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INTERVENÇÕES URBANAS EM ÁREAS EM TRANSFORMAÇÃO DE CIDADES DA AMÉRICA LATINA Organização Eduardo Alberto Cusce Nobre Jorge Bassani UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Prof. Dr. Marco Antônio Zago – Reitor Prof. Dr. Vahan Agopyan – Vice-Reitor FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO Profª Drª Maria Ângela Faggin Pereira Leite – Diretora Prof. Dr. Ricardo Marques de Azevedo – Vice-diretor NAPPLAC Núcleo de Apoio à Pesquisa: Produção e Linguagem do Ambiente Construído Prof. Dr. Eduardo Alberto Cusce Nobre – Coordenador científico Profª Drª Maria de Lourdes Zuquim – Vice-coordenadora científica COMITÊ EDITORIAL Prof. Dr. Eduardo Alberto Cusce Nobre (FAUUSP) Prof. Dr. Jorge Bassani (FAUUSP) Profª Drª Camila D’Ottaviano (FAUUSP) Profª Drª Maria de Lourdes Zuquim (FAUUSP) Serviço de Técnico da Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP In8 Intervenções urbanas em áreas em transformação de cidades da América Latina / Organização de Eduardo Alberto Cusce Nobre e Jorge Bassani – São Paulo: FAUUSP, 2015. 240 p. : il. ISBN: 978-85-8089-058-7 ISBN: 978-85-8089-084-6 e-book 1. Planejamento Territorial Urbano – América Latina 2. Urbanização (Aspectos Sociais) – América Latina I. Título CDD: 711.08 C D D : 7 1 1 . 0 8 SUMÁRIO 5 APRESENTAÇÃO: INTERVENÇÕES URBANAS EM ÁREAS EM TRANSFORMAÇÃO DE CIDADES DA AMÉRICA LATINA: O QUE APRENDER COM ELAS? Eduardo Nobre e Jorge Bassani PARTE 1: MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E INTERVENÇÕES URBANAS: IMPACTOS DA COPA DO MUNDO FIFA 2014 17 A REFORMA DO ESTÁDIO DO MARACANà PARA A REALIZAÇÃO DA COPA DO MUNDO 2014: IMPACTOS SOCIAIS E URBANOS Fabricio Leal de Oliveira, Fernanda Sánchez, Glauco Bienenstein, Giselle Tanaka, Rosane Rebeca de Oliveira Santos, Mariana do Carmo Lins, Felippe Fideles, Felipe Carvalho Nin Ferreira, Janaína Pinto e Lucas Faulhaber 37 PORTO ALEGRE: URBANISMO PÚBLICO E PROJETOS URBANOS NA COPA 2014 João Farias Rovati 71 COPA DO MUNDO E LEGADO PARA QUEM? O FURACÃO COPA EM FORTALEZA – CEARÁ Larissa Viana PARTE II: INTERVENÇÕES URBANAS EM ÁREAS CENTRAIS: ESTRATÉGIAS PARA O REFORÇO DA CENTRALIDADE. 95 LA RECONSTRUCCIÓN DEL PASEO DE LA REFORMA EN LA CIUDAD DE MÉXICO 2000-2015: LAS CONTRADICCIONES DEL URBANISMO NEOLIBERAL Lisett Márquez López 121 O PROJETO NOVA LUZ EM SÃO PAULO: ENTRE PROCESSOS DE EXCLUSÃO E RESISTÊNCIA POPULAR Simone Gatti 141 TRANSFORMACIONES RECIENTES EN EL CHALLAO (ARGENTINA): ESCALAS Y DIMENSIONES URBANÍSTICAS Maria Jimena Sanhueza PARTE III: INTERVENÇÕES URBANAS NAS ÁREAS DE FRONTEIRA DO CAPITAL: EXPANSÃO URBANA E REQUALIFICAÇÃO AMBIENTAL. 163 EMPREENDIMENTOS DA “NOVA BELÉM” NA FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA EXPANSÃO URBANA DE BELÉM DO PARÁ José Júlio Ferreira Lima, Raul da Silva Ventura Neto e Rebeca Silva Nunez Lopes 189 O CASO PROSAMIM: O PROGRAMA SOCIAL E AMBIENTAL DOS IGARAPÉS DE MANAUS Selma Paula Maciel Batista 215 EL FERROCARRIL EN SANTA FE: UNA MODERNIDAD DESBORDADA Ricardo Robles 233 SOBRE OS AUTORES Eduardo Nobre Jorge Bassani 5 APRESENTAÇÃO: INTERVENÇÕES URBANAS EM ÁREAS EM TRANSFORMAÇÃO DE CIDADES DA AMÉRICA LATINA: O QUE APRENDER COM ELAS? Eduardo Nobre e Jorge Bassani Desde o final do Século XX, os processos produtivos em vários países do mundo vêm passando por grandes transformações. A crise advinda do esgotamento da expansão econômica do Pós-Guerra ocasionou mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento capitalista. Na procura incessante por maiores taxas de acumulação, um novo período de internacionalização do capital se iniciou, possibilitado pela associação do desenvolvimento das telecomunicações e da tecnologia da informação com a desregulação econômica promovida pelo Estado Neoliberal. A facilidade desses fluxos de capital tem ocasionado a transferência de empresas, indústrias e capital para qualquer lugar onde mão-de-obra e infraestrutura a custo baixo estiverem disponíveis, processo esse vulgarmente conhecido por globalização. Essas transformações impactaram fortemente as cidades de vários países do mundo, principalmente os de capitalismo avançado, onde os custos de produção ocasionaram um processo de perda das atividades econômicas, principalmente industriais, e levaram as cidades a competir entre si para atrair investimentos e empregos. Na política urbana, o resultado dessa transformação foi a mudança no paradigma do planejamento urbano, passando do modelo tradicional, compreensivo e racionalista, com sua visão global e integrada de cidade, para o planejamento estratégico, baseado em intervenções urbanas pontuais, fragmentárias e localizadas em áreas específicas. Diferentemente dos planos diretores do período anterior, a intervenção urbana passa a ser pensada na escala do projeto urbano, por vezes desconsiderando a sua relação com o todo, para atender ao objetivo específico do desenvolvimento econômico, apoiado no aproveitamento de uma pretensa infraestrutura ociosa ou recuperação urbano- ambiental. Os governos locais passaram a adotar a cartilha neoliberal, unindo- se a grupos empresariais com o objetivo de atrair capitais, mudando do controle 6 Apresentação: intervenções urbanas em áreas em transformação de cidades da América Latina: o que aprender com elas? à produção de um ambiente construído “balanceado” para o estímulo ao mercado imobiliário, atuação essa que o geógrafo inglês David Harvey definiu como “empresariamento” urbano (Harvey, 1996). A articulação dos capitais financeiro e imobiliário, ocasionada pela facilidade de obtenção de empréstimos bancários a baixas taxas de juros, associada à desregulação urbanística e ao estabelecimento de parcerias público-privadas vêm permitindo o desenvolvimento de grandes projetos de intervenção urbana em diversas cidades, ocasionando grandes ciclos de desenvolvimento imobiliário. As áreas em transformação, isto é, as áreas produtivas obsoletas desse processo (distritos industriais, áreas portuárias, orlas ferroviárias etc.), os centros históricos abandonados, os terrenos vagos ou subutilizados vêm dando lugar a grandes complexos imobiliários, com a construção de novos centros de negócios, comerciais e de turismo, com suas torres de escritório, shopping centers sofisticados, hotéis e complexos habitacionais de luxo, centros de convenções, marinas, restaurantes e parques temáticos como nos casos iniciais do Inner Harbor de Baltimore, London Docklands em Londres, Battery Park City em Nova Iorque, La Defènse em Paris e Vila Olímpica em Barcelona. Contudo, na maior parte dos casos, existe um grande descompasso entre os objetivos formalmente declarados e os resultados obtidos, mascarados pela ideologia dominante. Desde o final dos anos 1980, vários autores dos países de capitalismo avançado vêm apontando para o fato de existirem “vencedores” e “perdedores” nesses processos (Fainstein, 2001; Judd e Parkinson, 1990; Smith e Feagin, 1987; Robinson, 1989; Robson, Parkinson e Bradford, 1994). Os principais beneficiários teriam sido os proprietários de terra e os empreendedores imobiliários, enquanto os perdedores seriam os moradores de baixa renda, cujas necessidades legítimas de emprego, melhores condições de moradia, saúde e educação não foram atendidas, pois em muitos casos tais políticas resultaramno desvio de recursos da política social para o suporte aos negócios. Até mesmo o pretendido efeito trickle down1, a ideia de que os benefícios dos grandes projetos urbanos também podem beneficiar a população 1 Trickle down foi um conceito da teoria econômica neoliberal usado pelos governos Margareth Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, que pregava que a diminuição dos impostos, especialmente para as grandes empresas e investidores, poderia estimular a economia como um todo. Para maiores informações, ver: The Guardian, 2014. Revealed: how the wealth Eduardo Nobre Jorge Bassani 7 local, não ocorreu (Robson, Parkinson e Bradford, 1994). Mais do que isso, no longo prazo, a implementação desses projetos geralmente traz consigo a “expulsão” da população mais pobre, que não consegue conviver com o incremento nos valores do preço dos imóveis, e é gradualmente substituída por classes sociais mais ricas, processo esse que ficou conhecido pelo termo gentrificação2 (Bidou-Zachariasen, 2006; Glass, 1964). No Brasil e na América Latina, o processo da reformulação das políticas urbanas ocorreu a partir dos anos 1990, como resultado da ação combinada das agências multilaterais (BID, Banco Mundial e FMI) e de urbanistas consultores internacionais, principalmente catalães, baseados no sucesso das intervenções para os Jogos Olímpicos de 1992 em Barcelona (Vainer, 2000). A crise econômica da Década Perdida trouxe a justificativa ideológica necessária aos governos de diversas esferas para a adoção do neoliberalismo e do monetarismo. Da mesma forma que nos países de capitalismo avançado, os ditames da cartilha urbana neoliberal aportaram nas cidades latino-americanas, ocasionando a desregulação urbanística e o estabelecimento de parcerias público-privadas na implementação das grandes intervenções urbanas, estimulando o mercado imobiliário, em projetos tais como: Puerto Madero em Buenos Aires; a recuperação urbana do Pelourinho em Salvador; as operações urbanas Faria Lima e Água Espraiada em São Paulo; os projetos para os Jogos Pan-Americanos de 2007 e Jogos Olímpicos de 2016 na cidade do Rio de Janeiro; e, mais recentemente, o Cais Estelita no Recife. Contudo, no contexto do capitalismo periférico, o descompasso entre o discurso e a prática se torna mais evidente, pois as cidades se estruturaram historicamente de maneira fragmentada, concentrando investimentos nas áreas mais ricas, com enormes diferenciações espaciais e déficits sociais, os quais as políticas urbanas nunca chegaram a resolver. Dessa forma, os impactos sociais das grandes intervenções urbanas tendem a ser mais fortes e mais graves. Assim sendo, parece ser extremamente importante avaliar a prática dessas intervenções urbanas tomando como balizador a contribuição para gap holds back economic growth. Disponível em: http://www.theguardian.com/business/2014/dec/09/revealed-wealth-gap-oecd- report?CMP=fb_gu. [Acesso em: 14 de maio de 2015]. 