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MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ DIOGO LUNA MOUREIRA AUTONOMIA PARA MORRER EUTANÁSIA, SUICÍDIO ASSISTIDO E DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE Belo Horizonte 2012 vuUwwWkwl Copyright © 2 0 1 2 Editora Del Ray ttdo. Nenhum a port© deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a permissão, por escrito, da Editora* Impresso no Brasil | Printed in Brazil EDITORA DEL REYLTDA. vvwv.llvfariod0lrey.e0m.br Ecttfort Amolda Oliveira Editor Adjunto: Ricardo A. Motheiros Fiuzc Editora Assistente: Wano:lca Djniz Coordenação Editorial: Lotlcia Moves Díogramação: Roginoldo César Pedrosa Revisão: Rosponsobítidode dos autores Capa: tadopondânda Comunicação Editora / M G ' Av. Contorno, 4355 — Funcionário; Belo Horlzonte-MG - CEP 30110-027 Td: (31) 3284-5845 editoro@dolreyonl1ne,com.br Conselho Editorial: Allco do Souza Birchol Antônio Augusto Cançodo Trindade Antonio Augusto Junho Anoatoalo Amido Plínio Gonçolvoa Carlos Alborto Ponno R. do Carvalho Cofao do Magafhâas Pinto Dolmar Pimento Edolborto Auguato Gomeo Uma Edéo k> Fernandes Fernando Gonzaga Joyme Honmos Vllchoz Guerrero José Adórclo Lotto Sampaio José Edgand Ponno Amorlm Pereiro Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior MIsabel Abreu Machado Dorzl Plínio Salgado Rónan Kfurl Lopoo Rodrigo do Cunha Porolra Sérgio LdUa Santiago Sá, Mario do Fátima Freire de. S I 11 a Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e diretivas antecipadas de vontade. / Maria de Fátima Freire de Sá e D iogo Luna Moureira. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. 248p. ISBN 978 -85-384-0237-4 Conteúdo: Em busca dos fundamentos da autonomia para morrer: moralidade e pessoalidade; Pessoalidade, dignidade humana e os direitos da personalidade; Vida, sobrevida e morte: aspectos problemáticos de uma constante dialogicldade; Uberdade e igualdade: da crise de titularidade dos direitos à superação da inacessibilidade dos seus objetos; O modo de encarar a morte na visão das grandes religiões do mundo; A autonomia para morrer no direito comporado; A busca pela efetivação normativa da autonomia para morrer; Concíusão, 1. Eutanásia. 2. Princípio do dignidade do pessoa humana, í. Moureira, D iogo Luna. il. Título. CDU: 343.611 Bibliotecária responsável: Nilcóia Lage de Medeiros CRB/6-1545 “Il tema del morire si precisa e si scompone. Vivere e morire si awicmano fino a sovrapporsi. Morire con dig- nità e morire bene non sono semplici formule descrittive, ma situazioni esistenziali sempre piü declinate in termini di diritti della persona. [„J La dignità del morire rimanda cosi a dinamiche sociali sempre più intricate, e rivela una ormai ineliminabile radicfe tecnologica. L 'artificio accom pagna il morire e, irresistibilmente, pone la questione del perché V artificio, tenacemente difeso di fronte alla morte, dunque per mantenere la vita, viene poi respinto quando vuol rendere possibile la nascita, dunque il dare la vita,” (RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milão: Feltrinelli, 2009, p. 249) Para meus pais, Joel e Myriam, que, no sofrimento, me ensinaram a esperança. Ao enfrentarem o processo do morrer me ensinaram a viver Partiram . Romperam o tempo; venceram o silêncio e a doença Quem sabe, recobraram o sorriso fá c il e hoje se utilizam dele para construir, juntos, o merecido descanso. Para todo o sem pre e para sempre. Enfim ,. Maria de Fátima Para as minhas amadas avós Maria das Dores Vieira tu n a e Alfredina Dias Moureira, uma singela ho menagem ao amor maternal a mim ofertado com tanto esmero, dia após d ia ., desde sempre! Amo vocês! Diogo vii Sum ário ESTUDO PRÉVIO............................... xiii INTRODUÇÃO.............................................................. 1 EM BUSCADOS FUNDAMENTOS DA AUTONOMIA PARA MORRER: MORALIDADE E PESSOALIDADE 1. Introdução..... ........... ............................................................,................. 5 2. A moralidade moderna e as premissas para a compreensão da realização da pessoalidade como produto da autonomia.......... ..............13 3. A construção da pessoalidade como projeto da contemporaneidade .......29 4. A possibilidade normativa de construção e efetivação da pessoalidade 32 PESSOALIDADE, DIGNIDADE HUMANA E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE 1# Dignidade do homem, pessoalidade e a busca por direitos....................43 2. Pessoalidade e direitos da personalidade...... ........................ ................ 49 3. A dignidade da pessoa humana e a Constituição da República de 1988..56 4. A teoria geral dos direitos da personalidade e a teoria do direito geral de personalidade............................................................................58 5. Classificações dos direitos da personalidade.................................... .....62 6. Características dos direitos da personalidade?.!............................... ..... 65 VIDA, SOBREVIDA E MORTE: ASPECTOS PROBLEMÁTICOS DE UMA CONSTANTE DIALOGICIDADE h Vida e sobrevída........... ............................... ....................... ...*....,»..*.*....69 1.1 Mudança de paradigma: o direito à vida digna..,.................. ».... ..„71 ix 1.2 Vida digna nas suas diversas características...... ,.....,........„„.... 1.3 A relação médico-paciente. Paciente tenninal..... „„„„„„„„„„„„„„.„11 2. A Morte e o direito „„„........................ ..........,................................,„...83 2.1 Eutanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido......... ................87 LIBERDADE E IGUALDADE: DA CRISE DE TITULARIDADE DOS DIREITOS À SUPERAÇÃO DA INACESSIBILIDADE DOS SEUS OBJETOS L Introdução................................................................................................. 93 2. Exaustão da igualdade e crise da titularidade dos direitos pela impossibilidade de desfrute........................................ .......................,.... .95 3. Mecanismo de superação da inacessibilidade ao objeto dos direitos: o exercício da liberdade....................................................................... 99 3.1 Os dois modos diversos de atuação da liberdade.............................. 100 3.2 A liberdade segundo Kant............................................ 101 ~ 3.3 O conceito de liberdade segundo Hans Kelsen............. ....................106 4. A liberdade na escolha do morrer.......................:...................................108 O MODO DE ENCARAR A MORTE NA VISÃO DAS GRANDES RELIGIÕES DO MUNDO 1. Introdução............................................................................................... 113 2. Aspectos históricos e culturais.................................................... 114 2.1 O judaísmo...........................................................................................114 2.2 O budismo................................................................ 117 2.3 O islamismo............................................ ........................ ,.................122 2.4 O cristianismo......................................................................... 124 A AUTONOMIA PARA MORRER NO DIREITO COMPARADO 1. Estados Unidos da América........................................................ ..129 1.1 Vida e morte.................................................................................... 136 1.1.1 O significado da morte................. ............................................ ....138 1.1.2 Santidade e auto-interesse .................................. ......... ...... ........141 x 1.1.3 Autonomia, beneficência e dignidade, . L h S J Autonomia...................................................„„„„„„.„„„„„„,,,.145 L 2 J J Beneficência............ „„„.„146 1 J J J Dignidade ............................................... .................................147 L2 Minimalisrao jurídico: para os americanos, Leaving things undecided...................................................................... 148 2. Holanda............ 151 A BUSCA PELA EFETIVAÇÃO NORMATIVA DA AUTONOMIA PARA MORRER 1. A efetivação normativa da pessoalidade: a morte como possibilidade autobiográfica..........................................................................................161 2. O exercício da autonomia por indivíduo capaz de se autodeterminar: o caso Chantal Sébire..... ........................................................................163 3. A capacidade de autodeterminação dos incapazes: o caso Hannah Jones..... 168 4 .0 exercício da autonomia de autodeterminação via reconstrução judicial da vontade....... .................................. ........................... .*.......... 173 4.1. O caso ElunaEnglaxo..................... 173 4.2. O casoTeiri Schiavo...............................................*........................ 180 5. Autonomia prospectiva: as diretivas antecipadas de vontade e suas possibilidades normativas............................................................... 183 5.1. O panorama jurídico espanhol.................................. 184 52 . 0 panorama jurídico francês......................... 189 5.3.0 panorama jurídico brasileiro................................................ ........191 6 .0 exercício da autonomia para morrer face o direito brasileiro...........191 CONCLUSÃO...... ...................................................... 201 BIBLIOGRAFIA............................................................ 207 xi Estudo Prévio A M orte 1. INTRODUÇÃO Palavra pesada. Outro dia assisti na TV a um documentário interessante. O tema era o prolongamento da vida. Segundo o filme, existem pesquisas em andamento, financiadas por magnatas nortea- mericanos, que apontam para a possibilidade do prolongamento da vida humana em até 500 anos em um futuro próximo. No filme, um magnata é entrevistado em sua limusine sobre a questão. A pergunta se refere ao acesso a esta tecnologia. Como faríamos em um mundo onde as pessoas não morressem mais e não parassem de nascer? Este mundo ficaria superpovoado. O magnata, sem hesitar, responde com um sorriso no rosto: “esta tecnologia não é para todos. Apenas as pessoas essenciais terão acesso a ela.” Sem dúvida ele se considera essencial. Ao final do documentário é mostrada uma família que mora no campo, na França. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, adul tos e idosos em uma mesa com comida e bebida. Perguntada sobre a possibilidade de viver 500 anos, a pessoa mais idosa à mesa, uma senhora forte e alegre, responde: “jamais. Tudo tem seu ciclo, sua vez, devo partir para permitir que outros vivam”. O que mais me chamou atenção para a hipótese de prolon gamento da vida foi a possibilidade psicológica de resistir a qui nhentos anos de vida. Talvez uma pessoa excessivamente egoísta ou um psicopata consiga viver quinhentos anos. Uma sociedade onde a vida tenha a expectativa de 500 anos, outros valores serão construídos para sustentar este exagero. Será que os riscos corridos aos vinte anos com uma expectativa de oitenta seriam corridos aos cem com uma expectativa de quinhentos? Viveríamos atemoriza dos pela hipótese de deixar de viver os quatrocentos anos que faltam e assim viveríamos menos do que os cinquenta bem vividos intensa mente? Quinhentos anos de monotonia e medo substituiriam setenta anos bem vividos? Como suportar a perda de uma pessoa amada aos cinquenta com a expectativa de oitenta e outra aos cinquenta com a expectativa de quinhentos? E se a pessoa amada morrer mais cedo ainda? Como guardar lembranças de experiências, frustrações, sau dades, perdas e ganhos dos quatrocentos e cinquenta anos vividos? "Viver quinhentos anos talvez seja efetivamente para os egoístas que financiam esta pesquisa. A nossa estrutura psicológica e cultural, nos sa relação com a vida e as pessoas, com as perdas e ganhos terão que ser completamente revistas para suportar quinhentos anos. O proble ma de que estas pessoas egoístas vivam quinhentos anos é que elas poderão sugar nosso trabalho, nossa vida, por mais tempo. A questão da morte tem sido tratada pela literatura e o cinema de forma muito interessante e inteligente. É claro, há muito tempo. A morte pode ser muito bem vinda em determinados , momentos. O medo da morte, o medo do desconhecido e o medo do nada. Efetivamente não faz sentido ter medo do nada, pois no nada não existimos e, logo, não sofremos. O medo seria do desconhecido, mas talvez o nada assuste mais, pela difícil compreensão da não existência para quem existe. Para pensar e discutir o tema, uma obra-prima do cinema. O filme “A morte cansada” é do diretor alemão Fritz Lang, um filme mudo produzido na Alemanha em 1921. Não tenha preconceito de filme antigo, é muito bom. Neste filme a morte se sente rejeitada e cansada; quer ser amada. Chegando em uma pequena cidade da Ale manha, a morte se estabelece em um terreno perto do cemitério e leva um jovem que estava prestes a se casar. Com a morte de seu amado, a jovem desesperada toma veneno para encontrar com a morte e tentar convencê-la a devolver seu amado. A morte então propõe um acor do: a jovem apaixonada terá três chances para evitar a morte de três amantes em três lugares diferentes: a Pérsia; Veneza e a China. No mesmo sentido, a morte rejeitada e desejosa de ser amada entra em greve no sensacional livro de José Saramago: “As inter mitências da morte”. E na ciência? Ora, a dura ciência com suas certezas incertas, com sua arrogância infantil, muito mais nova que a arte e a vida, a ciência precisa aprender a lidar com a vida e a morte. Pensava outro dia que nos tempos atuais de crise profunda expulsamos o amor do nosso cotidiano, das coisas “sérias”; da Universidade; das pesquisas com pretensão de encontrar verdades inabaláveis (que ainda acreditam existir); da administração do Estado, da empresa, da casa, e outros assuntos sérios como economia e política onde não há espaço para falar de amor. Ora, que coisa piegas e pouco científica é o amor. Mas como falar de vida e morte sem falar de amor? Entretanto o amor, nos tempos vividos, se encontra refugia do na poesia, um pouco na literatura (cada vez menos), um pouco no cinema (esparsos). Exilado, o amor só é lembrado na poesia, que longe de contar a vida, conta cada vez mais a saudade. Mas deixemos de poesia. Como tratar a morte na ciência? Um ponto de partida, um pressuposto teórico fundamental consiste na percepção de que a morte é para nós algo flutuante, em permanente mudança, e as formas pelas quais a encaramos são da mesma forma mutantes. Daí que toda ciência que queira tratar dela (assim como a vida) deve permanentemente dialogar com a história, a cultura, o contexto e a diversidade. Neste sentido, um pressuposto teórico é a percepção de que todos os seres vivos, que toda a vida, e claro, nós, somos seres autopoiéticos (e não necessariamente; infelizmen te talvez; poéticos). A percepção de que somos seres históricos (o direito natural e outras naturalizações das ciências sociais são graves distorções ideológicas), contextualizados; mutantes e agentes, também, desta mudança, é a condição primeira para qualquer diálogo com a vida e com a morte. O pressuposto de que as verdades são construções históricas diversas, localizadas no tempo e no espaço não pode ser afastado. Não há, pois, universalismo genérico possível para cuidar do assun to. Como nos lembra Alain Badiou1, o universalismo é possível, e este se constitui na nossa capacidade de amar. No mais, o univer- * f BADIOU, Alain. São Paulo, São Paulo: Editora Boitempo, 2009. XV salismo se constrói na diversidade de cada vida; cada pessoa; cada família; cada bairro; cada comunidade; cada região; cada país; cada continente. Se não levarmos em consideração as complexidades e humanidades de cada caso concreto, com todo o seu entorno e di versidade, a vida e a morte serão mal tratadas. Poderia, e talvez deveria, enceirar aqui minha participação nesta obra, mas para ser um pouco mais científico e menos poético ou filosófico, convido o leitor para pensarmos um pouco sobre au- topoiesis. Afinal, estamos, até onde é possível, por enquanto, saber; condenados a nós mesmos. 2. SOMOS SERES AUTOPOIETICOS O real existe. O mundo ocidental vem se reencontrando com o seu passado, quando oriente e ocidente, materialismo e espiritua lismo não eram cuidadosamente separados. Em um destes reencon tros, a ideia de autopoiesis, como essencial à compreensão da vida, é retomada. Um destes reencontros está na obra de dois biólogos chilenos, Humberto Maluiana e Francisco Varela, que após experi ências com a visão de animais reconstroem o conceito de autopoie sis como condição de qualquer ser vivo. Um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos ne cessariamente, enquanto seres vivos, autorreferenciais e autorrepro- dutivos, e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais. Humberto Maturana e Francisco Varela2 trouxeram uma im portante reflexão no sentido de que, a partir da compreensão da vida na biologia, é possível resgatar a ideia de autorreferência apli cável a todo conhecimento.3 2 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. El Arbol Del Conoscímiento. Undécima edición. Santiago do Chile: Editorial Universitária, 1994. 3 No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: “Nosotros ten demos a vivir tin mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de Ia manera que Ias vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener otra alternativa. Es nuestra situación co- XV2 Estudando a aparelho ótico de seres vivos4, os cientistas vira ram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, estava na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo. A partir desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser óbvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências du rante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignoran do o papel do observador na construção do resultado. O fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existe como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes. Assim , para percebemos visualmente, ou seja, para interpretar mos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber muitas cores, texturas, profundi dades, mas que não é capaz de perceber outras coisas, ou ainda, por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algu mas imagens ou cores. O nosso olhar não é uma janela aberta para o mundo, mas uma construção interpretativa de nosso cérebro. tídiana, nuestra condición cultural, nuestro modo comente de humanos.” Prosse guindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: “Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer en la tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit p. 5. 