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Autonomia para Morrer Maria de Fátima Freire de Sá

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MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ 
DIOGO LUNA MOUREIRA
AUTONOMIA PARA MORRER
EUTANÁSIA, SUICÍDIO ASSISTIDO E 
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
Belo Horizonte 
2012
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Copyright © 2 0 1 2 Editora Del Ray ttdo.
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empregados, sem a permissão, por escrito, da Editora*
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Sá, Mario do Fátima Freire de.
S I 11 a Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e
diretivas antecipadas de vontade. / Maria de Fátima Freire de Sá e 
D iogo Luna Moureira. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
248p.
ISBN 978 -85-384-0237-4
Conteúdo: Em busca dos fundamentos da autonomia para 
morrer: moralidade e pessoalidade; Pessoalidade, dignidade humana e 
os direitos da personalidade; Vida, sobrevida e morte: aspectos 
problemáticos de uma constante dialogicldade; Uberdade e igualdade: 
da crise de titularidade dos direitos à superação da inacessibilidade dos 
seus objetos; O modo de encarar a morte na visão das grandes religiões 
do mundo; A autonomia para morrer no direito comporado; A busca pela 
efetivação normativa da autonomia para morrer; Concíusão,
1. Eutanásia. 2. Princípio do dignidade do pessoa humana, 
í. Moureira, D iogo Luna. il. Título.
CDU: 343.611
Bibliotecária responsável: Nilcóia Lage de Medeiros 
CRB/6-1545
“Il tema del morire si precisa e si scompone. Vivere 
e morire si awicmano fino a sovrapporsi. Morire con dig- 
nità e morire bene non sono semplici formule descrittive, 
ma situazioni esistenziali sempre piü declinate in termini 
di diritti della persona. [„J La dignità del morire rimanda 
cosi a dinamiche sociali sempre più intricate, e rivela una 
ormai ineliminabile radicfe tecnologica. L 'artificio accom­
pagna il morire e, irresistibilmente, pone la questione del 
perché V artificio, tenacemente difeso di fronte alla morte, 
dunque per mantenere la vita, viene poi respinto quando 
vuol rendere possibile la nascita, dunque il dare la vita,” 
(RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non 
diritto. Milão: Feltrinelli, 2009, p. 249)
Para meus pais, Joel e Myriam, que, no sofrimento, 
me ensinaram a esperança. Ao enfrentarem o processo 
do morrer me ensinaram a viver Partiram . Romperam 
o tempo; venceram o silêncio e a doença Quem sabe, 
recobraram o sorriso fá c il e hoje se utilizam dele para 
construir, juntos, o merecido descanso. Para todo o sem­
pre e para sempre. Enfim ,.
Maria de Fátima
Para as minhas amadas avós Maria das Dores 
Vieira tu n a e Alfredina Dias Moureira, uma singela ho­
menagem ao amor maternal a mim ofertado com tanto 
esmero, dia após d ia ., desde sempre! Amo vocês!
Diogo
vii
Sum ário
ESTUDO PRÉVIO............................... xiii
INTRODUÇÃO.............................................................. 1
EM BUSCADOS FUNDAMENTOS DA AUTONOMIA PARA 
MORRER: MORALIDADE E PESSOALIDADE
1. Introdução..... ........... ............................................................,................. 5
2. A moralidade moderna e as premissas para a compreensão da
realização da pessoalidade como produto da autonomia.......... ..............13
3. A construção da pessoalidade como projeto da contemporaneidade .......29
4. A possibilidade normativa de construção e efetivação da pessoalidade 32
PESSOALIDADE, DIGNIDADE HUMANA E OS DIREITOS DA 
PERSONALIDADE
1# Dignidade do homem, pessoalidade e a busca por direitos....................43
2. Pessoalidade e direitos da personalidade...... ........................ ................ 49
3. A dignidade da pessoa humana e a Constituição da República de 1988..56
4. A teoria geral dos direitos da personalidade e a teoria do direito
geral de personalidade............................................................................58
5. Classificações dos direitos da personalidade.................................... .....62
6. Características dos direitos da personalidade?.!............................... ..... 65
VIDA, SOBREVIDA E MORTE: ASPECTOS PROBLEMÁTICOS 
DE UMA CONSTANTE DIALOGICIDADE
h Vida e sobrevída........... ............................... ....................... ...*....,»..*.*....69
1.1 Mudança de paradigma: o direito à vida digna..,.................. ».... ..„71
ix
1.2 Vida digna nas suas diversas características...... ,.....,........„„....
1.3 A relação médico-paciente. Paciente tenninal..... „„„„„„„„„„„„„„.„11
2. A Morte e o direito „„„........................ ..........,................................,„...83
2.1 Eutanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido......... ................87
LIBERDADE E IGUALDADE: DA CRISE DE TITULARIDADE 
DOS DIREITOS À SUPERAÇÃO DA INACESSIBILIDADE DOS 
SEUS OBJETOS
L Introdução................................................................................................. 93
2. Exaustão da igualdade e crise da titularidade dos direitos pela
impossibilidade de desfrute........................................ .......................,.... .95
3. Mecanismo de superação da inacessibilidade ao objeto dos direitos:
o exercício da liberdade....................................................................... 99
3.1 Os dois modos diversos de atuação da liberdade.............................. 100
3.2 A liberdade segundo Kant............................................ 101 ~
3.3 O conceito de liberdade segundo Hans Kelsen............. ....................106
4. A liberdade na escolha do morrer.......................:...................................108
O MODO DE ENCARAR A MORTE NA VISÃO DAS GRANDES 
RELIGIÕES DO MUNDO
1. Introdução............................................................................................... 113
2. Aspectos históricos e culturais.................................................... 114
2.1 O judaísmo...........................................................................................114
2.2 O budismo................................................................ 117
2.3 O islamismo............................................ ........................ ,.................122
2.4 O cristianismo......................................................................... 124
A AUTONOMIA PARA MORRER NO DIREITO COMPARADO
1. Estados Unidos da América........................................................ ..129
1.1 Vida e morte.................................................................................... 136
1.1.1 O significado da morte................. ............................................ ....138
1.1.2 Santidade e auto-interesse .................................. ......... ...... ........141
x
1.1.3 Autonomia, beneficência e dignidade, .
L h S J Autonomia...................................................„„„„„„.„„„„„„,,,.145
L 2 J J Beneficência............ „„„.„146
1 J J J Dignidade
............................................... .................................147
L2 Minimalisrao jurídico: para os americanos, Leaving things
undecided...................................................................... 148
2. Holanda............ 151
A BUSCA PELA EFETIVAÇÃO NORMATIVA DA AUTONOMIA 
PARA MORRER
1. A efetivação normativa da pessoalidade: a morte como possibilidade
autobiográfica..........................................................................................161
2. O exercício da autonomia por indivíduo capaz de se autodeterminar:
o caso Chantal Sébire..... ........................................................................163
3. A capacidade de autodeterminação dos incapazes: o caso Hannah Jones..... 168
4 .0 exercício da autonomia de autodeterminação via reconstrução
judicial da vontade....... .................................. ........................... .*.......... 173
4.1. O caso ElunaEnglaxo..................... 173
4.2. O casoTeiri Schiavo...............................................*........................ 180
5. Autonomia prospectiva: as diretivas antecipadas de vontade e suas 
possibilidades normativas............................................................... 183
5.1. O panorama jurídico espanhol.................................. 184
52 . 0 panorama jurídico francês......................... 189
5.3.0 panorama jurídico brasileiro................................................ ........191
6 .0 exercício da autonomia para morrer face o direito brasileiro...........191
CONCLUSÃO...... ...................................................... 201
BIBLIOGRAFIA............................................................ 207
xi
Estudo Prévio 
A M orte
1. INTRODUÇÃO
Palavra pesada. Outro dia assisti na TV a um documentário 
interessante. O tema era o prolongamento da vida. Segundo o filme, 
existem pesquisas em andamento, financiadas por magnatas nortea- 
mericanos, que apontam para a possibilidade do prolongamento da 
vida humana em até 500 anos em um futuro próximo.
No filme, um magnata é entrevistado em sua limusine sobre 
a questão. A pergunta se refere ao acesso a esta tecnologia. Como 
faríamos em um mundo onde as pessoas não morressem mais e não 
parassem de nascer? Este mundo ficaria superpovoado. O magnata, 
sem hesitar, responde com um sorriso no rosto: “esta tecnologia 
não é para todos. Apenas as pessoas essenciais terão acesso a ela.” 
Sem dúvida ele se considera essencial.
Ao final do documentário é mostrada uma família que mora no 
campo, na França. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, adul­
tos e idosos em uma mesa com comida e bebida. Perguntada sobre 
a possibilidade de viver 500 anos, a pessoa mais idosa à mesa, uma 
senhora forte e alegre, responde: “jamais. Tudo tem seu ciclo, sua 
vez, devo partir para permitir que outros vivam”.