2 Do inglês gentrification – proveniente da palavra gentry, termo que identifica a classe social logo abaixo da nobreza, cuja tradução mais próxima para o português seria “enobrecimento”. 8 Apresentação: intervenções urbanas em áreas em transformação de cidades da América Latina: o que aprender com elas? a promoção de cidades menos ou mais fragmentadas e desiguais no contexto latino americano. Foi justamente em função das questões levantadas e da necessidade de compreensão de qual é o significado da implementação desse tipo de intervenção urbana recente no contexto Latino Americano, que o NAPPLAC-USP (Núcleo de Apoio à Pesquisa: Produção e Linguagem do Ambiente Construído) lançou a chamada para o livro “Intervenções urbanas em áreas em transformação de cidades da América Latina”. Laboratório vinculado à Reitoria da Universidade de São Paulo, o NAPPLAC constituiu-se, no início dos anos 1990, com o intuito de promover pesquisas sobre a produção e apropriação do espaço urbano, trabalhando-o enquanto construção social, procurando desvendar a lógica de sua produção e localização das redes de infraestrutura, do setor imobiliário e do setor da Construção Civil. Atualmente, uma das ênfases das pesquisas em curso é o estudo das recentes transformações urbanas latino-americanas, através da identificação de elementos, processos e questões relativas à produção e apropriação do espaço urbano no plano teórico – identificando conceitos e grades conceituais correspondentes a diferentes disciplinas ou campos disciplinares - e no plano empírico - examinando os processos sociais e seus correspondentes espaciais em projetos urbanos concretos. Dessa forma, pesquisadores das mais diversas formações acadêmicas, de diversas instituições e laboratórios de pesquisa nacionais e latino- americanos submeteram trabalhos referentes ao tema do livro. Os artigos aqui apresentados representam um espectro da produção intelectual crítica a respeito do tema com visões das intervenções que ocorreram em cidades de várias regiões do Brasil, da Argentina e do México. O livro está dividido em três partes, pois os artigos foram agrupados conforme temas preponderantes. A primeira parte, “Megaeventos esportivos e intervenções urbanas: impactos da Copa do Mundo FIFA 2014”, traz três artigos que procuram compreender os impactos das intervenções urbanas que foram realizadas para adaptar as cidades do Rio de Janeiro, Porto Alegre e Fortaleza para a realização da Copa do Mundo FIFA 2014 no Brasil. O evento foi publicizado como a grande oportunidade do país para renovar áreas e infraestruturas urbanas obsoletas e ineficientes, nos moldes do que ocorreu com as cidades que acolheram grandes eventos esportivos desde a emblemática Olimpíada de 1992, Eduardo Nobre Jorge Bassani 9 em Barcelona. Vários setores criaram grandes expectativas em relação ao “legado” da Copa. No entanto, em sua grande maioria, essas expectativas foram frustradas. Os artigos deste capítulo lançam luz e promovem reflexões a respeito dos processos específicos de cada cidade, que conduziram a essas frustrações. O primeiro deles nos traz os contornos da reforma do maior ícone do futebol brasileiro, o estádio construído para abrigar a malfadada final da primeira Copa realizada no Brasil, em 1950. Trata-se de “A reforma do Estádio do Maracanã para a realização da Copa do Mundo 2014: impactos sociais e urbanos” de Fabricio Leal de Oliveira, Fernanda Sánchez, Glauco Bienenstein, Giselle Tanaka, Rosane Rebeca de Oliveira Santos, Mariana do Carmo Lins, Felippe Fideles, Felipe Carvalho Nin Ferreira, Janaína Pinto e Lucas Faulhaber, realizado com base em pesquisa concluída pelo grupo em 2014. Para compreender o impacto da reforma do Estádio Jornalista Mario Filho (o Maracanã) em termos urbanos e sociais, o artigo tensiona as relações entre os “grandes projetos urbanos” e os processos de estruturação e apropriação social do espaço urbano. Com esta finalidade, apresenta aspectos do projeto de reforma e do contexto sociopolítico de sua execução a partir de pesquisas que se desenvolvem em torno de uma leitura do empreendimento em sua relação com aspectos políticos, institucionais, simbólicos, arquitetônico- urbanísticos, socioambientais, fundiários e econômico-financeiros. Em contraponto à noção de “legado”, fundamental no discurso oficial de legitimação de megaeventos, busca-se apreender o alcance da reforma do Maracanã em suas interfaces com diferentes aspectosda realidade social. “Porto Alegre: urbanismo público e projetos urbanos na Copa 2014” de João Rovati aborda a presença da Copa na capital gaúcha. O artigo se propõe a sustentar a hipótese de que os projetos urbanos gestados durante os preparativos da Copa do Mundo de 2014 indicam a emergência de um novo programa para o urbanismo público no país, legitimado essencialmente no “direito à acumulação de riqueza”. A hipótese proposta pelo artigo é desenvolvida tendo como base a observação de que o novo programa politiza ao extremo as ações e operações realizadas pelos governos em nome do interesse público, enfraquece o urbanismo como campo do conhecimento e, aos poucos, condena os urbanistas que o servem à invisibilidade. A sustentação das bases analíticas colocada pelo artigo consiste de um apanhado histórico das relações existentes entre o urbanismo público e coalisões políticas em Porto Alegre como pano de fundo. 10 Apresentação: intervenções urbanas em áreas em transformação de cidades da América Latina: o que aprender com elas? O último artigo deste capítulo apresenta os impactos das intervenções para a Copa do Mundo FIFA 2014 em uma cidade do Nordeste brasileiro. De autoria de Larissa Viana é intitulado, “Copa do mundo e legado para quem? O furacão copa em Fortaleza – Ceará”. A pergunta colocada de início é a questão número um dos grandes projetos urbanos: quem ganha e quem perde com a sua implantação? Para abordar a questão, Larissa busca compreender os impactos causados com a realização do megaevento na vida da população de baixa renda da cidade de Fortaleza – CE. Inicialmente propõe compreender o processo pelo qual as grandes cidades brasileiras estão passando no intuito de adentrar à chamada globalização. Em seguida, coloca as obras para a Copa na perspectiva de formulação dessa imagem globalizada de cidade por meio de investimentos em grandes equipamentos e infraestrutura para receber eventos na escala internacional. Conclui que, com os investimentos por parte do poder público, a população pobre e excluída da sociedade é a grande perdedora no processo, pois está sendo removida para áreas distantes, não usufruindo, assim, desses investimentos e agravando a sua situação de precariedade. A segunda parte, “Intervenções Urbanas em Áreas Centrais: estratégias para o reforço da centralidade”, apresenta três artigos dedicados a investigar a atuação do poder público da Cidade do México, São Paulo e Mendoza, na Argentina, nas tentativas de reafirmação de áreas dessas cidades como principal centro das atividades terciárias de comércio, serviços e turismo. Dois deles, Cidade do México e Mendoza trazem como situação áreas de expansão urbana e os esforços para as caracterizarem como novas centralidades. O artigo sobre São Paulo estuda as polêmicas tentativas de projeto para o histórico bairro da Luz, junto ao Centro da cidade, com a mesma finalidade de reafirmação da condição de centralidade, tendo como condição necessária a renovação funcional e populacional da área. O primeiro destes artigos é “La reconstrucción del Paseo de la Reforma en la Ciudad de México 2000-2015: las contradicciones del urbanismo neoliberal” de Lisett Márquez López. Ele traz reflexões sobre o projeto de intervenção sobre sítio de longa história (em termos latino-americanos). O Paseo cumpriu papel protagonista no desenvolvimento econômico e na expansão territorial da Cidade do México desde 1866. Ao longo de sua história sofreu uma série de transformações passando por períodos de apogeu e de decadência. Nos últimos 14 anos, tem sido objeto de intervenções promovidas Eduardo Nobre Jorge Bassani 11 pelo capital