4 Nas páginas 8 e 9 do livro “EI arbol do conoscimiento”os autores propõem aos leitores experiências visuais que nos demonstram facilmente como a nos sa visão pode nos enganar, revelando q que não existe e não revelando o que esta lá, Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo dife rente mostra como o círculo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosa do. Ao final nos faz uma afirmativa contundente e importante para tudo que dizemos aqui; “el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit, p. 8. Outras lentes ou instrumentos de compreensão colocam-se entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos se res submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a ale gria, e assim passamos a perceber^e interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes, excitados, ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. E como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fetos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo feto ocorre uma vez que cada observa dor é um mundo, um sistema autoireferencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na va- loração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percep ção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos. Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está con dicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos. Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumen tos decodificadores que, ao mesmo tempo em que nos revela um mun do, esconde outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como morte, liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre há cinquenta ou cem anos. A relação com a morte, o sentimento de perda, a percepção de sua relação com a vida também muda no tempo e no espaço, em cada cultura. O senti mento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um detenninado momento do tempo possamos com partilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis. Somos seres autopoiéticos (autorreferenciais e autorreproduti- vos) e não há como fiigir deste fato. Entre nós e o que está fora de xvíií nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chama« mos de realidade, Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo. A linguagem e a série de conceitos que ela traduz são nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e com preensões (que se transformam em pré-compreensões que carre gamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado. Assim não podemos falar em uma única verdade. Não há ver dades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado5. Este universo de relatividade se contrapõe aos dog mas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da au- topoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades ab solutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia. 3. CONCLUINDO Finalmente, para falarmos de vida e de morte, é necessário dialogarmos com outro filósofo importante na contemporaneidade: Giorgio Agamben. Para falarmos de vida e de morte é necessário dessacralizar estas palavras tão importantes, que ocultam e revelam ideias tão variadas. O que é dessacralizar a morte. Vamos até Giorgio Agamben. Agamben6 faz uma importante reflexão a respeito da constru ção das representações e da apropriação dos significados, o que o * * 5 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. * AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris: Editora Payot et Rivages, 2005. As reflexões c interpretações livres desenvolvidas neste tópico são todas a partir do texto do filósofo Giorgio Agambem. xix autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas as palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica, O autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas, Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas, A subtração do livre uso é uma for ma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibili- dade da coisa consagrada. Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pesso as. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, e, logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão condicionados a um uso específico separado das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega sig nificados aprisionados, sacralizados. Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e co mum, a função da religião é de separação. A religião para o autor não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) deve ser ob servada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Re- ligio não é o que une os homens aos deuses, mas, sim, aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício. O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito, que simboliza um mito, que o profano se transfor ma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos onde ocorre a passagem para outra esfera: a esfera separada. Um ritual sacraliza e um ritual pode devolver ou restituir a coisa (ideia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio pode restituir o sagrado ao profano. A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito junta XX mente com o rito cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, ideias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de di álogo. A religião como separação, como sacralização, há muito inva diu a ciência; a política; a economia e as relações de poder na socie dade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma ideia sacralizada a toda a popula ção. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racio nalidade discursiva, pois qualquer tentativa de questionar o sagrado é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois para eles este diálogo é um sa crilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo. Este recurso está presente no poder do estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a orde nação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo contemporâneo que várias pessoas que frequentam um curso superior hoje não preten dem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos, mas, sim, para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para, no final, passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adqui rido no decorrer de um processo, que deveria ser transformador, perde importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma). Como resistir a perda da liberdade? Como resistir à sacrali zação das relações sociais, econômicas e logo à perda da possibi lidade de fazer diferente, de fazer livremente o uso das coisas, das palavras, das ideias? Como se opor à subtração das coisas ao livre uso? Como se opor à sacralização de parte importante de nosso mundo, de nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar xxi esta possibilidade de libertação é “negligência” que pode permitir a profanação da coisa sacralizada. “Negligência”, aqui, não pode ser traduzida como uma atitude de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado, isto pode até fortalecê-lo. Tampouco o confronto direto. O que ameaça o sagrado é uma atitude de “negligência’^ entendida como uma atitude, uma conduta simultaneamente livre e distraída face às coisas e seus usos. Não é ignorar a coisa7 sacralizada, mas prestar atenção na coisa sem considerar o mito que sustenta sua sacralização. Negligência neste caso significa desligar-se das normas para o uso. Adotar um novo uso descompromissado de sua finalidade sagrada, ou seja, de sua função de separar. Logo, profanar significa liberar a possibilidade de uma forma particular de negligência que ignora a separação, ou antes, que faz uso particular da coisa. A passagem do sagrado para o profano pode corresponder a uma reutilização. Muitos jogos infantis (jogo de roda; balão; brin cadeiras de roda) derivam de ritos, de cerimônias para a sacrali zação como uma cerimônia de casamento. .Os jogos de sorte, de dados, derivam das práticas dos oráculos. Estes ritos separados de seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato sagrado é a consagração do mito (a estória) é o rito que o reproduz. O jogo (negligência) desfaz esta ligação. O rito sem o mito vira jogo, é devolvido ao livre uso dás pessoas. O mito sem o rito perde o caráter sagrado, vira uma. qstória. Importante lembrar que negli gência não significa falta de/àtençao. Uma criança quando joga tem toda a atenção no jogo. Ela apenas negligencia o uso sagrado ou o mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição. Devemos dessacralizar a ciência, a economia, o direito, a polí tica devolvendo estas esferas ao livre uso do povo. Construir novos usos livres. Numa época onde a dessacralização é fundamental diante da dimensão que a sacralização tomou, as pessoas, em meio ao deses pero, buscam um retomo ao sagrado em tudo. O jogo como pro fanação, como uso livre está hoje decadente. As pessoas parecem incapazes de jogar e isto se demonstra com a proliferação de jogos 