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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA José carlos dantas São Luís 2011 Edição Universidade estadUal do Maranhão - UeMa núcleo de tecnologias para edUcação - UeManet Coordenador do UemaNet prof. antonio roberto coelho serra Coordenadora de Design Instrucional profª. Maria de fátiMa serra rios Coordenadora do Curso de Filosofia, a distância profª. leila aMUM alles barbosa Responsável pela Produção de Material Didático UemaNet cristiane costa peixoto Professor Conteudista José carlos dantas Revisão liliane Moreira liMa lUcirene ferreira lopes Diagramação JosiMar de JesUs costa alMeida lUis Macartney sereJo dos santos tonho leMos Martins Designer lUciana vasconcelos Universidade estadUal do Maranhão Núcleo de Tecnologias para Educação - UemaNet Campus Universitário Paulo VI - São Luís - MA Fone-fax: (98) 3257-1195 http://www.uemanet.uema.br e-mail: comunicacao@uemanet.uema.br Proibida a reprodução desta publicação, no todo ou em parte, sem a prévia autorização desta instituição. Governadora do Estado do Maranhão roseana sarney MUrad Reitor da UEMA prof. José aUgUsto silva oliveira Vice-reitor da UEMA prof. gUstavo pereira da costa Pró-reitor de Administração prof. Walter canales sant’ana Pró-reitora de Extensão e Assuntos Estudantis profª. vânia loUrdes Martins ferreira Pró-reitora de Graduação profª. Maria aUxiliadora gonçalves de MesqUita Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação prof. porfírio candanedo gUerra Pró-reitor de Planejamento prof. antonio pereira e silva Chefe de Gabinete da Reitoria prof. raiMUndo de oliveira rocha filho Diretora do Centro de Educação, Ciências Exatas e Naturais - CECEN profª. andréa de araúJo Dantas, José Carlos Antropologia filosófica / José Carlos Dantas. - São Luís: UemaNet, 2011. 229 p. ISBN: 978-85-63683-14-4 1. Antropologia filosófica. I. Título. CDU: 141.319.8 ATIVIDADES REFERÊNCIAS SUGESTÃO DE FILME íCONES Orientação para estudo Ao longo deste fascículo serão encontrados alguns ícones utilizados para facilitar a comunicação com você. Saiba o que cada um significa. SAIBA MAIS GLOSSÁRIO ATENÇÃO PENSE SUMÁRIO APRESENTAÇÃO UNIDADE 1 FENOMENOLOGIA HUMANA ........................................... 23 O QUE É O HOMEM? É PONTO DE PARTIDA DA ANTROPO- LOGIA FILOSÓFICA ........................................................... 25 Premissa Fundamental: o homem como ser multidimensional ...................................................... 27 TRAÇOS DA FENOMENOLOGIA HUMANA ...................... 29 O homem como ser material e natural .......................... 29 O homem como ser racional ....................................... 33 O homem como ser sociopolítico ................................. 40 O homem como ser ético-moral .................................. 45 O homem como ser de práxis ...................................... 59 O homem enquanto ser estético ................................... 62 O homem como ser religioso e transcendente ............. 67 A PESSOA E SUAS MARCAS FUNDAMENTAIS ............. 82 UNIDADE 2 CONSTITUIÇÃO CIENTÍFICA DA ANTROPOLOGIA NO OCIDENTE ............................................................................... 95 O CAMPO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA ............................................................................. 96 O TERMO, A LEGITIMIDADE E BREVES TRAÇOS HISTÓRICOS DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA .. 99 AS QUESTÕES DO ESTATUTO E DA METODOLOGIA NA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA ......................... 106 UNIDADE 3 CONCEPÇÕES ANTROPOLÓGICAS À LUZ DA FILOSOFIA NO OCIDENTE ........................................................................ 111 A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DE HOMEM ......................... 114 O homem na Grécia arcaica ...................................... 114 Teológico ou religioso ........................................... 115 Cosmológico ........................................................ 115 Antropológico ....................................................... 115 A antropologia sofística ............................................. 116 A transição socrática .................................................. 117 Antropologia platônica .............................................. 118 Antropologia aristotélica ............................................ 119 CONCEPÇÃO BÍBLICA E PATRÍSTICA DE HOMEM ........ 121 CONCEPÇÃO MEDIEVAL DE HOMEM ............................ 123 CONCEPÇÃO MODERNA DE HOMEM ............................. 124 Concepção humanístico-racionalista de homem ........ 125 A imagem de homem na época da Ilustração ............ 127 Compreensão kantiana de homem ............................. 129 O HOMEM NA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ............... 130 Concepção de homem no Idealismo Alemão e em Rousseau ................................................................... 130 O homem na perspectiva hegeliana ............................ 131 Antropologia pós-hegeliana: Feuerbach e Marx .......... 132 Modelos de Antropologia Contemporânea ................. 134 UNIDADE 4 DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DO HOMEM ..................... 149 FENOMENOLOGIA DA LINGUAGEM: conceitualizações e relevância ........................................................................... 151 Aspectos estruturais da linguagem: divisão, essência e níveis ......................................................................... 154 A origem e trajetória da linguagem ............................ 155 A CULTURA ........................................................................ 167 Conceitualizações ...................................................... 168 Natureza e Cultura .................................................... 170 Cultura e Sociedade .................................................. 172 Cultura como bem de produção e bem de consumo .. 173 A liberdade: a perspectiva sartreana ........................... 177 UNIDADE 5 DUAS PERSPECTIVAS HUMANISTAS: o marxismo e o existencialismo ............................................................................ 193 O HOMEM NO MARXISMO ........................................................ 195 O HOMEM NO EXISTENCIALISMO ........................................... 200 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................ 214 REFERÊNCIAS ................................................................... 217 PLANO DE ENSINO DISCIPLINA: Antropologia Filosófica Carga horária: 60 h EMENTA Antropologia Filosófica e Filosofia. O homem, o tempo e a história: o projeto histórico. O homem e os valores: o projeto ético. O homem e o Estado: o projeto político. O homem e a educação: o projeto pedagógico. O homem e a libertação: a proposta marxista, existencialista e a proposta cristã. OBJETIVOS Geral Proporcionar reflexões, conhecimento e entendimento sob o homem à luz da Antropologia Filosófica. Específicos ¡ Favorecer reflexões e debates em torno de aspectos básicos do fenômeno humano; ¡ Destacar conceitos antropológicos básicos; ¡ Identificar elementos fundamentais da constituição científica da Antropologia; ¡ Compreender criticamente elementos do ser humano: linguagem, cultura e liberdade; ¡ Abordar sucintamente as propostas humanísticas de Karl Max e Jean-Paul Sartre. CONTEÚDO PROGRAMÁTICO UNIDADE 1 FENOMENOLOGIA HUMANA UNIDADE 2 CONSTITUIÇÃO CIENTÍFICA DA ANTROPOLOGIA NO OCIDENTE UNIDADE 3 CONCEPÇÕES ANTROPOLÓGICAS À LUZ DA FILOSOFIA NO OCIDENTE UNIDADE 4 DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DO HOMEM UNIDADE 5 DUAS PERSPECTIVAS HUMANISTAS: o marxismo e o existencialismo METODOLOGIAO desenvolvimento e a avaliação da disciplina serão realizados de acordo com as diretrizes e orientações para a Educação a Distância. AVALIAÇÃO A avaliação se dará em função dos objetivos propostos, levando em consideração: a leitura dos textos sugeridos; o desenvolvimento das atividades propostas; as anotações e os questionamentos levantados e a participação nas discussões nos momentos presenciais. Caro estudante, A Antropologia Filosófica, podemos dizer, é uma disciplina fundante, por isso, de praxe, os cursos de graduação em filosofia a introduzem entre os primeiros períodos exatamente na intenção fundamental de favorecer uma reflexão básica sobre o fenômeno humano. A antropologia é assim fascinante, porque, enquanto “estudo do homem” sob luzes filosóficas, nos faz imaginar uma espécie de espelho pelo qual buscamos desvelar ou compreender feições de nós mesmos. Mas ao mesmo tempo desafiante, porque a imagem revelada é apenas parte do que somos. Assim, entre empolgações e limites, convido você a acompanhar as cinco unidades que compõem o presente curso de Antropologia Filosófica. A primeira unidade aborda traços da fenomenologia humana: natureza, razão, política, ética, práxis, estética e religião. A segunda explicita brevemente a constituição científica e a trajetória histórica da disciplina. A terceira trata da imagem ocidental de homem dos gregos arcaicos aos tempos atuais. A quarta unidade reflete três dimensões humanas fundamentais: a linguagem, a cultura e a liberdade. A quinta discorre sobre duas perspectivas humanistas: o marxismo e o existencialismo (sartreano). APRESENTAÇÃO No princípio de cada unidade apresentamos motivações, objetivos e roteiro principal de estudos. No final, sugerimos filmes, textos e músicas que complementam o conteúdo proposto. Encerramos cada unidade indicando algumas questões relativas ao assunto estudado. De sua parte o esforço, o disciplinamento e a ampliação de leituras caracterizarão sua seriedade e sua responsabilidade acadêmica cujo reflexo posterior será o nível de sua atuação profissional. Isso não significa, obviamente, eliminar outros aspectos da vida, apenas orientar certa prioridade para esta fase acadêmica ora vivenciada. Oxalá este fascículo dedicado à Antropologia Filosófica mediante suas leituras, reflexões e debates críticos possa contribuir para um razoável entendimento sobre o homem e, mais que isso, nos incitar ao compromisso e responsabilidade histórica de cada um nós na esfera ou no contexto em que atuarmos. Por fim, é importante ressaltar que estamos juntos nesta caminhada antropológica. Saiba que você poderá contar com uma série de profissionais envolvidos e dispostos a interagir continuamente. Um grande abraço! Muito sucesso nos estudos! “Em busca do primeiro homem” é uma matéria da jornalista Kate Wong na Scientific American Brasil (Nº 37 – junho 2010), que trata da pesquisa do paleontólogo Michel Brunet e sua equipe da Universidade de Poitiers, o qual apresentou em julho de 2002 o Sahelantropus tchadensis (Toumai – “esperança de vida”), desenterrado no deserto de Djurab, no Chade, como sendo “o mais antigo hominídeo”, datando de aproximadamente 7 milhões de anos, tempo em que, segundo o pesquisador, a linhagem dos chimpanzés e a nossa teriam se separado. A Era do Vazio é um livro que aborda o individualismo contemporâneo demarcado conforme o autor, o filósofo francês Gilles Lipovetsky (1993, p. 1-3) pela prevalência da sedução a qual “se tornou um processo geral com tendências a regrar o consumo, as organizações, a informação, a educação, os costumes. [...]. De agora em diante, o self- service e o atendimento à la carte designam o modelo geral da vida nas sociedades contemporâneas...” as quais caracterizadas conforme o sociólogo Zygmunt Bauman, pela liquidez, tal como ele afirma em seu recente livro Vida Líquida (2009, p.7): “‘Líquido-moderna’ é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para consolidação, em hábitos e rotinas, da formas de agir.” Controvérsias à parte envolvendo essas teses, o fato é que no horizonte do extenso arco do tempo entre homem primitivo o homem hodierno, permanece o que diz Wong ao encerrar sua reportagem: “Muitos de nós passamos a melhor parte da vida procurando nós mesmos.” INTRODUÇÃO Encontrado no Chade, África, em 2001, supostamente o hominídeo mais antigo. Apesar de ser encontrado apenas o crânio e a mandíbula, há pesquisadores que asseguram que detalhes do crânio sugerem o bipedismo. (WONG, 2010, p. 15). Uma frase como que reverberada do eco da eterna máxima precípua de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo.” Esta busca incessante do homem por ele mesmo é, com efeito, a anima, por excelência, da Antropologia, principalmente quando tomada à luz da Filosofia tal como bem expressa na assertiva de Cassirer (2001, p. 9): “Que o conhecimento de si mesmo é a mais alta indagação filosófica parece ser geralmente reconhecido.” Consideremos, entretanto, o seguinte: se questionamos a certeza da verdade afirmada pelo conhecimento de maneira geral, a partir daquela indagação de se os objetos do mundo efetivamente se manifestam com clareza, um tanto mais instigante é o desafio da Antropologia: desvelar o homem. Podemos, com efeito, interpor questões como estas: O homem realmente se revela? Como e em que nível o homem se manifesta? Sob quais parâmetros ou critérios aprendê-lo? Haveria uma autarquia antropológica uma vez que o investigador é também simultaneamente o objeto investigado? Que validade científica teriam então as assertivas antropológicas? Mas estas questões podem ser sintetizadas naquela que é o problema essencial da Antropologia Filosófica: o que é o homem? Rabuske (2001; p. 13) lembra a afirmação de Heidegger segundo a qual “nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. [...]. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente.” De fato, atualmente devemos colocar aquela admirável inquietação levando em conta a diversidade de paradigmas científicos pelos quais se espelham as interfaces do homem, convergentes numa dimensão de totalidade humana, como diz Edgar Morin. Tendo, pois, em mente esta perspectiva de multidimensionalidade, nosso curso esquematicamente divide-se, como já dissemos, em cinco unidades. Começaremos refletindo alguns traços da fenomenologia humana. Marx, Arendt, Morin, Buzzi, entre outros pensadores, convergem na tese fundamental de que o homem primeiramente enraiza-se no mundo, articula a vida, as experiências e a história junto com seus semelhantes no contexto do mundo real. “O homem é um campo de relações [...]