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1 Diferença entre eu-ideal, ideal do eu e supereu (Freud passa de um termo a outro e Lacan os distingue nessas lições que estamos trabalhando) Anotações de leitura – Introdução ao Narcisismo e O Ego e o Id. Lacan diz que um dos enigmas do texto de Freud sobre o Narcisismo é a coexistência dos dois termos eu ideal e ideal do eu no seguinte ponto: Freud diz que o narcisismo originário da criança tem que ser abandonado pelo sujeito como consequência das exigências da vida e do complexo de castração. No desenvolvimento da criança, as moções pulsionais libidinais sucumbem à repressão (recalcamento) quando entram em conflito com as representações culturais e éticas do indivíduo, aceitas como normativas por ele. A condição dessa repressão é que o sujeito tenha formado, no interior de si, um “ideal pelo qual mede seu eu atual”. Diz Freud: “E sobre este eu ideal recai agora o amor de si mesmo de que, na infância, gozou o eu real. O narcisismo aparece deslocado a este novo eu ideal que, como o infantil, se encontra de posse de todas as perfeições valiosas. Aqui, como sempre acontece no âmbito da libido, o homem se mostrou incapaz de renunciar à satisfação de que gozou outrora. Não quer se privar da perfeição narcisista de sua infância, e se não pôde mantê-la por causa das admoestações que recebeu no seu desenvolvimento e pelo despertar de seu juízo próprio, procura recuperá-la na nova forma do ideal do eu. O que ele projeta à sua frente como seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, na qual ele foi seu próprio ideal”. Uma primeira diferença: o eu ideal se encontra de posse de todas as perfeições valiosas e é como o eu infantil; já o ideal do eu tem a ver com a busca de recuperar a perfeição infantil, implicando portanto que o sujeito tem o registro de que a perdeu. Ele “projeta à sua frente” que vai recuperá-la quando realizar o ideal. Por isso o eu ideal é imaginário e o ideal do eu é simbólico. Lacan, p. 157: “Um está no plano do imaginário, o outro no plano do simbólico – porque a exigência do Ich-Ideal [Ideal do eu] toma seu lugar no conjunto das exigências da lei”. A leitura que fizemos semana passada da passagem em que Lacan afirma que “o supereu se situa essencialmente no plano simbólico da palavra, à diferença do ideal do eu” me faz afirmar agora (o que eu não pensava antes) que o ideal do eu, embora esteja no plano do simbólico, ligado ao conjunto das exigências da lei, ele não é desprovido de imaginário (na verdade, depois de dizer isso, parece óbvio e bem intuitivo, bem compatível com a nossa experiência pessoal da nossa relação com nossos ideias do eu: ela é bem revestida de imaginário). O ideal do eu é simbólico porque ligado a uma perda no âmbito do sujeito, perda de sua completude narcísica, castração; mas é temperado pelo imaginário. Já o supereu, embora se situe no registro da lei, tem também um caráter insensato, cego, de puro imperativo, de simples tirania. Acho que isso tem a ver com ele estar “essencialmente no plano simbólico da palavra”, sem imaginário: na sequência, Lacan diz que a lei do supereu se reduz a uma palavra da qual não resta mais do que a raiz, uma palavra privada de todos os seus 2 sentidos (podemos dizer: privada de imaginário?, já que o imaginário tem a ver com o sentido, com os significados? Restando apenas a relação simbólica, do “tu deves”, do lugar de onde emana a lei?). Esta contradição na função do supereu já está em Freud. Vou resumir essa passagem que começa no texto do Narcisismo (ainda sem o nome supereu) e culmina em O Ego e o Id (que é o texto em que Freud introduz o termo “supereu”). Na sequência imediata da passagem do Narcisismo citada acima, em que Freud diz que a condição do recalcamento é que o sujeito tenha formado, no interior de si, um “ideal pelo qual mede seu eu atual”, Freud fala que não se