7 Coisa aqui significa ideias, objetos, pessoas, palavras, animais, ritos, danças, cte. xxti prontos, sacralizados, com regras herméticas, onde os novos usos são quase impossíveis ou invisíveis. Os jogos televisados como grandes espetáculos de massa acompanham a profissionalização e a mitificação dos jogadores (os ídolos). A seculaxização dos processos de sacralização que dominam as sociedades contemporâneas pennite com que as forças de separação pennaneçam intactas sendo apenas mudadas de lugar. A profanação de maneira diferente neutraliza a força que subtrai o livre uso, neutra liza a força do que é profanado. Trata-se de duas operações políticas: a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e rito agora em outro espaço; a segunda desativa os dispositivos do poder; separa o rito do mito permitindo o livre uso. Para falarmos de vida e de morte o desafio consiste em consi derar a cultura, a história, os sentidos prévios, muitos sacralizados, mas ao mesmo tempo, considerando as sacralizações promovidas pela cultura hegemônica, pelo poder e pela religião, sermos capazes de discutir nossas posições com liberdade. Em outras palavras, pre cisamos, como Anthony Giddens propôs ao desenvolver a ideia de destradicionalização, trazer as tradições para o espaço da discussão livre. Não se trata de desconsiderar as tradições, não se trata, também, de promover falsas universalizações, que partem de falsas pretensões civilizatórias; a proposta é discutir tudo, em condição de igualdade, sem hegemonias, respeitando a diversidade e o contexto. Atentos a tais exigências discursivas, os autores nos convidam a uma reflexão jurídica acerca da possibilidade normativa do exer cício da autonomia para monrer. E para tanto reforçam a necessi dade de reconhecimento da pessoa humana como interlocutora em uma rede de interlocução, o que pressupõe alteridade e resguardo da sua liberdade comunicativa. Assim, como afirmam os autores, “se a manifestação da pessoalidade se dá pelas pulsões da vida, a pennitir que o indivíduo humano se construa pessoa, a morte, se integrante do projeto de pessoalidade, também exprime esta reali zação, ainda que paxa o seu fim.” José Luiz Quadros de Magalhães Doutor e Mestre em Direito. xxiii Introdução “Quiero reivindicar la eutanasia legal, o, por lo menos, que se despenalice el suicídio asistido. Ojalá con mi caso se reabra el deba- te ,>n Com essas palavras Pedro Martínez trouxe novamente à baila a discussão sobre o direito de morrer dignamente. Pensando melhor, trouxe a discussão sobre o direito de viver dignamente até o fim. Pedro nasceu em Teruel, Espanha e foi acometido por uma do ença neurodegenerativa progressiva e fatal, E L A - esclerosis lateral amiotrófica, caracterizada pela degeneração dos neurônios motores, as células do sistema nervoso central que controlam os movimentos voluntários dos músculos, e com a sensibilidade preservada. Não há causa conhecida para a doença e, tampouco, tratamento. Afeta quase sempre pessoasjovens e a sobrevivência média, a partir do diagnóstico, não excede três anos, segundo explica a reportagem feita pelo jornal El País. Pedro vivia com sua noiva, em total situação de dependência. Era ela quem o alimentava e fazia toda sua higiene pessoal. Além de Lola, amigos próximos se revezavam na tentativa de levar algum estímulo ao doente: 6<Veo la tele, porque no puedo sujetar un libro para leer. No puedo ni pasar las hojas. A veces, algún amigo me lee algo, pero me canso.”* 2 Segundo relato de El País, a paralisia afetou a capacidade vocal de Pedro, o que tomava a entrevista difícil. Lola, sua noiva, por vá rias vezes, serviu de intérprete. Com problemas na garganta, difícil se tomava a alimentação. Para Pedro, 'tratava-se de uma verdadeira tor * Entrevista dada por Pedro Martínez ao jornal El Pais, em: ‘‘VIVO en una cárcel que se estrecha.” El Pais, Sevilha, 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <http://so« ciedad.elpais.eom/sociedad/2011/12/21/actualidad/l324491408^088893.btml>. 2 “VfVO en una cárcel que se estrecha.” El Pais> Sevilha, 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/201 î/12/21/actuali* dad/1324491408J)88893,html>. 2 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREDRA tura, principalmente porque engasgava constantemente e, por várias vezes, a comida tinha ido parar nos pulmões: “El hombre empieza a tener problemas con la garganta y tragar cada comida es una tortura y una amenaza. Además, me cuesta mucho masticar. Tengo que pasarlo todo con mucho líquido, y eso es más peligroso.”3 Aos trinta e quatro anos Pedro tomou a decisão de que não viveria mais e, para tanto, pedia por uma sedação terminal. Recu sava-se ao uso de sondas para alimentação e também disse não ser favorável a um respirador artificial. Diante da negativa em internar- se em hospital pediu auxilio ao serviço de cuidados paliativos. Con tudo, para sua surpresa, profissionais da área, ao visitá-lo, disseram não poder ajudá-lo, pois Pedro não era um doente terminal: Han venido a verme y dicen que no me estoy muriendo, aunque saben que no v o y a vivir mucho. Que esto no es una agonia. Me han llegado a decir que deje de comer y beber unos dias, y que a s í , . cuando m e deteriore, podrán aplicanne la sedación paliativa; los he echado de casa.4 \ De fato, nada mais hipócrita. Não estando o paciente em si tuação terminal, a única maneira de ser-lhe dada a sedação seria pela falta de alimentação e hidratação, fato que levaria Pedro a uma condição de deterioração física. Lembramos que a Espanha penaliza a eutanásia, considerando-a homicídio e a ajuda necessária ao suicídio também é crime pelo Código Penal, mesmo que com atenuantes. A Andaluzia possui lei para morte digna, mas esta foi pensada para pacientes com câncer, que se vêem em situações de terrninalidade, o que não era o caso de Pedro Maxtínez. Pedro contatou o Serviço Derecho a Morir Dignamente. Ao ava liarem a situação, médicos da associação consideraram intolerável seu sofrimento. Diante do consentimento do paciente e, dado que não 3 “VIVO en una cárcel que se estrecha.” El País, Sevilha, 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/20n/l2/21/actuali- dad/1324491408J)88893.html>. 4 “VIVO en una cárcel que se estrecha.” El Paíst Sevilha, 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/2011/12/21/actuali- dad/1324491408_088893.html>. AUTONOMIA PARA MORRER 3 havia qualquer tratamento para melhora ou cura, a sedação foi dada. Pedro morreu em sua casa, ao lado de sua noiva, seus familiares, seus amigos e seu cachorro, depois de uma festa de despedida. Indagado sobre a possibilidade de vida após a morte, disse: “No tengo ni idea. Ojalá volvamos a la vida para seguir aprendiendo. Cuando nos veamos ahí, y que sea muy tarde, ya lo sabremos.”5 Contamos esse caso para afirmar que a vida nos remete à auto nomia. Aos melhores interesses das pessoas. À aptidão para a ma nifestação da vontade. A construção não mais puramente biológica, mas também biográfica de cada um. À dignidade da pessoa humana que pode,ser traduzida pela garantia de que todos se reconheçam livres e iguais em direitos. E, para a efetivação desta dignidade, é necessário que os outros se conscientizem de que cada um tem seus próprios interesses críticos, cada pessoa é dotada de um padrão mo ral que lhe é próprio. Eis o que pretendemos discutir nesse livro. 5 “VTVO en una cárcel que se estrecha.” El Paist Sevilha, 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedacV20n/12/21/actuali- dad/1324491408J )8 8893.html>, Em Busca dos Fundamentos da Autonomia para Morrer: M oralidade e Pessoalidade Passado este tempo, faço um balanço do caminho percorrido e não m e dei conta de ter havido felicidade. Só o tempo que passou, con tra a minha vontade, durante a maior parte da minha vida, será a partir de agora o m eu aliado. Só o tempo e a evolução das consci ências, decidirão algum dia, se o m eu pedido era razoável ou não. (SAM PEDPO , Ramón, 2004) 1. INTRODUÇÃO Não raras são as discussões revolvidas no nosso cotidiano acerca de uma possível autonomia para morrer. O “querer mor rer” expressa, pelo menos em um primeiro momento, espanto para aquele que'ouve alguém dizê-lo. A impressão inicial é que ainda estamos propensos a acreditar que a vida segue um fluxo que retira de nós mesmos a possibilidade de deliberar sobre ele. Trata-se de um acontecer inabalável que até mesmo as nossas escolhas aparen tam estar aquém daquela possibilidade de morte. Parece haver um instinto de conservação que acaba por ser corrompido pelo querer morrer, ou mesmo uma força divina que retira do indivíduo tal “ar bitrariedade” atentatória contra si mesmo. Tal discussão, não obstante bem enfatizada na contemporanei- dade pelos avanços das biotecnologias e da farmacologia, é algo que está a ocorrer desde os tempos de outrora. Desde os primórdios da humanidade já se discutia se o indivíduo teria a possibilidade de deliberar sobre a sua própria morte. Na Mitologia Grega, o fato “morte” se consubstanciava como desfecho da atividade das Moiras, três irmãs que determinavam o destino do homem e, assim, decidiam sobre a duração da vida de uma pessoa e seu quinhão de atribulações e sofrimentos. Cloto era 6 