imobiliário no âmbito da aplicação das políticas urbanas e econômicas neoliberais. O artigo desenvolve análises das contradições do ambicioso projeto de renovação urbana para transformação do Paseo em um moderno corredor urbano terciário, sob a lógica da acumulação do capital, exclusivo e excludente, gerador de fortes desigualdades sócio-territoriais. Paradoxalmente, essas atividades coexistem espacialmente e cotidianamente com as manifestações de protesto e reinvindicações dos movimentos sociais e políticos de oposição. O artigo, “O Projeto Nova Luz em São Paulo: entre processos de exclusão e resistência popular” de Simone Gatti, apresenta uma análise do Projeto Nova Luz, lançado pela Prefeitura Municipal de São Paulo, em 2005, com o objetivo de renovar um perímetro composto por 45 quadras no distrito central de Santa Ifigênia, a partir da aplicação de um instrumento urbanístico sem precedentes na legislação brasileira, a Concessão Urbanística. A principal questão abordada por Simone é a participação da sociedade civil no Conselho Gestor de uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS-3), prevista para a área no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo de 2002. Único veículo de participação social efetiva formado durante o projeto, ele foi responsável pela introdução de um processo de resistência popular e pela formulação de medidas mitigadoras em prol da inclusão social e de garantias de atendimento habitacional da população residente. Finalizando a segunda parte, o artigo “Transformaciones recientes en El Challao (Argentina): escalas y dimensiones urbanísticas” de Maria Jimena Sanhueza. Ele se propõe abordar os processos de transformação na cidade de Mendoza a partir de uma perspectiva sociológica. O objeto de estudo é a região de El Challao, na região metropolitana de Mendoza, Argentina. Historicamente, constituiu-se de uma área de descanso e culto, mas que tem sofrido profundas transformações geradas pelos movimentos populacionais e pelas políticas urbanas recentes. Recentemente, o foco dos governos provincial e municipal voltou-se para essa zona a partir de um “Plano de Desenvolvimento Turístico Sustentável”. O artigo confronta as múltiplas escalas das transformações, da nacional à local, no intuito de demonstrar como a reprodução de mecanismos já conhecidos de gentrificação evidencia a complexidade alcançada pelos fenômenos urbanos. A terceira parte, “Intervenções urbanas nas áreas de fronteira do capital: expansão urbana e requalificação ambiental”, traz três exemplos que 12 Apresentação: intervenções urbanas em áreas em transformação de cidades da América Latina: o que aprender com elas? tratam das questões ambientais na cidade de formas bem diferentes. Dois deles, no contexto específico da Região Norte do Brasil, um em Belém e outro em Manaus, onde as grandes intervenções urbanas ocorrem em áreas com características fundiárias e ambientais bastantes específicas e com toda a complexidade do ecossistema amazônico. O terceiro, em outra linha de requalificação ambiental, trata de estudo sobre a reciclagem de estruturas urbanas abandonadas, no caso a linha ferroviária, configuradas como fronteiras entre territórios intraurbanos, e suas estações em Santa Fé, Argentina. “Empreendimentos da “Nova Belém” na formação e consolidação da expansão urbana de Belém do Pará” de José Júlio Ferreira Lima, Raul da Silva Ventura Neto e Rebeca Silva Nunez Lopes é o primeiro dos artigos da Região Amazônica. O artigo se inicia com uma análise mais abrangente sobre o processo de urbanização recente no Brasil e na América Latina, onde as interações entre o capital imobiliário e as ações do Estado têm como objetivo a acumulação do capital, seja renovando áreas de ocupação obsoleta, seja abrindo novas frentes imobiliárias. A partir daí, analisa o que tem ocorrido na cidade de Belém, capital do estado do Pará, norte do Brasil, ao focar duas porções da área de expansão nacidade, denominadas como “Nova Belém”. O artigo traz a discussão sobre as condições financeiras, fundiárias e infraestruturais criadas para a instalação de empreendimentos imobiliários, com ênfase na origem pública da terra utilizada para a construção de condomínios fechados, shopping centers e estabelecimentos de varejo e nas alterações fundiárias promovidas nas propriedades, inclusive com desalienação de terras públicas e privadas nos bairros de Val de Cães e Parque Verde. Os resultados demonstram que estaria em curso, já há algum tempo, uma coalização entre gestores municipais e empreendedores que, dentro dos limites de interesse de cada um dos lados, tem definido a forma fragmentada e altamente especulativa de expansão urbana na Região Metropolitana de Belém. Também da Amazônia, o artigo “O Caso PROSAMIM: o programa social e ambiental dos igarapés de Manaus”, de Selma Paula Maciel Batista, desenvolve questões ambientais em outra escala. O artigo apresenta os resultados gerados pelo Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus – PROSAMIM realizado pelo Governo do Estado do Amazonas em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, para intervenções urbanísticas, habitacionais e ambientais em cursos d’água da bacia hidrográfica do Eduardo Nobre Jorge Bassani 13 Educandos e São Raimundo, em Manaus. Com as primeiras ações iniciadas no ano de 2004 e, ainda em andamento, a autora analisa o período entre 2004 e 2012. O texto fundamentado em fontes documentais primárias e secundárias divide-se em quatro partes. Na primeira, contextualiza a evolução urbana de Manaus. A segunda, apresenta exemplos de modelos de renaturalização e aborda as ações do PROSAMIM, como uma possibilidade de recuperação dos recursos hídricos. Na terceira parte descreve as características da área do projeto, com dados referentes ao cenário anterior e posterior a intervenção, descrevendo os principais produtos gerados. Na quarta parte, com base na expectativa de resultados previstos pelo BID, fundamenta a discussão sobre os benefícios gerados e os custos da transferência do ônus socioambiental a partir dos fatos e dados apurados. No terceiro artigo desta parte, Ricardo Robles destaca, incialmente, o processo de obsolescência das ferrovias nas cidades argentinas (processo recorrente em todo o continente), seguido da posterior degradação da estrutura existente e sua condição atual de fronteira urbana. Seu título é “El ferrocarril en Santa Fe: una modernidad desbordada” e se dedica a estudar os impactos urbanos das infraestruturas ferroviárias na cidade de Santa Fe desde o século XIX, mas com especial interesse nas suas condições atuais sob a perspectiva de possibilidades de intervenções urbanas. Considerando que atualmente os espaços da ferrovia têm um significado social complexo, produto da diversidade de situações reconhecidas em todo o processo - abandono, subutilização, invasões e novas intervenções estatais - o autor apresenta parte de estudo pormenorizado de algumas das estações com o intuito de gerar uma compreensão mais profunda do assunto, considerando a importância das diferentes escalas urbanas envolvidas e a troca dos fluxos nesses espaços. Como resultado, tem sido identificado problemas e potencialidades no que poderiam ser considerados espaços com a grande capacidade de mudança para um desenvolvimento local e metropolitano. A seleção dessa diversidade de temas e de localidades do livro fornece ao leitor uma visão panorâmica e instigante sobre as intervenções urbanas recentes em áreas em transformação de cidades da América Latina. Com isso, o livro espera poder contribuir com a discussão atual que vem ocorrendo sobre as estratégias e os impactos das políticas e dos projetos urbanos contemporâneos. Desejamos a todos uma boa leitura. 14 Apresentação: intervenções urbanas em áreas em transformação de cidades da América Latina: o que aprender com elas? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Bidou-Zachariasen, C. (org.), 2006. De volta à cidade: dos processos de “gentrificação” às políticas de "revitalização" dos centros urbanos. São Paulo: Annablume. Fainstein, S., 2001. The city builders: property development in New York and London 1980-2000. Oxford: Blackwell Publishers. Glass, R., 1964. London: aspects of change. Londres: MacGibbon & Kee. Harvey, D., 1996. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & debates, v. 39, NERU, pp. 48-64. Judd, D., Parkinson, M. (orgs.), 1990. Leadership and Urban Regeneration. Newburry Park: Sage Publications. Smith, M. e Feagin, J. (orgs.), 1987. The capitalist city: global restructuring and community politics. Oxford: Blackwell Publishers. Robinson, F., 1989. Urban Regeneration Policies in Britain in the late 1980s: Who Benefits? New Castle upon Tyne: Centre for Urban and Regional Development Studies, University of New Castle upon Tyne. Robson, B., Parkinson, M. e Bradford, M. G., 1994. Assessing the impact of urban policy. Londres: HMSO. The Guardian, 2014. Revealed: how the wealth gap holds back economic growth. Disponível em: http://www.theguardian.com/business/2014/dec/09/revealed-wealth-gap-oecd- report?CMP=fb_gu. [Acesso em: 14 Maio 2015] Vainer, C., 2000. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico. In: Arantes, O., Vainer, C. e Maricato, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. São Paulo: Editora Vozes, pp. 75-103. PARTE I: MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E INTERVENÇÕES URBANAS: IMPACTOS DA COPA DO MUNDO FIFA 2014 Fabricio Leal et al. 17 A REFORMA DO ESTÁDIO DO MARACANà PARA A REALIZAÇÃO DA COPA DO MUNDO 2014: IMPACTOS SOCIAIS E URBANOS LA REFORMA DEL ESTADIO “MARACANÔ PARA LA REALIZACIÓN DEL MUNDIAL DE FUTBOL 2014: IMPACTOS SOCIALES Y URBANOS Fabricio Leal de Oliveira, Fernanda Sánchez, Glauco Bienenstein, Giselle Tanaka, Rosane Rebeca de Oliveira Santos, Mariana do Carmo Lins, Felippe Fideles, Felipe Carvalho Nin Ferreira, Janaína Pinto e Lucas Faulhaber 18 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. RESUMO Este artigo discute os impactos urbanos e sociais da reforma do Estádio Jornalista Mário Filho (Maracanã) no Rio de Janeiro, com base em pesquisa concluída em 2014. O objetivo é trazer novos elementos para o debate sobre grandes projetos urbanos e sua relação com os processos de estruturação e apropriação social do espaço urbano. Após uma apresentação sintética do projeto de reforma do estádio e do contexto sociopolítico carioca, são apresentadas as principais conclusões da pesquisa, que se desenvolve em torno de uma leitura do empreendimento em sua relação com aspectos políticos, institucionais, simbólicos, arquitetônicos-urbanísticos, socioambientais, fundiários e econômico-financeiros. Em contraponto à noção de “legado”, fundamental no discurso oficial de legitimação de megaeventos, busca-se apreender o alcance da reforma do Maracanã em suas interfaces com diferentes aspectos da realidade social. Palavras-chave: Megaeventos, Copa do Mundo 2014, Rio de Janeiro, Maracanã, planejamento urbano. RESUMEN Este artículo analiza los impactos urbanísticos y sociales de la reforma del Estadio Periodista Mario Filho (Maracanã) en Río de Janeiro, en base a la investigación realizada en el año 2014. El objetivo es traer nuevos elementos al debate sobre los grandes proyectos urbanos y su relación con los procesos de estructuración y apropiación del espaciourbano. Tras una breve presentación del proyecto de renovación del estadio y del contexto sociopolítico de Río, se presentan las principales conclusiones de la investigación, que se desarrolla en torno a una lectura del referido proyecto en su relación con los aspectos político, institucional, simbólico, arquitectónico, urbano, social, ambiental y económico- financiero. En contrapunto con la noción de "legado", clave en el discurso oficial de la legitimación de los mega-eventos, buscamos comprender el alcance de la reforma del Maracanã en sus interfaces con diferentes aspectos de la realidad social. Palabras clave: Mega Eventos, Mundial de Fútbol 2014, Río de Janeiro, Maracanã, planificación urbana. Fabricio Leal et al. 19 INTRODUÇÃO No século XXI, a cidade do Rio de Janeiro ganhou visibilidade no cenário nacional e internacional em função de ter sido escolhida como sede dos Jogos Pan-americanos de 2007, da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas 2016, além de outros eventos realizados na cidade, como a Jornada Mundial da Juventude e a Copa das Confederações, em 2013, e a Conferência das Nações Unidas Rio + 20, realizada em 2012. Este artigo, que tem como base pesquisa realizada sobre impactos urbanísticos e socioeconômicos da reforma do Estádio Jornalista Mário Filho1 (Maracanã), busca trazer novos elementos para o debate sobre grandes projetos urbanos e sobre sua relação com os processos de estruturação e apropriação social do espaço urbano. Após uma apresentação inicial do contexto carioca e de algumas informações básicas sobre a reforma que envolve o estádio e o seu entorno, são apresentadas as principais conclusões da pesquisa que se desenvolvem em torno de uma leitura do empreendimento em sua relação com aspectos políticos, institucionais, simbólicos, arquitetônico-urbanísticos, socioambientais, fundiários e econômico-financeiros (Vainer et al, 2012). O “NOVO MARACANÔ: PRINCIPAIS TRAÇOS DE UMA REFORMA EM CURSO Competitividade, inserção na economia global e promoção da imagem da cidade são as palavras de ordem que melhor definem as orientações para a política urbana municipal carioca desde que Cesar Maia assume a Prefeitura do Rio de Janeiro, em 1993. Os prefeitos Luiz Paulo Conde e, mais tarde, Eduardo Paes, dão continuidade a essa orientação política e ideológica e compõem, juntos, um longo período2 de estreita articulação entre poder público e empresariado na definição de prioridades e políticas urbanas, que se 1 A pesquisa foi desenvolvida no período entre agosto de 2013 e fevereiro de 2015 por professores e pesquisadores do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU/UFF), como parte do projeto Contribuição da Universidade Federal do Rio de Janeiro para o acompanhamento e avaliação das obras destinadas à Copa do Mundo 2014: levantamento de oportunidades e cadeias produtivas, executado pela UFRJ com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. 2 Entre 1993 e 2014, foram prefeitos do Rio de Janeiro Cesar Maia (1993-1996 e 2001-2008), Luiz Paulo Conde (1997-2000) e Eduardo Paes (de 2009 em diante). 20 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. estenderá, pelo menos, até 2016. A realização de megaeventos, com suas promessas de promoção da cidade, atração de investimentos e transformação urbana, é uma das formas de expressão dessa forma de gestão pública, defendida não apenas pelos prefeitos cariocas, mas, também, pelo atual governo estadual. A maior parte dos gastos envolvidos são públicos e compreendem principalmente investimentos federais (investimentos diretos ou empréstimos subsidiados), mas há importantes gastos estaduais e municipais. Os ganhos, por sua vez, geralmente premiam estratégias de acumulação de agentes internacionais e nacionais, além de ações oportunistas de agentes locais. Por um lado, grandes empresas brasileiras empreiteiras de obras e serviços públicos como Odebrecht e OAS, entre outras, ampliam ainda mais seu poder sobre a cidade, vencem licitações e estão envolvidas na maior parte dos projetos relacionados à Copa do Mundo ou às Olimpíadas, como a implantação de sistemas rodoviários de Bus Rapid Transit em grandes vias, a ampliação do metrô, a reforma do Estádio do Maracanã e a renovação da área portuária (IMD, 2014). Por outro lado, desde que o Rio de Janeiro emergiu como cidade olímpica, o recurso às remoções de comunidades de baixa renda parece ter se constituído na opção preferencial da política urbana, o que tem favorecido estratégias locais de valorização fundiária. Na imagem internacional que a Prefeitura quer projetar do Rio Olímpico não há lugar para esta justaposição de tecidos (formal e informal) tão comuns na cidade (Sánchez, 2014). Para agravar a situação, os partidos políticos que controlam os governos municipal, estadual e federal são aliados desde 2009, a partir da primeira eleição de Eduardo Paes, o que silenciou quase toda a oposição institucional às ações governamentais. Contudo, há resistências, como aquela que se constitui por meio do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, uma esfera pública de denúncia e resistência às remoções e a outras ações relacionadas ao processo de realização desses eventos. A reforma do Maracanã, concluída em abril de 2014, traz mais insumos e permite atualizar o debate sobre os megaeventos, em especial no que se refere à sua relação com a implementação de políticas públicas que aumentam a concentração de poder e renda e a privatização de espaços e serviços públicos. O principal agente público, nesse caso, é o Governo do Estado do Rio de Janeiro, proprietário do Estádio do Maracanã e responsável Fabricio Leal et al. 21 pelo processo de reforma e concessão privada da gestão do equipamento. O momento político também é outro, enriquecido pelas manifestações de junho de 2013 que exigiram, pelo menos no início, uma mudança de postura da administração pública estadual. O Complexo do Maracanã O chamado “Complexo do Maracanã” é formado pelo Estádio do Maracanã e por um conjunto de equipamentos públicos situados na mesma quadra no bairro do Maracanã, na zona norte carioca. A construção do Estádio se inicia em 1948, e o complexo esportivo – que inclui o ginásio Maracanãzinho, o Estádio de Atletismo Célio de Barros e o Parque Aquático Júlio Delamare - é concluído apenas em 1965. Compõem ainda o Complexo Maracanã a Escola Municipal Friedenreich, o antigo Museu do Índio e os prédios inicialmente ocupados por órgãos do Ministério de Agricultura. Inaugurado em 1950, o Maracanã foi projetado inicialmente para receber 150 mil pessoas3. Ao longo dos anos, sucessivas reformas, iniciadas ainda no início da década de 1980, viriam a reduzir a capacidade do estádio à metade. Em 1999, foram feitas reformas para atender a exigências da FIFA para a realização do Mundial de Clubes de 2000. Posteriormente, para a adequação do estádio aos Jogos Pan-Americanos de 2007, as mudanças foram maiores e mais radicais, e incluíram a supressão da “geral”, setor com ingressos populares onde as pessoas assistiam ao jogo em pé. Começava, assim, uma tendência progressiva de elitização dos torcedores, que viria a se completar com a última reforma, concluída em 2014. O “Novo Maracanã” Poucos meses após os jogos Pan-Americanos, a FIFA anunciou o Brasil como a sede do Mundial de 2014, e um novo períodode adaptação do Estádio começou. O projeto de reforma então elaborado obedecia às exigências constantes nos cadernos de encargo entregues pela FIFA às cidades-sede. Além das modificações no estádio de futebol, o projeto previa a demolição do estádio de atletismo Célio de Barros, do parque aquático Júlio Delamare, além da escola municipal Friedenreich e do prédio do antigo Museu 3 Esses números seriam recorrentemente superados e, em muitas ocasiões, o estádio recebeu mais de 190 mil torcedores. 