O que mais me chamou atenção para a hipótese de prolon­
gamento da vida foi a possibilidade psicológica de resistir a qui­
nhentos anos de vida. Talvez uma pessoa excessivamente egoísta 
ou um psicopata consiga viver quinhentos anos. Uma sociedade 
onde a vida tenha a expectativa de 500 anos, outros valores serão 
construídos para sustentar este exagero. Será que os riscos corridos 
aos vinte anos com uma expectativa de oitenta seriam corridos aos 
cem com uma expectativa de quinhentos? Viveríamos atemoriza­
dos pela hipótese de deixar de viver os quatrocentos anos que faltam 
e assim viveríamos menos do que os cinquenta bem vividos intensa­
mente? Quinhentos anos de monotonia e medo substituiriam setenta 
anos bem vividos? Como suportar a perda de uma pessoa amada aos 
cinquenta com a expectativa de oitenta e outra aos cinquenta com a 
expectativa de quinhentos? E se a pessoa amada morrer mais cedo 
ainda? Como guardar lembranças de experiências, frustrações, sau­
dades, perdas e ganhos dos quatrocentos e cinquenta anos vividos? 
"Viver quinhentos anos talvez seja efetivamente para os egoístas que 
financiam esta pesquisa. A nossa estrutura psicológica e cultural, nos­
sa relação com a vida e as pessoas, com as perdas e ganhos terão que 
ser completamente revistas para suportar quinhentos anos. O proble­
ma de que estas pessoas egoístas vivam quinhentos anos é que elas 
poderão sugar nosso trabalho, nossa vida, por mais tempo.
A questão da morte tem sido tratada pela literatura e o cinema 
de forma muito interessante e inteligente. É claro, há muito tempo. 
A morte pode ser muito bem vinda em determinados , momentos. 
O medo da morte, o medo do desconhecido e o medo do nada. 
Efetivamente não faz sentido ter medo do nada, pois no nada não 
existimos e, logo, não sofremos. O medo seria do desconhecido, 
mas talvez o nada assuste mais, pela difícil compreensão da não 
existência para quem existe.
Para pensar e discutir o tema, uma obra-prima do cinema. O 
filme “A morte cansada” é do diretor alemão Fritz Lang, um filme 
mudo produzido na Alemanha em 1921. Não tenha preconceito de 
filme antigo, é muito bom. Neste filme a morte se sente rejeitada e 
cansada; quer ser amada. Chegando em uma pequena cidade da Ale­
manha, a morte se estabelece em um terreno perto do cemitério e leva 
um jovem que estava prestes a se casar. Com a morte de seu amado, a 
jovem desesperada toma veneno para encontrar com a morte e tentar 
convencê-la a devolver seu amado. A morte então propõe um acor­
do: a jovem apaixonada terá três chances para evitar a morte de três 
amantes em três lugares diferentes: a Pérsia; Veneza e a China.
No mesmo sentido, a morte rejeitada e desejosa de ser amada 
entra em greve no sensacional livro de José Saramago: “As inter­
mitências da morte”.
E na ciência? Ora, a dura ciência com suas certezas incertas, 
com sua arrogância infantil, muito mais nova que a arte e a vida, 
a ciência precisa aprender a lidar com a vida e a morte. Pensava 
outro dia que nos tempos atuais de crise profunda expulsamos o 
amor do nosso cotidiano, das coisas “sérias”; da Universidade; das 
pesquisas com pretensão de encontrar verdades inabaláveis (que 
ainda acreditam existir); da administração do Estado, da empresa, 
da casa, e outros assuntos sérios como economia e política onde 
não há espaço para falar de amor. Ora, que coisa piegas e pouco 
científica é o amor. Mas como falar de vida e morte sem falar de 
amor? Entretanto o amor, nos tempos vividos, se encontra refugia­
do na poesia, um pouco na literatura (cada vez menos), um pouco 
no cinema (esparsos). Exilado, o amor só é lembrado na poesia, que 
longe de contar a vida, conta cada vez mais a saudade.
Mas deixemos de poesia. Como tratar a morte na ciência? Um 
ponto de partida, um pressuposto teórico fundamental consiste na 
percepção de que a morte é para nós algo flutuante, em permanente 
mudança, e as formas pelas quais a encaramos são da mesma forma 
mutantes. Daí que toda ciência que queira tratar dela (assim como 
a vida) deve permanentemente dialogar com a história, a cultura, o 
contexto e a diversidade. Neste sentido, um pressuposto teórico é 
a percepção de que todos os seres vivos, que toda a vida, e claro, 
nós, somos seres autopoiéticos (e não necessariamente; infelizmen­
te talvez; poéticos).
A percepção de que somos seres históricos (o direito natural 
e outras naturalizações das ciências sociais são graves distorções 
ideológicas), contextualizados; mutantes e agentes, também, desta 
mudança, é a condição primeira para qualquer diálogo com a vida 
e com a morte.
O pressuposto de que as verdades são construções históricas 
diversas, localizadas no tempo e no espaço não pode ser afastado. 
Não há, pois, universalismo genérico possível para cuidar do assun­
to. Como nos lembra Alain Badiou1, o universalismo é possível, e 
este se constitui na nossa capacidade de amar. No mais, o univer- *
f BADIOU, Alain. São Paulo, São Paulo:
Editora Boitempo, 2009.
XV
salismo se constrói na diversidade de cada vida; cada pessoa; cada 
família; cada bairro; cada comunidade; cada região; cada país; cada 
continente. Se não levarmos em consideração as complexidades e 
humanidades de cada caso concreto, com todo o seu entorno e di­
versidade, a vida e a morte serão mal tratadas.
Poderia, e talvez deveria, enceirar aqui minha participação 
nesta obra, mas para ser um pouco mais científico e menos poético 
ou filosófico, convido o leitor para pensarmos um pouco sobre au- 
topoiesis. Afinal, estamos, até onde é possível, por enquanto, saber; 
condenados a nós mesmos.
2. SOMOS SERES AUTOPOIETICOS
O real existe. O mundo ocidental vem se reencontrando com 
o seu passado, quando oriente e ocidente, materialismo e espiritua­
lismo não eram cuidadosamente separados. Em um destes reencon­
tros, a ideia de autopoiesis, como essencial à compreensão da vida, 
é retomada. Um destes reencontros está na obra de dois biólogos 
chilenos, Humberto Maluiana e Francisco Varela, que após experi­
ências com a visão de animais reconstroem o conceito de autopoie­
sis como condição de qualquer ser vivo.
Um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de 
que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos ne­
cessariamente, enquanto seres vivos, autorreferenciais e autorrepro- 
dutivos, e esta condição se manifesta também nos sistemas sociais.
Humberto Maturana e Francisco Varela2 trouxeram uma im­
portante reflexão no sentido de que, a partir da compreensão da 
vida na biologia, é possível resgatar a ideia de autorreferência apli­
cável a todo conhecimento.3
2 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. El Arbol Del Conoscímiento. 
Undécima edición. Santiago do Chile: Editorial Universitária, 1994.
3 No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: “Nosotros ten­
demos a vivir tin mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde 
nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de Ia manera que Ias vemos, 
y lo que nos parece cierto no puede tener otra alternativa. Es nuestra situación co-
XV2
Estudando a aparelho ótico de seres vivos4, os cientistas vira­
ram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado 
lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de 
cabeça para baixo e sua língua, quando era lançada para pegar uma 
presa, estava na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o 
aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir desta simples experiência temos uma conclusão que 
pode ser óbvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências du­
rante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignoran­
do o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. 
Entre nós e o que está fora de nós existe como que lentes que nos 
permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade 
de tradução de cada uma destas lentes.
Assim , para percebemos visualmente, ou seja, para interpretar­
mos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico 
limitado, que é capaz de perceber muitas cores, texturas, profundi­
dades, mas que não é capaz de perceber outras coisas, ou ainda, por 
vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algu­
mas imagens ou cores. O nosso olhar não é uma janela aberta para 
o mundo, mas uma construção interpretativa de nosso cérebro.
tídiana, nuestra condición cultural, nuestro modo comente de humanos.” Prosse­
guindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, 
suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: “Pues bien, 
todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito 
de caer en la tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, 
Francisco, ob.cit p. 5.
4 Nas páginas 8 e 9 do livro “EI arbol do conoscimiento”os autores propõem 
aos leitores experiências visuais que nos demonstram facilmente como a nos­
sa visão pode nos enganar, revelando q que não existe e não revelando o que 
esta lá, Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como 
nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no 
livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo dife­
rente mostra como o círculo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosa­
do. Ao final nos faz uma afirmativa contundente e importante para tudo que 
dizemos aqui; “el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de 
como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e VARELA, 
Francisco, ob.cit, p. 8.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão colocam-se entre 
nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos se­
res submetidos a reações químicas, e cada vez mais condicionados pela 
química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o 
mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a ale­
gria, e assim passamos a perceber^e interpretar o mundo. De outra forma, 
quando estamos felizes, excitados, ou quando tomamos drogas como os 
antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, 
alegre ou mesmo alienada. E como se selecionássemos as imagens e 
fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo 
a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança 
dos fetos, passa a ser influenciada por esta condição química. A cada vez 
que recordamos um fato, esta condição influencia nossa lembrança. A 
percepção diferente do mesmo feto ocorre uma vez que cada observa­
dor é um mundo, um sistema autoireferencial formado por experiências, 
vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na va- 
loração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percep­
ção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim podemos dizer que uma outra lente que nos permite 
traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, 
nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. 