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO DUNA MOURJEERA a moira que segurava e esticava o fio da vida. Laquesis, por sua vez, era a responsável por medir e distribuir os acontecimentos e Átro- pos cortava o fio, determinando o momento em que se daria a morte de cada um. Neste contexto, o fato morte encontrava-se atrelado à ação de uma das “Fiandeiras do Destino”. No desenrolar do fardo da vida, cabia à Átropos decidir quando o evento morte oconreria1. Para os gregos, a ideia de destino representava mn dos aspec tos mais problemáticos da existência humana, pois a crença em uma predeterminação ordenadora do universo e o fardo de cada homem, não poderiam ser modificados nem mesmo pelos deuses. Segundo Pierre Grimal, os gregos acreditavam que “na origem, cada um tem a sua ‘mera’, o que significa a sua parte (de vida, de felicidade, de desgraça, etc.)1 2”, devendo a ela se curvar e aceitar a condição que lhe fora exteriorrnente predeterminada. Neste sentido, relata Platão no diálogo do Fédon que Sócrates, encontrando-se aprisionado aguardando pela hora da morte, teria afirmado que assim como os escravos são propriedades de homens livres, os homens são propriedades dos deuses, não podendo, por tanto, dispor da sua vida, salvo quando houver uma necessidade enviada pelos próprios deuses a justificar a morte. O amadurecer da modernidade colocou o homem no centro das problemáticas existenciais e introduziu o conceito de autono mia como foco das especulações teóricas. Sobretudo a partir da fi losofia kantiana, a autonomia é destacada e introduzida na reflexão filosófica e, consequentemente, movida ao discurso jurídico. Este diferencial está no fato de, na filosofia kantiana, o homem não ser determinado pela existência e conteúdo da moralidade exterior a ele3, mas tanto a possibilidade do conhecimento quanto apossibili- 1 SÁ, Maria de Fátima Freire de; PONTES, Maila Mello Campolina. Autonomia privada c o direito de morrer. In FIÚZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil Atualidades III: princípios jurídicos no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 37-54. 2 GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana, 5“ ed. Rio de Janei ro: Bertrand Brasil, 2005, p. 306. 5 SCHNEEWIND, J. B, A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 559. AUTONOMIA PARA MORRER 7 dade do estabelecimento do agir moral pressupõe a autodetermina- çâo do próprio indivíduo. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant assume a autonomia, atrelando-a ao fundamento a priori de dever aplicável ao mundo sensível, de forma que um sujeito verdadeiramente au tônomo seria aquele que age a partir de uma detemiinação interna, livre de inclinações, de forma que sua ação valeria para todo o ser racional em geral. O exercício dessa autonomia, que permite o reconhecimento dos sujeitos como fins em si mesmos e legisladores universais, se dá no que Kant conceitua de reino dos fins, isto é, um reino onde há uma “ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns4”, seja a atuar como membro legiferante, submetido à mencionada lei, seja como chefe, quando se mantendo legislador, “não está submetido à vontade de um outro5”. Todavia, o reino dos fins é ideal6, a priori, e somente se realizaria verdadeiramente, se as máximas fossem universalmente seguidas, conforme ditado pelo imperativo categórico a todos os seres racionais. De acordo com Kant, todos os seres racionais estão submeti dos à lei “que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultanea mente como fin s em si7”, sendo que, em razão do exercício de iguais liberdades buscado pela filosofia transcendental kantiana, “o dever não pertence ao chefe do reino dos fins, mas sim a cada membro e a todos em igual medida8.” É nesse viés que surge o conceito de dignidade na filosofia kantiana, haja vista que se a natureza humana 4 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa; Edi ções 70,2007, p. 75. 5 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa; Edi ções 70,2007, p. 76. 6 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa: Edi ções 70,2007, p. 76. 7 KANT, Immanuel, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edi ções 70,2007, p. 76. * KANT, Immanuel Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa; Edi ções 70,2007, p. 77. $ MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREERA existe como fim em si mesma, a dignidade certamente deriva da au tonomia do ser racional, capaz de estabelecer o espaço e os limites da sua atuação, um ser consciente de si e que se auto-constitui Colocar o homem e a sua subjetividade no centro da indaga ção filosófica, reconhecendo-o como fim em si mesmo, dotado de autonomia a ponto de tomá-lo legislador universal, que reconheça o outro também como fim em si mesmo e do mesmo modo dotado de autonomia, deflagra o caráter instigador da indagação kantiana acerca do que vem a ser o homem e das possíveis respostas em tomo de questões filosóficas, sociais e jurídicas que envolvam o homem e suas possibilidades existenciais na modernidade. Não obstante tais argumentações em prol de uma autonomia que pressupõe o sujeito enquanto legislador, Kant apresenta-se con trário à possibilidade de qualquer indivíduo dispor da própria vida. Em A m etafísica dos costumes Kant afirma que o ser humano pode ser determinado por sua razão Qiomo phaenomenon), isto é, como uma causa às ações no mundo sensível, e, também, como um ser dotado de liberdade interior Qiomo noumenon), ou seja, quando o homem pode ser pensado em termos de sua personalidade. Nesta hipótese, afirma Kant que o homem pode ser submetido a obriga ções para consigo mesmo, inclusive àquelas obrigações para com a humanidade em sua própria pessoa9. O “ter dever consigo mesmo” significa, na proposta kantiana, que embora livre, o homem deve observar determinadas coordena das de não-liberdade que endossa a sua própria humanidade, pois: [...] supondo que não h ou vesse tais deveres, não haveria deveres quaisquer que fo ssem e, assim , tam pouco deveres externos, posto que p osso reconhecer que estou subm etido à obrigação a outros som ente na m edida em que eu sim ultaneam ente submeto' a m im m esm o à obrigação, um a v e z que a le i em virtude da qual ju lgo a m im m esm o com o estando subm etido à obrigação procede em todos os casos de m inha própria razão prática e no ser constran g ido por m inha própria razão, sou tam bém aquele que constrange a m im m esm o 10. 9 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003» p. 260. 15 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003» p. 260. AUTONOMIA PARA MORRER 9 Com respaldo em tais considerações, sobretudo pelo realce no dever para consigo mesmo, Kant apresenta tese contrária ao suicídio, pois o primeiro dever de um ser humano para consigo mesmo é pre servar a si mesmo em sua natureza animal11. Em consequência, o sui cídio é um crime, na medida em que representa a violação do dever do homem para com outros seres humanos. Assim, afirma Kant: U m ser humano não pode renunciar à sua personalidade enquanto for um sujeito do dever e, por conseguinte, enquanto viver; e cons titui um a contradição que devesse estar autorizado a esquivar-se de toda obrigação, isto é, agir livrem ente com o se nenhuma autoriza ção fosse necessária a essa ação. Aniquilar o sujeito da moralidade na própria pessoa é erradicar a existência da moralidade m esm a do m undo, o m áxim o p ossível, ainda que a moralidade seja um fim em si mesm a. Consequentem ente, dispor de si m esm o com o um m ero m eio para algum fim discricionário é rebaixar a humanidade na própria pessoa (hom o noumenon), à qual o ser humano Qiomo phaenom enon) foi, todavia, confiado para preservar* 12. Na atualidade, sob o contexto de uma sociedade pluralista que busca a todo. instante afirmar-se efetivamente democrática, revolver a possibilidade do “querer morrer”, é algo que implica em discus sões que, não obstante antigas, se encontram sob uma realidade dialógica diferente dos tempos de outrora. Ainda assim, persistentemente, a questão é instigante e revol ve polêmicas há muito discutíveis: temos autonomia para moixer? É comum acompanharmos nos noticiários a manifestação da vontade de pessoas que, em perfeito estado de consciência mental ou mesmo quando representadas por outrem, imploram que lhes seja permitido o exercício da autonomia para morrer. Muitas vezes pedem para que outros lhes proporcionem a morte. É dramática a situação de famílias que mantêm, nás respectivas casas, doentes em estado vegetativo, acometidos de males degenerativos, que só se encontram vivos porque ligados a aparelhos ou porque alimentados por sondas.- ,f KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003, p. 263. 15 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003, p. 264-265. 