22 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. do Índio, ocupado pelo movimento indígena intitulado “Aldeia Maracanã”4. Entre as justificativas para essas demolições destacavam-se a construção de estacionamentos e de um shopping center, que fariam com que o estádio atendesse às exigências da FIFA por vagas para carro, além de se tornarem um importante atrativo comercial para que a iniciativa privada finalmente se interessasse pela concessão da administração do Estádio, elemento fundamental da estratégia do governo do estado para a manutenção do equipamento. O Novo Maracanã, como tem sido chamado, foi totalmente reformulado, ficando com sua capacidade reduzida para 79 mil espectadores. Entre as principais modificações, estão a implantação de uma cobertura de membrana tencionada, a reconstrução total das arquibancadas, o aumento da área de camarotes e áreas “Vips” e a separação do público em um número maior de setores. Também foram reformulados os vestiários, salas de imprensa, banheiros públicos, lanchonetes e demais serviços. O gramado foi rebaixado, e um novo sistema de drenagem com muito maior capacidade foi instalado. O resultado de todas essas modificações foi o vertiginoso aumento do preço dos ingressos e uma mudança radical no perfil do público que passou a frequentar o Maracanã. Os ingressos mais baratos, em meados de 2014, estavam na faixa de R$70,00, o que tornava praticamente inviável a presença da população de baixa renda. O entorno do estádio A região de implantação do Estádio do Maracanã é bem servida por transporte público de massa, com estações de trem e metrô próximas ao estádio, situado a menos de 15 minutos de distância do centro da cidade por transporte coletivo. Ao longo da linha férrea, que separa os bairros de classe média, ao sul, da favela da Mangueira, ao norte, se desenvolve um dos mais importantes eixos rodoviários da cidade, composto por largas avenidas que fazem a conexão entre o centro e a zona norte. Entre os elementos que compõem o entorno imediato do estádio podem ser destacados o campus da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a favela Metrô-Mangueira, parcialmente removida, e, do outro lado da 4 A ocupação do Museu por grupos indígenas de diversas etnias começou em 2006, com apoio de movimentos sociais e ativistas autônomos (CPCORJ, 2014). Fabricio Leal et al. 23 linha férrea, a favela da Mangueira, os conjuntos habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida Mangueira I e Mangueira II e a Quinta da Boa Vista. Figura 1: Estádio do Maracanã e elementos do entorno. Base: Google Earth, 2014. Elaboração dos autores. “Impactos” sociais e urbanísticos da reforma do Maracanã A discussão em torno do “legado” da Copa do Mundo – e também das Olimpíadas – no Brasil é a forma como os discursos oficiais dos governos federal, estaduais e municipais têm se referido aos supostos efeitos econômicos dos megaeventos e aos seus resultados materiais e imateriais. Segundo Novais e Soares (2011): “A noção de legado indicaria que os esforços e vultosos recursos empregados garantem efeitos benéficos perenes em diferentes áreas (esportiva, segurança pública, urbanística, entre outras). Supõe um gasto público objetivado, portanto, mensurável, ou seja, 24 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. que pode se distinguir do argumento mais abstrato (dinamização da economia local) por seu grau de elaboração e acuidade” O “legado” geralmente é associado a efeitos positivos supostamente gerados pelos grandes projetos que fazem parte do portfolio dos megaeventos e a sua eficácia discursiva é avaliada em função da promoção do consenso em torno da realização do evento, da legitimação de determinados investimentos públicos e prioridades e, certamente, da prevenção e/ou eliminação de conflitos e tensões sociais (Novais et al., 2011). A perspectiva crítica, por sua vez, ilumina não apenas as possibilidades “virtuosas” dos projetos, mas, também, esforça-se por apreender o alcance dos projetos em suas interfaces com diferentes aspectos da realidade social. É essa orientação metodológica que irá informar a análise e que permitirá a identificação de relações gerais ou específicas entre os megaeventos/projetos com os processos de reprodução e apropriação social do espaço urbano. Essas relações frequentemente são percebidas como “impactos” e podem ser lidas a partir de diferentes ênfases, conforme o aspecto que se pretende iluminar (Vainer et al., 2012). Como veremos nos tópicos a seguir, os “impactos” sociais e urbanos se impõem definitivamente como resultados da reforma do Maracanã, enquanto os benefícios pontuais ou específicos apequenam o suposto “legado” da Copa. Decisões governamentais e resistências As decisões públicas envolvendo recursos, espaços e equipamentos públicos relacionados à Copa do Mundo 2014 são tomadas e implementadas sem os devidos processos legais. Os projetos não são apresentados para o debate público, e os processos que envolvem as decisões e as contas públicas não são transparentes. Documentos supostamente públicos não são disponibilizados à sociedade, sequer quando solicitados formalmente. Grupos de atingidos pelas obras somente foram ouvidos depois da realização de diversas iniciativas envolvendo ações judiciais, pressões sobre o legislativo, atos e denúncias públicas, veiculadas principalmente na mídia internacional, uma vez que a mídia local raramente cede espaço para a publicação desses acontecimentos. Antes das manifestações de junho de 2013, o governo estadual era inflexível sobre a reforma do Complexo do Maracanã. Foram promovidas várias Fabricio Leal et al. 25 mobilizações contra a concessão privada do estádio, a expulsão dos ocupantes da Aldeia Maracanã, a remoção da favela Metrô-Mangueira e a demolição de equipamentos esportivos e da Escola Municipal Friedenreich. Grande parte dessas manifestações foi organizada pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas5. Por outro lado, atletas se manifestavam contra a incoerência da destruição de equipamentos esportivos como parte dos preparativos dos megaeventos. Mas nada afetava as decisões já tomadas ou a popularidade do governador Sergio Cabral, que gozava de apoio do governo federal. Protestos foram reprimidos com violência, especialmente no caso da Aldeia Maracanã, mas a trajetória do governo parecia incólume. Com as manifestações de junho de 2013 e a extrema violência da repressão policial – uma coisa reforçando a outra -, o governador se tornou um dos principais focos de demandas, e “fora Cabral” era um dos slogans mais ouvidos nas ruas. Sua popularidade despencou, boatos de renúncia se espalharam, e casos antigos de apropriação privada de recursos públicos (especialmente o uso de helicópteros do governo para passeios familiares) voltaram aos jornais. E o que parecia impossível aconteceu: acuado, o governadorveio a público dizer que não ia mais demolir os equipamentos esportivos. A luta política mudava o curso dos acontecimentos e alterava as decisões de demolição do Estádio Célio de Barros (parcialmente iniciada, com a destruição do campo de treinamento e sua transformação em estacionamento) e do Parque Júlio Delamare. Pouco depois, a decisão de demolição da Escola Friedenreich também era cancelada. Essas conquistas, porém, não podem ser vistas como definitivas. As promessas e compromissos do Governo do Estado com relação à reconstrução do Estádio de Atletismo não foram formalizadas, e não há prazo para o seu início. O Parque Júlio Delamare não foi demolido, mas encontra-se fechado, e os funcionários foram demitidos a poucas semanas da Copa. Por outro lado, já foram concretizadas perdas irreparáveis, como o fim dos setores populares do estádio do Maracanã, a remoção violenta de parte das famílias da comunidade Metrô Mangueira e a expulsão dos indígenas e outros residentes do antigo Museu do Índio. 5 O Comitê é um espaço de articulação política, composto por movimentos sociais urbanos, organizações não-governamentais, sindicatos, mandatos parlamentares, entidades de pesquisa e organizações comunitárias, além de pessoas sem vínculo institucional (CPCORJ, 2014). 