldadas a esse enquadramento (tal como os exemplos trazidos anteriormente). Em uma analogia simples, seria como vestir uma roupa com tamanho menor ao adequado.57 Por outro lado, a importação de uma figura estrangeira ao ordenamento traz inúmeras complicações, pois “não importa apenas seu reposicionamento, mas implica a redefinição de seu próprio conceito, de seu alcance e efeitos”.58 Sem prejuízo das dificuldades, considerando que a figura já encontra um elevado nível de inserção no direito brasileiro (e que, portanto, já se ultrapassou, para boa parte da doutrina e jurisprudência, a fase de admissão), julga-se que o caminho mais prudente seria esse último percurso, já em uma segunda e mais madura etapa, de esforço para aprimoramento técnico do emprego da figura. Sinteticamente, seria o caso de se conferir maiores balizas técnicas à violação positiva do contrato, permitindo a sua aplicação, mas tão somente no espaço a ela reservado (para reprimir violação a dever de proteção, conforme delineado no tópico anterior). Finalmente, mesmo em caso de aceitação da figura, é de se reconhecer duas últimas dificuldades, que, embaraçam sobremaneira a avaliação no caso concreto: a demarcação dos efeitos da violação positiva; e o regime de responsabilidade civil aplicável (se contratual ou extracontratual). Quanto aos efeitos, há razoável convergência no sentido de que o descumprimento de deveres de proteção apenas geraria, via de regra, a possibilidade de reivindicação de perdas e danos. A exceção fica por conta de hipóteses em que esse descumprimento se apresenta grave de tal modo a repercutir sobre a quebra da confiança, atraindo o próprio desinteresse na manutenção da relação. No entanto, nesse estágio, surgiria a configuração de inadimplemento absoluto, com direito à resolução da avença, além de indenização por perdas e danos.59 Por sinal, fenômeno similar ao que ocorre com a mora, no caso de o descumprimento no tempo, lugar ou forma provocar o desinteresse na continuidade do vínculo. Não menos discutido é o enquadramento da violação positiva em regime de responsabilidade civil (se contratual ou aquiliana). Do que se observa de maneira corrente, há recondução à lógica da responsabilidade contratual,60 com todas as implicações daí advindas.61 Todavia, não se pode deixar de mencionar relevantes ponderações doutrinárias acerca da possibilidade de uma disciplina híbrida, capaz de avaliar ponto a ponto o sistema que seria aplicável: A discussão em torno das repercussões práticas da internalização da violação positiva do contrato em nosso ordenamento vem sendo guiada por um mecanismo fechado, estanque e rígido: se os deveres são contratuais, a responsabilidade é contratual e normas sobre direitos da vítima, ônus da prova da culpa, solidariedade, contagem de juros e atualização monetária, competência e prescrição serão aquelas previstas para o regime contratual; se são deveres extracontratuais, a responsabilidade é aquiliana e somente as normas previstas para este regime serão aplicáveis. [...] Desta forma, o reconhecimento da “contratualidade” não serve para impor, automaticamente, a aplicação de todas as normas previstas para a responsabilidade contratual, como se fosse o encastelamento em um núcleo de normas isolado do restante do sistema. Cada uma dessas normas possui uma ratio própria dentro do sistema e o juízo de aplicação delas deverá ser analógico – como é todo juízo interpretativo – para verificar se aquela norma específica encontra razão de ser para aplicação naquela violação “positiva” in concreto. O intérprete deve ter em mente, por exemplo, que há um fundamento específico para se diferenciar a contagem dos juros na responsabilidade contratual e na extracontratual e que este fundamento não necessariamente é o mesmo fundamento para a diferenciação no tocante à inversão do ônus da prova, da solidariedade ou das opções da vítima. Deve compreender por que o legislador diferenciou os prazos prescricionais entre contratuais e extracontratuais – ou, na verdade, não diferenciou – para decidir se na hipótese da violação de deveres anexos se encontra presente por quê.62 Como se percebe, o reconhecimento da compatibilidade da figura com o ordenamento brasileiro é apenas um degrau de uma longa escada para a adequada aplicação da violação positiva, sendo ainda necessário árduo empenho – em sede doutrinária e jurisprudencial – para se desbravar as suas complexas implicações jurídicas, de modo a salvaguardar inteiramentea esfera de interesse das vítimas. 