10 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREERA A sociedade, os juristas, os filósofos e os médicos se dividem na argumentação: os que defendem a possibilidade do morrer pren dem-se ao argumento de que, na Medicina, existem quadros clínicos irreversíveis em que o paciente, muitas vezes passando por terríveis dores e sofrimentos, almeja a antecipação da morte como forma de se livrar do padecimento que se toma viver. Afinal, a vida não pode ria se transformar em dever de sofrimento. A antecipação da morte não sô atenderia aos interesses do paciente de morrer com dignidade, como daria efetividade ao princípio da autodeterminação da pessoa em decidir sobre sua própria morte, a exercitar a sua liberdade. Os que se opõem à possibilidade do querer morrer sustentam, dentre outros argumentos, ser dever do Estado preservar, a todo custo, a vida humana, entendida esta como bem jurídico supremo. O poder público estaria obrigado a fomentar o bem estar dos cida dãos e a evitar que sejam mortos ou colocados em situação de risco. Eventuais direitos, do indivíduo estariam, muitas vezes, subordina dos aos interesses do Estado, que obrigaria a adoção de todas as medidas visando ao prolongamento da vida, até mesmo contra a vontade da pessoa. A discussão em tomo de uma autonomia para morrer pressu põe a análise da moralidade e suas possibilidades na sociabilidade moderna. O conceito de moralidade aqui tratado refere-se à liber dade possibilitada e exercida pelo indivíduo humano no processo de construção de si mesmo. Trata-se do exercício da autonomia compreendida como autorreflexão que pressupõe o outro enquanto responsável pela definição do eu. No filme “Mar Adentro”, dirigido por Alejandro Amenábar, Javier Bardem interpreta a ousada “aventura pela vida” de Ramón Sampedro, um homem que lutou incansavelmente para pôr fim à sua vida — ou sobrevida? - após um grave acidente na juventude que o deixou tetraplégico e encarcerado em sua própria cama por 28 anos, 4 meses e alguns dias. Na sua saga, Ramón enfrentou uma série de embates para efetivar o seu “querer morrer dignamente”, mas a todo instante, além das críticas dos mais variados seguimen tos da sociedade, é impedido de fazê-lo* AUTONOMIA PARA MORRER 11 Levado o caso ao Poder Judiciário, Ramón vê negado o seu pedido para autorização da eutanásia. Indignado com a depísão do tribunal, Ramón se volta aos juízes, às autoridades políticas e re ligiosas através de uma carta para fazer uma pergunta que até a atualidade vem causando nos juristas os mais diversos questiona mentos e estarrecimentos. Embora a pergunta seja simples de ser formulada, a resposta, não. Assim, questionou Ramón “o que é para vocês a dignidade?” Embora a resposta a esta pergunta não seja única, a construção de um possível argumento está a demandar dialogicidade na defini ção daquilo que há muito se denominou “vida boa”. Não se trata da imposição de um projeto moralmente válido ou majoritariamente aceitável, mas um compartilhar. Foi sob este enfoque que soou a voz de Ramón Sampedro ao se autoafirmar diante da situação a qual se encontrava: “seja qual for a resposta das vossas consciên cias, saibam que para mim isto não é viver dignamente. Eu queria, aò menos, morrer dignamente.” As correntes que discutem a autonomia para morrer se avolu mam e, ao lado delas, conceitos referentes ao processo do morrer vêm à tona: fala-se em eutanásia ativa, eutanásia passiva ou or- totanásia, distanásia, mistanásia, suicídio assistido e outros, todos relacionados entre si, mas com particularidades de cada tipo, donde há possibilidade de serem tratados de acordo com as respectivas especificidades conceituais. A questão que emerge é a seguinte: ainda que existam regras específicas sobre o homicídio, poder-se-ia, diante de casos concre tos, proceder a julgamentos com fulcro em princípios atinentes à si tuação, a fim de se buscar uma decisão correta, de modo a respeitar a integridade do Direito, tal como preconiza Dworkin? Vale dizer: Há possibilidade de se construir a norma a partir da interpretação do sistema de princípios? De antemão, sabe-se que ter uma morte digna é um problema que se impõe à reflexão de muitos: fala-se que a morte apaga as dife renças entre os seres humanos; de fato, porém, ainda subsistem mui tas diferenças na morte, ocasionadas, talvez, por reflexos de situação 12 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / D I0G 0 LUNA MOUREffiA social. Assim» a primeira coisa que um doente terminal pede à socie dade é que respeite, dentro do possível, o seu modelo de enfocar e viver a morte, embora médicos, familiares e a sociedade imponham um tipo de morte que não corresponde aos seus legítimos desejos. Como exemplo, eis a súplica e indignação de Ramón Sampedro: H oje, cansado da preguiça institucional, vejo-m e obrigado a fazê- lo às escondidas, com o um crim inoso. Saiba que o processo que conduzirá à m inha m orte, fo i cuidadosam ente dividido em peque nas ações que não constituem um delito em si m esm as, e foram executadas por diferentes m ãos am igas. A pesar disso, se o Estado insistir em punir os m eus ajudantes, eu aconselho que lhes sejam cortadas as m ãos porque foi essa a sua única contribuição. A ca beça, quer dizer, a consciência fo i provida por m im . Como podem ver, ao m eu lado tenho um copo de água contendo um a dose de cia neto de potássio. Quando a beber, deixarei de existir, renunciando ao m eu bem m ais precioso, o m eu co ip o .13 De mais a mais, o mito da igualdade se revela entre a pessoa sã e aquela que se encontra doente. É que se verifica a crise da titu laridade dos direitos do doente irreversível pela impossibilidade de desfrute. Cabe demonstrar a liberdade como mecanismo de supera ção da inacessibilidade definitiva ao objeto dos direitos. Interesses conflitantes estão em xeque: o princípio da liber dade do sujeito e o princípio da indisponibilidade da vida. Mas e a vida? Para os defensores da autonomia para morrer, o conceito de vida precisa ser repensado e deve ser encarado sob novo para digma: Será que viver bem é viver muito? Será que vida digna é aquela segundo a qual o indivíduo, a despeito de todas as dores e sofrimentos que lhe tenham sido causados por determinada doença, ainda se mantenha ligado a aparelhos, ou sem eles, mas totalmente infeliz e dependente da boa vontade de outras pessoas? Na linha de raciocínio daqueles que são favoráveis à escolha do paciente, a vida só deve prevalecer como direito fundamental oponível erga omnesi enquanto for possível se viver bem. Será que outros valores deve riam ser repensados a partir do momento em que a saúde do corpo e da mente já não mais garanta o bem-estar do indivíduo? 13 SAMPEDRO, Ramón. Cartas desdê el tnflerno. Barcelona: Planeta EspaÜa, 2004. AUTONOMIA PARA MORRER 13 Há um direito à vida que retira do próprio indivíduo a possíbi- lidade dele dispor? Seria o viver um direito ou um devei? Uma pos sível resposta foi há muito dada por Ramón Sampedro ao afirmar que para ele viver é um direito e não uma obrigação. A cada dia que passa, estamos diante de diversos pedidos judi ciais de pessoas que gostariam de se ver livres de sofrimentos cau sados por doenças degenerativas e incapacitantes, ou de famílias que pretendem ver desligados aparelhos de entes que se encontram em situação vegetativa. Inegável que os avanços biotecnológicos e farmacológicos têm tomado cada dia mais dificultoso o morrer. É por tal razão que, na atualidade, a autonomia para morrer tem se tomado uma possibilidade discursiva, antes pouco questionada e que queremos aqui, uma vez mais, discutir. De antemão, é possível afirmar que sustentar a existência de uma autonomia para morrer pressupõe a compreensão da liberda de do indivíduo moderno como um médium para realização de si mesmo, ou seja, trata-se da efetivação de um projeto biográfico que pressupõe a construção, efetivação e busca por reconhecimento da sua pessoalidade, Antes, porém, necessário compreender o proces s o moderno que implicou na possibilidade do indivíduo humano, em um ato de liberdade, construir a si mesmo, com e contra o outro (alter), em um processo dialético de convivência. 2. A MORALIDADE MODERNA E AS PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA REALIZAÇÃO DA PESSOALIDADE COMO PRODUTO DA AUTONOMIA14 Ressalvadas algumas particularidades que não nos compete retratar neste momento, é possível afirmar que o pressuposto pri mitivo daquilo que a modernidade denominou de autonomia teve suas bases no cristianismo medieval. Referimo-nos ao esforço do Sobre conceito de pessoalidade 1er: MOUREIRA, Diogo Luna. Pessoas e autono mia privada: dimensões reflexivas da racionalidade e dimensões operacionais da pessoa a partir da teoria do direito privado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 14 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREIRA cristianismo medieval em proporcionar a interiorização do indiví duo kumanOy a partir do reconhecimento de ser ele portador de uma essência que se dirige à divindadé15. A proposta cristã de interiorização implicou no reconhecimen to de um a substância humana que vai além daquilo que se exterio riza, mas que alcança poteiicialidades que permitem contato com o sagrado: “para lá do olho exterior e do ouvido exterior há o olho interior e o ouvido interior”, que são capazes de perceber “a visão divina, a palavra e o rum or do mundo mais real: o das verdades eternas.”16 Foi assim que a igreja católica assumiu um a posição de domí nio > já que impôs a todos, através da sua autoridade, um conceito de m oralidade pautado em conceitos por ela firmemente definidos e im utáveis17. Ao mesmo tempo em que abria as possibilidades para o reconhecimento da interioridade, ainda que para o pecado, fechaya todas essas possibilidades pela obediência devida a Deus e às suas leis, graças à moralidade conduzida pela obediência18. A possibilidade de se assumir um a pessoalidade na idade m édia estava, pois, diante do surgimento de nova estrutura cog nitiva dom inada pela condução ideológica da religião cristã, que adequou aos seus interesses todos os arquétipos do pensamento grego. Ao indivíduo humano se abre uma nova forma de pensa m ento, pois toda a naturalidade, que outrora emanava da própria natureza, passa a advir de predeterminações divinas. Deus passou 15 Segundo Gioele Solari, “el Cristianismo significó espontaneidad e independên cia de la conciencia contra toda coerción exterior, y favoreció el desairollo de la individualidad espiritual que el Estado antiguo, demasiado a menudo, había desconocido y sacrificado a la razón política.” (SOLARI, Gioele. Filosofia dei Derecho Privado. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 9) ,fi LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 17. 17 Segundo Jacques Le Go££ a idade média conhece um cristianismo dominador “que é simultaneamente uma religião e uma ideologia e que mantém, portanto, uma relação muito complexa com o mundo feudal contestando-o e justificando-o ao mesmo tempo.” (LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estam pa, 1994, p. 38) 11 SCHNBEWIND, J. B. A invenção da autonomia. SSo Leopoldo: Unisinos, 2001» p .3 0 . AUTONOMIA, PARA MORjRJER 15 a ser o condutor da moralidade medieval ç a igreja a intermediária entre ele e os homens, A inferioridade humana impediu que o homem assumisse as coordenadas da sua própria ação, como um possível resquício de liberdade sugeriria. Aq homem era impossível orientar as suas ações a partir de si mesmo, posto que nem este reconhecimento de si mesmo como livre e individual era algo existente. O máximo que a ele era atribuído era vontade, e isto já era reconhecido pela tradição cristã. Só que esta vontade leva-o ao pecado e à morte, cabendo à igreja, na condução benevolente da moralidade, resgatá- lo. Como afirma J. B. Schneewind, “mesmo que todos tenham as leis mais fundamentais da moralidade escritas em seus corações ou consciências, muitas pessoas precisam ser instruídas por alguma autoridade adequada sobre o que é moralmente requerido em casos particulares.”19 O céu e o inferno são transformados em palco para repressão, sendo as glórias celestes quase inalcançáveis pelo homem comum. Dor, suor, lágrimas, penitências e incansáveis prostrações são os passos para o seu alcance. O inferno, ao contrário, era o destino certo e irremediável para qualquer humano, salvo quando a mise ricórdia divina fosse alcançada, ou, porque não, comprada. Neste contexto, “Satanás, Deus, a alma e o corpo: eis os actores e os terre nos dessa luta pelo destino etemo dos humanos e desse esforço pelo conhecimento do futuro cá em baixo e no Além.”20 Ò medo do inferno, a temporada no purgatório e as atuações de Satanás recolhiam as pessoas ao seio da comunidade cristã, de fonna que a autoridade sobre a fé era vista como meio de resistir às pulsões da vida. A análise deste contexto social toma o indivíduo humano medieval esmaecido perante tanto misticismo. O homem encontrava-se diante de um interminável diálogo com a ambiguida de: Deus e Satanás são figuras constantes na definição da sua pes- soalidade. “O mundo natural era o vale de lágrimas e da morte, uma 19 SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 30. 20 LE GOFF, Jacques, O imaginário medieval Lisboa: Estampa, 1994, p. 2S-29. te Maria db fátima freire de sá / diogo luna moureira fortaleza do mal de que o fiel seria misericordiosamente libertado no fim desta vida” 21. Era necessário alcançar uma condição humana digna que rejei tasse as putrefações da vida terrena, e o caminho para tal propósito era a vida respaldada na santidade para a salvação da alma, de uma essência interior, aqui sim, individual22, Outxossim, se nesta configuração do mundo místico cristão — entre terra e além - o homem se encontrou embebido por tamanha dominação, é pela defesa da interioridade almejada pela própria filosofia cristã que ele encontrará forças para posterior luta contra a própria igreja na defesa da sua liberdade de consciência. A condução da moralidade pela obediência católica restrin giu todas as possibilidades do homem se fazer pessoa, a partir de si mesmo, já que a moralidade pressupunha uma predeterminação externa à própria pessoa. De outro lado, foi a partir da preserva ção da vontade pela proposta teológico-filosófica do cristianismo que o homem foi convidado a exercitar uma experiência do “eu” interior, na qual se encontra o caminho para Deus. Esta experiên cia marca decisivamente a cultura ocidental, possibilitando que a partir de experiências na primeira pessoa (eu), o homem possa encontrar espaço para assumir uma pessoalidade, ainda que pelo ou para o pecado. Com o declínio do domínio moral da igreja, pelo menos tal como conheceu a alta idade média, tomou-se possível ao indivíduo humano assumir uma postura de autodeterminação que dispensa in terferências exteriores, inclusive para determinar configurações de uma vida que lhe é própria. Assim, “no reino espiritual, cada pessoa 21 TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo. 5a éd. Rio de Janeiro: Bertrand Bra sil, 2005, p. 1S7. 22 Segundo Georges Duby, “está claro que o cuidado com essa alma tomou-se cada vez mais individual, também ele se libertou pouco a pouco do comunitário, en quanto o campo do religioso progressivamente se privatiza.” (DUBY, Georges. Poder Privado, Poder Público. In ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges; PERROT, Mícbelle, História da vida privada: volume 2: Da Europa Feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p, 521). AUTONOMIA PARA MORRER 17 deve ser salva como um indivíduo. Nenhuma mediação meramente humana pode ser um substituto para a aceitação direta de Deus” 23 24. Para Taylor, é a importância atribuída ao fiel que possibilita esta nova forma de encarar a religiosidade, pois “a pessoa já não pertencia ao círculo dos eleitos, ao povo de Deus, por sua ligação a uma ordem mais abrangente que sustentava a vida sacramental, mas por sua adesão pessoal irrestrita*™. A angústia que se criou em tomo do homem pelo pecado e os meios coercitivos impostos para a condução da moralidade (como foi o caso da fogueira, dentre outras)25 impediam que o homem pudesse assumir efetivamente a sua autonomia. O importante a ser destacado é a assunção de um homem livre, “um ser independente, no sentido de que seus propósitos paradigmáticos devem ser encontrados dentro, e não ditados pela ordem mais abrangente da qual ele faz parte26'5, o que permite que o indivíduo humano comece a encontrar espaço para desenvolver a suapessoalidade) a partir de si mesmo. Charles Taylor utiliza o termo “afirmação da vida cotidiana” para designar os aspectos da vida humana referentes à produção (trabalho, fabricação das coisas necessárias à vida) e à reprodução (existência como seres sexuais), como algo que revela propriamen te as pulsões da vida. Para ele, o impulso dado a esta afirmação da vida cotidiana advém da Reforma protestante27, uma vez que por meio destes movimentos o indivíduo se reconheceu alguém capaz de pensar, escolher e agir. Se a concepção medieval depessoáliãade apontava para a mo ralidade religiosa, pautada na obediência, a moralidade moderna desponta reconhecendo a liberdade de pessoas iguais, capazes de 23 SCHNEEWINX), J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unismos, 2001, p. 55. 24 TAYLOR, Charles. As fontes do Self. a construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 281. 25 Para melhor compreensão desta colocação, vide conclusão do item 2.2. 26 TAYLOR, Charles. As fontes do Self. a construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 250. 27 TAYLOR, Charles. As fontes do Self. a construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997, p, 279. n MARIA DE FÁTIMA FREIRE PE SÁ / DIOGO LUNA MOUREIRA enxergarem por si mesmas o que a moralidade requer, ademais, as pessoas são “em princípio igualmente capazes de mover para agir de maneira adequada, independente das ameaças ou recompen sas dos outros.”28 A causa desta possibilidade está na forma de tratamento dis pensada à razão humana, sèndo o cogito cartesiano fundamental para o entendimento desta nova estrutura do pensamento e de vi vência. Com Descartes, inaugura-se outra concepção, a do racio- nalismo moderno, que levanta a bandeira da modernidade, através da máxima cogito, ergo sum (penso, logo existo). Trata-se de nova era nas relações humanas, haja vista o aparecimento do sujeito mo derno e do sujeito de direito. É o racionalismo moderno que situa o homem como centro de questões, deixando de lado as relações religiosa, agrária e medieval de sociedades aristocráticas, no intuito de buscar o progresso através do conhecimento científico. Segundo Charles Taylor, a proposta filosófica de Agostinho em proporcionar ao homem a vontade da primeira pessoa (eu), faz com que ele seja considerado o predecessor de Descartes na formulação do cogito, “porque foi o primeiro a tomar o ponto de vista da pri meira pessoa fundamental para nossa busca da verdade.”29 Entretanto, diferentemente de Agostinho em que a interiori dade é o caminho para se alcançar Deus, que é a verdade e a fonte da moralidade, para Descartes, a fonte moral está dentro da própria pessoa, e isto é o diferencial, porque a razão permite que o homem, a partir de si, controle o mundo, o corpo, e direcione as paixões. Doravante, o homem, individualmente reconhecido pela cole tividade, é aquele disposto a buscar novos rumos, novas experiên cias, preocupado em realizar mudanças sociais para seu crescimen to e também cioso da própria dignidade e da dignidade do próximo. É com Descartes, através do seu pensamento, que se separa sujeito e razão. Todavia, demonstra que ambos devem coabitar no ser hu- 29 SCHNBEWIND, 1 B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 30. 