O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está con­
dicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do 
mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumen­
tos decodificadores que, ao mesmo tempo em que nos revela um mun­
do, esconde outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões 
de conceitos como morte, liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, 
amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se livre 
hoje é diferente do sentir-se livre há cinquenta ou cem anos. A relação 
com a morte, o sentimento de perda, a percepção de sua relação com 
a vida também muda no tempo e no espaço, em cada cultura. O senti­
mento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, 
mesmo que em um detenninado momento do tempo possamos com­
partilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis.
Somos seres autopoiéticos (autorreferenciais e autorreproduti- 
vos) e não há como fiigir deste fato. Entre nós e o que está fora de
xvíií
nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos 
instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chama« 
mos de realidade, Nós somos a medida do conhecimento do mundo 
que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz são nossa 
dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior 
o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e com­
preensões (que se transformam em pré-compreensões que carre­
gamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, 
mais do mundo nos será revelado.
Assim não podemos falar em uma única verdade. Não há ver­
dades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador 
do
observado5. Este universo de relatividade se contrapõe aos dog­
mas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da au- 
topoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades ab­
solutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão 
e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A 
relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.
3. CONCLUINDO
Finalmente, para falarmos de vida e de morte, é necessário 
dialogarmos com outro filósofo importante na contemporaneidade: 
Giorgio Agamben. Para falarmos de vida e de morte é necessário 
dessacralizar estas palavras tão importantes, que ocultam e revelam 
ideias tão variadas.
O que é dessacralizar a morte. Vamos até Giorgio Agamben.
Agamben6 faz uma importante reflexão a respeito da constru­
ção das representações e da apropriação dos significados, o que o * *
5 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e 
vida cotidiana. Organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes. Belo 
Horizonte: Editora UFMG, 2001.
* AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris: Editora Payot et Rivages, 2005. As 
reflexões c interpretações livres desenvolvidas neste tópico são todas a partir do 
texto do filósofo Giorgio Agambem.
xix
autor chama de sacralização como mecanismo de subtração do livre 
uso das pessoas as palavras e seus significados; coisas e seus usos; 
pessoas e sua significação histórica,
O autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na 
antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do 
uso comum, do uso livre das pessoas, Há uma subtração do livre 
uso e do comércio das pessoas, A subtração do livre uso é uma for­
ma de poder e de dominação. Assim consagrar significa retirar do 
domínio do direito humano sendo sacrilégio violar a indisponibili- 
dade da coisa consagrada.
Ao contrário profanar significa restituir ao livre uso das pesso­
as. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados, 
e, logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não 
estão condicionados a um uso específico separado das pessoas. A 
coisa restituída ao livre uso é pura no sentido que não carrega sig­
nificados aprisionados, sacralizados.
Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e co­
mum, a função da religião é de separação. A religião para o autor 
não vem de “religare”, religar, mas de “relegere” que significa uma 
atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações 
com os deuses. A hesitação inquietante (ato de relire) deve ser ob­
servada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Re- 
ligio não é o que une os homens aos deuses, mas, sim, aquilo que 
quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. 
O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício.
O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o 
mito. É pelo rito, que simboliza um mito, que o profano se transfor­
ma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos onde ocorre a 
passagem para outra esfera: a esfera separada. Um ritual sacraliza e 
um ritual pode devolver ou restituir a coisa (ideia, palavra, objeto, 
pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa 
separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Este contágio 
pode restituir o sagrado ao profano.
A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades 
contemporâneas em diversas esferas onde o recurso ao mito junta­
XX
mente com o rito cumpre uma função de separação, de retirada de 
coisas, ideias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da 
livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de di­
álogo. A religião como separação, como sacralização, há muito inva­
diu a ciência; a política; a economia e as relações de poder na socie­
dade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que 
se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. 
As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com 
o recurso ao mito para impor uma ideia sacralizada a toda a popula­
ção. No espaço religioso do capitalismo não há espaço para a racio­
nalidade discursiva, pois qualquer tentativa de questionar o sagrado 
é sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das 
discussões de política econômica. Por isto os proprietários reagem 
com raiva à tentativa de diálogo, pois para eles este diálogo é um sa­
crilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo.
Este recurso está presente no poder do estado e em rituais diários 
do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a orde­
nação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em 
poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova 
pessoa após o ritual. Isto ganha tanta força no mundo contemporâneo 
que várias pessoas que frequentam um curso superior hoje não preten­
dem adquirir conhecimentos, o processo de passagem por um curso 
não é para adquirir conhecimentos, mas, sim, para cumprir créditos 
(até a linguagem é econômica) para, no final, passar pelo rito que o 
transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o 
rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição 
do conhecimento. O espaço universitário está sendo transformado pela 
religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adqui­
rido no decorrer de um processo, que deveria ser transformador, perde 
importância em relação ao rito (a formatura) e o mito (o diploma).
Como resistir a perda da liberdade? Como resistir à sacrali­
zação das relações sociais, econômicas e logo à perda da possibi­
lidade de fazer diferente, de fazer livremente o uso das coisas, das 
palavras, das ideias? Como se opor à subtração das coisas ao livre 
uso? Como se opor à sacralização de parte importante de nosso 
mundo, de nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar
xxi
esta possibilidade de libertação é “negligência” que pode permitir a 
profanação da coisa sacralizada.
“Negligência”, aqui, não pode ser traduzida como uma atitude 
de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado, isto pode até 
fortalecê-lo. Tampouco o confronto direto. O que ameaça o sagrado 
é uma atitude de “negligência’^ entendida como uma atitude, uma 
conduta simultaneamente livre e distraída face às coisas e seus usos. 
Não é ignorar a coisa7 sacralizada, mas prestar atenção na coisa sem 
considerar o mito que sustenta sua sacralização. Negligência neste 
caso significa desligar-se das normas para o uso. Adotar um novo 
uso descompromissado de sua finalidade sagrada, ou seja, de sua 
função de separar. Logo, profanar significa liberar a possibilidade 
de uma forma particular de negligência que ignora a separação, ou 
antes, que faz uso particular da coisa.
A passagem do sagrado para o profano pode corresponder a 
uma reutilização. Muitos jogos infantis (jogo de roda; balão; brin­
cadeiras de roda) derivam de ritos, de cerimônias para a sacrali­
zação como uma cerimônia de casamento. .Os jogos de sorte, de 
dados, derivam das práticas dos oráculos. Estes ritos separados de 
seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato 
sagrado é a consagração do mito (a estória) é o rito que o reproduz. 
O jogo (negligência) desfaz esta ligação. O rito sem o mito vira 
jogo, é devolvido ao livre uso dás pessoas. O mito sem o rito perde 
o caráter sagrado, vira uma. qstória. Importante lembrar que negli­
gência não significa falta de/àtençao. Uma criança quando joga tem 
toda a atenção no jogo. Ela apenas negligencia o uso sagrado ou o 
mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição.
Devemos dessacralizar a ciência, a economia, o direito, a polí­
tica devolvendo estas esferas ao livre uso do povo. Construir novos 
usos livres.
Numa época onde a dessacralização é fundamental diante da 
dimensão
que a sacralização tomou, as pessoas, em meio ao deses­
pero, buscam um retomo ao sagrado em tudo. O jogo como pro­
fanação, como uso livre está hoje decadente. As pessoas parecem 
incapazes de jogar e isto se demonstra com a proliferação de jogos
7 Coisa aqui significa ideias, objetos, pessoas, palavras, animais, ritos, danças, cte.
xxti
prontos, sacralizados, com regras herméticas, onde os novos usos 
são quase impossíveis ou invisíveis. Os jogos televisados como 
grandes espetáculos de massa acompanham a profissionalização e a 
mitificação dos jogadores (os ídolos).
A seculaxização dos processos de sacralização que dominam as 
sociedades contemporâneas pennite com que as forças de separação 
pennaneçam intactas sendo apenas mudadas de lugar. A profanação 
de maneira diferente neutraliza a força que subtrai o livre uso, neutra­
liza a força do que é profanado. Trata-se de duas operações políticas: 
a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e 
rito agora em outro espaço; a segunda desativa os dispositivos do 
poder; separa o rito do mito permitindo o livre uso.
Para falarmos de vida e de morte o desafio consiste em consi­
derar a cultura, a história, os sentidos prévios, muitos sacralizados, 
mas ao mesmo tempo, considerando as sacralizações promovidas 
pela cultura hegemônica, pelo poder e pela religião, sermos capazes 
de discutir nossas posições com liberdade. Em outras palavras, pre­
cisamos, como Anthony Giddens propôs ao desenvolver a ideia de 
destradicionalização, trazer as tradições para o espaço da discussão 
livre. Não se trata de desconsiderar as tradições, não se trata, também, 
de promover falsas universalizações, que partem de falsas pretensões 
civilizatórias; a proposta é discutir tudo, em condição de igualdade, 
sem hegemonias, respeitando a diversidade e o contexto.
Atentos a tais exigências discursivas, os autores nos convidam 
a uma reflexão jurídica acerca da possibilidade normativa do exer­
cício da autonomia para monrer. E para tanto reforçam a necessi­
dade de reconhecimento da pessoa humana como interlocutora em 
uma rede de interlocução, o que pressupõe alteridade e resguardo 
da sua liberdade comunicativa. Assim, como afirmam os autores, 
“se a manifestação da pessoalidade se dá pelas pulsões da vida, a 
pennitir que o indivíduo humano se construa pessoa, a morte, se 
integrante do projeto de pessoalidade, também exprime esta reali­
zação, ainda que paxa o seu fim.”