26 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. Exceções e inovações institucionais Enquanto o processo de decisão relacionado à elaboração e gestão dos projetos relacionados à Copa se mostrou impermeável à interferência da população em geral, a participação de grupos empresariais na gestão pública permaneceu acolhida de forma privilegiada, como mostram os espaços de interlocução criados no contexto da realização da Copa do Mundo e a articulação, no Rio de Janeiro, da Prefeitura e do Governo do Estado com grandes empreiteiras de obras públicas na gestão de serviços públicos e na promoção de grandes projetos. Desde o anúncio da conquista do direito de sediar a Copa do Mundo 2014, o governo brasileiro tornou evidente sua decisão de criar condições especiais para os contratos e licitações públicas vinculados aos megaeventos (Oliveira et al., 2014: p.100), como mostram, por exemplo, as leis voltadas para flexibilizar o limite de endividamento dos municípios, alterar disposições tributárias ou instituir o Regime Diferenciado de Contratações Públicas nos casos relacionados a obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas6 . A Lei Geral da Copa, Lei federal n. 12.633/2012, estabelece um conjunto de exceções à ordem jurídica vigente abrangendo desde a exploração de direitos comerciais, concessão de vistos, até a venda de ingressos (idem: p. 101). Já no nível estadual, destacam-se as medidas para concessão administrativa de gestão, operação e manutenção do Complexo Esportivo do Maracanã e a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora no Complexo da Mangueira, com efeitos significativos na apropriação social dos equipamentos esportivos e do espaço urbano, nas remoções realizadas no entorno e nos processos de valorização fundiária e de gentrificação. No nível municipal, as medidas relacionadas diretamente à Copa do Mundo envolvem alterações significativas na estrutura administrativa. Foram criadas a Secretaria Especial da Ordem Pública (SEOP), a Secretaria Especial da Copa 2014 e Rio 2016 (SERIO), extinta em 2011, e inovações institucionais como o Conselho do Legado da Cidade, com participação de representantes do poder executivo municipal e estadual, empresas públicas, comitês organizadores da Copa e das Olimpíadas, associações empresarias e organizações não- governamentais. 6 Lei nº 12.348/2010, Lei nº 12.350/2010 e Lei nº 12.462/2011. Fabricio Leal et al. 27 Já o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável, aprovado em 2011, definiu que as áreas objeto e sob influência de equipamentos para a Copa do Mundo 2014 e os Jogos Olímpicos Rio 2016 estão incluídas como “áreas sujeitas à intervenção”, o que as credencia como prioritárias para planos, projetos, obras ou instalação de regimes urbanísticos específicos – ou excepcionais -, suscetíveis de serem definidas como Áreas de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) ou incluídas em Operações Urbanas Consorciadas (OUC). Disputas em torno dos sentidos e da apropriação social do “Novo Maracanã” A recuperação da história do Maracanã permite realçar sua importância como símbolo da cidade do Rio de Janeiro, reconhecido por sujeitos do mundo dos esportes, da política e da cultura. Tal reconhecimento transcendeu escalas e, desde a década de 50, se impôs, no Brasil e no mundo, como elemento central da nacionalidade e do futebol na cultura popular brasileira. Diante da força simbólica que o constituiu enquanto patrimônio material e imaterial, tanto sua feição arquitetônica quanto sua inscrição urbanística como parte de um complexo de equipamentos estão imbricados, nas representações e práticas sociais ao longo de sua história, ao esporte público e popular. Assim, o Maracanã e sua apropriação social são marcados por disputas, desde a época da discussão em torno da efetiva necessidade de construí-lo, até as escolhas locacionais para inscrevê-lo, se deveria ser tombado ou não e, uma vez tombado, o que de fato deveria ser preservado e o que precisaria ser modernizado. Nos dias atuais, o questionamento e os conflitos à sua volta centraram-se no elevado investimento de recursos públicos e no modelo de concessão empregados em sua reforma e modernização para a Copa do Mundo de 2014. Estas disputas estão referenciadas às possibilidades de apropriação por parte de diferentes grupos sociais, na defesa de seus interesses, cada qual construindo seus próprios argumentos relacionados aos ganhos e perdas, “legados” e “rupturas” advindos de sua reconfiguração socioespacial. Se, por um lado, o discurso legitimador do projeto do Novo Maracanã se valeu de argumentos como a necessidade de cumprir com responsabilidades assumidas junto à FIFA, por outro lado, conforme tratado anteriormente, a sociedade civil, organizada ou não, tem denunciado a 28 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. descaracterização, não apenas arquitetônica, do edifício, mas também os modos como estas alterações têm rebatido diretamente na relação dos seus usuários mais tradicionais com o espaço. A diminuição gradativa da capacidade de público do estádio, a extinção da chamada “geral”, a consequente elevação do preço dos ingressos, a criação de mais “áreas vips” vinculadas à concepção das chamadas arenas para um público world class e a imposição de uma “cartilha de comportamento do torcedor”, são as condicionantes praticadas pelos seus gestores e promotores como tentativas de ressignificação do Maracanã, condições estas contestadas pelos sujeitos, coletivos e movimentos que, ao representá-lo, atualizam, nas lutas sociais, seu consagrado caráter popular e democrático. As intervenções feitas no estádio, assim como a logística e a disposição espacial do aparato militar implementado no seu entorno durante os jogos da Copa do Mundo reafirmaram, na materialidade das ações e nas suas ordens de legitimação, o caráter seletivo e excludente do processo de requalificação do espaço. Entretanto, as disputas de sentidos em torno ao usufruto do estádio e do Complexo do Maracanã continuam em pauta no contexto pós- Copa do Mundo 2014 e de preparação dos Jogos Olímpicos 2016.A descaracterização do estádio e a disputa em torno do tombamento pelo IPHAN O processo de tombamento do Maracanã teve início no ano de 1983, com a realização de estudos sobre os grandes estádios de futebol do país, no intuito de contextualizar o estádio entre os exemplares arquitetônicos existentes. Em 1997, quando se discutiam intervenções para atender às exigências da FIFA para o Mundial de Clubes, em 2000, surgem preocupações com a descaracterização do complexo do Maracanã, uma vez que se considerava a demolição de alguns dos equipamentos esportivos. É então sugerida a delimitação do Estádio Mario Filho como bem tombado e uma poligonal que engloba os demais edifícios do complexo como elementos do entorno a serem também protegidos. Em 1999, as instituições responsáveis são oficialmente comunicadas do tombamento provisório do bem, consolidando a delimitação acima descrita. Um ano depois, em 2000, após parecer favorável do Conselho Fabricio Leal et al. 29 Consultivo do IPHAN, o tombamento definitivo do Maracanã é homologado pelo Ministério da Cultura, sendo a obra inscrita no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. O histórico de intervenções, no entanto, não iria parar por aí. Já na preparação para a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, atendendo exigências das entidades organizadoras, muitas mudanças foram realizadas, inclusive a supressão da “geral”, o que abriu um importante precedente para que intervenções maiores na arquitetura do estádio fossem realizadas. Na reforma para a Copa do Mundo de 2014, o significado do tombamento se tornou um dos pontos polêmicos centrais. As obras foram iniciadas em 2010 e, já com elas em andamento, foi alegado o comprometimento da estrutura da cobertura de concreto das arquibancadas, e então sugerida a sua substituição por uma estrutura de aço e lona tensionada. No parecer emitido à época sobre as modificações na cobertura, a Superintendência Regional do IPHAN no Rio de Janeiro não se opõe, com base no argumento de que o tombamento considerava apenas o caráter cultural imaterial, uma vez que o estádio foi inscrito no livro de tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e não do livro das Belas Artes, onde figuram os exemplares reconhecidos pela relevância arquitetônica. Mais tarde, em agosto de 2011, quando da apresentação do projeto de reforma ao Conselho Consultivo do IPHAN, muitos conselheiros criticaram as intervenções realizadas e os argumentos utilizados para aceitá-las, e manifestaram sua decepção com o desrespeito ao tombamento do estádio, devido à total descaracterização do objeto efetivamente tombado. Contudo, como não caberia ao Conselho Consultivo deliberar em nome da instituição, a reunião terminou apenas com um registro em ata de uma posição de censura à Superintendência Regional do Rio de Janeiro7. Em 2011, uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal contra o IPHAN e a Empresa de Obras Públicas (EMOP), afirma que a demolição da marquise descaracteriza o estádio e viola o tombamento do Maracanã. No entanto, a acusação é negada pela 6ª Vara Federal, que, entre outros argumentos, destaca os laudos técnicos que condenam a marquise do estádio. O Ministério Público recorreu da decisão, e o processo ainda não tinha, em dezembro de 2014, um desfecho final na justiça. 