29 TAYLOR, Charles. As fontes do Self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Ediçdes Loyola, 1997, p. 176, AUTONOMIA PARA MORRER 19 mano* Através do livre arbítrio, o homem tem capacidade de definir sua existência* De acordo com Alain Touraine: Descartes se liberta da idéia de Cosmos, O inundo não tem mais unidade; ele nada mais é que um conjunto de objetos oferecidos à pesquisa científica, e o princípio de unidade passa ao lado do criador que só é compreendido através do pensamento de Deus, portanto através do Cogito cujo procedimento está em oposição ao do idealismo. A consciência é tomada na sua finitude, na sua temporalidade. Assim como o homem não se identifica com pletamente a Deus, Deus não deve ser transformado em um ser temporal e histórico a exemplo do homem. Está entre Deus e a natureza30. O homem, portanto, se toma o centro orientador da sua ação. Segundo Gioeli Solari: O movimento protestante, ao sustentar a interioridade e a espon taneidade do sentimento religioso colocando o homem em relação direta com Deus, favorecia a emancipação do indivíduo e de seus direitos de consciência de toda ingerência de autoridade religiosa e 30 TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel. Petrópo- lis: Vozes, 1994, p. 53. O pensamento moderno, como se disse acima, atribui ao homem o livre arbítrio, de modo que o indivíduo passa a elemento ativo, vez que a realidade social perde seu caráter imutável. Em virtude dessa nova concepção, vários filósofos surgiram, como Rosseau, Hobbes e Locke, todos contratualistas, por acreditarem que a ordem social advém de contrato realizado por membros da sociedade. Veja-se que é da análise de sujeito moderno que nasce a necessidade de sociedades com representação política, compreensão da existência do Estado e questões sobre o sujeito de direito. Para Rousseau, todos os homens nascem iguais. A desigualdade advém a partir do momento em que alguns homens resolvem tomar para si terras e direitos. O contrato social, que nasce da vontade de todos os membros do grupo, é o instrumento que visa a garantir a paz social. E é ao Estado que se atribui a incumbência de exprimir a vontade geral; o governo afigura-se como seu agente executivo (dele, Estado). Se a comunidade assim o desejar, o governo pode ser destituído. Hobbes traz consigo a concepção do estado-força, que visa, obviamente, à paz social. Para ele, é a luta de todos contra todos e o medo da morte que leva ao estabelecimen to da paz. Locke diz que é no contrato dos homens que se garante a liberdade e os direitos individuais. Trata da confiança mútua e da participação de todos na sociedade. Realça as bases dos direitos naturais do homem, consagradas que serão nas Declarações de Direitos. 20 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOURED5A civ il, e não deixou de ter um a influência direta e decisiva em senti do individualista, sobre o desenvolvim ento das doutrinas jurídicas e políticas.31 De acordo com Alex Inlceles e David Smith, pode-se afirmar que as qualidades definidoras do homem moderno, que conduzirão o processo da sociabilidade moderna são: elastecimento da dispo sição para a mudança social; boa abertura para experiências novas; sujeição à busca do maior número de informações no intuito de embasar as próprias opiniões; detenção de estreita ligação com o fator tempo, atendo-se muito mais ao presente e ao futuro; busca da eficiência e do planejamento, tanto no que toca à sua vida profis sional, quanto na particular; crença em um mundo regido por leis e sob o controle da sua espécie; maior habilitação técnica como fator de distribuição de recompensas; aspirações educacionais e ocupa- cionais; conscientização e respeito pela dignidade do próximo e compreensão da produção32 33. Acentuada a ideia de liberdade, a independência da pessoa e a sua capacidade racional, acirram o seu desenvolvimento enquanto ser capaz de tomar, sozinho, as suas próprias decisões e posicionar- se no mundo social, a partir de si mesmo. . Neste período, o Direito vivenciará a formulação teórica dos direitos denominados naturais, ou seja, direitos que estão atrelados à determinada naturalidade existencial e que conferem ao indivíduo humano certas prerrogativas intangíveis sobre bens jurídicos. Se gundo Guy Haarscher (1993), os direitos naturais pertencem ao in divíduo humano em decorrência da sua essência: “são considerados 31 SOLARI, Gioele, Filosofia dei Derecho Privado. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 3. Tradução livre de: “El movimiento protestante, al sostener la interioridad y la espontaneidad dei sentimiento religioso poniendo al hombre en relación di recta con Dios, favorecia la emancipación dei indivíduo y de sus derechos de conciencía de toda ingerência de autoridad religiosa o civil, y no dejó de tener una influencia directa y decisiva en sentido individualista, sobre el desarollo de Ias doctrinas jurídicas y políticas/* 33 XNKELES, Alex; SMITH, David Norton, Tbrnando-se moderno: as transforma ções individuais ocorridas em seis países, Trad. Regina Heloísa Ribeiro Perez e Vera Maria Moyna. Brasília: Unb, 1981, p. 19-24, AUTONOMIA PARA MORRER 21 de tal modo fundamentais que nenhuma vida em sociedade digna desse nome parece ser possível sem que eles sejam respeitados” 33. A partir desta teorização, a existência de direitos tidos como naturais atribuem a determinadas prerrogativas jurídicas o caráter da absoluteidade, originariedade e inviolabilidade. E conceber tais qualificativos a determinados direitos implica impor limites norma tivos para qualquer tipo de arbitrariedade e assim resguardar deter minadas atribuições pessoais. Neste contexto, o homem toma-se titular de direitos que se encontram imanentes à sua natureza, independentemente do tem po e do espaço em que se encontra. Ser pessoa é poder agir e ter suas ações resguardadas por direitos tidos por que representam um escudo normativo que garante a liberdade contra as ingerências de terceiros, da igreja e do próprio Estado. Ter uma pessoàlidade nesta realidade de direito natural é as sumir um manto de salvaguarda que permite ao homem possuir um nomen dignitatis: pessoa, independentemente de referencial exter no. A ideia de direitos inatos decorre desta atomização metafísica do conceito de pessoa, posto ser ela detentora de um direito de li berdade preconcebido, segundo o qual possui faculdades subjetivas para o desenvolvimento de sua personalidade34. Gradativamente o indivíduo humano vai assumindo as possi bilidades da sua individualidade e potencializando-as em tomo de direitos assumidos como naturais, decorrentes do estado de nature za. Segundo Guy Haarscher, o estado de natureza é uma ficção que permite a afirmação da existência individual antes da existência de qualquer autoridade política, além do que, tal ficção explicita as bases da filosofia individualista: “Naturalmente”, é suposto .que os homens são livres e iguais. São livres porque ninguém exerce autoridade natural sobre outrem, em M HAARSCHER, Guy. A Filosofia dos Direitos do Homem. Lisboa: Instituto Pia- get, 1993, p. 18. 34 SOL ARI, Gioele, Filosofia dei Derecho Privado. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 13. MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREIRA22 resumo porque cada um é, no “estado de natureza”, o seu próprio dono; e iguais, porque se trata de uma liberdade pertença de todos (desde que sejam independentes).35 Destarte, se na idade média a moralidade foi conduzida pela obediência,a modernidade apresenta uma moralidade compreendi da como autogoverno, na mèdida em que todos os indivíduos têm capacidade igual para enxergar por eles mesmos o que a moralidade requer36. E a-segurança normativa desta perspectiva advém do di reito natural, analisado não sob a ótica das vontades divinas, nem das autoridades institucionais, mas da razão humana. Segundo Gioeli Solari, foi justamente quando o indivíduo as sumiu a consciência de si e pôde se voltar contra o Estado e a igreja na defesa dos seus direitos que surgiu a escola de direito natural, que se caracterizou pela centralidade do indivíduo37. Assim, o hu manismo, o individualismo e o racionalismo solidificam os pilares sobre os quais se edifica o direito natural
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