José Luiz Quadros de Magalhães 
Doutor e Mestre em Direito.
xxiii
Introdução
“Quiero reivindicar la eutanasia legal, o, por lo menos, que se 
despenalice el suicídio asistido. Ojalá con mi caso se reabra el deba- 
te ,>n Com essas palavras Pedro Martínez trouxe novamente à baila a 
discussão sobre o direito de morrer dignamente. Pensando melhor, 
trouxe a discussão sobre o direito de viver dignamente até o fim.
Pedro nasceu em Teruel, Espanha e foi acometido por uma do­
ença neurodegenerativa progressiva e fatal, E L A - esclerosis lateral 
amiotrófica, caracterizada pela degeneração dos neurônios motores, 
as células do sistema nervoso central que controlam os movimentos 
voluntários dos músculos, e com a sensibilidade preservada. Não 
há causa conhecida para a doença e, tampouco, tratamento. Afeta 
quase sempre pessoasjovens e a sobrevivência média, a partir do 
diagnóstico, não excede três anos, segundo explica a reportagem 
feita pelo jornal El País.
Pedro vivia com sua noiva, em total situação de dependência. 
Era ela quem o alimentava e fazia toda sua higiene pessoal. Além 
de Lola, amigos próximos se revezavam na tentativa de levar algum 
estímulo ao doente: 6<Veo la tele, porque no puedo sujetar un libro 
para leer. No puedo ni pasar las hojas. A veces, algún amigo me lee 
algo, pero me canso.”* 2
Segundo relato de El País, a paralisia afetou a capacidade vocal 
de Pedro, o que tomava a entrevista difícil. Lola, sua noiva, por vá­
rias vezes, serviu de intérprete. Com problemas na garganta, difícil se 
tomava a alimentação. Para Pedro, 'tratava-se de uma verdadeira tor­
* Entrevista dada por Pedro Martínez ao jornal El Pais, em: ‘‘VIVO en una cárcel que
se estrecha.” El Pais, Sevilha, 22 de dezembro de 2011. Disponível em: <http://so« 
ciedad.elpais.eom/sociedad/2011/12/21/actualidad/l324491408^088893.btml>.
2 “VfVO en una cárcel que se estrecha.” El Pais> Sevilha, 22 de dezembro de 
2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/201 î/12/21/actuali* 
dad/1324491408J)88893,html>.
2 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREDRA
tura, principalmente porque engasgava constantemente e, por várias 
vezes, a comida tinha ido parar nos pulmões: “El hombre empieza a 
tener problemas con la garganta y tragar cada comida es una tortura y 
una amenaza. Además, me cuesta mucho masticar. Tengo que pasarlo 
todo con mucho líquido, y eso es más peligroso.”3
Aos trinta e quatro anos Pedro tomou a decisão de que não 
viveria mais e, para tanto, pedia por uma sedação terminal. Recu­
sava-se ao uso de sondas para alimentação e também disse não ser 
favorável a um respirador artificial. Diante da negativa em internar- 
se em hospital pediu auxilio ao serviço de cuidados paliativos. Con­
tudo, para sua surpresa, profissionais da área, ao visitá-lo, disseram 
não poder ajudá-lo, pois Pedro não era um doente terminal:
Han venido a verme y dicen que no me estoy muriendo, aunque 
saben que no v o y a vivir mucho. Que esto no es una agonia. Me 
han llegado a decir que deje de comer y beber unos dias, y que a s í , . 
cuando m e deteriore, podrán aplicanne la sedación paliativa; los 
he echado de casa.4 \
De fato, nada mais hipócrita. Não estando o paciente em si­
tuação terminal, a única maneira de ser-lhe dada a sedação seria 
pela falta de alimentação e hidratação, fato que levaria Pedro a 
uma condição de deterioração física. Lembramos que a Espanha 
penaliza a eutanásia, considerando-a homicídio e a ajuda necessária 
ao suicídio também é crime pelo Código Penal, mesmo que com 
atenuantes. A Andaluzia possui lei para morte digna, mas esta foi 
pensada para pacientes com câncer, que se vêem em situações de 
terrninalidade, o que não era o caso de Pedro Maxtínez.
Pedro contatou o Serviço Derecho a Morir Dignamente. Ao ava­
liarem a situação, médicos da associação consideraram intolerável 
seu sofrimento. Diante do consentimento do paciente e, dado que não
3 “VIVO en una cárcel que se estrecha.” El País, Sevilha, 22 de dezembro de 
2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/20n/l2/21/actuali- 
dad/1324491408J)88893.html>.
4 “VIVO en una cárcel que se estrecha.” El Paíst Sevilha, 22 de dezembro de 
2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/2011/12/21/actuali- 
dad/1324491408_088893.html>.
AUTONOMIA PARA MORRER 3
havia qualquer tratamento para melhora ou cura, a sedação foi dada. 
Pedro morreu em sua casa, ao lado de sua noiva, seus familiares, seus 
amigos e seu cachorro, depois de uma festa de despedida.
Indagado sobre a possibilidade de vida após a morte, disse: “No 
tengo ni idea. Ojalá volvamos a la vida para seguir aprendiendo. 
Cuando nos veamos ahí, y que sea muy tarde, ya lo sabremos.”5
Contamos esse caso para afirmar que a vida nos remete à auto­
nomia. Aos melhores interesses das pessoas. À aptidão para a ma­
nifestação da vontade. A construção não mais puramente biológica, 
mas também biográfica de cada um. À dignidade da pessoa humana 
que pode,ser traduzida pela garantia de que todos se reconheçam 
livres e iguais em direitos. E, para a efetivação desta dignidade, é 
necessário que os outros se conscientizem de que cada um tem seus 
próprios interesses críticos, cada pessoa é dotada de um padrão mo­
ral que lhe é próprio.
Eis o que pretendemos discutir nesse livro.
5 “VTVO en una cárcel que se estrecha.” El Paist Sevilha, 22
de dezembro de 
2011. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedacV20n/12/21/actuali- 
dad/1324491408J )8 8893.html>,
Em Busca dos Fundamentos da Autonomia 
para Morrer: M oralidade e Pessoalidade
Passado este tempo, faço um balanço do caminho percorrido e não 
m e dei conta de ter havido felicidade. Só o tempo que passou, con­
tra a minha vontade, durante a maior parte da minha vida, será a 
partir de agora o m eu aliado. Só o tempo e a evolução das consci­
ências, decidirão algum dia, se o m eu pedido era razoável ou não. 
(SAM PEDPO , Ramón, 2004)
1. INTRODUÇÃO
Não raras são as discussões revolvidas no nosso cotidiano 
acerca de uma possível autonomia para morrer. O “querer mor­
rer” expressa, pelo menos em um primeiro momento, espanto para 
aquele que'ouve alguém dizê-lo. A impressão inicial é que ainda 
estamos propensos a acreditar que a vida segue um fluxo que retira 
de nós mesmos a possibilidade de deliberar sobre ele. Trata-se de 
um acontecer inabalável que até mesmo as nossas escolhas aparen­
tam estar aquém daquela possibilidade de morte. Parece haver um 
instinto de conservação que acaba por ser corrompido pelo querer 
morrer, ou mesmo uma força divina que retira do indivíduo tal “ar­
bitrariedade” atentatória contra si mesmo.
Tal discussão, não obstante bem enfatizada na contemporanei- 
dade pelos avanços das biotecnologias e da farmacologia, é algo 
que está a ocorrer desde os tempos de outrora. Desde os primórdios 
da humanidade já se discutia se o indivíduo teria a possibilidade de 
deliberar sobre a sua própria morte.
Na Mitologia Grega, o fato “morte” se consubstanciava como 
desfecho da atividade das Moiras, três irmãs que determinavam o 
destino do homem e, assim, decidiam sobre a duração da vida de 
uma pessoa e seu quinhão de atribulações e sofrimentos. Cloto era
6 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO DUNA MOURJEERA
a moira que segurava e esticava o fio da vida. Laquesis, por sua vez, 
era a responsável por medir e distribuir os acontecimentos e Átro- 
pos cortava o fio, determinando o momento em que se daria a morte 
de cada um. Neste contexto, o fato morte encontrava-se atrelado à 
ação de uma das “Fiandeiras do Destino”. No desenrolar do fardo 
da vida, cabia à Átropos decidir quando o evento morte oconreria1.
Para os gregos, a ideia de destino representava mn dos aspec­
tos mais problemáticos da existência humana, pois a crença em uma 
predeterminação ordenadora do universo e o fardo de cada homem, 
não poderiam ser modificados nem mesmo pelos deuses. Segundo 
Pierre Grimal, os gregos acreditavam que “na origem, cada um tem 
a sua ‘mera’, o que significa a sua parte (de vida, de felicidade, de 
desgraça, etc.)1 2”, devendo a ela se curvar e aceitar a condição que 
lhe fora exteriorrnente predeterminada.