surpreenderia se descobrisse a existência de “uma instância psíquica particular cuja tarefa fosse velar pelo asseguramento da satisfação narcisista proveniente do ideal do eu, e com esse propósito observasse de maneira contínua o eu atual, medindo-o com o ideal”. Essa instância antecipa o que ele nomeará depois como supereu. Ele diz que é a “voz da consciência”. Ela atua no delírio de ser observado e em outros fenômenos paranoides, como a publicação dos pensamentos e o comentário dos atos (um comentário lateral: a fala do Lacan de que o supereu é essencialmente o plano simbólico da palavra, sem significado, reduzida a sua raiz, reduzida a uma palavra cujo sentido para a criança não somos capazes de definir, mas que a liga à comunidade humana, lembrou-me do automatismo mental). “A incitação para formar o ideal do eu”, diz ele, partiu “da influência crítica dos pais, agora agenciada pelas vozes, à qual se somaram, no decorrer do tempo, os educadores, os professores” etc. Ou seja: nessas duas páginas do texto do Narcisismo, Freud apresenta ao mesmo tempo as instâncias do eu ideal, ideal do eu e supereu passando de uma a outra de um modo que, ao mesmo tempo, parece que ele não está distinguindo os termos, e ao mesmo tempo, tem-se a nítida percepção de que ele está delineando (ou ao menos esboçando) três funções diferentes. Elas aparecem mais ou menos juntas, uma puxando a outra, e ligadas, ao mesmo tempo, à aceitação normativa da castração e à manutenção ideal de uma perfeição narcisista anterior à castração. O texto que introduz o supereu (O Ego e o Id) reforça a impressão de sinonímia, ou melhor, de metonímia, já que o capítulo do supereu se chama “Supereu ou Ideal do Eu”. Nele, Freud diz que os investimentos objetais eróticos partem do id, e o eu (“ainda fraco no início”) ou consente com eles ou tenta reprimi-los. Se um objeto é renunciado, esse investimento de objeto é substituído por uma identificação, isto é, sobrevém uma alteração no eu que consiste na introdução desse objeto no eu; “o caráter do eu é uma sedimentação dos investimentos de objeto renunciados, contém a história das escolhas de objeto”. (Pode haver também investimento de objeto e identificação simultaneamente.) Mas nesse processo, os efeitos das primeiras identificações são mais universais e duradouros. É a origem do ideal do eu, por trás do qual “se esconde a identificação primeira, e de maior valência, do indivíduo: a identificação com o pai da pré-história pessoal”. É uma identificação “direta e imediata (não mediada)”, “primária”, mais precoce que qualquer investimento de objeto, mas que é reforçada pela identificação posterior, que resulta dos investimentos objetais sexuais do pai e da mãe. O complexo de Édipo consiste na existência de investimentos objetais sexuais tanto do pai quanto da mãe, e da oposição 3 correspondente a eles. “Quando do sepultamento do complexo de Édipo, as quatro aspirações contidas nele se desmontam e se desdobram de tal modo que delas surgem uma identificação-pai e uma identificação-mãe; a identificação-pai reterá o objeto-mãe (...) e o análogo é válido para a identificação-mãe.” “Assim, como resultado mais universal da fase sexual governada pelo complexo de Édipo, pode-se supor uma sedimentação no eu que consiste no estabelecimento dessas duas identificações, unificadas de algum modo entre si. Esta alteração do eu recebe sua posição especial: se confronta com o outro conteúdo do eu como ideal do eu ou supereu.” Freud então diz textualmente que o supereu é um resíduo das primeiras escolhas de objeto do id, e ao mesmo tempo deve sua importância ao fato de ser uma enérgica formação reativa contra elas. “Seu vínculo com o eu não se esgota na advertência: ‘você deve ser assim (como seu pai)’, mas sim compreende também a proibição: ‘não te é lícito ser assim (como o pai), ou seja, você não pode fazer tudo o que ele