5 Conclusão 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 9/15 Atualmente, o tema da violação positiva do contrato (ou do crédito, como indica parte da doutrina) desperta fortes impressões aos que se dedicam à sua investigação técnica, com o surgimento de opiniões em diferentes direções, às vezes diametralmente opostas. A razão é compreensível, tendo em vista se cuidar de instituto estrangeiro – cuja necessidade é controvertida no próprio contexto em que apareceu, no direito alemão – e haver aportado aos estudos no Brasil em momento bastante recente, que data de poucas décadas. Isso, todavia, não retira, nem abrevia a grande urgência que se coloca quanto a um rigoroso aprofundamento das razões de compatibilidade da figura com o ordenamento jurídico nacional e das implicações da sua aceitação perante o sistema, principalmente em razão da avançada replicação do tema no cenário jurisprudencial, de forma ainda bastante tumultuada (sob um prisma eminentemente técnico). Para essa (intrincada) tarefa, entende-se que a metodologia mais conveniente é aquela que, sem descuidar de uma construção teórica amparada em arcabouço jurídico consistente, prestigia a ausência de brechas com relação ao cometimento de violações, por mínimas que sejam, isto é, não franqueia, de qualquer modo, espaço livre para a prática de atos contrários aos valores máximos do ordenamento. Com isso em mente, apesar de não ser fácil escolher um caminho e já considerando que todos suscitam significativas controvérsias, a trajetória que parece mais bem atender ao objetivo pretendido é aquela que encontra na violação positiva do contrato uma função particularmente importante dentro do direito brasileiro, voltada a preservar o interesse de proteção existente nas relações travadas, em complemento ao já abrangente papel do inadimplemento, absoluto e relativo, e ao amplo leque legislativo de vícios do negócio jurídico. O momento, portanto, à vista do avanço jurisprudencial sobre o assunto, completamente ao largo das agitadas discussões doutrinárias, recomenda menos polarização e mais convergência, para que melhor se compreendam as bases teóricas do instituto e se apontem as suas adequadas consequências, de modo a que os indivíduos sejam devidamente protegidos de eventuais danos provocados no curso das relações, como tradução da própria construção de uma sociedade “justa” – que, afinal, é um dos objetivos fundamentais da República.63 6 Referências ANDRADE, Daniel de Pádua; PEREIRA, Fabio Queiroz. Revisitando o papel da violação positiva do contrato na teoria do inadimplemento. Scientia Iuris, Londrina, v. 22, n. 1, p. 258-282, mar. 2018. COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. 8. reimp. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013. CUNHA, Lavínia Cavalcanti Lima. Cumprimento defeituoso: conceito, pressupostos e comparativo com a violação positiva do contrato. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 57, p. 80-95, jun.-jul. 2014. FRADERA, Véra Maria Jacob de. A quebra positiva do contrato. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), n. 44, nov. 1998. GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: DI FRANCESCO, José Roberto Pacheco (Org.). Estudos em homenagem ao Prof. Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989. HAICAL, Gustavo Luís da Cruz. O inadimplemento pelo descumprimento exclusivo de dever lateral advindo da boa-fé objetiva. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 900, p. 45-84, out. 2010. KONDER, Carlos Nelson. Boa-fé objetiva, violação positiva do contrato e prescrição: repercussões práticas da contratualização dos deveres anexos no julgamento do REsp 1.276.311. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 50, p. 217-236, abr.-jun. 2012. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015. MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001. OLIVEIRA. Ubirajara Mach de. Quebra positiva do contrato. Revista de Direito do Consumidor, v. 25, p. 39-56, jan.-mar. 1998. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Teoria geral das obrigações. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 2. PERLINGIERI, Pietro. Il fenômeno dell’estinzione nelle obbligazione. Camerino-Napoli: E.S.I., 1980. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil (LGL\2002\400). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 10/15 SAVI, Sérgio. Inadimplemento das obrigações, mora e perdas e danos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudo na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento – Adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 32, p. 3-27, 2007. SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2018. SCHREIBER, Anderson. O que é (e o que não é) o direito civil constitucional. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (Orgs.). Direito civil constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. SILVA, Rodrigo da Guia. Em busca do conceito contemporâneo de (in) adimplemento contratual: análise funcional à luz da boa-fé objetiva. Revista da AGU, v. 16, n. 2, p. 293-322, abr.-jun. 2017. STAUB, Hermann. Die positiven Vertragsverletzungen und ihre Rechtsfolgen, in Festschrift für den XXVI. Deutschen Juristentag, Berlim: J. Guttentag, 1902. STEINER, Renata Carlos. Complexidade intra-obrigacional e descumprimento da obrigação: da violação positiva do contrato. 2009. Dissertação (Mestrado em Direito das Relações Sociais) – Setor de Ciências Jurídicas. Universidade Federal do Paraná, Curitiba STEINER, Renata Carlos. Descumprimento contratual: boa-fé e violação positiva do contrato. São Paulo: Quartier Latin, 2014. STOLL, Heinrich. Abschied von der Lehre von der positiven Vertragsverletzung. Archiv für die civilistische Praxi, 136. Bd., p. 257-320, 1932. TEPEDINO, Gustavo. Novos princípios contratuais e teoria da confiança: a exegese da cláusula to the best knowledge of the sellers. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, t. II. TERRA, Aline de Miranda Valverde. A questionável utilidade da violação positiva do contrato no direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, v. 101, p. 181-205, set.-out. 2015. VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1997. v. 2. VIEIRA, Iacyr Aguilar. Deveres de proteção e contrato. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 761, p. 68- 93, mar./1999. ZIMMERMANN, Reinhard. Breach of contract and the remedies under the new german law of obligations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48. Roma: Centro di studi e ricerche di diritto comparato e straniero, 2002. 1 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001. p. 595. 2 Pesquisando sobre o assunto, é possível encontrar trabalhos acadêmicos específicos produzidos na década de 80 e 90, como é o caso de FRADERA, Véra Maria Jacob de. A quebra positiva do contrato. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), n. 44, nov. 1998; e OLIVEIRA, Ubirajara Mach de. Quebra positiva do contrato. Revista de Direito do Consumidor, v. 25, jan.-mar. 1998. p. 39-56. 3 SCHREIBER, Anderson. O que é (e o que não é) o direito civil constitucional. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (Orgs.). Direito civil constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. p. 13- 14. 4 Isso se percebe, por exemplo, em rápida comparação entrea posição de Judith Martins-Costa (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 690) e a presente em diversos julgados que admitem a figura no direito pátrio (entre tantos outros, desde já: TJRJ, 17ª CC, Ap. Cív. 0011885-41.2016.8.19.0003, rel. Des. Elton Martinez Carvalho Leme, j. 21.03.2018). 5 Sobre esse ponto, é possível fazer um cotejo entre a linha de argumentação de Aline de Miranda Valverde Terra (TERRA, Aline de Miranda Valverde. A questionável utilidade da violação positiva do contrato no direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, v. 101, set.-out. 2015. p. 181-205) e Lavínia Cavalcanti Lima Cunha (CUNHA, Lavínia Cavalcanti Lima. Cumprimento defeituoso: Conceito, Pressupostos e Comparativo com a Violação Positiva do Contrato. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 57, jun.-jul. 2014. p. 80-95). 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 11/15 6 GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: DI FRANCESCO, José Roberto Pacheco (Org.). Estudos em homenagem ao Professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 295. 7 “A reparação do dano injustamente causado constitui uma exigência de justiça comutativa, como já fora vislumbrado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, devendo ser a mais completa possível, o que se chama, modernamente, de princípio da reparação integral do dano” (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 34). 