Neste sentido, relata Platão no diálogo do Fédon que Sócrates, 
encontrando-se aprisionado aguardando pela hora da morte, teria 
afirmado que assim como os escravos são propriedades de homens 
livres, os homens são propriedades dos deuses, não podendo, por­
tanto, dispor da sua vida, salvo quando houver uma necessidade 
enviada pelos próprios deuses a justificar a morte.
O amadurecer da modernidade colocou o homem no centro 
das problemáticas existenciais e introduziu o conceito de autono­
mia como foco das especulações teóricas. Sobretudo a partir da fi­
losofia kantiana, a autonomia é destacada e introduzida na reflexão 
filosófica e, consequentemente, movida ao discurso jurídico. Este 
diferencial está no fato de, na filosofia kantiana, o homem não ser 
determinado pela existência e conteúdo da moralidade exterior a 
ele3, mas tanto a possibilidade do conhecimento quanto apossibili-
1 SÁ, Maria de Fátima Freire de; PONTES, Maila Mello Campolina. Autonomia 
privada c o direito de morrer. In FIÚZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; 
NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil Atualidades III: princípios 
jurídicos no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 37-54.
2 GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana, 5“ ed. Rio de Janei­
ro: Bertrand Brasil, 2005, p. 306.
5 SCHNEEWIND, J. B, A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, 
p. 559.
AUTONOMIA PARA MORRER 7
dade do estabelecimento do agir moral pressupõe a autodetermina- 
çâo do próprio indivíduo.
Na Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant assume 
a autonomia, atrelando-a ao fundamento a priori de dever aplicável 
ao mundo sensível, de forma que um sujeito verdadeiramente au­
tônomo seria aquele que age a partir de uma detemiinação interna, 
livre de inclinações, de forma que sua ação valeria para todo o ser 
racional em geral.
O exercício dessa autonomia, que permite o reconhecimento 
dos sujeitos como fins em si mesmos e legisladores universais, se 
dá no que Kant conceitua de reino dos fins, isto é, um reino onde 
há uma “ligação sistemática de vários seres racionais por meio de 
leis comuns4”, seja a atuar como membro legiferante, submetido à 
mencionada lei, seja como chefe, quando se mantendo legislador, 
“não está submetido à vontade de um outro5”. Todavia, o reino dos 
fins é ideal6, a priori, e somente se realizaria verdadeiramente, se 
as máximas fossem universalmente seguidas, conforme ditado pelo 
imperativo categórico a todos os seres racionais.
De acordo com Kant, todos os seres racionais estão submeti­
dos à lei “que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo 
ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultanea­
mente como fin s em si7”, sendo que, em razão do exercício de iguais 
liberdades buscado pela filosofia transcendental kantiana, “o dever 
não pertence ao chefe do reino dos fins, mas sim a cada membro 
e a todos em igual medida8.” É nesse viés que surge o conceito de 
dignidade na filosofia kantiana, haja vista que se a natureza humana
4 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa; Edi­
ções 70,2007, p. 75.
5 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa; Edi­
ções 70,2007, p. 76.
6 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa: Edi­
ções 70,2007, p. 76.
7 KANT, Immanuel, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edi­
ções 70,2007, p. 76.
* KANT, Immanuel Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa; Edi­
ções 70,2007, p. 77.
$ MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREERA
existe como fim em si mesma, a dignidade certamente deriva da au­
tonomia do ser racional, capaz de estabelecer o espaço e os limites 
da sua atuação, um ser consciente de si e que se auto-constitui
Colocar o homem e a sua subjetividade no centro da indaga­
ção filosófica, reconhecendo-o como fim em si mesmo, dotado de 
autonomia a ponto de tomá-lo legislador universal, que reconheça 
o outro também como fim em si mesmo e do mesmo modo dotado 
de autonomia, deflagra o caráter instigador da indagação kantiana 
acerca do que vem a ser o homem e das possíveis respostas em 
tomo de questões filosóficas, sociais e jurídicas que envolvam o 
homem e suas possibilidades existenciais na modernidade.
Não obstante tais argumentações em prol de uma autonomia 
que pressupõe o sujeito enquanto legislador, Kant apresenta-se con­
trário à possibilidade de qualquer indivíduo dispor da própria vida. 
Em A m etafísica dos costumes Kant afirma que o ser humano pode 
ser determinado por sua razão Qiomo phaenomenon), isto é, como 
uma causa às ações no mundo sensível, e, também, como um ser 
dotado de liberdade interior Qiomo noumenon), ou seja, quando o 
homem pode ser pensado em termos de sua personalidade. Nesta 
hipótese, afirma Kant que o homem pode ser submetido a obriga­
ções para consigo mesmo, inclusive àquelas obrigações para com a 
humanidade em sua própria pessoa9.
O “ter dever consigo mesmo” significa, na proposta kantiana, 
que embora livre, o homem deve observar determinadas
coordena­
das de não-liberdade que endossa a sua própria humanidade, pois:
[...] supondo que não h ou vesse tais deveres, não haveria deveres 
quaisquer que fo ssem e, assim , tam pouco deveres externos, posto 
que p osso reconhecer que estou subm etido à obrigação a outros 
som ente na m edida em que eu sim ultaneam ente submeto' a m im 
m esm o à obrigação, um a v e z que a le i em virtude da qual ju lgo 
a m im m esm o com o estando subm etido à obrigação procede em 
todos os casos de m inha própria razão prática e no ser constran­
g ido por m inha própria razão, sou tam bém aquele que constrange 
a m im m esm o 10.
9 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003» p. 260.
15 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003» p. 260.
AUTONOMIA PARA MORRER 9
Com respaldo em tais considerações, sobretudo pelo realce no 
dever para consigo mesmo, Kant apresenta tese contrária ao suicídio, 
pois o primeiro dever de um ser humano para consigo mesmo é pre­
servar a si mesmo em sua natureza animal11. Em consequência, o sui­
cídio é um crime, na medida em que representa a violação do dever 
do homem para com outros seres humanos. Assim, afirma Kant:
U m ser humano não pode renunciar à sua personalidade enquanto 
for um sujeito do dever e, por conseguinte, enquanto viver; e cons­
titui um a contradição que devesse estar autorizado a esquivar-se de 
toda obrigação, isto é, agir livrem ente com o se nenhuma autoriza­
ção fosse necessária a essa ação. Aniquilar o sujeito da moralidade 
na própria pessoa é erradicar a existência da moralidade m esm a do 
m undo, o m áxim o p ossível, ainda que a moralidade seja um fim 
em si mesm a. Consequentem ente, dispor de si m esm o com o um 
m ero m eio para algum fim discricionário é rebaixar a humanidade 
na própria pessoa (hom o noumenon), à qual o ser humano Qiomo 
phaenom enon) foi, todavia, confiado para preservar* 12.
Na atualidade, sob o contexto de uma sociedade pluralista que 
busca a todo. instante afirmar-se efetivamente democrática, revolver 
a possibilidade do “querer morrer”, é algo que implica em discus­
sões que, não obstante antigas, se encontram sob uma realidade 
dialógica diferente dos tempos de outrora.
Ainda assim, persistentemente, a questão é instigante e revol­
ve polêmicas há muito discutíveis: temos autonomia para moixer?
É comum acompanharmos nos noticiários a manifestação da 
vontade de pessoas que, em perfeito estado de consciência mental 
ou mesmo quando representadas por outrem, imploram que lhes 
seja permitido o exercício da autonomia para morrer. Muitas vezes 
pedem para que outros lhes proporcionem a morte. É dramática a 
situação de famílias que mantêm, nás respectivas casas, doentes em 
estado vegetativo, acometidos de males degenerativos, que só se 
encontram vivos porque ligados a aparelhos ou porque alimentados 
por sondas.-
,f KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003, p. 263.
15 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003, p. 264-265.
10 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREERA
A sociedade, os juristas, os filósofos e os médicos se dividem 
na argumentação: os que defendem a possibilidade do morrer pren­
dem-se ao argumento de que, na Medicina, existem quadros clínicos 
irreversíveis em que o paciente, muitas vezes passando por terríveis 
dores e sofrimentos, almeja a antecipação da morte como forma de 
se livrar do padecimento que se toma viver. Afinal, a vida não pode­
ria se transformar em dever de sofrimento. A antecipação da morte 
não sô atenderia aos interesses do paciente de morrer com dignidade, 
como daria efetividade ao princípio da autodeterminação da pessoa 
em decidir sobre sua própria morte, a exercitar a sua liberdade.
Os que se opõem à possibilidade do querer morrer sustentam, 
dentre outros argumentos, ser dever do Estado preservar, a todo 
custo, a vida humana, entendida esta como bem jurídico supremo. 
O poder público estaria obrigado a fomentar o bem estar dos cida­
dãos e a evitar que sejam mortos ou colocados em situação de risco. 
Eventuais direitos, do indivíduo estariam, muitas vezes, subordina­
dos aos interesses do Estado, que obrigaria a adoção de todas as 
medidas visando ao prolongamento da vida, até mesmo contra a 
vontade da pessoa.
A discussão em tomo de uma autonomia para morrer pressu­
põe a análise da moralidade e suas possibilidades na sociabilidade 
moderna. O conceito de moralidade aqui tratado refere-se à liber­
dade possibilitada e exercida pelo indivíduo humano no processo 
de construção de si mesmo. Trata-se do exercício da autonomia 
compreendida como autorreflexão que pressupõe o outro enquanto 
responsável pela definição do eu.