faz; muitas coisas estão reservada a ele.” Freud fala de uma “dupla face” do idealdo eu – como se fosse, grosso modo: exigência de perfeição, e proibição de perfeição. “Você deve ser” e “você não pode ser”. “O ideal do eu é, portanto, a herança do complexo de Édipo e, assim, a expressão das mais potentes moções e dos mais importantes destinos libidinais do id. Mediante sua instituição, o eu se apodera do complexo de Édipo e simultaneamente se submete, ele mesmo, ao id.” Sublinho: mediante a instituição do ideal do eu (aqui sinônimo de supereu), o eu se submete ao id. “Enquanto o eu é essencialmente representante do mundo exterior, da realidade, o supereu o confronta como advogado do mundo interior, do id.” O supereu é advogado do id! Freud diz que o ideal do eu é o germe de todas as religiões e que o sentimento de humilhação desejado pelo crente é o resultado da percepção da própria insuficiência por comparação com o ideal; volta a relacionar o ideal do eu à consciência moral; e diz que “a tensão entre as exigências da consciência moral e as operações do eu é sentida como sentimento de culpa”. No texto Neurose e psicose, da mesma época, Freud diz que o supereu, “em uma articulação na qual ainda não conseguimos penetrar, reúne em si influxos tanto do id quanto do mundo exterior e, é, por assim dizer, um arquétipo ideal daquilo que é a meta de toda aspiração do eu: a reconciliação entre suas múltiplas vassalagens. Em todas as formas de doença psíquica deveria se levar em conta a conduta do supereu, coisa que ainda não se fez”. A melancolia, diz ele, é uma doença causada pelo conflito entre o eu e o supereu, e por isso deve ser chamada de “psiconeurose narcisista”. (Se não me engano numa das lições que estamos trabalhando o Lacan ou algum aluno diz que essa leitura da melancolia não é correta.) Ou seja, em Freud, a instância que responde pela castração e que é herdeira da dissolução do Édipo (o ideal do eu ou supereu) é a mesma que exige que o sujeito continue gozando como 4 antes. Tenho a impressão, a verificar na leitura dessas próximas lições, que a distinção feita por Lacan entre supereu e ideal do eu vai incidir e esclarecer justamente este ponto. Concluindo: Freud foi sensível à existência dessas diferentes funções mas não chegou a distingui-las nitidamente no plano do conceito. Lacan, em sua leitura dos textos do Freud, mostrou como o movimento dos textos de Freud trouxe à luz três funções diferentes, e formalizou então a distinção entre eu ideal, ideal do eu e supereu da seguinte maneira: o eu ideal como uma vertente imaginária em que eu me percebo dotado das perfeições que começam lá na “Sua Majestade, o Bebê”, correspondendo também à identificação imaginária do estádio do espelho; o ideal do eu como uma identificação simbólica herdeira do complexo de Édipo, que inclui a falta no campo do sujeito e funciona como vetorização para o sujeito e para o desejo, ligado à identificação normativa da saída do Édipo – identificação normativa é a expressão de Lacan no Seminário 5 para falar do ideal do eu, expressão que implica que o ideal do eu é a identificação que faz norma, faz a norma, para o sujeito, do que é ser homem ou mulher. E o supereu como exigência de gozo (no Seminário 5, ele aparece mais como exigência materna de gozo). O trabalho da semana passada trouxe para mim uma exigência de complexidade ao ligar essa condição do supereu, de ser a instância da lei mas de ser também a tirania, ligá-la a um simbólico puro, por assim dizer. Atribuindo portanto ao imaginário uma função importante não apenas no que já reconhecíamos, as formações mais arcaicas do eu, que reconhecíamos como fundamentais mas marcadas pelo engano, diferente das funções simbólicas que se desenvolveriam depois. Agora, o imaginário aparece como função necessária à própria função simbólica.
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