8 STAUB, Hermann. Die positiven Vertragsverletzungen und ihre Rechtsfolgen, in Festschrift für den XXVI. Deutschen Juristentag. Berlim: J. Guttentag, 1902. 9 “Ao analisar a disciplina do BGB na seara do cumprimento das obrigações, o autor concluiu que o legislador alemão apenas regulava expressamente a impossibilidade superveniente da prestação (§280) e a obrigação de indenizar pelos prejuízos decorrentes da mora (§286). Tal regime acabou sendo modificado com a reforma promovida pelo legislador alemão sobre o direito das obrigações em 2002. Originalmente, porém, o BGB não continha previsão específica para as hipóteses em que o descumprimento do contrato se desse de forma positiva, isto é, a despeito de ter ocorrido prestação tempestiva por parte do devedor, pois neste caso não se fazia possível a subsunção nem à impossibilidade absoluta nem à mora (entendida como o não cumprimento no tempo devido)” (SILVA, Rodrigo da Guia. Em busca do conceito contemporâneo de (in) adimplemento contratual: análise funcional à luz da boa-fé objetiva. Revista da AGU, v. 16, n. 2, abr.-jun. 2017. p. 306-307). 10 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1997. v. 2. p. 126-127. 11 STEINER, Renata Carlos. Descumprimento contratual: boa-fé e violação positiva do contrato. São Paulo: Quartier Latin, 2014. p. 206. 12 KONDER, Carlos Nelson. Boa-fé objetiva, violação positiva do contrato e prescrição: Repercussões práticas da contratualização dos deveres anexos no julgamento do REsp 1.276.311. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 50, abr.-jun. 2012. p. 226. 13 SILVA, Rodrigo da Guia. Em busca do conceito contemporâneo de (in) adimplemento contratual: análise funcional à luz da boa-fé objetiva, cit., p. 307. 14 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil, cit., p. 596-602. 15 STOLL, Heinrich. Abschied von der Lehre von der positiven Vertragsverletzung. Archiv für die civilistische Praxi, 136. Bd., 1932. p. 257-320. 16 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 19-20. 17 Tradução livre: “Se o devedor não cumprir com um dever gerado por uma obrigação, o credor poderá demandar indenização pelos danos causados por essa ofensa. Isso não se aplica se o devedor não for responsável pela violação do dever” (ZIMMERMANN, Reinhard. Breach of contract and the remedies under the new german law of obligations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48. Roma: Centro di studi e ricerche di diritto comparato e straniero, 2002. p. 18, tradução livre da versão em inglês). 18 KONDER, Carlos Nelson. Boa-fé objetiva, violação positiva do contrato e prescrição: Repercussões práticas da contratualização dos deveres anexos no julgamento do REsp 1.276.311, cit., p. 218-219. 19 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato, cit., p. 268. 20 Disponível em: [http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/670]. Acesso em: 09.08.2018. 21 KONDER, Carlos Nelson. Boa-fé objetiva, violação positiva do contrato e prescrição: Repercussões práticas da contratualização dos deveres anexos no julgamento do REsp 1.276.311, cit., p. 226. 22 É o que menciona Gustavo Haical, ao citar, entre outros, Pontes de Miranda e Karl Larenz: “Pontes de Miranda, com a perspicácia e agudeza de espírito que lhes eram peculiares, sustenta, em duas passagens de notável parecer (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Parecer 158: sobre adimplemento ruim por parte de advogado e prescrição de ação de honorários. Rio de Janeiro: 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 12/15 Francisco Alves, 1976. p. 164), que não se pode falar em violação positiva do contrato, mas sim, em violação positiva do crédito, pois não somente créditos derivados de contrato podem ser descumpridos, mas também créditos advindos de outras espécies de fatos jurídicos. Desse modo, afirmava: Se bem que HERMANN STAUB se referisse, apenas, à violação positiva do contrato (= dos créditos oriundos de contratos), deve-se dizer violação positiva do crédito, porque há créditos, não provenientes de contratos, que podem ser positivamente violados (grifos do autor). Do mesmo modo, LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones, cit., t. I, p. 366-367. GOMES, Orlando. Inexecução contratual positiva. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 1980. p. 162. FAVALE, Rocco. Premessa. In: STAUB, Hermann. Le violazione positive del contratto. Trad. Giovanni Varenese. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2001. p. 14” (HAICAL, Gustavo Luís da Cruz. O inadimplemento pelo descumprimento exclusivo de dever lateral advindo da boa-fé objetiva. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 900, out. 2010). 23 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa-fé no direito civil, cit., p. 596-597. 24 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo, cit., p. 357. 25 “Mora é demora, atraso, impontualidade, violação do dever de cumprir a obrigação no tempo devido. Pelas infrações relativas ao lugar e à forma do pagamento também responde o devedor, mas, tecnicamente, não configuram mora. Deve-se reservar o vocábulo para designar unicamente o atraso, contrário ao direito na efetivação do pagamento” (GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 202). 26 Confira-se o relevante teor do art. 394 do Código Civil: “Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.” 27 COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. 8. reimp. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013. p. 10-11. 28 Sobre o tema, recomenda-se SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento – Adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 32, 2007. p. 3-27. 29 PERLINGIERI, Pietro. Il fenômeno dell’estinzione nelle obbligazione. Camerino-Napoli: E.S.I., 1980. p. 21. 30 TERRA, Aline de Miranda Valverde. A questionável utilidade da violação positiva do contrato no direito brasileiro, cit. 31 “É, portanto, neste sentido que se deve entender a prestaçãocomo prestação satisfativa: a prestação capaz de satisfazer os interesses do credor, identificada no comportamento do devedor dirigido à execução do dever principal de prestação, bem como dos vários deveres de conduta que lhe são impostos. A funcionalização da relação obrigacional conduz ao alargamento do objeto, que passa a ser estabelecido não apenas pela vontade das partes, mas também pela sistemática obrigacional” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. A questionável utilidade da violação positiva do contrato no direito brasileiro, cit.). 32 Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor. Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas. 33 Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito. 34 Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos. Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega. 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 13/15 35 Ressalva-se, aqui, a posição daqueles que igualmente rejeitam a figura, mas entendem que a responsabilidade civil extracontratual abarcaria as hipóteses de incidência da violação positiva do contrato. Sobre o ponto: CUNHA, Lavínia Cavalcanti Lima. Cumprimento defeituoso: conceito, pressupostos e comparativo com a violação positiva do contrato. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 57, jun.-jul. 2014. p. 80-95. 36 “Dois fatores depõem contra a importação da violação positiva do contrato ao direito brasileiro. Primeiro fato é a amplitude da nossa definição legal de mora, a qual, como se viu, transcende a mera questão temporal para abranger a não realização de um pagamento ‘no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer’ (art. 394), podendo-se extrair da alusão à forma a interpretação de que somente se considera efetuado o pagamento quando efetuado no modo devido, ou seja, quando bem efetuado, tudo a revelar que o mau cumprimento da prestação configura, entre nós, mora, ao menos enquanto puder ser corrigido. O segundo fator é a existência entre nós de uma disciplina normativa do cumprimento inexato em setores específicos do nosso Código Civil: ora em termos mais gerais, como nos vícios redibitórios (arts. 441-445), ora em tipos contratuais determinados, como nos contratos de empreitada e de transporte (arts. 618, 754 etc.)” (SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 357). 37 ANDRADE, Daniel de Pádua; PEREIRA, Fabio Queiroz. Revisitando o papel da violação positiva do contrato na teoria do inadimplemento. Scientia Iuris, Londrina, v. 22, n. 1, mar. 2018. p. 277-278. 38 STEINER, Renata Carlos. Descumprimento contratual: boa-fé e violação positiva do contrato, cit. p. 203. 39 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil, cit., p. 599. 