No filme “Mar Adentro”, dirigido por Alejandro Amenábar, 
Javier Bardem interpreta a ousada “aventura pela vida” de Ramón 
Sampedro, um homem que lutou incansavelmente para pôr fim à 
sua vida — ou sobrevida? - após um grave acidente na juventude 
que o deixou tetraplégico e encarcerado em sua própria cama por 
28 anos, 4 meses e alguns dias. Na sua saga, Ramón enfrentou uma 
série de embates para efetivar o seu “querer morrer dignamente”, 
mas a todo instante, além das críticas dos mais variados seguimen­
tos da sociedade, é impedido de fazê-lo*
AUTONOMIA PARA MORRER 11
Levado o caso ao Poder Judiciário, Ramón vê negado o seu 
pedido para autorização da eutanásia. Indignado com a depísão do 
tribunal, Ramón se volta aos juízes, às autoridades políticas e re­
ligiosas através de uma carta para fazer uma pergunta que até a 
atualidade vem causando nos juristas os mais diversos questiona­
mentos e estarrecimentos. Embora a pergunta seja simples de ser 
formulada, a resposta, não.
Assim, questionou Ramón “o que é para vocês a dignidade?”
Embora a resposta a esta pergunta não seja única, a construção 
de um possível argumento está a demandar dialogicidade na defini­
ção daquilo que há muito se denominou “vida boa”. Não se trata da 
imposição de um projeto moralmente válido ou majoritariamente 
aceitável, mas um compartilhar. Foi sob este enfoque que soou a 
voz de Ramón Sampedro ao se autoafirmar diante da situação a 
qual se encontrava: “seja qual for a resposta das vossas consciên­
cias, saibam que para mim isto não é viver dignamente. Eu queria, 
aò menos, morrer dignamente.”
As correntes que discutem a autonomia para morrer se avolu­
mam e, ao lado delas, conceitos referentes ao processo do morrer 
vêm à tona: fala-se em eutanásia ativa, eutanásia passiva ou or- 
totanásia, distanásia, mistanásia, suicídio assistido e outros, todos 
relacionados entre si, mas com particularidades de cada tipo, donde 
há possibilidade de serem tratados de acordo com as respectivas 
especificidades conceituais.
A questão que emerge é a seguinte: ainda que existam regras 
específicas sobre o homicídio, poder-se-ia, diante de casos concre­
tos, proceder a julgamentos com fulcro em princípios atinentes à si­
tuação, a fim de se buscar uma decisão correta, de modo a respeitar 
a integridade do Direito, tal como preconiza Dworkin? Vale dizer: 
Há possibilidade de se construir a norma a partir da interpretação 
do sistema de princípios?
De antemão, sabe-se que ter uma morte digna é um problema 
que se impõe à reflexão de muitos: fala-se que a morte apaga as dife­
renças entre os seres humanos; de fato, porém, ainda subsistem mui­
tas diferenças na morte, ocasionadas, talvez, por reflexos de situação
12 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / D I0G 0 LUNA MOUREffiA
social. Assim» a primeira coisa que um doente terminal pede à socie­
dade é que respeite, dentro do possível, o seu modelo de enfocar e 
viver a morte, embora médicos, familiares e a sociedade imponham 
um tipo de morte que não corresponde aos seus legítimos desejos. 
Como exemplo, eis a súplica e indignação de Ramón Sampedro:
H oje, cansado da preguiça institucional, vejo-m e obrigado a fazê- 
lo às escondidas, com o um crim inoso. Saiba que o processo que 
conduzirá à m inha m orte, fo i cuidadosam ente dividido em peque­
nas ações que não constituem um delito em si m esm as, e foram 
executadas por diferentes m ãos am igas. A pesar disso, se o Estado 
insistir em punir os m eus ajudantes, eu aconselho que lhes sejam 
cortadas as m ãos porque foi essa a sua única contribuição. A ca­
beça, quer dizer, a consciência fo i provida por m im . Como podem 
ver, ao m eu lado tenho um copo de água contendo um a dose de cia­
neto de potássio. Quando a beber, deixarei de existir, renunciando 
ao m eu bem m ais precioso, o m eu co ip o .13
De mais a mais, o mito da igualdade se revela entre a pessoa 
sã e aquela que se encontra doente. É que se verifica a crise da titu­
laridade dos direitos do doente irreversível pela impossibilidade de 
desfrute. Cabe demonstrar a liberdade como mecanismo de supera­
ção da inacessibilidade definitiva ao objeto dos direitos.
Interesses conflitantes estão em xeque: o princípio da liber­
dade do sujeito e o princípio da indisponibilidade da vida. Mas e 
a vida? Para os defensores da autonomia para morrer, o conceito 
de vida precisa ser repensado e deve ser encarado sob novo para­
digma: Será que viver bem é viver muito? Será que vida digna é 
aquela segundo a qual o indivíduo, a despeito de todas as dores e 
sofrimentos que lhe tenham sido causados por determinada doença, 
ainda se mantenha ligado a aparelhos, ou sem eles, mas totalmente 
infeliz e dependente da boa vontade de outras pessoas? Na linha de 
raciocínio daqueles que são favoráveis à escolha do paciente, a vida 
só deve prevalecer como direito fundamental oponível erga omnesi 
enquanto for possível se viver bem. Será que outros valores deve­
riam ser repensados a partir do momento em que a saúde do corpo 
e da mente já não mais garanta o bem-estar do indivíduo?
13 SAMPEDRO, Ramón. Cartas desdê el tnflerno. Barcelona: Planeta EspaÜa, 2004.
AUTONOMIA PARA MORRER 13
Há um direito à vida que retira do próprio indivíduo a possíbi- 
lidade dele dispor? Seria o viver um direito ou um devei? Uma pos­
sível resposta foi há muito dada por Ramón Sampedro ao afirmar 
que para ele viver é um direito e não uma obrigação.
A cada dia que passa, estamos diante de diversos pedidos judi­
ciais de pessoas que gostariam de se ver livres de sofrimentos cau­
sados por doenças degenerativas e incapacitantes, ou de famílias 
que pretendem ver desligados aparelhos de entes que se encontram 
em situação vegetativa. Inegável que os avanços biotecnológicos 
e farmacológicos têm tomado cada dia mais dificultoso o morrer. 
É por tal razão que, na atualidade, a autonomia para morrer tem se 
tomado uma possibilidade discursiva, antes pouco questionada e 
que queremos aqui, uma vez mais, discutir.
De antemão, é possível afirmar que sustentar a existência de 
uma autonomia para morrer pressupõe a compreensão da liberda­
de do indivíduo moderno como um médium para realização de si 
mesmo, ou seja, trata-se da efetivação de um projeto biográfico que 
pressupõe a construção, efetivação e busca por reconhecimento da 
sua pessoalidade, Antes, porém, necessário compreender o proces­
s o moderno que implicou na possibilidade do indivíduo humano, 
em um ato de liberdade, construir a si mesmo, com e contra o outro 
(alter), em um processo dialético de convivência.
2. A MORALIDADE MODERNA E AS PREMISSAS PARA A 
COMPREENSÃO DA REALIZAÇÃO DA PESSOALIDADE 
COMO PRODUTO DA AUTONOMIA14
Ressalvadas algumas particularidades que não nos compete 
retratar neste momento, é possível afirmar que o pressuposto pri­
mitivo daquilo que a modernidade denominou de autonomia teve 
suas bases no cristianismo medieval. Referimo-nos ao esforço do
Sobre conceito de pessoalidade 1er: MOUREIRA, Diogo Luna. Pessoas e autono­
mia privada: dimensões reflexivas da racionalidade e dimensões operacionais da 
pessoa a partir da teoria do direito privado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
14 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREIRA
cristianismo medieval em proporcionar a interiorização do indiví­
duo kumanOy a partir do reconhecimento de ser ele portador de uma 
essência que se dirige à divindadé15.
A proposta cristã de interiorização implicou no reconhecimen­
to de um a substância humana que vai além daquilo que se exterio­
riza, mas que alcança poteiicialidades que permitem contato com 
o sagrado: “para lá do olho exterior e do ouvido exterior há o olho 
interior e o ouvido interior”, que são capazes de perceber “a visão 
divina, a palavra e o rum or do mundo mais real: o das verdades 
eternas.”16
Foi assim que a igreja católica assumiu um a posição de domí­
nio > já que impôs a todos, através da sua autoridade, um conceito 
de m oralidade pautado em conceitos por ela firmemente definidos e 
im utáveis17. Ao mesmo tempo em que abria as possibilidades para o 
reconhecimento da interioridade, ainda que para o pecado, fechaya 
todas essas possibilidades pela obediência devida a Deus e às suas 
leis, graças à moralidade conduzida pela obediência18.