. Isso o faz ser-no-mundo e como-o-mundo” (BUZZI, 1987, p. 246). Todavia, tal como assinala o helenista Vernant, referindo-se à sobrepujança do logos ao mito, a razão é a referência definitiva da história da civilização humana, demarcada, por conseguinte, pela socialidade e pela política como já afirmava Aristóteles. De fato, apesar de frisar experiências políticas ocidentais frustrantes, Arendt diz claramente que não existe ação nem “milagres” fora da esfera política, a rigor, efetivada segundo Habermas, concordando com a filósofa, num espaço em que se entrelaçam democracia e ética. Sobre isso Perine afirma que todo homem, em princípio, é portador de um “um saber ético-moral”; embora tensionado o acerto e o erro, pois o homem pode e o faz com frequência, trair regras e valores. Não obstante,Kant fundamenta a moralidade na boa vontade do sujeito cujas máximas de ação atrelam-se a uma moral universal. Permanece, entretanto, o problema básico do contentamento. Que princípios orientariam a satisfação coletiva? Aquilo que é útil como afirma Bentham? O que é justo como defende Rawls? É a atribuição de responsabilidade holística como pensa Jonas? Para Habermas, a adoção de qualquer perspectiva de contentamento requer, primeiramente, que princípios, normas e axiologias sejam discutidas e avalizadas livre e racionalmente pelos envolvidos. Significa afirmar, assim, que o homem reflete, discute e encaminha suas práticas. É um ser de práxis. A práxis é, assim, um distintivo do homem consciente de seu lugar no mundo. Todavia, como nota o teólogo Boff, o homem transcende ao próprio mundo, por exemplo, pela arte e pela religião. Do ponto de vista da arte, podemos mencionar a alusão de Cotrim a uma feliz expressão de Schiller em defesa da estética: “a arte é filha da liberdade e quer ser legislada pela necessidade do espírito, não pela carência da matéria.” Quanto à religião, mesmo um ateu assumido como Feuerbach, assegura que só o homem produz religião. Esta é co-extensiva à cultura. O historiador das religiões Mircea Eliade, nos mostra que em todas as sociedades encontramos traços hierofânicos e distinção entre sagrado e profano. Além disso, a religião une espantosamente os mundos imanente e transcendente – o “cá em baixo” ao “lá em cima,” afirma Explica Perine, é relativo à vida boa, à felicidade (eudaimonia) como dizia Aristóteles, localizada, numa confluência (muitas vezes conflituosa) entre o indivíduo e a coletividade. Berger. Porém, para críticos radicais como Marx, Freud e Nietzsche – “ os mestres da suspeita” como os alcunhou Paul Ricoeur, em vez desse suporte civilizatório, ela é alienante, neurótica e desumanizante e, portanto, um obstáculo removível enquanto condição de possibilidade da emancipação humana. Tratando-se de emancipação, os antropólogos espanhóis Stork e Echevarría, consideram-na impossível, sem o devido realce à dignidade e à pessoalidade de cada um de nós. Com efeito, violências incidentes sobre o indivíduo contradizem qualquer progresso civilizatório Talvez já tenhamos percebido que o tino da antropologia é seguir o encalço da humanidade. Neste sentido, a segunda unidade aborda ainda que brevemente sua constituição científica: natureza, importância e suas metodologias. Sendo uma disciplina pulsante, a Antropologia é, obviamente, tecida por muitas mentes e mãos. Um dos pensadores indispensáveis em torno da trajetória humana, sobretudo no Ocidente, é o padre Lima Vaz. Na terceira unidade vamos acompanhar o fluxo de suas reflexões antropológicas desde a Grécia arcaica à contemporaneidade. Perceberemos que houve um tempo mítico-cosmogônico, em que o homem submetia-se às prescrições divinas. Mas a partir da virada cosmológica e mais ainda desde os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, ressalvando-se as importantes distinções programáticas entre eles, “as coisas humanas” passaram a pautar as discussões teóricas. Tanto, que Lima Vaz mostra claramente como a herança clássica incidiu contundente e até dogmaticamente sobre as interpretações antropológicas posteriores, especialmente nos tempos patrístico e medieval, mesmo que as revelações bíblicas e as doutrinas teológico-eclesiásticas relevantes sejam doravante indispensáveis. Uma célebre expressão desse contexto teocêntrico – porque Deus é o Alfa e o Ômega – é pronunciada por santo Agostinho: “o homem é um itinerante para Deus.” Entretanto, acompanhando Lima Vaz, perceberemos entre os séculos XV e XVIII, quando ocorrem complexas transformações e fatos históricos importantes como a Ilustração e o Renascimento, transitamos, então, para novos tempos onde ideais como humanidade, civilização, tolerância e revolução passam a interferir nas questões antropológicas. De Nicolau de Cusa a Sartre, passando por Pico della Mirandòla, Maquiavel, Descartes, Pascal, Hobbes, Locke, Rousseau, Hegel, Kant, Feuerbach, Marx, Kierkegaard, o homem é interpretado além daqueles ideais supracitados, por traços realmente inovadores: pluralidade cultural, realismo político, racionalismo, materialismo, alienação etc. Estes e outros caracteres desembocam na antropologia contemporânea, acalorando mais ainda os debates agora sob um panorama pluriversal, para dizer, portanto, que o homem é atualmente considerado em espraiadas direções. Nos limites do presente curso, vamos abarcar apenas três direções específicas: a linguagem, a cultura e a liberdade. Estas formam as reflexões da terceira unidade intitulada Dimensões Fundamentais do Ser Humano. Claro que poderiam ser outras. Pensamos, porém que elas traduzem elementos humanos fundamentais. A linguagem, por exemplo, é a epifania do ser, assevera Heidegger; ou ainda como diz Cassirer, é um dos meios fundamentais do espírito: é por ela que transitamos do mundo da sensação ao mundo da representação; é por ela certamente que entramos no mundo, afirma com razão Gusdorf, e Rousseau completa acertadamente ao notar que não se sabe de onde é um homem, antes que ele fale. A Linguagem, portanto, é um sistema sígnico e abstrato; um fenômeno articulado e universal, que torna o homem um homo loquens, diferenciado dos demais seres, ainda mais na esfera da competência pragmático-discursiva, onde se localizam homens que se preocupam e debatem desafios e propostas emancipatórias em nosso complexo tempo, tal como veremos na análise de Habermas. Ora, a linguagem é, evidentemente, inseparável da cultura. Mas o que é cultura? O que uma reflexão sobre cultura pode revelar sobre o homem? Pode-se dizer, em tese, que tal revelação depende do paradigma pelo qual se pretende enxergar uma cultura. Num teor nitidamente crítico, discutiremos como o professor Álvaro Vieira Pinto pensa a cultura no seu livro Ciência e Existência. Uma das coisas que notaremos bem é que a cultura, assim como a história, é uma construção humana. O homem é assim o artífice do mundo e de seu destino. Podemos adiantar que nada nos é dado a priori, isto é, antes da existência propriamente dita. Considerando estas afirmações, já estamos no campo de discussão sobre a liberdade pensada por Sartre no texto O Existencialismo é um Humanismo. E assim encerramos nossa quarta unidade. Nossa quinta e última unidade retoma dois autores – Marx e Sartre –, para nos oportunizar uma discussão mais específica sobre suas leituras humanísticas, designadas como materialismo e existencialismo. Ambas razoavelmente tratadas pelo jesuíta francês Auguste Etcheverry em O Conflito Atual dos Humanismos. Em que pese certa superação de algumas teses de Marx, não há como negar suas afirmações sobre o lugar do homem no mundo e na história e muito menos suas radicais críticas ao capitalismo enquanto sistema contraposto por natureza a um projeto de mundo melhor para se viver. Sartre, por outro lado, pensa no homem emancipado como aquele que superou entraves subjetivos e objetivos que o impediam de traçar as histórias pessoal e coletiva. Seria então a plenitude do protagonismo humano. Convenhamos, realmente, que no atual estágio científico-tecnológico a sensação de determinação humana nos destinos pólis – enquanto sociedade globalizada – parece muito mais à mão, através dos poderes conexos das ciências e das tecnologias. Não obstante toda esta sofisticação desperta críticas e preocupações sérias, fazendo-nos requerer, consequentemente, cada vez mais os auspícios da ética para que não entremos numa rota de cientificismos desgovernados.Munidos dessas motivações iniciais e perspectivas de boas leituras, reflexões críticas e debates animados, assumamos juntos a expectativa de podermos no final de nossa jornada visualizar melhor o que vem a ser o homem ou de forma mais calorosa e íntima, quem, afinal, somos nós mesmos. 1 UNIDADE OBJETIVOS DESTA UNIDADE: Compreender o homem enquanto ser complexo e pluridimensional; Analisar criticamente alguns traços fundamentais do homem; Refletir sobre sentido fundamental do conceito de pessoa. FENOMENOLOGIA HUMANA PALAVRA INICIAL.... Estimado companheiro de reflexão... Estimada companheira de reflexão... Primeiramente seja bem-vindo (a) nesta alegre empreitada ou neste feliz desafio que ora assumimos de abordar, refletir e tentar compreender criticamente o homem, pelos caminhos da Antropologia sob a luz da Filosofia. A intenção básica desta primeira unidade é expor inicialmente a complexidade e o desafio de responder à pergunta: o que é o homem? Ora, esta, como você bem sabe, é uma questão sempre antiga e sempre nova. Quem de nós em algum momento não já se flagrou indagando-se a si mesmo: quem eu sou? O que me faz igual e diferente aos outros seres? Aliás, consideremos algumas situações fenomenais: um crime bárbaro, um assalto ousado e surpreendente, ações corruptas repugnantes; mas também relevantes trabalhos científicos, sofisticadas invenções tecnológicas, FILOSOFIA24 fantásticas expressões de artes, emocionantes conquistas esportivas, superações sensacionais de certos desafios. Pois bem, diante de situações como estas, quem de nós já não pensou por um momento: o homem, de fato, é estranho, surpreendente e fabuloso. De fato, a complexidade humana parece inesgotável. Na esfera específica da Antropologia Filosófica, nas próximas páginas, tomando como referência importantes teorias, teremos a oportunidade de discutir, analisar e criticar, pelo menos, algumas marcas humanas interessantes: o homem é em primeiro lugar um ser natural e um ser de corpo, mas, sobrepondo-se à naturalidade o homem é dotado de complexa racionalidade, que o faz um ser reflexão e ação, isto é, de práxis, e, enquanto tal, ele articula seus mundos social e político. Assim, o mundo tem efetivamente a marca humana. Ao mesmo tempo, porém, o homem transcende sua materialidade por conta das suas crenças e, por isso, o homem projeta-se e espera um mundo para além deste e traduz ou exprime essa dimensão, através de simbologias, rituais e celebrações religiosas. Considere, ainda, caro estudante, o aspecto da pessoa humana enquanto tal. Neste caso, você terá oportunidade de refletir sobre essa questão tomando por base as ideias de dois antropólogos espanhóis. Eles dizem, por exemplo, que a pessoa humana é fonte de toda dignidade. A partir deste conceito se pode pensar o nível ou alcance do tratamento dado às pessoas, inclusive em nosso país e, mais precisamente, aos mais pobres. Portanto, a Antropologia Filosófica nos incita a tentarmos no espelho de suas teorias, nos incita tertarmos ou, ao menos, termos uma compreensão razoável de quem somos nós mesmos. ITINERÁRIO DE ESTUDOS Compreensão crítica de alguns caracteres básicos do ser humano: material/natural, racional, sociopolítico, ético-moral, práxis e religioso; O conceito antropológico de pessoa humana. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 25 O qUE é O HOMEM? é PONTO DE PARTIDA DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA É interessante que se comece considerando que a Antropologia Filosófica é a disciplina que, por natureza, assume-se, primordialmente, com a pergunta “O que é o homem?”, porque esta é, precisamente, a questão que traduz ou explicita o objeto ou telos principal de sua pesquisa. Convém advertir, todavia, que a preocupação demarcada na pergunta reflete muito mais a complexidade deste objeto, isto é, o próprio homem, do que perspectiva de desvelamento ou definição do mesmo. O professor Edvino Rabuske, na sua obra Antropologia Filosófica, precisamente na Introdução, apresenta algumas célebres expressões sintéticas sobre o homem. Houve, por exemplo, quem ressaltasse, efetivamente, num contexto histórico específico, a relevância do homem tal como o italiano Giordano Bruno ao afirmar: “o homem se situa no limite entre eternidade e tempo, participando de ambos.” Esta ideia de “dupla cidadania”, embora com outra conotação, reaparece em Kant ao considerar o homem como fenomênico e noumênico. Para Blaise Pascal, o homem é a implicação da dignidade e do limite de si próprio ao dizer que “o pensamento é, portanto, a nossa suprema dignidade. O homem transcende infinitamente o homem.” Para outros, entretanto, o homem circunscreve-se, fundamentalmente, na sua própria realidade, parece que é o que Karl Marx quer dizer quando assegura que “o homem não passa de um conjunto de relações sociais.” Traduzir o homem fora da teia de relações seria desenraizá-lo de sua realidade, portanto, conduzi-lo para além de sua própria humanidade. Observe que justamente a aura, por assim dizer, da Antropologia Filosófica advém deste paradoxo: fascínio e desafio sintetizados no próprio homem. Aliás, neste campo específico e apropriado da antropologia ele é, simultaneamente, sujeito e objeto de estudo. Portanto, a responsabilidade e o encanto dessa disciplina, consistem, Em Kant, de modo geral, fenômeno é relativo ao mundo sensível e noumeno ao mundo inteligível. Em se tratando do homem, este pertence ao mundo sensível e só pode conhecer, efetivamente, os fenômenos. Por outro lado, o homem não sendo preso às sensibilidades pode fundamentar, por exemplo, sua moralidade em categorias transcendentais. Consequentemente, é um ser livre, isto é, não dependente de interesses e condições imediatas. FILOSOFIA26 literalmente, em instigar, compreender, descrever o homem à luz da filosofia. Notemos, a propósito, a seguinte afirmação de Rousseau: O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem e ouso afirmar que a simples inscrição do templo de Delfos continha um preceito mais importante e mais difícil que todos os grossos livros dos moralistas...” (ROUSSEAU, 1973, p. 233). De fato, o homem é a realidade mais profunda e mais complexa que se conhece no mundo natural. Pico della Mirândola afirma ter lido que um antigo escritor árabe, Abdala, ao ser questionado sobre o que considerava mais admirável neste mundo, respondera imediatamente: o homem. Pico (s/d, p. 37-38) completa afirmando que “o homem, na verdade, é reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos, por ser, efetivamente, um portentoso milagre.” O homem que somos parece, pois, fascinante, mas, ao mesmo tempo, nas palavras do filósofo Jaspers, a mais enigmática dentre as coisas. No século XX, uma gama de conhecimentos lançou, certamente, mais luz sobre o ser humano no universo, insuficientes, inclusive, porque compartimentados ou fracionados para abarcar a complexidade do homem. Observe, com efeito, o que o pensador francês, Edgar Morin (2001, p. 47-48), ressalta nas seguintes palavras: Os progressos concomitantes da cosmologia, das ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré- história, nos anos 60-70, modificaram as ideias sobre o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio homem. Mas estas contribuições permanecem ainda desunidas. O humano continua esquartejado, partido como pedaços de um quebra-cabeça ao qual falta uma peça. E numa crítica aberta às “ilhas” departamentais, logo fragmentárias, das ciências sobre o homem, continua Morin (2001, p. 48): Aqui se apresenta um problema epistemológico: é impossível conceber a unidadecomplexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como o pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bio-anatômico. [...]. Paradoxalmente assiste-se ao agravamento da ignorância do todo, enquanto avança o conhecimento das partes. Edgar Morin - 1921 Fonte: http://www.google.com.br ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 27 Destarte, você percebe bem que a marca primordial do homem é exatamente a complexidade em função da sua multidimensionalidade. É uma condição sine qua non para um sério enfoque antropológico. Premissa Fundamental: o homem como ser multidimensional O homem não pode ser visto perspectivamente de um ou outro ângulo, exatamente porque nenhum ângulo ou parte exprime a totalidade do homem. Com efeito, o homem apresenta dimensão somática, psíquica, racional, individual, social, econômica, política, sapiencial, erótica, estética, técnica, informacional, ética etc. Ora, estas faces são interconexas e não excludentes. É claro que se pode privilegiar ou sublinhar qualquer um destes aspectos numa determinada análise, desde que se evite o reducionismo antropológico. A especialidade deixa de ser legítima à medida que pretenda um teor de totalidade. Ressalte-se que cada dimensão, exprime não uma fração, mas o homem global. Neste sentido, vejamos o que o antropólogo Arduini (1989, p. 19) afirma: A dimensão impregna a globalidade do existir humano e, consequentemente, do seu agir. É o homem todo e não só uma parte, que é pensante, efetivo, temporalizado, dialogal, criador, sexual, imanente e transcendente. Uma dimensão não contém a totalidade do ser humano, mas marca-lhe a totalidade do ser. Deste modo se vê claramente que a partir deste princípio, se for possível captar o homem – claro, como observa Cassirer, nunca será nos moldes das coisas físicas, pois estas podem ser compreendidas em suas propriedades objetivas, mas o homem só pode ser descrito em termos de natureza – então isto só será possível em termos dialógicos. Isto quer dizer que o tema do homem é, por natureza, interdisciplinar e que, portanto, Antropologia sintoniza-se, ininterruptamente, com as várias disciplinas – biologia, genética, filosofia, psicologia, sociologia, economia, política, teologia, entre outras, que abordam ou tomam o homem como objeto de estudo sob algum aspecto interessante. Lima Vaz observa, por exemplo, que o reducionismo economicista que ocorre em certas interpretações marxistas, inviabiliza uma compreensão globalizante de homem. FILOSOFIA28 Aliás, um oportuno contraponto desta multidimensionalidade humana configura-se na denúncia de Marcuse sobre a razão unidimensional pela qual geralmente se orienta a moderna sociedade industrial e seu consequente atrofiamento do homem. Nas palavras do pensador alemão: [...] essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; [...]. As aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensuravelmente maiores do que nunca dantes – o que significa que o alcance da dominação da sociedade sobre o indivíduo é incomensuravelmente maior do que nunca dantes. A nossa sociedade se distingue por conquistar as forças sociais centrífugas mais pela Tecnologia do que pelo Terror, com dúplice base numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente. [...]