40 COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo, cit., p. 41. 41 Idem, ibidem. 42 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa-fé no direito civil, cit., p. 604. 43 É o que menciona Renata Carlos Steiner: “Assim, acaso ligados, de alguma forma, à relação obrigacional, a violação dos deveres de proteção deve ser considerada violação positiva do contrato, e não simplesmente fundamento da responsabilidade civil aquiliana” (STEINER, Renata Carlos. Complexidade intra-obrigacional e descumprimento da obrigação: da violação positiva do contrato. 2009. Dissertação [Mestrado em Direito das Relações Sociais] – Setor de Ciências Jurídicas. Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 83-84). 44 No direito brasileiro, a categorização se deve, em larga medida, a Jorge Cesa Ferreira da Silva, que estudou cada uma das hipóteses a seguir, para, então, afirmar a aplicabilidade da figura em território nacional: (i) descumprimento de obrigações negativas; (ii) descumprimento de deveres laterais; (iii) mau cumprimento de deveres de prestação gerando danos distintos dos causados pela mora ou pelo inadimplemento absoluto; (iv) descumprimento de dever de entrega em contrato de fornecimento sucessivo; e (v) recusa antecipada do devedor em cumprir a obrigação (SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 230-265). 45 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 46 TEPEDINO, Gustavo. Novos princípios contratuais e teoria da confiança: a exegese da cláusula to the best knowledge of the sellers. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. t. II. p. 252. 47 “A teoria da violação positiva do contrato permitiu que, mais tarde, outro jurista alemão, Heinrich Stoll, sustentasse haver, além dos deveres de prestação (Leistungspflichten), os de proteção (Schutzpflichten)” (HAICAL, Gustavo Luís da Cruz. O inadimplemento pelo descumprimento exclusivo de dever lateral advindo da boa-fé objetiva, cit.) 48 Para maior aprofundamento nessa espécie, recomenda-se a leitura do tópico 2.1 de HAICAL, Gustavo Luís da Cruz. O inadimplemento pelo descumprimento exclusivo de dever lateral advindo da boa-fé objetiva, cit. 49 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado critérios para a sua aplicação, cit., p. 220. 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 14/15 50 “Estes [deveres anexos] são aqueles insertos também nos interesses de prestação, mas de forma anexa ao dever principal. Como sua denominação indica, atuam para otimizar o adimplemento satisfatório, fim da relação obrigacional. São deveres que não atinem ao ‘que’ prestar, mas ao ‘como’ prestar. [...] diferentemente dos deveres de prestação, os deveres de proteção não têm por escopo favorecer o interesse do credor à prestação, mas sim o seu interesse à integridade de sua esfera jurídica que é também um interesse derivado da relação. [...] Seu escopo é a proteção contra danos causados em razão da relação obrigacional, proporcionando ‘uma função auxiliar da realização positiva do fim contratado e de proteção à pessoa ou aos bens da contraparte contra os riscos de danos concomitantes’ e servindo ‘ao interesse da conservação dos bens, patrimoniais ou pessoais, que podem ser afetados em conexão com o contrato’” (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé... op. cit., p. 222-224). 51 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado critérios para a sua aplicação, cit., p. 546. 52 Idem, p. 225-226. 53 Sobre isso, confira-se Renata Carlos Steiner: “Tomando o BGB de 1900 como paradigma, afirmou o autor [Hermann Staub], em excerto que, sem reparos, pode ser aplicado ao panorama jurídico brasileiro, que ‘em que pese não possa [o fundamento jurídico] ser extraído diretamente da lei, pode ser fundamentado indiretamente com ajuda de lei’” (STEINER, Renata Carlos. Descumprimento contratual: boa-fé e violação positiva do contrato, cit. p. 206). 54 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado critérios para a sua aplicação, cit., p. 690. 55 STJ, 3ª T., REsp 1.673.107/BA, rel. Min. Nancy Andrighi,j. 21.09.2007. 56 TJRJ, 17ª CC, ApCiv 0011885-41.2016.8.19.0003, rel. Des. Elton Martinez Carvalho Leme, j. 21.03.2018. 