A possibilidade de se assumir um a pessoalidade na idade 
m édia estava, pois, diante do surgimento de nova estrutura cog­
nitiva dom inada pela condução ideológica da religião cristã, que 
adequou aos seus interesses todos os arquétipos do pensamento 
grego. Ao indivíduo humano se abre uma nova forma de pensa­
m ento, pois toda a naturalidade, que outrora emanava da própria 
natureza, passa a advir de predeterminações divinas. Deus passou
15 Segundo Gioele Solari, “el Cristianismo significó espontaneidad e independên­
cia de la conciencia contra toda coerción exterior, y favoreció el desairollo de 
la individualidad espiritual que el Estado antiguo, demasiado a menudo, había 
desconocido y sacrificado a la razón política.” (SOLARI, Gioele. Filosofia dei 
Derecho Privado. Buenos Aires: Depalma, 1946, p. 9)
,fi LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 17.
17 Segundo Jacques Le Go££ a idade média conhece um cristianismo dominador 
“que é simultaneamente uma religião e uma ideologia e que mantém, portanto, 
uma relação muito complexa com o mundo feudal contestando-o e justificando-o 
ao mesmo tempo.” (LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estam­
pa, 1994, p. 38)
11 SCHNBEWIND, J. B. A invenção da autonomia. SSo Leopoldo: Unisinos, 2001» 
p .3 0 .
AUTONOMIA, PARA MORjRJER 15
a ser o condutor da moralidade medieval ç a igreja a intermediária 
entre ele e os homens,
A inferioridade humana impediu que o homem assumisse as 
coordenadas da sua própria ação, como um possível resquício de 
liberdade sugeriria. Aq homem era impossível orientar as suas 
ações a partir de si mesmo, posto que nem este reconhecimento 
de si mesmo como livre e individual era algo existente. O máximo 
que a ele era atribuído era vontade, e isto já era reconhecido pela 
tradição cristã. Só que esta vontade leva-o ao pecado e à morte, 
cabendo à igreja, na condução benevolente da moralidade, resgatá- 
lo. Como afirma J. B. Schneewind, “mesmo que todos tenham as 
leis mais fundamentais da moralidade escritas em seus corações ou 
consciências, muitas pessoas precisam ser instruídas por alguma 
autoridade adequada sobre o que é moralmente requerido em casos 
particulares.”19
O céu e o inferno são transformados em palco para repressão, 
sendo as glórias celestes quase inalcançáveis pelo homem comum. 
Dor, suor, lágrimas, penitências e incansáveis prostrações são os 
passos para o seu alcance. O inferno, ao contrário, era o destino 
certo e irremediável para qualquer humano, salvo quando a mise­
ricórdia divina fosse alcançada, ou, porque não, comprada. Neste 
contexto, “Satanás, Deus, a alma e o corpo: eis os actores e os terre­
nos dessa luta pelo
destino etemo dos humanos e desse esforço pelo 
conhecimento do futuro cá em baixo e no Além.”20
Ò medo do inferno, a temporada no purgatório e as atuações 
de Satanás recolhiam as pessoas ao seio da comunidade cristã, de 
fonna que a autoridade sobre a fé era vista como meio de resistir às 
pulsões da vida. A análise deste contexto social toma o indivíduo 
humano medieval esmaecido perante tanto misticismo. O homem 
encontrava-se diante de um interminável diálogo com a ambiguida­
de: Deus e Satanás são figuras constantes na definição da sua pes- 
soalidade. “O mundo natural era o vale de lágrimas e da morte, uma
19 SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, 
p. 30.
20 LE GOFF, Jacques, O imaginário medieval Lisboa: Estampa, 1994, p. 2S-29.
te Maria db fátima freire de sá / diogo luna moureira
fortaleza do mal de que o fiel seria misericordiosamente libertado 
no fim desta vida” 21.
Era necessário alcançar uma condição humana digna que rejei­
tasse as putrefações da vida terrena, e o caminho para tal propósito 
era a vida respaldada na santidade para a salvação da alma, de uma 
essência interior, aqui sim, individual22,
Outxossim, se nesta configuração do mundo místico cristão — 
entre terra e além - o homem se encontrou embebido por tamanha 
dominação, é pela defesa da interioridade almejada pela própria 
filosofia cristã que ele encontrará forças para posterior luta contra a 
própria igreja na defesa da sua liberdade de consciência.
A condução da moralidade pela obediência católica restrin­
giu todas as possibilidades do homem se fazer pessoa, a partir de 
si mesmo, já que a moralidade pressupunha uma predeterminação 
externa à própria pessoa. De outro lado, foi a partir da preserva­
ção da vontade pela proposta teológico-filosófica do cristianismo 
que o homem foi convidado a exercitar uma experiência do “eu” 
interior, na qual se encontra o caminho para Deus. Esta experiên­
cia marca decisivamente a cultura ocidental, possibilitando que 
a partir de experiências na primeira pessoa (eu), o homem possa 
encontrar espaço para assumir uma pessoalidade, ainda que pelo 
ou para o pecado.
Com o declínio do domínio moral da igreja, pelo menos tal 
como conheceu a alta idade média, tomou-se possível ao indivíduo 
humano assumir uma postura de autodeterminação que dispensa in­
terferências exteriores, inclusive para determinar configurações de 
uma vida que lhe é própria. Assim, “no reino espiritual, cada pessoa
21 TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as 
idéias que moldaram nossa visão de mundo. 5a éd. Rio de Janeiro: Bertrand Bra­
sil, 2005, p. 1S7.
22 Segundo Georges Duby, “está claro que o cuidado com essa alma tomou-se cada 
vez mais individual, também ele se libertou pouco a pouco do comunitário, en­
quanto o campo do religioso progressivamente se privatiza.” (DUBY, Georges. 
Poder Privado, Poder Público. In ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges; PERROT, 
Mícbelle, História da vida privada: volume 2: Da Europa Feudal à Renascença. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p, 521).
AUTONOMIA PARA MORRER 17
deve ser salva como um indivíduo. Nenhuma mediação meramente 
humana pode ser um substituto para a aceitação direta de Deus” 23 24.
Para Taylor, é a importância atribuída ao fiel que possibilita 
esta nova forma de encarar a religiosidade, pois “a pessoa já não 
pertencia ao círculo dos eleitos, ao povo de Deus, por sua ligação 
a uma ordem mais abrangente que sustentava a vida sacramental, 
mas por sua adesão pessoal irrestrita*™.
A angústia que se criou em tomo do homem pelo pecado e os 
meios coercitivos impostos para a condução da moralidade (como foi 
o caso da fogueira, dentre outras)25 impediam que o homem pudesse 
assumir efetivamente a sua autonomia. O importante a ser destacado 
é a assunção de um homem livre, “um ser independente, no sentido 
de que seus propósitos paradigmáticos devem ser encontrados dentro, 
e não ditados pela ordem mais abrangente da qual ele faz parte26'5, o 
que permite que o indivíduo humano comece a encontrar espaço para 
desenvolver a suapessoalidade) a partir de si mesmo.
Charles Taylor utiliza o termo “afirmação da vida cotidiana” 
para designar os aspectos da vida humana referentes à produção 
(trabalho, fabricação das coisas necessárias à vida) e à reprodução 
(existência como seres sexuais), como algo que revela propriamen­
te as pulsões da vida. Para ele, o impulso dado a esta afirmação da 
vida cotidiana advém da Reforma protestante27, uma vez que por 
meio destes movimentos o indivíduo se reconheceu alguém capaz 
de pensar, escolher e agir.
Se a concepção medieval depessoáliãade apontava para a mo­
ralidade religiosa, pautada na obediência, a moralidade moderna 
desponta reconhecendo a liberdade de pessoas iguais, capazes de
23 SCHNEEWINX), J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unismos, 2001, 
p. 55.
24 TAYLOR, Charles. As fontes do Self. a construção da identidade moderna. São 
Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 281.
25 Para melhor compreensão desta colocação, vide conclusão do item 2.2.
26 TAYLOR, Charles. As fontes do Self. a construção da identidade moderna. São 
Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 250.
27 TAYLOR, Charles. As fontes do Self. a construção da identidade moderna. São 
Paulo: Edições Loyola, 1997, p, 279.
n MARIA DE FÁTIMA FREIRE PE SÁ / DIOGO LUNA MOUREIRA
enxergarem por si mesmas o que a moralidade requer, ademais, as 
pessoas são “em princípio igualmente capazes de mover para 
agir de maneira adequada, independente das ameaças ou recompen­
sas dos outros.”28
A causa desta possibilidade está na forma de tratamento dis­
pensada à razão humana, sèndo o cogito cartesiano fundamental 
para o entendimento desta nova estrutura do pensamento e de vi­
vência. Com Descartes, inaugura-se outra concepção, a do racio- 
nalismo moderno, que levanta a bandeira da modernidade, através 
da máxima cogito, ergo sum (penso, logo existo). Trata-se de nova 
era nas relações humanas, haja vista o aparecimento do sujeito mo­
derno e do sujeito de direito. É o racionalismo moderno que situa 
o homem como centro de questões, deixando de lado as relações 
religiosa, agrária e medieval de sociedades aristocráticas, no intuito 
de buscar o progresso através do conhecimento científico.
Segundo Charles Taylor, a proposta filosófica de Agostinho em 
proporcionar ao homem a vontade da primeira pessoa (eu), faz com 
que ele seja considerado o predecessor de Descartes na formulação 
do cogito, “porque foi o primeiro a tomar o ponto de vista da pri­
meira pessoa fundamental para nossa busca da verdade.”29
Entretanto, diferentemente de Agostinho em que a interiori­
dade é o caminho para se alcançar Deus, que é a verdade e a fonte 
da moralidade, para Descartes, a fonte moral está dentro da própria 
pessoa, e isto é o diferencial, porque a razão permite que o homem, 
a partir de si, controle o mundo, o corpo, e direcione as paixões.