7 De acordo com a Ata da 68ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural (IPHAN, 2014). 30 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. Processos de transformação e valorização fundiária As tendências e as possibilidades de transformação fundiária na região do Maracanã devem ser lidas no contexto geral da dinâmica imobiliária carioca, que, vinculada a fatores mais abrangentes de caráter global e nacional (crise imobiliária de 2008, ampliação do crédito habitacional, etc.), é também impulsionada pelos investimentos realizados para a adequação da cidade às Olimpíadas e à Copa do Mundo. Certamente, as obras do Complexo do Maracanã e as ações complementares empreendidas no entorno influenciam em alguma medida a distribuição de investimentos privados, potencializam transformações e modificam expectativas e demandas dos moradores locais, assim como possivelmente afetam, de diferentes maneiras, as representações sociais atribuídas ao Maracanã e a áreas e bairros do seu entorno. Com exceção das ações de despejo, remoção e reassentamento realizadas, contudo, não é possível atribuir à reforma do Complexo a responsabilidade maior pelas transformações em curso, especialmente no que diz respeito à dinâmica imobiliária formal ao sul da via férrea. Ao norte da via férrea, entretanto, a reforma do Maracanã pode ter sido bem mais decisiva na transformação do uso do espaço, especialmente se consideramos a influência da Copa nas medidas complementares implementadas ou previstas na região. A instalação de uma Unidade de Política Pacificadora - UPP no Complexo da Mangueira, as expectativas de melhorias de saneamento na favela, a melhoria da acessibilidade para a região, advinda da construção de novas passarelas sobre os trilhos e a construção dos conjuntos Mangueira I e II, certamente podem ser diretamente relacionados a processos de valorização fundiária em curso. Mesmo essas transformações, contudo, não são observadas apenas no entorno do Estádio, mas são compartilhadas por uma quantidade expressiva de outras favelas da cidade, que, por diferentes razões – entre elas, a visibilidade na mídia, a localização em áreas de interesse do capital imobiliário ou a proximidade com as regiões de implantação de equipamentos e estruturas relacionadas à realização dos megaeventos -, vêm recebendo Unidades de Política Pacificadora e recursos significativos do Programa de Aceleração do Crescimento para urbanização. Tudo indica que a realização dos megaeventos no Rio de Janeiro influenciou de forma decisiva a distribuição de recursos federais para a cidade, assim como reorientou as ações do governo estadual, especialmente no que diz respeito à política de segurança e mobilidade urbana. Fabricio Leal et al. 31 Em suma, a não ser nos casos já apontados, não é possível distinguir, no intenso dinamismo do mercado imobiliário da região, o que pode ser atribuído especificamente às obras de reforma do Complexo Esportivo do Maracanã, ainda que as intervenções no entorno permitam especulações acerca da influência da reforma na valorização fundiária ou na apropriação social do espaço. Impactos socioambientais A reforma do Maracanã implicou uma série de mudanças que afetaram de forma diferente os moradores do entorno e os usuários dos equipamentos esportivos. O acesso social e o controle público sobre os equipamentos existentes no Complexo do Maracanã se deterioraram após a reforma, que implicou a redefinição das formas de apropriação social do Estádio, de forma a excluir a participação da população de baixa renda. Por outro lado, as atividades realizadas no Estádio Célio de Barros e no Parque Aquático Júlio Delamare foram extintas e a sua posterior dispersão para outras áreas se deu de forma reduzida e precária, com danos irreparáveis para atletas e usuários beneficiados pelas políticas sociais desenvolvidas nesses equipamentos. Como visto, as mobilizações sociais, das quais participaram trabalhadores e usuários dos equipamentos existentes, lograram reverter a decisão de demolição dos equipamentos esportivos e da Escola Municipal Friedenreich, mesmo que não seja ainda conhecida plenamentea extensão nem a estabilidade dessa vitória. Os funcionários, pais e alunos da Escola Friedenreich ainda estão vigilantes quanto a novas reformas relacionadas à realização das Olimpíadas 2016 e os atletas, usuários e os diversos apoiadores que se mobilizaram contra a demolição dos equipamentos esportivos ainda não têm informações sobre a reforma que será realizada pela concessionária Maracanã S. A. e estão apreensivos com relação à possibilidade de retomada plena das atividades anteriormente realizadas. As pressões para a desocupação da favela Metrô-Mangueira e do antigo Museu do Índio envolveram ações de violação de direitos humanos e o desrespeito a convenções internacionais sobre processos de remoção e reassentamentos. Os processos violentos de remoção observados tiveram impactos duradouros e negativos sobre parte da população da favela (os que aceitaram imediatamente a remoção estão hoje morando a dezenas de 32 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. quilômetros de distância) e sobre os ocupantes do Museu. Ao final, as famílias de Metrô-Mangueira que resistiram às propostas de reassentamento na periferia distante foram beneficiadas pela mudança da estratégia da Prefeitura que passou a oferecer conjuntos habitacionais próximos e bem localizados junto ao Complexo da Mangueira nos conjuntos habitacionais Mangueira I e Mangueira II. Já as mobilizações sociais em torno da Aldeia Maracanã não foram suficientes para garantir a permanência dos ocupantes, ainda que tenham impedido a demolição do prédio, que será restaurado pelo governo estadual. Certamente, ainda restam muitas questões a serem resolvidas com relação à remoção da favela Metrô-Mangueira. A precariedade no acesso à moradia na cidade fez com que parte das casas vazias fosse novamente ocupada por famílias sem-teto, o que gerou novos conflitos que evoluíram até chegar ao confronto e à repressão violenta por parte da polícia militar. Até o final de 2014, apesar dos compromissos assumidos de reassentamento da população residente, a situação de Metrô-Mangueira era ainda de extrema insegurança e precariedade, com moradores convivendo com o lixo e o entulho dos prédios demolidos. Para os moradores do Complexo da Mangueira, a maior mudança foi a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora que, se logrou melhorar as condições de segurança, é alvo de críticas generalizadas pelas lideranças locais. As operações da UPP, classificadas pelos moradores entrevistados na pesquisa como truculentas, desrespeitosas ou abusivas, vieram acompanhadas pela regularização e formalização dos serviços existentes, com o aumento das tarifas cobradas, especialmente no que se refere à energia elétrica. De acordo com a população entrevistada na Mangueira e nos conjuntos habitacionais, o principal “legado” das obras do entorno do Complexo do Maracanã não é a UPP, mas a construção de uma passarela ligando o norte da via férrea às estações de Metrô e trem do Maracanã. Finalmente, cabe registar que a dinâmica de valorização fundiária observada nos bairros do Maracanã e entorno se encarregará de operar uma elitização na apropriação social do espaço, sem eliminar ou diminuir, contudo, a segregação socioespacial existente, mas reforçando, ao sul e ao norte da via férrea, diferentes processos de gentrificação. Fabricio Leal et al. 33 Gastos públicos, gestão privada e efeitos econômicos De acordo com a Controladoria Geral da União, o preço final da reforma do Estádio do Maracanã, calculado em 2013, foi de R$ 1.050.000.000,00 (um bilhão e cinquenta milhões de reais) (Brasil, 2014). Se somarmos todos os gastos com as reformas realizadas a partir de 1999, contudo, os custos chegariam a R$ 2,4 bilhões de reais. A licitação realizada pelo governo estadual para a administração do complexo por 35 anos foi vencida pela Concessionária Maracanã S.A, composta pelas empresas Odebrecht Properties, IMX Venues e Arenas, joint-venture entre os Grupos EBX e IMG Worldwide, e a empresa americana AEG, operadora de mais de cem arenas em 14 países8. O grupo irá pagar 34 parcelas anuais de R$ 5,5 milhões, corrigidas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e se comprometeu a investir R$ 594,2 milhões em obras no entorno do Maracanã, o que incluía inicialmente a demolição do estádio de atletismo, do parque aquático e do Museu do Índio. Mais tarde, essas definições foram alteradas por meio da celebração de um primeiro aditivo ao contrato, que exclui a previsão de demolição das edificações e obriga a concessionária a reformar os equipamentos esportivos. O governo federal, mais especificamente setores do Ministério dos Esportes, avalia que a Copa de 2014 foi um bom negócio, conforme se pode depreender pelo fragmento de uma matéria recentemente publicada (Costas, 2014): “O Mundial é uma oportunidade histórica para promovermos desenvolvimento socioeconômico no âmbito local e nacional", disse, por exemplo, Joel Benin, assessor para Grandes Eventos do Ministério dos Esportes, no início do ano. “Ele gerará 3,6 milhões de empregos, movimentará bilhões e deixará um legado importante na área econômica”” [Aspas no original] Contudo, nessa mesma reportagem é afirmado que: “consultorias econômicas, como a Tendências e a Capital Economics, fizeram seus cálculos e concluíram que o seu efeito geral sobre o PIB foi nulo ou insignificante. Mas poucas esperavam um impacto negativo”. 