57 A despeito disso, veja-se a posição de Daniel de Pádua Andrade e Fabio Queiroz Pereira sobre as consequências de se conformar as hipóteses à disciplina do inadimplemento na legislação: “Do ponto de vista prático, esse enfoque permite que o resguardo dos bens patrimoniais e extrapatrimoniais dos contratantes deixe de pertencer ao instituto autônomo da violação positiva do contrato e passe a integrar a estrutura do inadimplemento absoluto e da mora. Dessa forma, a tutela dos interesses obrigacionais à proteção, hoje baseada exclusivamente na boa-fé objetiva e em interpretações analógicas, poderá contar com o arcabouço normativo tradicionalmente aplicado na defesa dos interesses obrigacionais à prestação. Exemplificativamente, o descumprimento dos deveres de proteção poderá ensejar, conforme o caso, as repercussões já assentadas para o caso de inobservância dos deveres de prestação (perdas e danos, juros, atualização monetária, honorários de advogado, oponibilidade de exceção do contrato não cumprido, faculdade de resolução contratual etc.)” (ANDRADE, Daniel de Pádua; PEREIRA, Fabio Queiroz. Revisitando o papel da violação positiva do contrato na teoria do inadimplemento. Scientia Iuris, Londrina, v. 22, n. 1, mar. 2018. p. 279). 58 KONDER, Carlos Nelson. Boa-fé objetiva, violação positiva do contrato e prescrição: Repercussões práticas da contratualização dos deveres anexos no julgamento do REsp 1276311, cit., p. 219. 59 “Portanto, considera-se que, pelo fato de a figura da violação positiva do crédito no Direito brasileiro só abranger o descumprimento de deveres laterais insertos no núcleo dos interesses de proteção, e, por não estarem esses deveres diretamente vinculados aos interesses de prestação, a violação positiva do crédito tão só dará azo ao direito às perdas e danos. Se, contudo, for afetada substancialmente a confiança ou o interesse de manter o vínculo obrigacional, pelo descumprimento de dever lateral inserto no interesse de proteção, advirá ao credor o direito de resolução ou a justa causa à denúncia cheia. Entretanto, consideramos que, em tal caso, dar-se-á a transformação da violação positiva do crédito em inadimplemento absoluto, porque só por meio dessa espécie de inadimplemento passa a existir ao credor ou direito formativo extintivo de resolução lato sensu ou uma justa causa (quando prevista na lei ou no contrato) ao exercício do direito formativo extintivo de denúncia (denúncia cheia)” (HAICAL, Gustavo Luís da Cruz. O inadimplemento pelo descumprimento exclusivo de dever lateral advindo da boa-fé objetiva, cit.) Nesse mesmo sentido, MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado critérios para a sua aplicação, cit., p. 691-692. 60 É esse, exemplificativamente, o contundente entendimento de Renata Carlos Steiner, que inclusive estende esse regime a terceiros que não fizeram parte do negócio jurídico: “Importa sublinhar, no entanto, que o regime de responsabilidade civil aplicável é, sem dúvida, aquele contratual. Cabe à parte lesada unicamente indicar o descumprimento do dever e os danos daí decorrentes, presumindo- 11/02/2019 Envio | Revista dos Tribunais https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 15/15 se a responsabilidade (culposa ou não) da contraparte [...] Por fim, ainda tendo em vista as peculiaridades da responsabilidade civil advinda da violação positiva, há se notar que o regime contratual é aplicável também a terceiros não contratantes. A conclusão chega-se pelas peculiaridades dos deveres de conduta violados, os quais, conforme já se teve oportunidade de ressaltar, não estão adstritos apenas àqueles diretamente envolvidos no negócio jurídico” (STEINER, Renata Carlos. Descumprimento contratual: boa-fé e violação positiva do contrato, cit. p. 244). 61 “Isto porque, no momento em que se admite tal contratualidade, em caso de inadimplemento de deveres instrumentais vinculados à realização da prestação, o prejudicado pela violação positiva do contrato, ao invés de receber tão somente indenização pelos prejuízos sofridos, poderá se valer de instrumentos de direito contratual como, por exemplo, a exceção de contrato não cumprido ou o direito de resolução pelo inadimplemento” (SAVI, Sérgio. Inadimplemento das obrigações, mora e perdas e danos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudo na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 477). 62 KONDER, Carlos Nelson. Boa-fé objetiva, violação positiva do contrato e prescrição: Repercussões práticas da contratualização dos deveres anexos no julgamento do REsp 1.276.311, cit., p. 235-236. 63 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
Compartilhar