. Quanto mais racional, produtiva, técnica e total se torna a administração repressiva da sociedade, tanto mais inimagináveis se tornam os meios pelos quais os indivíduos administrados poderão romper sua servidão e conquistar sua própria libertação (MARCUSE, 1978, p. 14-28). A Antropologia Filosófica, neste sentido, assume a perspectiva de que embora se considere os aperfeiçoamentos especializados sobre o homem, este só pode ser compreendido numa abordagem integrativa, inclusive quando tomado por algum ramo da Antropologia: biológica, linguística, social, política, cultural, teológica etc. Perceba, então, neste sentido, caro estudante, que a própria Antropologia deve, portanto, precaver-se, como já observamos, dos estudos fragmentários ou reducionistas. Como ressalva Laplantine, (2007, p. 16): “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. [...] uma das maiores vocações de nossa abordagem (antropológica) consiste em não parcelar o homem...” De igual modo, Jaspers observa que o homem foi definido como ser de palavra e pensamento (zoon logon echon), que estabelece legislação à cidade (zoon politikon), que fabrica e trabalha com utensílios (homo faber e laborans) e que assegura comunitariamente sua subsistência (homo laborans). O que essas definições ratificam, afirma Jaspers, Quando se percebe em nossos dias as faculdades, o tempo e mesma a vida do homem administradas em função da racionalidade produtiva e a consequente a perda do livre desenvolvimento humano, não é a permanência da servidão denunciada por Marcuse? Marcuse nos anos 60 integrou o movimento da “Contracultura” nos Estados Unidos e que se espraiou em outras partes do mundo, como forte manifestação contraposta à exploração capitalista. Movimento Contracultura Fonte: http://www.google.com.br ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 29 é que na perspectiva antropológica a imutabilidade é inconcebível. Ao contrário, “a essência do homem é mutação: o homem não pode permanecer como é. [...]. Contrariamente aos animais, ele não é um ser que se repete de geração para geração.” (JASPERS, 2006, p. 47). É exatamente nesta perspectiva de pluridimensionalidade, portanto, na encruzilhada da interdisciplinaridade que se pode abordar e, por conseguinte, compreender, ainda que limitadamente, aspectos do fenômeno humano. TRAÇOS DA FENOMENOLOGIA HUMANA O homem como ser material e natural Conhecer o homem, conforme Edgar Morin, significa, primeiramente, colocá-lo no universo e separá-lo dele. É uma conclusão básica que se absorve do moderno progresso científico das ciências naturais, entre elas a biologia e a ecologia. Com efeito, ressalta Morin (2001, p. 48): [...] é impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como pelo pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bio-anatômico. Considere, neste sentido, que o homem não é mais filho de um Universo perfeitamente constituído, mas encontra-se no Cosmos complexo e expansivo composto de bilhões de galáxias e estrelas, como minúsculo passageiro da epopeia cósmica, precisamente, no restrito espaço da terra, que, por sua vez, organizada na dependência do Sol, torna-se um sistema biofísico que comporta a biosfera na qual inclui-se esse diminuto broto de existência denominado homem. Havemos, portanto, de concordar com Morin, quando realça que o homem é simultaneamente cósmico e terrestre. FILOSOFIA30 Enquanto terreno o homem tal como figura hoje é resultado de uma desenvoltura hominídea de milhões de anos – australopiteco, homo habilis, homo erectus, neandertal e homo sapiens, em que numa dinâmica evolutiva se resgistram bipedização, erguimento do corpo, manualização, cerebralização, complexificação linguístico- cultural com seus saberes, fazeres, mitos, crenças, artes etc. Então, a interconexão entreo bio-físico e psico-cultural é um princípio fundante da hominização. Pense, então, na epopeia evolutiva do homem. Sob este ponto de vista do processo evolutivo, o homem atual representa a passagem das formas inferiores às mais complexas. Teilhard de Chardain nota o seguinte: “O homem, não mais o centro estático do Mundo - como por muito tempo ele se acreditou; mas como eixo e flecha da Evolução -, o que é muito mais belo (CHARDIN, 2006, p. 28). De fato, enquanto ser corpóreo o homem é matéria viva e complexamente organizada, subordinada às mesmas leis que governam as demais matérias. Lima Vaz observa que em primeiro lugar considera-se que pelo seu corpo o homem presentifica-se no mundo. “Ter o corpo próprio (eu corporal) significa transcender as totalidades física e biológica (como nos animais) mediante a intencionalidade.” O corpo, diz Arcângelo Buzzi (1987; p. 243), é “extensão em todas as direções, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz. [...]. O corpo é forma visível, densa resistente, compacta de poder, toda feita para buscar e procurar, para encontrar e estar junto. É ponte que busca e aproxima. É corda.” Nietzsche tem neste sentido uma arguta asserção: O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. (NIETZSCHE, 1999, p. 26). A dimensão da materialidade humana é marcantemente talhada por Marx, a partir, entretanto, da perspectiva de expor a realidade econômico-política do homem. Note, então, que à luz de uma interpretação marxiana, o homem é primordialmente natural. Precisa da natureza para sobreviver e, ao mesmo tempo, age reflexivamente sobre ela para sobreviver e, nessa dinâmica, traduz-se como ser de No aforisma 40 de Humano Demasiado Humano (1886), Nietzsche denuncia o cerceamento moral da animalidade humana, quando afirma o seguinte: “Sem os erros que se acham nas suposições da moral, o homem teria permanecido animal. [...]. Por isso ele [o homem] tem ódio aos estágios que ficaram mais próximos da animalidade...” (NIETZSCHE, Friedrich, 2000, p. 49). Efetivamente, não temos sido “educados” num sistema moral que em nome de certos valores nos têm treinado a sufocar ou a negar nossos traços mais naturais? ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 31 práxis, à medida que exerce atividade externamente modificando a natureza e desenvolvendo faculdades latentes. Para Marx, a organização corporal é que condiciona a produção de meios para sua subsistência, e assim o homem distancia-se dos animais. Esta concepção natural de homem subjaz nos pensamentos de Marx e de seu amigo Engels, os quais inspirados, nas ideias de Feuerbach, assumem o primado da materialidade. Por exemplo, na Ideologia Alemã (1845-46), o afirmam explicitamente: Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, por tudo o que quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material (MARX: ENGELS, 1984, p. 15). E ainda: A produção das ideias, as representações, da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como efluxo direto de seu comportamento material (MARX: ENGELS, 1984, p.22). Convém, entretanto, que notemos que em Marx este materialismo – como se sabe –, é essencialmente dialético, como bem observa Etcheverry (1975, p. 145): A evolução, ou melhor, a revolução, está no âmago da natureza e da história. O mundo revela-se com um sistema de contradições superadas. Está claro, pois, que não há dissociação entre pensamento e ação – que é luta contra as misérias da vida e as resistências do universo. Agora observe que esta complexidade humana – ação e pensamento –, pode-se compreender como aquilo que Hannah Arendt chamou de vita activa, onde o labor e o trabalho constituem os níveis básicos da condição humana. Ela assim explicita o que é labor: Práxis - de maneira elementar e sucinta, pode-se falar da práxis como a prática da teoria e a teorização da prática. À frente do presente texto, abordar-se-á especificamente sobre a dimensão humana da práxis. Atividade - o trabalho faz o homem, afirma o pensador francês Roger Garaudy em A Teoria Materialsita da Consciência. Trabalho escravo Fonte: http://www.google. com.br Professora em atividade Fonte: http://www.google.com.br FILOSOFIA32 O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida (ARENDT, 2008, p. 15). Em gradação ascendente, o trabalho refere-se à categoria de artificialidade da existência humana. De fato, Marx já havia ressaltado a relevância do trabalho no processo de realização humana. Em Hannah Arendt (2008, p. 15), “o trabalho produz um mundo ‘artificial’ de coisas nitidamente diferentes de qualquer ambiente natural. [...]. A condição humana do trabalho é a mundanidade.” Todavia, a partir desse mundo material, o homem transcende para outros níveis em função da desenvoltura de outras competências. Com razão observa a mesma autora: [...] as condições da existência humana – a própria vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra jamais podem ‘explicar’ o que somos ou responder a pergunta sobre o que somos, pela simples razão de que jamais somos condicionados de modo absoluto. [...] embora vivamos agora, e talvez tenhamos que viver sempre, sob condições terrenas, não somos meras criaturas terrenas (ARENDT, 2008, p. 19). De outra maneira, Erich Fromm ressalta que o animal se adapta geralmente da mesma forma e caso a sua composição instintivo- biológica não se adequar a transformações possíveis a espécie tende ao ocaso. Com efeito, denota-se ausência de luta entre o animal e seu meio. Ou ele se ajusta ao meio ou perece. A configuração humana no cosmo é radicalmente diferente. Nas sábias palavras de Fromm: O aparecimento do homem pode ser definido como tendo ocorrido no ponto do processo da evolução em que a adaptação instintiva atingiu seu mínimo (FROMM, 1983, p. 43). Considere agora a respeito desta escalada evolutiva do homem, esta pertinente observação do paleontólogo e pensador francês, o padre Teilhard de Chardain: Hannah Arendt: 1906 - 1975 Fonte: http://www.google.com.br O dicionarista Silveira Bueno explica que Paleontologia significa tratado ou ciência dos animais e vegetais fósseis e que inclui a Paleozoologia e a Paleobotânica; além disso, constitui uma relação entre a Biologia (restos orgânicos) e a Geologia (formações rochosas que podem abrigar esses restos). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 33 Se queremos resolver essa questão [...] de ‘superioridade’ do homem aos animais, eu não vejo senão um meio: por decididamente de lado, no feixe dos comportamentos humanos, todas as manifestações secundárias e equívocas da atividade interna e encarar bem de frente o fenômeno central da Reflexão. [...], por sermos reflexivos, não somos apenas, mas outros. Não só simples mudança de grau, - mas mudança de natureza – que resulta de uma mudança de estado (CHARDAIN, 2006, p. 186-187). Assim, nos introduzimosnum terreno fundamentalmente humano: a racionalidade que a seguir trataremos. O homem como ser racional Em um sentido elementar e superficial pode-se afirmar que o homem sobressai-se em relação a outros seres, fundamentalmente em função da razão, porque parece que só ele está habilitado para refletir, analisar, ajuizar, criticar, propor, afirmar, negar, manipular, transformar etc. Com efeito, os atos humanos têm a marca essencial do conhecimento como exímio reflexo da racionalidade. Rabuske (2001, p. 73) refere-se, neste sentido, à interessante observação da antropóloga Grace Laguna, que afirma o seguinte: A racionalidade do homem não é uma faculdade mais alta acrescentada a ou imposta de cima à natureza animal; pelo contrário, pervade todo o seu ser e manifesta o mesmo em tudo que ele faz como naquilo que ele crê ou pensa... Uma compreensão antropológica de razão no ocidente volve-se para os regos arcaicos. Quando se fala, como diz Husserl, numa razão consciente de si mesma e de suas exigências peculiares, retorna-se, necessariamente, à mutação intelectual ocorrida no século VI a.C., numa conjuntura em que se registrou o denominado “milagre grego”, entendendo-se com esta expressão não uma irrupção brusca da razão, mas uma cosmologia, como explica Vernant, que não pretende relatar sequências de nascimentos mas estabelecer os princípios das coisas que são. “Uma forma de reflexão Etimologicamente a palavra razão remonta-se ao termo grego Logos que designa cálculo (proporção de grandezas diferentes); sobretudo, porém, por um lado significação articulada, discurso e, por outro, dimensão intelectual expressa em termos como noûs – intelecto: princípio de organização e compreensão do mundo; noésis – exercício da razão e dianoia – aplicação da razão discursiva. No latim, a acepção etimológica refere-se às ideias de cálculo, ordem e organização. Ultrapassando a raiz etimológica, a contemporânea teoria do agir comunicativo de Habermas define racionalidade enquanto “pretensão de validez” responsavelmente requerida por falantes recíprocos, no interior do discurso. Expressão adotada, principalmente, pelo helenista inglês John Burnet, para quem a racionalidade filosófica grega emergente, precisamente, na Jônia pelos fins do século VII implica uma ruptura radical com a mitologia; em vez dessa concepção, o helenista francês Francis M. Cornford defende a perspectiva de continuidade entre mito e razão. FILOSOFIA34 nova e inteiramente positiva sobre o mundo natural. [...]. Mais do que uma mudança de atitude intelectual [...], tratar-se-ia de uma revelação decisiva e definitiva: a descoberta do espírito.” (VERNANT, 1990, p. 441- 442). De fato, Lacroix (2009, p. 26) ressalta que doravante “a natureza é dessacralizada e se esvazia do divino que a animava; este a impulsiona e a regula, certamente, mas do exterior.” Imaginemos a discussão que certamente na altura daquele século VI a.C., deve ter provocado entre os que viam no logos – na razão a superação do mito – narrativas (talvez) imaginárias, flutuantes e aqueles que, inversamente, não renunciavam sua pia confiança nas tradicionais “histórias” divinas. Talvez algo semelhante ao intenso debate entre fé e razão nos tempos primordiais do cristianismo. Na verdade, a razão, por um lado, é certa continuação do mito, por outro, entretanto, ruptura, em função de sua lógica própria. O mito é uma narrativa e não a solução de um problema; a razão toma a forma de um problema adequadamente formulado. “O espaço do questionamento não pode ser liberado senão a partir do processo de laicização do discurso que envolve o da constituição e desenvolvimento das cidades.” (LACROIX, 2009, p. 25). O mito confunde os planos divino natural e humano; à luz da razão as questões políticas começam a ser realmente discutidas. O mito concebe os elementos naturais como realidades físicas e divinas; desde a cosmologia dos jônicos aqueles elementos são abstratamente definidos. Em Parmênides, o Ser, não tendo forma visível e sensível da multiplicidade das coisas, não pode ser abordado pela opinião (doxa), mas pelo logos – pensamento e discurso que se fundamentam. Ainda Lacroix (2009, p. 28) ressalta que “o que o pensável e dizível é apenas a eterna presença do Ser; em compensação o devir e sua expressão no discurso sob a forma de contradição são o impensável e o irracional.” Nos fragmentos II e III Parmênides afirma: [...] tu porém, auscultando a palavra, cuida que os caminhos únicos do procurar são dignos de serem pensados: um que é e que não-ser não é; é o único caminho da obediência, [...]. O único, que não é, e que necessariamente não-ser é; este caminho eu te digo em verdade ser totalmente insondável como algo inviável; pois não haverias de conhecer o não- ente [...] ...pois o mesmo é pensar e ser (LEÃO: WRUBLEWSKI, 1999, p. 45). E você, advogaria para quem? Para a tese de Burnet que defendia a ruptura entre mito e razão ou para Conford que, ao contrário, via continuidade entre mito e logos? O helenista Sir Moses Finley frisa que na literatura arcaica grega mitos e logos significam exatamente expressão oral contrastando com ação. Entretanto, Hecateu (predecessor do historiador grego Heródoto) afirmava serem suas narrações (mytheitai) verdadeiras enquanto outros gregos tinham narrativas (logoi) falsas. Já em Píndaro os mythoi são relativos à falsidade e logos à verdade. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 35 E Heráclito, como compreende o logos? Lacroix (2009, p. 35), explica: [...] de um lado, a razão de ser, o princípio de explicação do devir universal da natureza, este princípio não sendo aquilo que escapa ao devir, mas a necessidade imanente a este; de outro lado, a capacidade humana de expressar no discurso essa razão de ser das coisas da qual ela própria é um elemento ou expressão... No fragmento 30 o filósofo sublinha este eterno espírito do devir: “ O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses em nenhum dos homens o fez mas sempre foi, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.” (LEÃO; WRUBLEWSKI, 1999, p. 67). Sócrates, Platão e Aristóteles convergem, segundo Gilles-Gaston Granger, neste ponto, pois para ambos razão refere-se ao pensamento correto oposto ao efêmero e ao incorreto; a razão, ao contrário dos sentidos, é universal e exige justificação. Com efeito, o conhecimento racional é autêntico e comprovado que ultrapassa as aparências para atingir a realidade. Para Platão no Sofista (263e), a razão discursiva é o discurso interior da alma consigo própria, o pensamento articulado em juízos encadeados, como uma demonstração matemática. Mas, além da função epistêmica, a razão tem uma dimensão prática como sabedoria e prudência, tal como afirma Aristóteles na Ética a Nicômacos. A virtude da prudência consiste em considerar que o homem pode realizar o melhor, à luz da razão. Ainda segundo Aristóteles, ninguém será razoável em suas ações sem ser virtuoso. A partir da idade média o tema da razão é paralelo ao da fé. Para São Bernardo, São Boaventura, Duns Escoto, entre outros, o conhecimento racional – puramente humano – se subordina ao conhecimento místico. São Tomás de Aquino, como assinala, advoga que a razão natural exerce uma jurisdição autônoma. “Raciocinar é passar dum objeto de inteligência a outro, a fim de compreender a verdade inteligível....”(GRANGER, s/d, p. 17). Ora, esta razão discursiva pertence não aos anjos mas aos homens. FILOSOFIA36 Andemos agora para os tempos modernos. Aqui encontramos o filósofo René Descartes, que, sobretudo em seu Discurso do Método, demarca umanova era da razão. Criticando a matemática Escolástica, ele afirma que é inútil ocupar-se de números vazios e figuras imaginárias; por outro lado, entretanto, defende uma matemática mais profunda como instrumento de análise e pensamento. Ela, a matemática, oferece verdades bem encadeadas e certas. O processo que vai da dúvida à intuição perfeita, porque essencialmente certa do “penso, logo existo”, conduz à convicção de Descartes de que razão é a base irredutível do conhecimento verdadeiro, cuja garantia é a existência de Deus enquanto fonte de toda perfeição. Em resumo, afirma Granger (s/d, p. 19): Contrariamente à razão tradicional, enredada num aparelho lógico demasiado verbal, a razão cartesiana partirá à conquista do mundo. Tratará de elaborar uma ciência eficiente, suscetível de aplicações; o conhecimento teórico dos corpos e das funções da alma prolongar-se-á numa ciência do engenheiro, numa medicina, na arte moral de controlar as paixões. Granger observa que ao contrário do alargamento cartesiano da razão, Kant pretende impor limites. Diante da teoria das ideias inatas e daí à crença de verdades absolutas e, com efeito, constituição da metafísica presentes em Descartes, Leibniz e Wolff, Kant reconhece a advertência do filósofo empirista inglês David Hume: “[...] me despertou do meu sono dogmático e incutiu minhas pesquisas no domínio da filosofia especulativa orientação inteiramente diferente.” (PASCAL, 2005, p. 30). Desde então, é claro no pensamento kantiano que a razão é incapaz de pensar a priori, e por meio de conceitos uma relação necessária, tal como é a conexão entre causa e efeito. Por outro lado, entretanto, a razão não pode limitar-se à experiência e então problemas como a existência de Deus, da imortalidade da alma, da liberdade do homem não podem ser indiferentes. “A razão humana tem um destino singular em certo gênero de seus conhecimentos: sente-se importunada por questões a que não pode esquivar-se.” (PASCAL, 2005, p. 31). É por isso que Kant efetivou uma revolução análoga à de Copérnico, sintetizada por Pascal (2005, p. 36), dessa forma: ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 37 [...] a revolução copernicana de Kant é a substituição, em teoria do conhecimento, de uma hipótese idealista à hipótese realista. O realismo admite que uma realidade nos é dada, que seja de ordem sensível [...] ou de ordem inteligível [...], e que o nosso conhecimento deve modelar-se sobre essa realidade. Ora, observe que conhecer é dar forma a uma matéria dada, esta é a posteriori e a forma é a priori. A primeira é variável, mas a segunda imposta pelos sujeitos ao objeto será encontrada em todos os cognoscentes (sujeitos). É neste sentido que Kant analisa a racionalidade humana de forma fundamentalmente crítica. Na Crítica da Razão Pura (1781– 87, 2. ed.), busca na própria razão as regras e os limites de sua atividade, para que se saiba até onde se pode confiar na razão; Na Crítica da Razão Prática (1788) estabelece crítica à razão enquanto fundamento de nossas ações morais, evidenciando, como se sabe, o protagonismo moral do indivíduo e, na Crítica do Juízo (1790), centra a crítica racional aos nossos juízos estéticos e teleológicos. Enfim, o filósofo, afirmando a Razão como a “faculdade dos princípios”, lança sua luz crítica à razão em todos os sentidos, motivado, essencialmente, pela autarquia indispensável ao pensador como ele exigira na obra de 1784, “Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?” Gaston-Granger observa que, de modo geral, a filosofia de Kant influenciou substancialmente a concepção de razão em Hegel, justamente numa época em este assistiu o semifracasso das revoluções burguesas e que decaía também a ideia de um sistema definitivo e universal da razão. De fato, a grande descoberta hegeliana, segundo Granger, é o caráter histórico da razão, isto é, seu comportamento de criação contínua, por isso Hegel afirma que a história universal é apenas a manifestação da Razão e, assim, tudo que é racional é real e tudo que é real é racional. A razão subjetiva é a razão objetiva que atingiu a consciência de si. Mas a realização progressiva da razão se efetiva através da dialética. A partir de qualquer tese – ideia, fato da cultura, momento histórico –, o movimento da razão extrai o aspecto negativo; depois a oposição resolve-se numa síntese. Immanuel Kant: 1724-1804 Fonte: http://www.google.com.br FILOSOFIA38 Lembremo-nos que esta perspectiva dialética da razão de Hegel inspira ou até orienta a compreensão marxiana de razão, tomada, porém, sob um paradigma radicalmente oposto. Se a dialética hegeliana embasa- se num caráter idealista, Marx a localiza efetivamente nas estruturas sociais caracterizadas pelas correlações de forças em torno do sistema capitalista de produção. Konder (2007, p. 36) diz que “para a dialética marxista, o conhecimento é totalizante e a atividade humana, em geral, é um processo de totalização, que nunca alcança uma etapa definitiva e acabada.” Deste modo, não se conhece o homem pela ciência, religião ou arte, mas como realmente constitui suas formas de vida. Com efeito, não é a razão que produz o mundo, mas este é que de fato produz a razão. Os conceitos, as ideologias, as alienações e as transformações são configuradas a partir da realidade material e do trabalho no mundo capitalista. Dialética é também a perspectiva pela qual pensadores como Polock, Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin, Fromm, Habermas, entre outros, que fundaram na Alemanha o Instituto de Pesquisa Social, formando daí a conhecida Escola de Frankfurt ou Teoria Crítica desde as primeiras décadas do século passado, analisam a razão. Resumidamente, pode-se se afirmar que, particularmente, Adorno e Horkheimer têm visão pessimista da racionalidade. Fatos históricos como as duas guerras mundiais, os totalitarismos italiano e alemão e suas respectivas crueldades – especialmente os campos de Auschuwitz e proliferação do consumismo norte-americano – motivaram a decepção dos frankfurtianos. Em obras como Conceito de Iluminismo e Dialética do Esclarecimento, expressam toda sua descrença ou desesperança no contributo da razão para a emancipação civilizatória. Horkheimer, particularmente, em O Eclipse da Razão exprime sua frustração em trechos como: “A razão jamais dirigiu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está tão completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências específicas que renunciou, por fim, até mesmo à tarefa de julgar as ações e o modo de vida do homem.”(HORKHEIMER, 2002, p. 18). E mais à frente (p. 29): “Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. [...].A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la.” Dialética em grego originalmente quer dizer “arte do diálogo”. Platão a compreende primeiramente como ascendência do sensível ao inteligível e depois como dedução racional pela qual se discriminam as Ideias. No sentido hegeliano, grosso modo significa o movimento racional das ideias – tese, antítese e síntese. Todavia, o sentido dialético mais recorrente deriva da concepção de Marx, o qual, ao contrário de Hegel, assegura que as relações de produção determinam a realidade: as classes e, consequentemente, as formas de pensamento, isto é, a ideologia. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 39 Rabuske exprime o presságio dessa crise cultural na declaração a seguir: A nossa cultura está em crise. Como sintomas desta crise podemos apontar: a insatisfação psicológica,a criminalidade, consumo de álcool e drogas, as tensões sociais [...] ...uma das raízes da crise ou, pelo menos um dos seus aspectos, reside na desconfiança na razão. Critica-se a razão, a consciência, as suas pretensões e também o mundo ‘feito’ a partir da consciência. ” (RABUSKE, 2001, p. 83). Entretanto, olhe agora atentamente para a filosofia de Jürgen Habermas que insere a razão num horizonte otimista. Atualmente com pouco mais de 80 anos de vida, em sua trajetória este sociólogo e filósofo alemão, embora tenha assimilado e assumido o teor crítico dos seus mestres de Frankfurt, inclusive porque dirigiu o Instituto (1971-1981), afasta-se, porém, deles exatamente por não despedir-se da razão. Aliás, ele indaga onde estaria a condição de emancipação fora razão? Para ele, o grande problema é que a consciência solipsista até agora tem orientado, de modo geral, os intelectuais e a filosofia, especialmente e, além disso, o agir humano em vários sentidos. No Discurso Filosófico da Modernidade de 1985, ele diz claramente que o paradigma da consciência está esgotado, e então propõe o paradigma do agir comunicativo, onde o discurso é essencialmente o espaço democrático em que problemas, desafios e soluções envolvendo questões simples ou complexas, locais ou universais, sejam discutidos e encaminhados. Cada um dos concernidos, neste sentido, à luz da racionalidade discursiva, torna-se protagonista da construção histórica de uma sociedade emancipada: justa, fraterna, livre e democrática. Uma das sínteses do conceito habermasiano de razão é bem expresso nas seguintes palavras: Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se orienta performativamente por pretensões de validade; dizemos que ela não apenas se comporta racionalmente, mas que é racional, quando pode prestar contas de sua orientação por pretensões de validade. Também chamamos esse tipo de racionalidade de plena responsabilidade (HABERMAS, 2004, p. 102). Jürgen Habermas: 1929 Fonte: http://www.google.com.br FILOSOFIA40 Portanto, vejamos que de acordo com o paradigma habermasiano, um espaço público democrático é lugar apropriado para que os homens realizem-se como seres racionais especialmente nos campos da socialidade e da política e, assim, se reconheçam como reais artífices da história. O homem como ser sociopolítico Tratando-se da socialidade e da política, pensemos, inicialmente, nesta maneira singela, porém bem compreensível, com a qual Batista Mondin inserta este tema duplo. O homem é essencialmente sociável. Sozinho não pode vir a este mundo, não pode crescer, não pode educar-se; sozinho não pode nem ao menos satisfazer suas necessidades mais elementares nem realizar as suas aspirações mais elevadas; ele pode obter tudo isso apenas em companhia dos outros (MONDIM, 1980, p. 155). Perceba, estudante, com o que está dito em primeira instância que o homem associa-se, inclusive, por uma condição de sobrevivência. Neste mesmo sentido, há uma importante asserção de Eric Weil: “O indivíduo sabe que é incapaz de resistir à natureza e, mais ainda, empreender a luta contra ela. A luta é do grupo organizado, e essa organização é a sociedade.” (WEIL, 1990, p. 79). O antropólogo inglês Jean Beattie (1980, p. 69) ressalta também que para o funcionalismo britânico de Radcliffle-Brawn e, sobretudo, de Malinowski, “sociedade e cultura humana são melhor entendidas como um conjunto de artifícios para a satisfação das necessidades biológicas e psicológicas dos organismos humanos que constituem a sociedade.” Retornemos a Aristóteles. Ele inicia sua célebre obra Política explicando a premência e a relevância da socialidade humana, nas seguintes palavras: ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 41 As primeiras uniões entre pessoas, oriundas de uma necessidade natural, são aquelas entre seres incapazes de existir um sem o outro...[...]. A comunidade construída a partir de vários povoados, é a cidade definitiva; [...] assim, ao mesmo tempo que já tem condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também para lhes proporcionar uma vida melhor. Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade. [...]. É claro, portanto, que a cidade tem precedência por natureza sobre o indivíduo. (ARISTÓTELES, 1997, p. 14-15). Veja, então, que o homem é inconcebível fora da sociedade. Ampliando o instinto gregário enquanto condição primária de sobrevivência, o homem estabelece elos cooperativos como fundamento das instituições sociopolíticas, demarcadas por valores e legislações que orientam e regulam, cuja finalidade última, em tese, é o bem-estar individual e coletivo. Portanto, o homem, porque é sociável, é eminentemente político. Hannah Arendt (2007, p.23) é enfática ao explicar esta correlação (socialidade-política): “zoon politikon como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua essência [...]. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. [...]. A política surge no intraespaço e se estabelece como relação.” Aliás, a autora já havia ressaltado em A Condição Humana em 1958, que a vida política é uma ação que por excelência sobrepõe-se ao labor – dinâmica biológica do corpo e ao trabalho – artificialidade da existência, dizendo o seguinte: A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade [...].Todos os aspectos da condição humana tem relação com a política...[...]. Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz de ação, e só a ação depende inteiramente da constante presença dos outros.”(ARENDT, 2008, p. 15-31). De fato, entre os gregos a política designava atividade humana relativa à cidade, ao Estado, à administração pública. Manfredo observa acertadamente, neste sentido, que: Na Ética Nicômacos (1097b), Aristóteles também afirma esta condição do homem, ao dizer: “Quando falamos em autossuficiente não queremos aludir àquilo que é suficiente apenas para um homem isolado, para alguém que leva uma vida solitária, mas para seus pais, filhos, esposa e, em geral, para os amigos e concidadãos, pois o homem é por natureza um animal social.” (ARISTÓTELES, 2001, p. 23). Convém notar que para Rousseau a associação e os consensos derivados entre os homens devem fundamentar- se imprescindivelmente na liberdade consciente. A palavra política deriva do termo grego polis – literalmente “cidade”. No contexto do encontro cultural com os romanos, “polis” será traduzida no latim como “civittas” – termo do qual se aproximaria a palavra “cidadania”, portanto, também exercício da política. Voltando aos gregos, é ainda importante frisar que eles opunham polis (cidade) à oikos (casa), numa nítida e sábia distinção entre o público e o privado. FILOSOFIA42 [...] a polis é a obra fundamental do homem, pois é através do debate, da legislação da jurisdição, que se dá sua universalização. A polis é livre, enquanto [...] comunidade capaz de regras de sua convivência, através de leis criadas pelos cidadãos, cuja finalidade é exatamente a vida boa. [...]