8 Informações do sítio oficial do Maracanã em http://www.maracana.com/site/. 34 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. Por outro lado, o alegado impacto positivo da Copa sobre a economia brasileira, mereceu críticas do próprio Ministro da Fazenda Guido Mantega que, em entrevista a respeito dos efeitos de evento 2014 no PIB brasileiro (Costas, 2014), afirmou: ““(A Copa) foi um sucesso do ponto de vista de organização. Do ponto de vista da produção e do comércio, prejudicou”, disse Mantega em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo e ao site de notícias UOL há pouco mais de uma semana. “(Durante o evento) tivemos muito poucos dias úteis. A produção industrial caiu e o comércio cresceu pouco. De fato, não foi um bom resultado.”” CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de transformação do Maracanã e de seu entorno ainda está em curso e não se encerra nessa reforma nem com o fim da Copa do Mundo 2014. A realização das Olimpíadas 2016 traz novas possibilidades e incertezas sobre o projeto final do Maracanã. A instalação de um shopping center em área próxima ou anexa ao complexo, por exemplo, como já foi cogitado pelo governo estadual, pode gerar uma nova centralidade capaz de atrair ainda mais investimentos. Esse novo equipamento, somado às obras do entorno do estádio, ao grande potencial de renovação do espaço construído das vizinhanças e à elaboração de novas diretrizes e leis urbanísticas, certamente poderia transformar ainda mais a região. Assim, descontinuidades mais importantes no processo de produção e apropriação social do espaço, mais diretamente relacionadas às intervenções locais, poderiam ser observadas. Contudo, espera-se que o desenvolvimento desse processo seja acompanhado e transformado pelos mesmos movimentos sociais de resistência que conseguiram alterar decisões públicas após as jornadas de junho de 2013. Com a realização das Olimpíadas de 2016, novamente o Rio concentrará a atenção da mídia internacional, e os resultados dessa exposição – como nos mostrou aexperiência da Copa das Confederações – são imprevisíveis. Fabricio Leal et al. 35 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANCOP. Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas, 2012. Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil [e- book], Rio de Janeiro, Ancop, 2ª edição. Disponível em http://www.portalpopulardacopa.org.br/. [Acesso em 29 fevereiro de 2014]. Brasil, Controladoria Geral da União, 2014. Portal da Transparência [Online]. Disponível em: http://www.transparencia.gov.br/copa2014/cidades/execucao.seam?empreendi mento=50. [Acesso em 18 de maio de 2014]. Broudehoux, A., 2004. The making and selling of post-Mao Beijing, London, Routledge. _________. 2007. Spectacular Beijing: the conspicuous construction of an Olympic metropolis. Journal of Urban Affairs, v. 29, n.4, pp.383-399. CPCORJ. Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro. 2014. Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro: Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro Junho 2014, Rio de Janeiro, CPCORJ. Concessionária Maracanã, 2014. Maracanã [Online]. Disponível em http://www.maracana.com/site/ [Acesso em 15 de junho de 2014]. Costas, R., 2014. Afinal foi a Copa que derrubou a economia? BBC Brasil [Online]. Disponível em: http://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2014/08/29/afinal-foi-a-copa-que- derrubou-a-economia.htm. [Acesso em 6 de junho de 2014]. IMD. Instituto Mais Democracia, 2014. O Maracanã e os Donos do Rio [vídeo]. IMD [Online]. Disponível em: http://maisdemocracia.org.br/blog/2013/11/30/maracana-e-os-donos-do-rio/. [Acesso em 1 de agosto de 2014]. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2014. Ata da 68ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. IPHAN [Online]. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=2334DBCB9331E9D77 17FCF57242130F1?id=2753. [Acesso em: 10 de julho de 2014]. Mascarenhas, G.; Bienenstein, G.; Sánchez, F. 2011. O jogo continua: megaeventos esportivos e cidades, Rio de Janeiro, EDUERJ. 36 A Reforma do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de 2014: impactos sociais e urbanos. Moulaert, F.; Rodrigues, A.; Swyngedouw, E., 2003. The globalized city: economic restructuring and social polarization in European Cities, Oxford, Oxford University Press. Novais, P.; Soares, H., 2011. Flux et permanence: la réorientation du discours autour des projets urbanistiques et la question du legs olympique. Colloque Métropoles des Amériques: Inégalités, Conflits et Gouvernance, Montréal, UQÀM. Oliveira, N. G., 2012. O poder dos jogos e os jogos de poder: os interesses em campo na produção de uma cidade para o espetáculo esportivo, [Tese de Doutorado], Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ. Oliveira, N.; Vainer, C., 2014. 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Notas metodológicas sobre a análise de grandes projetos urbanos. In: Oliveira, F. L.; Cardoso, A. L.; Costa, H. S. M.; Vainer, C. Grandes projetos metropolitanos: Rio de Janeiro e Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Letra Capital. João Farias Rovati 37 PORTO ALEGRE: URBANISMO PÚBLICO E PROJETOS URBANOS NA COPA 2014 PORTO ALEGRE: URBANISMO PÚBLICO Y PROYECTOS PÚBLICOS URBANOS EN LA COPA 2014 João Farias Rovati 38 Porto Alegre: urbanismo público e projetos urbano na Copa de 2014. RESUMO A hipótese do artigo é a de que os projetos urbanos gestados durante os preparativos da Copa do Mundo de 2014 indicam a emergência de um novo programa para o urbanismo público no país, legitimado essencialmente no “direto à acumulação de riqueza”. O novo programa politiza ao extremo as ações e operações realizadas pelos governos em nome do interesse público, enfraquece o urbanismo como campo do conhecimento e, aos poucos, condena os urbanistas que o servem à invisibilidade. Tendo como pano de fundo um apanhado histórico das relações existentes entre o urbanismo público e coalisões políticas em Porto Alegre, o artigo debate a tese da falta de planejamento no Brasil. Palavras-chave: urbanismo público, projeto urbano, Porto Alegre, Copa do Mundo. RESUMEN La hipótesis del artículo es que los proyectos urbanos gestados durante los preparativos para la Copa Mundial de 2014 indican la aparición de un nuevo programa para la urbanización pública en el país, esencialmente legitimado el "derecho a la acumulación de la riqueza". El nuevo programa politiza las acciones y operaciones extremas llevadas a cabo por los gobiernos en el interés público, que debilita el urbanismo como campo de conocimiento y gradualmente condena los planificadores que o sirven invisibilidad. En el contexto de una visión histórica de la relación entre la planificación urbana y las coaliciones políticas públicas en Porto Alegre, el artículo debate la tesis de la falta de planificación en Brasil. Palabras-clave: urbanismo, urbanismo público, proyecto urbano, Porto Alegre, Copa del Mundo. João Farias Rovati 39 URBANISMO PÚBLICO A noção de urbanismo público está no centro da reflexão proposta neste artigo. Ela raramente é empregada no Brasil. Por exemplo, não encontramos qualquer referência ao termo nos números da “Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais” publicados desde 2004; nesse período, entretanto, com ou sem adjetivações, a palavra urbanismo foi ali mencionada 960 vezes. Em trabalho publicado em 2005, Max Walch Guerra refere-se ao termo e ao tema. O urbanismo público, nascido na Europa no século 19, foi: “implementado como um conjunto de instrumentos de atuação do poder público sobre o âmbito privado, baseado em um Estado central ou poder local, posteriormente também regional, que planifica regulando o desenvolvimento urbano e territorial e intervém através de leis, investimentos diretos e mecanismos indiretos de regulação fiscal” (Guerra, 2005: 9-10). O programa do urbanismo daquela fase industrial, “embora nunca tenha sido inteiramente cumprido, hoje, em grande parte, é coisa do passado” (Guerra, 2005: 10). Agora, o urbanismo público precisa “encontrar soluções para um tipo de desenvolvimento, de cidades e regiões, diferente e que recém está se perfilando”; a emergência de novos fenômenos e de “novas condições de regulação política alteraram profundamente aquilo que um dia justificou chamar de ‘urbanismo público’ o campo político de intervenções no desenvolvimento espacial” (Guerra, 2005: 10). Verificou-se, por exemplo, e citamos Guerra sempre em tradução livre: “(...) uma notável diminuição relativa ou absoluta das funções industriais; uma substancial redução do peso das decisões e intervenções públicas no desenvolvimento urbano e territorial;
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