Doravante, o homem, individualmente reconhecido pela cole­
tividade, é aquele disposto a buscar novos rumos, novas experiên­
cias, preocupado em realizar mudanças sociais para seu crescimen­
to e também cioso da própria dignidade e da dignidade do próximo. 
É com Descartes, através do seu pensamento, que se separa sujeito 
e razão. Todavia, demonstra que ambos devem coabitar no ser hu-
29 SCHNBEWIND, 1 B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, 
p. 30.
29 TAYLOR, Charles. As fontes do Self: a construção da identidade moderna. São 
Paulo: Ediçdes Loyola, 1997, p. 176,
AUTONOMIA PARA MORRER 19
mano* Através do livre arbítrio, o homem tem capacidade de definir 
sua existência* De acordo com Alain Touraine:
Descartes se liberta da idéia de Cosmos, O inundo não tem mais 
unidade; ele nada mais é que um conjunto de objetos oferecidos 
à pesquisa científica, e o princípio
de unidade passa ao lado do 
criador que só é compreendido através do pensamento de Deus, 
portanto através do Cogito cujo procedimento está em oposição 
ao do idealismo. A consciência é tomada na sua finitude, na sua 
temporalidade. Assim como o homem não se identifica com­
pletamente a Deus, Deus não deve ser transformado em um ser 
temporal e histórico a exemplo do homem. Está entre Deus e a 
natureza30.
O homem, portanto, se toma o centro orientador da sua ação. 
Segundo Gioeli Solari:
O movimento protestante, ao sustentar a interioridade e a espon­
taneidade do sentimento religioso colocando o homem em relação 
direta com Deus, favorecia a emancipação do indivíduo e de seus 
direitos de consciência de toda ingerência de autoridade religiosa e
30 TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel. Petrópo- 
lis: Vozes, 1994, p. 53. O pensamento moderno, como se disse acima, atribui 
ao homem o livre arbítrio, de modo que o indivíduo passa a elemento ativo, 
vez que a realidade social perde seu caráter imutável. Em virtude dessa nova 
concepção, vários filósofos surgiram, como Rosseau, Hobbes e Locke, todos 
contratualistas, por acreditarem que a ordem social advém de contrato realizado 
por membros da sociedade. Veja-se que é da análise de sujeito moderno que 
nasce a necessidade de sociedades com representação política, compreensão da 
existência do Estado e questões sobre o sujeito de direito. Para Rousseau, todos 
os homens nascem iguais. A desigualdade advém a partir do momento em que 
alguns homens resolvem tomar para si terras e direitos. O contrato social, que 
nasce da vontade de todos os membros do grupo, é o instrumento que visa a 
garantir a paz social. E é ao Estado que se atribui a incumbência de exprimir a 
vontade geral; o governo afigura-se como seu agente executivo (dele, Estado). 
Se a comunidade assim o desejar, o governo pode ser destituído. Hobbes traz 
consigo a concepção do estado-força, que visa, obviamente, à paz social. Para 
ele, é a luta de todos contra todos e o medo da morte que leva ao estabelecimen­
to da paz. Locke diz que é no contrato dos homens que se garante a liberdade 
e os direitos individuais. Trata da confiança mútua e da participação de todos 
na sociedade. Realça as bases dos direitos naturais do homem, consagradas que 
serão nas Declarações de Direitos.
20 MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOURED5A
civ il, e não deixou de ter um a influência direta e decisiva em senti­
do individualista, sobre o desenvolvim ento das doutrinas jurídicas 
e políticas.31
De acordo com Alex Inlceles e David Smith, pode-se afirmar 
que as qualidades definidoras do homem moderno, que conduzirão 
o processo da sociabilidade moderna são: elastecimento da dispo­
sição para a mudança social; boa abertura para experiências novas; 
sujeição à busca do maior número de informações no intuito de 
embasar as próprias opiniões; detenção de estreita ligação com o 
fator tempo, atendo-se muito mais ao presente e ao futuro; busca da 
eficiência e do planejamento, tanto no que toca à sua vida profis­
sional, quanto na particular; crença em um mundo regido por leis e 
sob o controle da sua espécie; maior habilitação técnica como fator 
de distribuição de recompensas; aspirações educacionais e ocupa- 
cionais; conscientização e respeito pela dignidade do próximo e 
compreensão da produção32 33.
Acentuada a ideia de liberdade, a independência da pessoa e a 
sua capacidade racional, acirram o seu desenvolvimento enquanto 
ser capaz de tomar, sozinho, as suas próprias decisões e posicionar- 
se no mundo social, a partir de si mesmo.
. Neste período, o Direito vivenciará a formulação teórica dos 
direitos denominados naturais, ou seja, direitos que estão atrelados 
à determinada naturalidade existencial e que conferem ao indivíduo 
humano certas prerrogativas intangíveis sobre bens jurídicos. Se­
gundo Guy Haarscher (1993), os direitos naturais pertencem ao in­
divíduo humano em decorrência da sua essência: “são considerados
31 SOLARI, Gioele, Filosofia dei Derecho Privado. Buenos Aires: Depalma, 1946, 
p. 3. Tradução livre de: “El movimiento protestante, al sostener la interioridad y 
la espontaneidad dei sentimiento religioso poniendo al hombre en relación di­
recta con Dios, favorecia la emancipación dei indivíduo y de sus derechos de 
conciencía de toda ingerência de autoridad religiosa o civil, y no dejó de tener 
una influencia directa y decisiva en sentido individualista, sobre el desarollo de
Ias doctrinas jurídicas y políticas/*
33 XNKELES, Alex; SMITH, David Norton, Tbrnando-se moderno: as transforma­
ções individuais ocorridas em seis países, Trad. Regina Heloísa Ribeiro Perez e 
Vera Maria Moyna. Brasília: Unb, 1981, p. 19-24,
AUTONOMIA PARA MORRER 21
de tal modo fundamentais que nenhuma vida em sociedade digna 
desse nome parece ser possível sem que eles sejam respeitados” 33.
A partir desta teorização, a existência de direitos tidos como 
naturais atribuem a determinadas prerrogativas jurídicas o caráter 
da absoluteidade, originariedade e inviolabilidade. E conceber tais 
qualificativos a determinados direitos implica impor limites norma­
tivos para qualquer tipo de arbitrariedade e assim resguardar deter­
minadas atribuições pessoais.
Neste contexto, o homem toma-se titular de direitos que se 
encontram imanentes à sua natureza, independentemente do tem­
po e do espaço em que se encontra. Ser pessoa é poder agir e ter 
suas ações resguardadas por direitos tidos por que
representam um escudo normativo que garante a liberdade contra 
as ingerências de terceiros, da igreja e do próprio Estado.
Ter uma pessoàlidade nesta realidade de direito natural é as­
sumir um manto de salvaguarda que permite ao homem possuir um 
nomen dignitatis: pessoa, independentemente de referencial exter­
no. A ideia de direitos inatos decorre desta atomização metafísica 
do conceito de pessoa, posto ser ela detentora de um direito de li­
berdade preconcebido, segundo o qual possui faculdades subjetivas 
para o desenvolvimento de sua personalidade34.
Gradativamente o indivíduo humano vai assumindo as possi­
bilidades da sua individualidade e potencializando-as em tomo de 
direitos assumidos como naturais, decorrentes do estado de nature­
za. Segundo Guy Haarscher, o estado de natureza é uma ficção que 
permite a afirmação da existência individual antes da existência de 
qualquer autoridade política, além do que, tal ficção explicita as 
bases da filosofia individualista:
“Naturalmente”, é suposto .que os homens são livres e iguais. São 
livres porque ninguém exerce autoridade natural sobre outrem, em
M HAARSCHER, Guy. A Filosofia dos Direitos do Homem. Lisboa: Instituto Pia- 
get, 1993, p. 18.
34 SOL ARI, Gioele, Filosofia dei Derecho Privado. Buenos Aires: Depalma, 1946, 
p. 13.
MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ / DIOGO LUNA MOUREIRA22
resumo porque cada um é, no “estado de natureza”, o seu próprio 
dono; e iguais, porque se trata de uma liberdade pertença de todos 
(desde que sejam independentes).35
Destarte, se na idade média a moralidade foi conduzida pela 
obediência,a modernidade apresenta uma moralidade compreendi­
da como autogoverno, na mèdida em que todos os indivíduos têm 
capacidade igual para enxergar por eles mesmos o que a moralidade 
requer36. E a-segurança normativa desta perspectiva advém do di­
reito natural, analisado não sob a ótica das vontades divinas, nem 
das autoridades institucionais, mas da razão humana.
Segundo Gioeli Solari, foi justamente quando o indivíduo as­
sumiu a consciência de si e pôde se voltar contra o Estado e a igreja 
na defesa dos seus direitos que surgiu a escola de direito natural, 
que se caracterizou pela centralidade do indivíduo37. Assim, o hu­
manismo, o individualismo e o racionalismo solidificam os pilares 
sobre os quais se edifica o direito natural

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