. O ético é, então, o que pertence ao ‘etos’ ao mundo institucional da polis (OIVEIRA, 1996, p. 15). Todavia, esta compreensão antropológica de política, isto é, a política como espaço apropriado de realização humano, transfigura- se na modernidade como legado iluminista e, sobretudo,desde os desvelamentos de Maquiavel, seguido de Locke e Hobbes em arena do poder. De fato, a política passa a traduzir-se, então, como exercício do poder do homem sobre outros homens. Para o cientista político Julien Freund, como salienta Lebrun (2004, p. 11), a política é “atividade social que se propõe a garantir pela força, fundada geralmente no direito, a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política particular.” Na mesma compreensão, Weber define a política como “conjunto de esforços feitos visando a participar do poder ou a divisão do poder, seja entre os estados, seja no interior de um único Estado.” (WEBER, 2001, p. 60). E ainda Libânio num artigo sobre fé e política esclarece que, “uma ação política é aquela que visa a obtenção do poder, a conquista do Estado ou a sua manutenção, caso já o possua.” (PINHEIRO, 2006, p. 256). Segundo Bobbio, o poder pode apresentar-se em três interfaces: econômica, ideológica e política. Ele explica que elas “contribuem conjuntamente para instituir e manter a sociedades de desiguais divididas em fortes e fracos com base no poder político, em ricos e pobres com base no poder econômico, em sábios e ignorantes com base no poder ideológico” (BOBBIO, 1999, p. 83). Todavia, observe que o poder político é o mais relevante, porque sua posse espelha em toda sociedade quem é o grupo dominante. Como explica Dallari (2005, p. 51): “o poder político é em toda sociedade de desiguais, o poder supremo, ou seja, o poder ao qual todos os demais estão de algum modo subordinados.” O poder político encarna-se essencialmente no Estado? Então qual é a função deste? Para Rousseau, pode-se afirmar que ele, o Estado, é o Quando na vida política do nosso país aqueles que no exercício de algum cargo público misturam o público e o privado, não já deveriam ter aprendido com os gregos que esta é uma prática perniciosa? Acaso não deveriam ser punidos pela Justiça legal e, não deveriam estes “políticos” serem rejeitados pelos eleitores quando cinicamente se recandidatam? O professor Lebrun ressalva que “força não significa necessariamente a posse de meios violentos de coerção, mas de meios que me permitam influir no comportamento de outra pessoa.” (LEBRUN, 2004; p. 12). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 43 grande mediador, um magno sistema capaz de harmonizar os conflitos sociais. Entretanto, como se sabe, numa perspectiva marxista o Estado é uma instituição que interfere nas lutas de classes e, geralmente, em favor das classes dominantes. De fato, Engels, o amigo de Marx, diz que o Estado é um organismo que protege os que possuem contra os que não possuem. O marxista francês Louis Althusser afirma o seguinte: O Estado é uma “máquina de repressão que permite às classes dominantes [...] assegurar a sua dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de extorsão da mais-valia... (ALTHUSSER,1985, p. 62). Decorre então que a política é uma instituição degenerada? Da compreensão grega de realização humana a política tornou-se o inferno? Enfim, pode o homem esquivar-se, omitir-se da esfera política? Não. E com isso de novo retornamos aos gregos, especificamente a Aristóteles: o homem é essencialmente político. Realiza-se na política. Maquiavel afirmará depois, num trocadilho contraposto à Igreja, que não há salvação fora da política. João Ubaldo Ribeiro (1986, p. 22) quando diz que “queiramos ou não estamos imersos num processo político que penetra todas as nossas atitudes, toda nossa maneira de ser e de agir, até mesmo porque a educação, tanto a doméstica quanto a pública, é também uma formação política.” Ubaldo acaba dizendo que alguém quando afirma que “não liga para a política”, está sendo, a rigor, uma espécie de político conservador. Ora, não existe o apolítico, no máximo a ausência de consciência sobre o papel e o sentido da política. Não nos parece muito certo o que ele afirma? Notemos a propósito e atentamente, como Bertolt Brecht – poeta e dramaturgo alemão - sublinha lucidamente, a relevância da política nos seguintes trechos do seu célebre poema: “O analfabeto político”. O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos. [...]. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nascem a prostituta, o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais (SOUZA, 1995, p. 154). Que prejuízos, principalmente sociais e políticos, podem ser gerados a partir do descaso, da alienação, da omissão, frutos da despolitização do povo? FILOSOFIA44 Como se pode perceber, o protagonismo político dos indivíduos localiza-se, principalmente, na sociedade civil enquanto campo das relações sociais onde perpassam problemas políticos, econômicos, culturais etc. Hoje, diga-se de passagem, em escala planetária, bem articulados ou não, através de suas organizações e movimentos civis, que assim, podem legitimamente encaminhar, reivindicar ou até confrontar-se com o Estado quanto às demandas em geral atreladas a políticas públicas. Consideremos, neste sentido, que só se realizam as vocações humanas de política e cidadania, quando segundo Habermas, se constituam um espaço público ou democrático em que sejamos otimizados os discursos intersubjetivos. Mesmo na democracia representativa não se pode inviabilizar a potencialidade político-discursiva dos indivíduos associados. Vejamos esta interessante afirmação de Habermas: Uma soberania popular interligada internamente com as liberdades subjetivas, entrelaça-se, por seu turno, com o poder politicamente organizado, de modo que o princípio ‘todo poder político parte do povo’ vai se concretizado através dos pressupostos comunicativos através de uma formação institucionalmente diferenciada de opinião e vontade. No Estado de direito delineado pela teoria do discurso, a soberania do povo não se encarna mais na reunião de cidadãos autônomos facilmente identificáveis (HABERMAS, 1997, p. 172). À luz da reflexão habermasiana, como se percebe, a condição de possibilidade da prática da política é o campo democrático onde prevaleça a discursividade aberta e compromissada e não mecanismos de força e violência. Aliás, caro estudante, observe a contundente defesa que Hannah Arendt faz de política: “se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nem um outro, temos de fato de ter expectativa de milagres [...] porque os homens enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível...” (ARENDT, 1993, p.122). Com efeito, onde, senão no encontro com seus semelhantes o homem manifestaria convincentemente princípios e fundamentos éticos? Ora, a política é essencialmente intersubjetiva e, por isso, ela liga-se indissoluvelmente à moral e à ética. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 45 O homem como ser ético-moral Comecemos esta seção nos reportando novamente a Aristóteles. Ele na Política (1997, p. 15), afirma que “a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais...” Assim, é razoável então assegurar que o mundo humano é perpassado cotidianamente por questões que envolvem problemas e decisões pessoais, deliberações atitudinais diante da natureza, da sociedade e das pessoas, posturas intelectuais ou político-religiosas, acatamento ou não de costumes, valores, regras e leis, problemas da justiça e da injustiça, enfim, escolha entre o bem e o mal. No bojodestas situações, é que se encontram perguntas como a que, segundo Kant, subjaz a todo comportamento prático: “que devo fazer?” ou na forma inquiridora expressa por Bernard Williams: “Por que eu deveria fazer alguma coisa?” Simples ou complexas, particulares ou universais, estas questões vinculam-se à moral ou à ética. De fato, de acordo com Perine (1988, p. 24): [...] existe uma dimensão ética no homem [...], que aparece na banalidade da vida dos grupos humanos, nos costumes mais triviais como, por exemplo, os relativos à alimentação e à reprodução, que são os mais diretamente ligados à própria sobrevivência. O fato moral é um fato banal e imediato à via de todos os grupos humanos: não existe comunidade humana, por primitiva que seja, que não conheça regras e que não distinga um bem de um mal. O homem, então, uma vez dotado de senso ético e consciência moral, faz juízos de valor sobre o modo de agir de si mesmo e dos demais. Tugendhat (1996, p. 12) afirma “que não podemos desconsiderar que tanto no âmbito das relações humanas quanto no político, constantemente julgamos de forma moral.” Isto implica dizer que os comportamentos morais aprováveis ou reprováveis são inseparados historicamente, das comunidades humanas. Vázquez (1982, p. 7) tem, Convém distinguir juízos de realidade de juízos de valor. “juízos de realidade, quando partimos do fato [...], mas juízos de valor, quando lhes atribuímos uma qualidade que mobiliza nossa atração ou repulsa.” ARANHA, Maria L. de Arruda & MARTINS, Maria H. Pires. Filosofando. São Paulo: Moderna, 2009, p.213 FILOSOFIA46 portanto, razão ao assegurar que “o comportamento humano prático- moral, ainda que sujeito a variação de uma época para outra, remonta até as origens do homem como ser social.” Originalmente o termo moral remete-nos a mos-mores – que em latim significa costume e valores de uma determinada cultura. Ética, por sua vez, é uma palavra derivada de ethos, que no grego também significa costumes e valores de um povo. Com efeito, explica Perine (1988; p. 25), que “tanto em latim quanto em grego refere-se aos costumes, ao caráter, às atitudes humanas em geral e, particularmente, às regras de conduta e à sua justificação.” Considere, entretanto, a ressalva que certos autores, sublinham quanto à diferença entre os dois termos. Para Leonardo Boff, por exemplo, dizer que uma pessoa não possui ética significa dizer que essa pessoa não possui princípios, age mobilizado pelas vantagens circunstanciais. Por outro lado, uma pessoa é imoral porque engana clientes, rouba o dinheiro público, explora os trabalhadores, é agressor onde convive. Isto é, pode até ter ética – princípios e valores fundamentais, mas age contrariamente a estes. Em um nível mais teórico, Vázquez esclarece da seguinte forma: “a moral não é ciência, mas objeto da ciência; e neste sentido, é por ela estudada e investigada. A ciência não é a moral e, portanto, não pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescrições; sua missão é explicar a moral efetiva e, neste sentido, pode influir na própria moral.” (VAZQUEZ, 1982, p. 13-14). Isto quer dizer que os homens não só agem moralmente, mas refletem sobre esse comportamento prático, ou seja, tomam-no como objeto de seu pensamento. Nesse sentido, denota-se a transição da moral efetiva para a moral reflexa. No contexto de emergência da ética na Grécia, especialmente desde Sócrates (para Aristóteles o fundador da ética), o Ethos – enquanto repetição de costumes é a constância do agir oposta ao impulso (órexis). A forma de ação do indivíduo exprime sua personalidade ética, reflete, com efeito, a conexão entre ethos como caráter e ethos como hábito. É importante acrescentar ainda a esta primeira disposição Importante explicar que os gregos davam dois sentidos ao termo ethos. Quando grafado ethos (eta incial – “e pequeno”) designa moradia de maneira geral dos animais ou dos homens. Esta metáfora da morada e do abrigo quer dizer que a partir do ethos o mundo se torna habitável para o homem. Quando escrito Ethos (epsilon incial – “E grande”) refere-se ao comportamento resultante da repetição dos mesmos atos. Nesse nível assinala-se que o habitual opõe-se ao natural. Note-se, contudo, que ao fundo, os dois sentidos se interligam: quando o homem constrói sua moradia, estabelece, ao mesmo tempo, certos costumes. Não seria antiético uma pessoa que se orienta pelo princípio de levar vantagem em tudo (lei dos ditos mais espertos)? E não seria imoral porque, apesar de reconhecer o valor da honestidade, da sinceridade, da verdade etc., porém, de modo geral age sem respeito aos outros? Quantas situações dessas flagramos no cotidiano da família, das relações sociais, das empresas, da política, da religião, para citar algumas! Leonardo Boff (1938) Fonte: http://www.google. com.br ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 47 de caráter para agir, o termo hexis para indicar o hábito espontâneo e plenamente assumido pelo agente e, portanto, manifestação da autarquia (autárkeia) individual, isto é, domínio de si mesmo. Assim, o ethos, é por excelência, o espaço próprio da práxis humana. Decorre, então, uma eloquente conclusão de Lima Vaz: [...] a universalidade abstrata do ethos como costume inscreve-se na particularidade da práxis da vontade subjetiva, e é na universalidade concreta [...] no ethos como hábito ou virtude. O ethos é princípio da ação ética e fim realizado na forma do existir virtuoso (VAZ, 1993, p. 45). Ora, quando se dá a passagem do costume para a lei, se estabelece definitivamente o princípio da universalidade, exprimindo assim, a excelência do ethos, porque reflete a práxis humana enquanto ação realmente livre. Ethos em forma de lei é a expressão da liberdade humana. Aristóteles na Ética a Nicômacos explica que enquanto as virtudes intelectuais são adquiridas por ensinamentos, as virtudes morais procedem do Ethos como costume e se fortalecem como o desempenho. Assim, há que se afirmar o enraizamento da ética na tradição, que pode inclusive, preceder ao código do legislador, como bem podemos observar na seguinte da passagem da Antígona de Sófocles: CREONTE – [...] ousaste transgredir minhas leis? ANTÍGONA – Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou, nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de se superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são nem de ontem nem de hoje, mas sempre são vivas, nem se sabe quando surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum homem, expor-me à sentença divina. Sei que vou morrer (SÓFOCLES, 1999, 450-460). Perceba, caro estudante, que a religião se apresenta assim como uma das mais importantes portadoras do ethos, de modo que ambos – ethos e religão são homólogas quanto à universalidade. Ora, a sacralização das normas éticas, pela qual se tornam transcendentais, asseguram- lhes, pois, eficácia no tempo axiológico do dever-ser histórico. Para Lima Vaz, trata-se de um fenômeno comum em todas as culturas. Conforme Lima Vaz, o desengate da conexão passado-presente, por conta de uma projeção utilitarista de futuro que recusa lições da Antígona é a irmã de Ismene, Etéocles e Policinice. Etéocles, segundo Creonte rei de Tebas, era digno de honras funerais por ter sido morto em favor da cidade; quanto a Polinice, porém, incidia acusação de haver traído a pátria e os deuses, por isso o rei lhe proibe lágrimas e sepultamento. Antígona paga com a morte seu repúdio ao decreto casuístico do rei, precisamente, porque contradiza lei tradicional do sepultamento, remontada, inclusive, aos deuses. O tradutor Donaldo Schuler enfatiza na Apresentação do presente texto o seguinte: “Antígona é uma peça de fortes contrastes. [...]. Sófocles coloca em cena uma mulher sem partidários, sem exército, sem nada. Antígona abala a tirania sozinha. E isso numa sociedade em que a vida pública era exclusiva competência masculina. [...]. O homem é terrível no crime e na virtude [...], na opressão e na luta pela liberdade. Antígona é uma aventura de lealdade, dignidade, linguagem e vida.” SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: LP&M, 1999, p. 35-36 De acordo com Peter Berger (O Dossel Sagrado), os precários mundos social e humano são sempre guindados e, portanto, legitimados pelo mundo perfeito do Ser Divino, intermediado pela religião. Esta força, observa Rubem Alves (O Enigma da Religião), é cimentada pela antiguidade religiosa específica. FILOSOFIA48 tradição, implica como efeito dessa ruptura, crises e niilismos éticos como atestariam os individualismos modernos. Todavia, a socialidade enquanto estrutura axiológica e normativa – exatamente o ethos, significa justamente o espaço onde cada sujeito adquire sua autarquia e, por essa mesma dimensão, exigente do ethos, a realidade não é experimentada pelo indivíduo como um destino cego e oprimente, mas como um campo de possibilidades. Ao aspecto externo da moral constituída, contrapõe-se à adesão do sujeito, o que implica dizer que “o ato só é propriamente moral se passar pelo crivo da aceitação pessoal da norma. A exterioridade da moral pressupõe, portanto, a necessidade da interioridade, da adesão mais íntima.” (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 215). Trata-se, pois, do conflito entre a moral constituída – herança educativa e a moral constituinte – atualidade da experiência vivida. Podemos, a propósito, lembrar de Ney Matogrosso quando canta: “Eu juro que é melhor não ser um normal....” Ou ainda do roqueiro Raul Seixas: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha ideia formada sobre tudo....” Estamos, pois, diante do paradoxo ético: as regras morais inerentes a todos os grupos humanos, trazem consigo a possibilidade da recusa às mesmas. Isto porque, segundo Perine (1983, p. 26), “o homem é um ser moral-imoral, moral porque imoral, imoral porque pode e deve ser conduzido à moral..” O homem enquanto natural age movido por tendências, necessidades e instintos, podendo revelar-se violento. Mas ele é também razão, e como ser pensante, isto é, dotado de sentido moral pode pôr a questão do bem no fim de sua ação. “Dizer que o homem possui uma espécie de sentido moral quer simplesmente dizer que só um ser que possui a consciência do bem pode possuir a do mal, e que ele possui uma em relação à outra.” (PERINE, 1983, p. 27). Esta dupla natureza humana – vontade do lícito e violência do ilícito explicita que o indivíduo é o cruzamento entre a moral objetiva e a moral subjetiva. Para Franklin Leopoldo, trata-se não apenas da liberdade, porém do significado e da força dos valores, e consequentemente da tensão individual de escolha e repúdio. Assim, explica Leopoldo (2010, p. 48-51): A diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado não é representado de modo claro e definitivo, permanecendo sempre um resíduo de incerteza e obscuridade que, no entanto, não pode impedir ou mesmo postergar a decisão. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 49 E o homem porque livre na condição, não pode não agir. Não obstante, Lima Vaz adverte que o conflito moral não implica uma contraposição estéril, um “permissismo anômico”, isto é, uma sabotagem arbitrária e individualista à revelia de regras e valores. Ao contrário, um enfrentamento de dogmatismo e determinismo reflete-se numa rearticulação ou reinvenção saudável da moral, verifica-se um no interior de um processo explicado por Henri Bérgson. Há uma moral estática, que existe em dado momento, em dada sociedade. Ela fixou-se nos costumes, nas idades, nas instituições; seu caráter de obrigatoriedade reduz-se em última análise, à exigência pela natureza da vida em comum. Há, por outro lado, uma moral dinâmica, que é impulso, e que se liga à vida em geral, criadora da natureza que criou a exigência social. A primeira obrigação, na medida em que pressão, é infarracional. A segunda, na medida em que aspiração, é suprarracional. Conforme Lima Vaz, Jesus, Buda e Ghandi (poderíamos acrescentar Mandela, Luther King, Che Guevara etc.) são exemplos de homens que radicalizaram a recusa da moral da “moral de pressão” em favor de uma “moral de aspiração.” Considerando o tortuoso histórico da moralidade, atinge-se o cerne do problema histórico de todas as morais: a definição do conteúdo do contentamento. Esta foi sempre a cruz de todas as morais históricas, até que a reflexão sobre a moral e sobre a possibilidade da moral chegou à consciência de que nenhum sistema verdadeiramente moral pode impor ou mesmo visar a uma felicidade materialmente definida, mas que toda moral só tem sentido na possibilidade da não- infelicidade que ela oferece, e na esperança da felicidade que ela pode legitimar (PERINE, 1988, p. 35). Pela escassez do espaço em função do propósito dos subunidades do texto, atente, querido estudante, para a abordagem que faremos sobre algumas marcantes respostas teórico-práticas acerca do que possa ser a substancialidade do contentamento. Reportemo-nos à Grécia pré-classica onde encontramos o homem inserido no cosmos regido inexoravelmente pela Justiça imposta pelas Individualista - Lima Vaz argumenta que o não- individualismo é o critério e a medida de toda práxis humana. Valores - Lima Vaz, discorda ainda da tese nietzscheana de que a educação ocidental é caracterizada por uma moral sistematicamente cerceadora. Para o autor brasileiro, é preferível um sistema orientador de valores a um niilismo ético. Nietzsche afirma em Genealogia da Moral que temos sido educados, isto é, pressionados, para sermos animais prometedores, sob o preço do sacrifício; exaltado, principalmente, pelo discurso cristão. FILOSOFIA50 divindades. Num tempo posterior, sobretudo, a partir do século V a.C., assenta a virtude (arete) na racionalidade humana. Ainda que a reconhecendo, a vida ética compreendida à luz da racionalidade natural, como bem concebem Sócrates e Platão numa sofisticada explicação teórica em que opõe os mundos transcendente e imanente, sendo este último demarcado pelas contingências, o Bem só pode localizar- se, portanto, no primeiro. Todas as boas virtudes, superando o mundo terreno, inspiram-se e espelham vínculo à Ideia do Bem. Aristóteles, numa perspectiva naturalista afirmou ser a felicidade (eudaimonia) o mais alto dos bens, visto que todo mundo a aspira “tanto a maioria dos homens quanto as pessoas mais qualificadas dizem que este bem supremo é a felicidade, e consideram que viver bem e ir bem equivale a ser feliz...” (ARISTÓTELES, 1095a, 2001, p. 19). Todavia, Vázquez ressalta que ele desprezando o trabalho físico considera que a felicidade está na razão enquanto faculdade essencialmente humana. De fato, o filósofo grego afirma: “as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente da felicidade, [...] a contemplação é preciosa por si mesma. A felicidade, portanto, deve ser alguma forma de contemplação. [...] O sábio é o homem mais feliz. (ARISTÓTELES, 1178b/1179a, 2001, p. 205-206)” Enfim, Aristóteles (2001-1180b, p. 209) ressalta que este caminho da felicidade atravessa a política quando diz que “certamente uma pessoa que deseja [...]tornar as outras melhores [...] deve tentar capacitar-se para legislar, na presunção de que podemos tornar-nos melhores graças às leis.” Avancemos para o tempo patrístico-medieval, onde o discurso cristão assegura que o mundo e o homem sendo criações divinas, Deus, consequentemente, é o Alfa e o Ômega de tudo, exceto do mal, adverte Santo Anselmo. Assim, há uma lei eterna que suporta toda moral e toda ética. De fato, Santo Agostinho afirma que o homem é um “peregrino para Deus,” - razão última do excelente contentamento. O homem, porém, é responsável pelo mal do mundo. Marcondes (2007, p. 57), cita uma interessante afirmação agostiniana na obra Livre-Arbítrio: Todo bem vem de Deus, não há nada que possa ter outra origem. De onde, portanto, poderia vir aquele impulso de afastamento que reconhecemos ser a fonte do pecado? Sendo um defeito, e todo defeito origina- se do não ser, poderíamos sem dúvida afirmar que não vem de Deus. Contudo, se este defeito é voluntário, está sujeito à nossa vontade. No Fédon Platão pela boca de Sócrates (entre amigo na iminência da morte), afirma, por exemplo, que o corpo é mal e, por isso, um ônus ou mesmo um enguiço em relação à alma (inclusive imortal). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 51 Na Suma Teológica Tomás de Aquino, por sua vez, afirma: [...] o que é bom sem ter o mal misturado em si é melhor. Mas Deus, mais do que a natureza, faz o que é melhor. Logo, na criação divina não há nenhum mal. [...]. O livre-arbítrio é causa do movimento, pois é através dele que o homem se move para agir. [...]. A escolha está em nós, mas pressupõe o auxílio de Deus. (MARCONDES, 2007, p. 66). Em tempos modernos pós-iluministas, marcados pelo giro antropocêntrico, o homem, consequentemente, é a referência fundamental da moral e da ética. O filósofo alemão Kant, como um herdeiro de ideias iluministas sublinha bem o homem como autárquico e autolegislador. Para ele, um contentamento razoável reside no bom incondicionado, isto é, imune aos condicionamentos. Mas o que pode ser bom independentemente das circunstâncias e consequências? Ele responde: Neste mundo, e até fora dele nada é possível pensar que possa ser considerado bom sem a limitação a não ser uma só coisa: a boa vontade. [...]. A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma... (KANT, s/d, p. 21-23). Ora, como a vontade humana naturalmente pode ser coagida pelas contingências e interesses particulares, Kant enfatiza a necessidade da coordenação da força do dever sobre a ação. Por isso ele é enfático: “[...] o dever é uma ação por respeito à lei” (KANT s/d, p. 31). Para Kant (s/d, p. 23) uma lei moral universal, exige ser traduzida no célebre princípio: “[...] devo proceder de maneira que eu possa querer que minha máxima se torne uma lei universal.” Ora, observe que esta lei objetiva precisa superar as imperfeições subjetivas, por isso em vez de imperativos hipotéticos – condicionados pela matéria dos interesses, exige-se um imperativo categórico – princípio e forma que fundamenta uma ação em si mesma necessária. Com efeito, “este imperativo pode chamar-se o imperativo da moralidade.”(KANT, s/d, p. 52). O princípio categórico da moralidade assenta-se na vontade livre submissa às leis. “Todo ser que não pode agir senão sob a ideia de liberdade, é por isso mesmo em sentido prático, verdadeiramente Dever - Marcelo Perine, sublinha que o dever é a categoria que contém a totalidade do problema moral; é o princípio a partir do qual se determinam historicamente todos os sistemas morais positivos. Forma - A lei assumida enquanto forma é ratificada na tese básica anunciada no terceiro teorema da Crítica da Razão Prática (1788): “se um ente deve representar suas máximas como leis universais práticas, então ele somente pode representá-las como princípios que contêm o fundamento determinante da vontade, não segundo a matéria, mas simplesmente segundo a forma.” (KANT, 2002; p. 45). FILOSOFIA52 livre...” (KANT, s/d, p. 95). Destarte, o homem é legislador de si próprio e assim atinge-se o Reino do Fins – relação sistemática entre seres racionais livres submetidos a leis comuns. Entre os críticos dessa moral formal de Kant, está Hegel para quem o caráter puramente formal expresso na força do imperativo categórico exige que se abstraia os conteúdos particulares das máximas de condutas e deveres. Para Habermas, o problema central da ética kantiana é a prioridade individualista. O utilitarismo é uma outra perspectiva de resposta ao contentamento. Jeremy Bentham e John Stuart Mill, principais expoentes dessa concepção, advogam que algo é bom conforme a utilidade. Luiz Baraúna ressalta que teoria utilitarista é uma contraposição à doutrina do direito natural. Para Bentham, a doutrina do direito natural é insatisfatória por duas razões: primeiro porque não é possível provar historicamente a existência de tal contrato; segundo, porque [...] subsiste a pergunta sobre os homens estão obrigados a cumprir compromissos em geral. [...] a única resposta possível reside nas vantagens que o contrato proporciona à sociedade. [...]. A felicidade geral, ou interesse da comunidade em geral, deve ser entendida como cálculo hedonístico, isto é, a soma dos prazeres e dores dos indivíduos (BARAÚNA, 1984, p. IX). Notemos que a afirmação acima dissipa a ideia comum sobre o egoísmo ético do Utilitarismo. Ao contrário como destaca Vázquez (1982, p. 146), “de acordo com esta posição, o bem seria o útil para os outros, ainda que esta utilidade entrasse em contraposição com meus interesses pessoais. [...] um altruísmo ético. [...] o bom é o útil ou vantajoso ‘para o maior número de homens’, cujo interesse também inclui o meu pessoal.” Denota-se, com efeito, não apenas confluência, mas predominância dos interesses coletivos sobre os individuais, traduzido concretamente no sentido do dever reflexo enfatizado por Perine (1988, 31): “O dever de ser feliz, que é dever para consigo mesmo, é primeiro mas sua captação é reflexa. O homem moral nunca está isolado porque, isolado, ele não seria moral.” Jeremy Bentham (1748-1832) Fonte: http://www.google.com.br ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 53 O próprio Bentham explica a natureza do princípio da utilidade: O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, bem ou felicidade; [...] se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da felicidade da comunidade, ao passo que em se tratando de um indivíduo particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo (BENTHAM, 1984, p. 4). Mas o modelo utilitarista anglo-saxônico que fundamentou o pensamento ético-político contemporâneo por muitos anos, foi interrompido pela alternativa proposta pelo professor de Harvard, o norte-americano John Rawls, sobretudo em sua obra Uma Teoria da Justiça, no começo dos anos 70. Sua proposição diversa é destacada por Pegoraro (2008, p. 124) da seguinte forma: Cada pessoa tem sua inviolabilidade fundada na justiça, que mesmo em nome do bem-estar do conjunto da sociedade, não pode ser violada. Por este motivo, a justiça proíbe que a perda da liberdade de alguns possa ser justificada pela obtenção de um maior bem para todos os outros. Na perspectiva de Rawls as pessoas nascem numa sociedade já constituída. Entretanto, há necessidade do que ele chama de sociedade bem-ordenada regulada por princípios da justiça publicamente reconhecidos.“Estes princípios seriam autonomamente instituídos pelos indivíduos que a compõem, que os reconhecem como expressões da racionalidade e da liberdade de cada um, considerado como uma pessoa moral” (SILVA, 2003, p. 49), capaz de convergir o justo e o bem porque capaz de conceber o bem e de propor e aceitar acordos justos. Os justos acordos derivam de princípios justos e regulamentariam uma sociedade baseada na cooperação mútua que, porém, pode ser perturbada por interesses divergentes. Mas o papel da Justiça seria justamente mostrar a vida boa a partir da participação social cooperativa. Para tanto, segundo Rawls, precisa-se primeiramente entender que a política não é um mecanismo de controle social, mas um processo de regulagem de co-operação social partindo de princípios equitativos. Pegoraro observa como Rawls destaca o objetivo da obra: o estudo limita-se “aos princípios da justiça destinados a servir de regras para uma sociedade bem ordenada na qual se supõe que cada cidadão age com justiça e contribui para a manutenção das instituições justas” John Rawls (1921-2002) Fonte: http://www.google.com.br FILOSOFIA54 É neste sentido que ele propõe um roteiro hipotético denominado posição original. Esta posição ideal supõe que cada participante seja livre, consciente e isento de influências de instituições grupos e pessoas; pelo “véu da ignorância” desconheçam as diferenças sociais. Assim, ninguém proporia acordos baseados em vantagens econômicas, posição social ou convicções filosófico-políticas nem moral-religiosas. Silva (2003, p. 61-62) escreve sobre a justificação Rawls, neste sentido: O fato de ocuparmos uma posição social particular não é uma boa razão para propor, ou esperar que os outros aceitem uma concepção de justiça que favoreça os que se encontram numa posição. O fato de professarmos uma doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente, com a concepção de bem, associada a ela, não é uma boa razão para propor ou esperar que outros aceitem uma concepção de justiça que favoreça as pessoas que concordam com essa doutrina. Como você percebe, na teoria rawlseana, esta seria, então, a condição básica para o contrato social projetado essencialmente para a justiça numa sociedade bem-ordenada (democrática). A justiça, segundo Rawls, assenta-se sobre dois princípios: o princípio da igualdade, pelo qual afirmam-se direitos humanos fundamentais: participação nas esferas política, religiosa, conjecturais etc.; o segundo é o princípio da desigualdade referente à distribuição equilibrada de encargos públicos, bens primários, deveres e vantagens sociais, priorizando os mais desfavorecidos. Para Rawls, enfim, “parece razoável que os participantes optem pelos dois princípios da justiça como equidade, que garantem a todos a todos a total liberdade, os bens primários básicos e a posição social segundo sua qualificação, formação e capacidade”(PEGORARO, 2008; p. 129). E se pensarmos cada pessoa assumindo-se co-legislador e co-artífice de um projeto de mundo melhor? É nessa direção que se orienta o pensamento de Habermas. Assim, o problema do contentamento é compreendido de forma ampliadamente inovadora quando interpretado na moldura da ética discursiva habermasiana (Diskursethik). O fundamento essencial é a Na teoria moral da justiça rawlseana racional e razoável são distintos, porém interligados, explica Silva. “O Racional é a faculdade que articula os meios eficientes para atingir os fins. [...]. O Razoável expressaria a capacidade de aceitar restrições para a sua própria concepção e implementação do seu bem.” (SILVA, 2003, p. 65-66). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 55 racionalidade comunicativa, porque segundo Habermas (2000, p. 414), “o que está esgotado é o paradigma da consciência. Se procedermos assim, certamente devem se dissolver os sintomas de esgotamento na passagem para o paradigma do entendimento recíproco.” Neste sentido, vejamos o que Habermas afirma seu conceito de racionalidade: “Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se orienta performativamente por pretensões de validade...” (HABERMAS, 2004, p. 102). Ou ainda nas palavras de um estudioso de Habermas, David Ingram (1987, p. 40-41): “Para ser plenamente racional, uma ação precisa ser moral e legalmente certa; precisa exprimir sinceramente os sentimentos e desejos autênticos do agente e orientar-se pelos valores compartilhados pela comunidade” Como se percebe, em Habermas a Razão traduz-se pela linguagem. De fato, motivado por este paradigma ele faz amplas leituras críticas de grandes teóricos da linguagem como Frege, Wittgenstein, Austin, Searle, Chomsky, entre outros, para demonstrar que mais do que parâmetros semântico, sintático e de sentido a linguagem deve ser considerada pela sua função pragmática. Assim, é impossível propor uma ética abstraindo-se da discursividade. A partir deste paradigma, Habermas, contra o ceticismo moral, acredita que a mesma pode ser validada desde que fundamentada no discurso. E por isso à diferença da ética formalista kantiana, a ética discursiva de Habermas tem uma natureza essencialmente intersubjetiva, precisamente, porque “garante a generalidade das normas admissíveis e a autonomia dos sujeitos ativos apenas através da capacidade de redenção discursiva....” (HABERMAS, 1980, p. 114). Percebamos que normas válidas são aquelas em que os envolvidos ou afetados por elas podem dar seu assentimento. Da mesma forma, a durabilidade de um corpo de normas depende da possibilidade de razões que legitimem a pretensão de validez entre os concernidos, isto é, a justificação das normas é processo contínuo no âmbito da discussão democrática sobre as mesmas. Observemos, pois, que a forma do imperativo categórico kantiano é transfigurado no que Habermas denomina Princípio de Universalização, pelo qual a justificação e a validade de uma ética John Austin distingue três tipos de atos de fala: locucionários – dizem respeito propriamente à locução da fala; os ilocucionários são relativos às interlocuções: pedido, solicitação, ordem, comando, desculpas etc. e os perlocucionários são os que refletem as reações do interlocutor diante de falas de tipo ilocucionárias. No texto “Teorias da Verdade”, 1972, Habermas já definia o discurso como uma forma de argumentação onde se testam as pretensões de validade e a legitimidade dos argumentos. Vinte anos depois, 1992, em Direito e Democracia I ele reafirma seu conceito: “discurso racional é toda tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições de comunicação que permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias.” (HABERMAS, 1997, p. 142). FILOSOFIA56 dependem da aceitação consensual sem coações, que pode ser sintetizado no Princípio D (Discurso) pelo qual Habermas (2004, p. 16) diz claramente que “as únicas normas que têm o direito de reclamar validade são aquelas que podem obter anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático,” cuja consistência exige pelo menos uma regra básica proibitiva: “Não é lícito impedir falante algum, por uma coerção exercida dentro ou fora do discurso, valer-se dos seu direitos...” (HABERMAS, 1989; p. 112), que neste caso incluem participação no discurso, introdução e problematização de asserção e até manifestação de atitudes, desejos e necessidades. Ou dito de outra forma em Inclusão do Outro: “A comunicação deve ser isentade coações internas ou externas de forma que os posicionamentos [...] sejam motivados somente pela força de convencimento das melhores razões” (HABERMAS, 2002, p. 58). Esta condição, segundo Habermas, aproxima-se da plena liberdade dos sujeitos falantes, daquilo que ele chama de situação de fala ideal exatamente porque “quando argumentam os intervenientes tem a partir do princípio de que, em regra, todos os indivíduos em questão tomam parte, enquanto sujeitos livres e iguais numa busca cooperante da verdade, na qual apenas interessa a força do melhor argumento.” (HABERMAS, 1999, p.17). Portanto, compreende-se, nitidamente, à luz da teoria moral de Habermas construída junto com seu amigo Karl Otto-Apel, que nenhuma estilização moral de vida, nenhum sistema ético, nenhum código legislante, nenhum conteúdo de contentamento pode ser articulado fora do âmbito do discurso onde cada participante inclui- se como co-legislador. Consequentemente, todo sistema normativo é resultado de uma empreitada cooperativa. Pense agora na relevância desse interesse coletivo em termos de preservação planetária da vida. Pois bem, em se tratando de problemas e desafios humanos e ambientais os quais suscitam debates e participação coletiva em escala global, esta reflexão sobre a dimensão moral e ética não poderia omitir uma breve alusão à premente ética da responsabilidade do pensador alemão contemporâneo, Hans Jonas. O Princípio da Responsabilidade é uma obra de 1979, na qual Jonas leva em conta que as sofisticadas tecnologias atuais permitem ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 57 intervenções radicais sobre a natureza exterior e sobre a própria natureza humana, exigindo, com efeito, proporcional a este poder de ação tecnológica do homem hodierno, uma normatização ética embasada numa práxis coletiva cujo princípio essencial é a responsabilidade. Giacóia Junior, num livro organizado por Manfredo de Oliveira (2000, p. 197), escreve que o advento da técnica moderna altera o tipo de ação humana; por outro lado, provoca consequências perigosas de tal forma que exige uma nova ética, uma ética global da responsabilidade, pois segundo ele: [...] se torna manifesto que não somente a biosfera do planeta, mas a natureza como um todo passa a ser implicada nas esferas do agir humano e da responsabilidade que daí decorre, e isso em razão da extensão e a periculosidade que dela decorre, e isso em razão da extensão desmedida do poder que a tecnologia o investe. Diante deste novo cenário, há segundo Jonas o perigoso descompasso entre a previsibilidade e o poder da ação. Este desequilíbrio, sublinha Giacóia, implica admitir prognósticos ruins entre as concorrências de ação, configurando o que Jonas chama de heurística do medo e implica na proposta ética do pensador alemão. Este traço de medo decorre, sem dúvida, ao se considerar que ação humana atualmente investida de poderes tecnológicos pode resultar em danos irreparáveis à biosfera, por isso o autor apregoa a necessidade de inserir a natureza no campo de responsabilidade da ação. Ora, enfatiza Giacóia (OLIVEIRA, 2000, p. 199), “reconhecer à natureza o direito próprio de uma significação ética autônoma [...] significa abandonar a postura tradicional que considerava o homem como ápice da natureza e coroa da criação.” É um princípio que praticamente altera, inclusive, o imperativo kantiano “age de maneira tal que possas também querer que a máxima do teu agir se transforme em lei universal da natureza”, para o enunciado jonasiano que diz: “age de maneira tal que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de autêntica vida sobre a terra...” (OLIVEIRA, 2000, p. 199). Biosfera, parte da terra, e de sua atmosfera em que pode existir vida. (Dicionário Barsa de Língua Portuguesa I. Rio de Janeiro, 1981, p. 170). FILOSOFIA58 Observe que Leonardo Boff (2000, p. 115), comentando a ética da responsabilidade, frisa que realmente este é um paradigma atualmente imprescindível. Como realça o teólogo brasileiro: Trata-se da sobrevivência de todos, seres humanos, demais seres vivos e da Terra como sistema integrador de subsistemas. O ser humano faz-se co-responsável, juntamente com as forças diretivas do universo e da natureza, pelo destino da humanidade e de sua casa comum, o planeta Terra. Ora, quando se fala da intervenção do homo faber em tempos de civilização tecnológica, não se omite, igualmente, o problema da relações do homem consigo mesmo, vista sob pelo menos três aspectos: prolongamento da vida humana, que para Jonas ultrapassa princípios da éticas tradicionais, porém “há que se discuti-las, eticamente, e segundo princípios, e não sob a pressão dos interesses.” (OLIVEIRA, 2000, p. 201). Segundo, controle do comportamento que hoje é uma real possibilidade através do progresso da medicina psicossomática. Jonas diz que se trata entre outra coisas, “[...] considerar como um risco abissal o deslocamento de níveis entre as descobertas tecnológicas da biomedicina e sua utilização sociopolítica para fins de controle e manipulação social de comportamentos desviantes (OLIVEIRA, 2000, p. 201). Em terceiro lugar a manipulação genética reflete um poder superlativo do homem nas áreas de ciências como a biomedicina, engenharia genética e psicologia que o faz “tomar realmente seu destino nas próprias mãos, de não apenas garantir a conservação da espécie, mas de intentar sua modificação e melhoria segundo um projeto....” (OLIVEIRA, 2000, p. 202). Enfim, diante do poder do homo faber considerado entre a “ameaça de catástrofe pelo sucesso excessivo e a dialética de poder sobre a natureza e a compulsão de exercitá-lo”, Giacóia, referindo-se a Jonas, assegura que “nossa tragédia contemporânea é a de não poder ressuscitar nenhuma categoria do sagrado, que pudesse ancorar e tornar subsistente nossas representações normativas e nossas estimativas éticas.” (OLIVEIRA, 2000, p. 206). A partir desta situação é que a ética da responsabilidade acentua a autêntica vida humana na terra. Trata-se, portanto, de “nova e paradoxal de humildade [...] ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 59 que decorre não da consciência de que o poder humano é ínfimo e insignificante em relação à incomensurável potência natural, que produz um excesso, uma desmesura excessiva de nosso poder de agir sobre o poder de prever, valorar e agir.” (OLIVEIRA, 2000, p. 206). As éticas do discurso e da responsabilidade juntam-se a outras vertentes éticas do cuidado, da solidariedade, da compaixão e libertação e da holística todas pulsantes e preocupadas com a razoável e universal felicidade planetária, afinal é preciso “reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente do uso humano” (BOFF, 2000, p. 151), lembra Leonardo Boff reportando-se à célebre Carta da Terra. Ora, toda a tarefa ético-moral humana é indissoluvelmente pessoal e social, isto é, intrinsecamente política. Afinal, a política é a moral em marcha, lembra Perine, reportando-se a Eric Weil. De fato, Perine (1988, p. 35), lucidamente adverte: “Quando o descompasso entre a moral e o curso do mundo é muito acentuado, é preciso temer que a barbárie já tenha se estabelecido no interior dos muros da cidade.” A substancialidade do contentamento, isto é, vida boa ou felicidade (eudaimonia) humana, como dizia Aristóteles, só pode ser concebida a partir dos compromissos éticos e políticos do próprio homem, que afinal é um ser de práxis, como veremos a seguir. Antes, porém, admitamos que esta abordagem pode ser encerrada afinando-se ao anseio de Boff expresso nas últimas palavras doseu livro Ethos Mundial. Reflitamos, portanto, nestas palavras do autor: “que nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência diante da vida, por um compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça, pela paz e pela alegre celebração da vida.” (BOFF, 2000, p. 164). O homem como ser de práxis Sintonizados no que acabamos de abordar, podemos nos perguntar: De fato, é possível um mundo mais humano e mais justo para se viver? Sim! Um mundo melhor para se viver tanto para esta geração Carta da Terra é o documento elaborado por uma comissão internacional de estudiosos nos primeiros anos deste século (XXI) sob os auspícios da ONU, considerado um código ético planetário no qual se destacam princípios e valores éticos que incluem integridade ecológica, justiça social e democrática, a democracia e a paz. Não seria razoável que documentos desta natureza, fosse introduzido em instituições de educação, para que se pudesse motivar racionalmente a responsabilidade humana pela preservação da vida? FILOSOFIA60 como para as vindouras como expressa a perspectiva esperançosa do teólogo Leonardo Boff, é possível porque justamente o homem não sendo biologicamente determinado, não sendo meramente adaptável às condições naturais dadas, e nem sendo movido apenas pelos instintos egocêntricos, é dotado de possibilidades de ação consciente, teleológica, livre e responsável. Isto significa dizer que o homem é, por natureza, um ser de práxis. Há que se ressaltar, inicialmente, que se toda práxis é atividade, nem toda atividade é práxis. Atividade humana pode ser entendida como ato ou atos, pelos quais um sujeito modifica algo, uma matéria- prima. Assim, atividades simplesmente biológicas ou instintivas, isto é, que não transcendam o nível natural, não são consideradas ações tipicamente humanas. Ao contrário, ações humanas embasam-se na consciência refletida em dois tempos: resultado ideal e produto real. É por isso que a ação do homem é transformadora. De fato, se o homem se harmonizasse ou se conciliasse absolutamente com sua realidade presente, não se projetaria conscientemente para uma realidade utópica, isto é, inexistente. Com efeito, a atividade humana, enquanto práxis é cognoscitiva, teleológica e revolucionária. Sánchez Vázquez (1977, p. 194) salienta, neste sentido, a concepção de Marx. Marx ressalta o caráter real, objetivo, da práxis na medida em que transforma o mundo exterior que é independente de sua consciência e de sua existência. O objeto da atividade prática é a natureza, a sociedade ou os homens reais. A finalidade dessa atividade é a transformação real, objetiva, do mundo natural ou social para satisfazer determinada necessidade humana. Pensemos agora: quais seriam as faces ou representações da práxis? Sem dúvida multifacetada, ressalte-se pelo menos quatro delas. A primeira manifestação de práxis está na atividade produtiva, haja vista que por ela o homem humaniza o mundo, ou seja, os objetos relevantes às necessidades humanas são demarcados pelas finalidades humanas. Além disso, enquanto produz, o homem transforma-se a si mesmo. Marx referindo-se ao trabalho humano transformador afirma: “Ao mesmo tempo que desse modo atua sobre a natureza exterior a ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 61 ele e transforma [...] transforma sua própria natureza desenvolvendo as potências que nele dormitam e submetendo o jogo de suas forças a sua própria disciplina.” (VAZQUEZ, 1977, p. 198). A segunda forma de práxis é artística, agora, porém, orientada por uma necessidade de expressão e objetivação. Por esta via, se verifica a arte como criação de uma nova realidade e, consequentemente, à medida que amplia e agrega valores à realidade já humanizada é indispensável ao homem. Enfim, a arte não é mera produção material ou espiritual, mas realizadora e transformadora. A práxis social é aquela na qual o homem é simultaneamente sujeito e objeto porque atua sobre si mesmo. Neste nível de práxis não se toma um indivíduo isolado, mas uma comunidade, grupos ou a sociedade inteira como objeto. Dito de outra maneira, com Vazquez (1977, p. 200): “a práxis social é a atividade de grupos ou classes sociais que leva a transformar a organização e direção da sociedade, ou realizar certas mudanças mediante a atividade do Estado.” Esta forma de práxis vincula-se imediatamente à práxis política. A práxis política inserta-se num contexto social dividido em classes rivais onde o poder e a respectiva direção e estruturação social, conformados aos interesses e finalidades correspondentes, demarcam as lutas políticas internas. Assim, a política é prática porque as lutas entre grupos caracterizam-se por organizações reais como os partidos; é prática porque mesmo considerando as influências programático- ideológicas exigem-se métodos e meios concretos e é prática porque projeta-se para a conquista, conservação e direção do Estado. A força transformadora da práxis política é assinalada por Vázquez (1977, p. 201) da seguinte maneira: A práxis política, enquanto atividade prática transformadora, alcança sua forma mais alta na práxis revolucionária como etapa superior da transformação prática da sociedade. Na sociedade dividida em classes antagônicas, a atividade revolucionária permite mudar radicalmente as bases econômicas e sociais em que se baseia o poder material e espiritual da classe dominante, e instaurar assim uma nova sociedade. FILOSOFIA62 Percebe-se, então, que nesta perspectiva de práxis advogada por Vázquez à luz dos escritos de Marx e Engels, atividade teórica em si mesma não é práxis. A vida contemplativa aristotélica é incompatível com este conceito de práxis marxiano. Vásquez ressalta a propósito um trecho da Sagrada Família quando Marx e Engels afirmam: “[...] As ideias nunca podem executar coisa alguma. Para a execução das ideias são necessários homens que ponham em ação uma força prática.” E depois Marx na Tese XI (Sobre Feuerbach) contrapõe a filosofia como interpretação, ou seja, como teoria desvinculada da prática e a filosofia conscientemente preocupada com a transformação do mundo. Uma teoria que não modifica o mundo não é, consequentemente, legítima práxis. Todavia, não há práxis quando a atividade reduz-se à materialidade, ou seja, sem a correlação de conhecimentos e finalidades típicas da atividade teórica. Com efeito, o sentido da práxis pode ser localizado entre os campos da teoria e da prática. Assim, é enquanto ser de práxis que o homem interfere no processo histórico, renovando e inovando as formas de vida pessoal e coletiva, à medida que transforma o mundo e a si mesmo através de sua ação embasada no tripé racionalidade, liberdade e intencionalidade. O homem alia sua práxis historicamente à arte, como uma dimensão que lhe é inerente. Refletiremos, pois, a seguir, ainda que brevemente, sobre esta bela relação: o homem que faz arte é também feito por ela, enquanto a faz. O homem enquanto ser estético Veja você os seguintes versos de Fernando Pessoa: “A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe/ Que dou as coisas em troca do agrado que me dão.” Agora os de Caetano Veloso em Beleza Pura: “Não me amarra dinheiro não/ Mas formosura/Dinheiro não/ A pele escura/Dinheiro não/A carne dura/Dinheiro não/Moça preta do Curuzu/Beleza pura/Federação/Beleza Pura/Boca do Rio...” ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 63 Estes versos, como podemos ver, enfocam uma questão específica: o belo. O belo é um tema da arte. Arte é uma dimensão essencialmente humana. Só o homem, a rigor, produzarte porque sabe que faz, como faz e porque faz. Susanne Langer (2004, p. 248), ressalta: Um tema que possua significado emocional para o artista, pode, destarte, prender-lhe a atenção e induzi- lo a ver sua forma com olhos ativos, discernidores e manter a referida forma presente na sua excitada imaginação, até que seus alcances mais altos de significação lhe tornem evidentes; então ele terá, e pintará, uma concepção profunda e original daquele. É claro que os homens sempre fizeram arte, mas esta só passou a ser expressa com o termo estética no século XVIII, precisamente por volta de 1750, quando o alemão Alexander Gottlieb Baumgarten, em sua obra Aesthética na qual a questão do gosto e de experiências ligadas à arte. Na verdade, tentou articular uma lógica da imaginação. Mas como observa Cassirer, a lógica da imaginação nunca se equalizaria à dignidade lógica do intelecto puro. O também alemão Immanuel Kant retoma o termo estética, para designar os juízos de valor sobre a beleza tanto na arte como na natureza. Aliás, segundo Cassirer (1994, p. 225), o primeiro a apresentar uma prova clara e convincente da autonomia da arte.” Numa de suas obras Crítica do Juízo, interpreta o problema do belo e da arte sob o parâmetro da sensibilidade; além disso, trata dos fundamentos dos nossos juízos estéticos. Três problemas envolvem imediatamente a estética. Primeiro as relações entre natureza e arte, que, por sua vez, geram três concepções de arte: como imitação, como criação e como construção. No primeiro caso, trata-se da subordinação da arte à natureza e à realidade e, ademais, a arte reproduz fielmente o que pertence ao mundo e ao homem; enquanto criação, arte reflete além da inspiração e da genialidade do artista, as experiências, os sentimentos e as emoções vividas. Hegel afirma que tudo que vem do espírito é superior ao que existe na natureza; a arte como construção desvela a realidade a partir das relações dialéticas entre o artista e mundo que o cerca. Segundo problema: relações entre a arte e o homem, que também incluem três concepções: arte torna-se conhecimento quando facilita o saber sobre FILOSOFIA64 o mundo, Deus, verdade etc.; arte enquanto prática pensou Aristóteles, na medida em que a retidão de raciocínio orienta a fabricação humana e a arte como sensibilidade pela qual se formam juízos sobre produção artística, como enfatizou Kant. O terceiro nível de relações é relativo à função da arte, quando pedagógica, social e politicamente ela se insere numa determinada conjuntura e a partir desta torna-se instrumento de crítica, transformação e libertação. Destas relações depreende-se que, em sentido restrito, podemos afirmar a estética como um conjunto de caracteres formais que a arte assume num determinado período ou contexto, isto é, um estilo particular. Perante esta perspectiva de estilização artística, surge então uma questão essencial na arte: o belo e o feio. O que é a beleza? O que é o feio? Trata- se de questões objetivas ou subjetivas? De fato, existem duas vertentes. Para os filósofos idealistas, cuja tradição remonta-se a Platão, à beleza subjaz uma forma ideal, isto é, modelo suprassensível, de modo que no mundo sensível, belo é o que se assemelha à ideia de beleza existente em nossa alma. Num trecho do Banquete ele diz o seguinte: “Beleza [...] que existe por si mesma e por si mesma, sempre idêntica, da qual participam todas as demais coisas belas.” Por outro lado, os filósofos materialistas-empiristas, entre eles Hume, afirmam que a beleza é relativa no sentido de que está no gosto de cada um. Cassirer (1994, p. 245) nota a tese deste filósofo inglês: “A beleza não é uma qualidade das coisas em si; existe apenas na mente de quem a contempla.” O valor estético, podemos ver claramente, depende, na verdade, do sujeito situado numa determinada cultura. A interpretação de Kant orienta-se para um meio termo. O princípio do juízo estético é um sentimento do sujeito e não o conceito do objeto em si mesmo. Porém este juízo pode universalizar-se, isto é, as condições de juízos são as mesmas em todo ser racional. Para Kant, não há ideia de belo como em Platão, mas aquilo que agrada independentemente do interesse sensível ou racional, cujo critério básico é o prazer que desperta. É produto da faculdade subjetiva comum a todos os homens, o que, de fato, assegura a universalidade do belo. E o feio? Existe? Sim. Se compreendido como artes malfeitas e inautênticas. A rigor, praticamente uma negação da arte. A beleza da obra de arte (literatura, pintura, arquitetura, música, cinema etc.) se orienta por uma referência ideal ou é relativa, depende do gosto de cada um? O feio se correlaciona com o mau gosto. E o que é mau gosto (kitsch) “artístico”? Trata- se de imposição de efeitos pré- concebidos. Alguns exemplos de kitsch: cores (abuso de cores fortes contrastantes – pinturas carnavalescas); empilhamento (demasia de enfeites e adornos desconexos – quadros/desenho, adornos amontoados e sem inter- relação); materiais (disfarces para simular ou falsear algo original); inadequação (formas, estilos, funções conforme as circunstâncias – imagens reluzentes); deslocamento (distanciamento do sentido original – objetos em forma humana). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 65 À luz da interpretação fenomenológica, algo é belo à medida que realiza sua finalidade e é autêntico, ou seja, conforme sua forma particular de ser e desse modo seu significado é apreendido conforme a experiência estética. Neste sentido, afirma o filósofo austríaco Ernst Fischer (1977, p. 17): Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade [...] e as esperanças de uma situação histórica particular. [...]. Mas ao mesmo tempo, a arte [...] cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento. Há que se ressaltar, assim, a fenomenologia social da arte na medida em que o artista é um ser social e por isso ele busca refletir na sua produção artística os problemas e as esperanças do seu momento histórico. Com razão, Lukács afirma que há uma influência recíproca entre o artista e a sociedade. Dessa maneira compreendemos, por exemplo, as músicas regionais e as músicas críticas e subversivas de certos momentos históricos. Por outro lado, há sempre de alguma maneira a repercussão social de uma obra de arte. De novo, Lukács ressalva que em todos os tempos a repercussão social é inseparável da arte. Neste sentido, arte e cultura se interligam. Do ponto de vista antropológico, cultura diz respeito ao que o homem faz: pensa, imagina, inventa, justamente porque ele é um ser simbólico, cultural. Ampliando este conceito, a cultura reflete ou repercute os anseios, as necessidades e expectativas da sociedade em geral e então, é plural e histórica, com efeito, patrimônio da humanidade. É por isto que o Estado através de Ministérios, Institutos, Secretarias e Fundações, precisa implementar políticas de incentivo, proteção e difusão da arte. Todavia, convém ressaltar pelo menos duas distinções entre cultura e arte. A cultura é uma necessidade de sobrevivência: língua, costumes, valores etc. A arte não é tão necessária assim, alguém pode viver sem arte. A cultura tem a finalidade social de estabilizar os indivíduos; a arte, ao contrário, pode incomodar, desequilibrar e provocar mudanças sociais. Como percebemos, a arte tem especificidades, inclusive funções singulares, entre elas: a pragmatista, cujo interesse maior é a finalidade da obra de arte; a naturalista prioriza o conteúdo em vez da forma; a formalista justamente volve-se para a forma e composição da obra de arte. A ConstituiçãoFederal (1988, art. 216) afirma que patrimônio são “os bens de natureza material e imaterial, tomado individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira...” O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), criado em 1937, deve assumir a responsabilidade de zelar pelos bens culturais do país, sobretudo, os tombados, isto é, produções histórico-artísticas de grande relevância. Entretanto, até 1967 representações culturais indígenas, africanas e populares não eram oficialmente reconhecidas. E na verdade, só por volta de 1975, intelectuais ligados ao Iphan, “se deram conta” que o Instituto não englobava a pluralidade cultural do país, desde então abriu-se a política de mapear, registrar e reconhecer expressões culturais importantes em todo território nacional. FILOSOFIA66 Ainda nessa correlação arte e cultura, enfatizemos agora um problema do nosso tempo: a massificação. Nesse mundo de imperialismo economicista, os interesses econômicos incidem destrutivamente sobre o espírito e a idealidade da obra de arte. Vivemos um mundo em que a demanda do mercado e o retorno lucrativista, acabam infelizmente, impondo o sentido e a função da obra de arte. Esse fenômeno contemporâneo da mercantilização da arte foi sabiamente denominado por Adorno de indústria cultural. Ele alertou a partir de suas observações, principalmente nos Estados Unidos, que artes, como o cinema, acabam sendo telas de propagandas de vários produtos: carros, roupas, bebidas, máquinas etc. Como uma espécie de rolo compressor essas “produções culturais-mercadológicas” através de revistas, shows, modas, ritmos, gírias, cenas, vão superpondo-se sobre as consciências de forma colonizadora, cujo prejuízo mínimo é o enfraquecimento da criatividade, da reflexão e da crítica. Habermas diz claramente que à medida que o dinheiro e o poder incidem sobre uma grandeza humana como a arte, a tendência é que perda de sentido e empobrecimento do espírito sejam consequências naturais. Paradoxalmente, entretanto, Adorno acredita que o capitalismo não asfixia totalmente a arte, aliás, ela mesma pode tornar-se uma reação a este sufocamento e pode tornar-se margem de liberdade, crítica e transformação, de modo que afinal ela, a arte, signifique tradução da realização humana. Habermas, por sua vez, especificamente sobre arte, assegura que apesar do perigo de corrosão, ela conserva uma condição de possibilidade de resgate da liberdade e de emancipação humana. Este sentido sui generis da arte, de modo geral, nos parece bem realçado nas seguintes palavras de Cassirer: A arte nos propicia uma imagem mais rica, mais viva e mais colorida da realidade, e uma compreensão mais profunda de sua estrutura formal. É característico da natureza do homem não estar limitado a uma única forma de abordagem específica da realidade, mas pode escolher seu próprio ponto de vista e assim passar de um aspecto das coisas para o outro (CASSIRER, 1994, p. 279). Acaso não vemos e consumimos “enxurradas” de banda de forró, grupos de pagodes, os estilos “bregas”, demais estilos e, inclusive, tendência religiosa com suas letras medíocres, repetitivas, alienadas ou descompromissadas justamente conforme exigências das agências e empresários, preocupados basicamente em satisfazer muitas vezes o “simplório” gosto da massa, que reciprocamente é alimentada por esta arte pobre? ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 67 Assim, mais que construir o mundo como sua casa, o homem mediante a arte projeta-se, articula outros horizontes, numa clara manifestação de anseios ou esperanças e possibilidades, além do seu mundo real, sem que seja covarde fuga. Ora, essa transcendentalidade humana explicita-se, mais incisivamente, em suas experiências religiosas (não necessariamente doutrinárias e/ou eclesiásticas). O homem como ser religioso e transcendente Vamos indagar inicialmente, acompanhando a inquietação semelhante do professor Rubem Alves, no início do texto O Enigma da Religião: Por que os homens fazem religião? Podemos incorporar outras questões: Deus existe? A vida tem algum sentido? A morte é minha irmã? Existe um outro lado do cosmos? Pois bem, estas são perguntas cujas respostas possíveis são captáveis – se for o caso, pela afeição da alma religiosa. Alves ressalta que as respostas, diz ele, são variadas e contraditórias. Não obstante “o que torna a religião mais enigmática ainda é o fato de que, apesar de não entendermos suas origens – ou talvez precisamente por não entendê- las – o homem não consegue se desvencilhar do seu fascínio.” (ALVES, 1988, p. 33). Cassirer, lembrando que Pascal declarou que a obscuridade e incompreensibilidade integram a religião e que Kierkegaard a compreendia demarcada essencialmente pela paradoxalidade, ressalta que: [...] ela [a religião] é um engima não só no sentido teórico mas no sentido ético. Está repleta de antinomias teóricas e contradições éticas. Promete- nos uma comunhão com a natureza, com os homens, com os poderes sobrenaturais e com os deuses. [...] ela se torna fonte das mais profundas dissensões e lutas fanáticas entre os homens. A religião alega estar de posse de uma verdade absoluta; mas a sua história é uma história de erros e heresias. Oferece- nos a perspectiva de um mundo transcendente [...] e permanece humana demasiada humana (CASSIRER, 2001, p.122). Há um recente debate entre o teólogo Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI) e o filósofo ateu Paolo Flores d’Arcais, exatamente intitulado: “Deus Existe?” (Editora Planeta, São Paulo: 2009) FILOSOFIA68 É por isso que o próprio Cassirer assegura que a religião e o mito são, entre os fenômenos humanos, os mais resistentes a uma análise lógica. O mito, por exemplo, observa Cassirer (2001, p. 122), é um desafio às conceitualizações. “Sua lógica – se é que tem alguma – não pode ser medida por nenhuma de nossas concepções de verdade empírica ou científica.” Por outro lado, tem razão o mitólogo Mircea Eliade quando adverte que não se pode compreender um fenômeno religioso fora de sua modalidade, ou seja, da própria categoria de religiosidade. Com efeito, diz ele: “sendo a religião uma coisa humana, é também de fato, uma coisa social, linguística e econômica [...]. Mas seria vão querer explicar a religião por uma dessas funções fundamentais que definem o homem.” (ELIADE, 2002, p. 1). Então estejamos certos de um fato: não se pode negar a universalidade do fenômeno religioso. Batista Mondin assinala que todas as tribos e todas as populações em qualquer situação cultural estabeleceram alguma forma de religião. E Rubem Alves (1988, p. 33) diz igualmente que “não se tem notícia de cultura alguma que não tenha produzido religião de uma forma ou de outra.” Ambos coadunam-se a Plutarco que, na Antiguidade, já afirmava não haver povo sem Deus, sem oração, sem juramentos, sem ritos religiosos, sem sacrifícios. É neste sentido, que histórico e universalmente, o fenômeno religioso, explica Eliade, opõe o sagrado e o profano. “Todas as definições do fenômeno religioso apresentadas até hoje mostram uma característica comum: à sua maneira, cada uma delas opõe o sagrado e a vida religiosa ao profano e à vida secular.” (ELIADE, 2002, p. 7). Em outro lugar ele observa que “a partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução decontinuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo de ‘ordem diferente’.” (ELIADE, 2001, p. 17). Lembremo-nos que realmente no decurso de muito tempo, sublinha Alves (2003, p. 9), “os descrentes, sem amor a Deus e sem religião, eram raros. Tão raros que eles mesmos se espantavam com sua descrença e Mircea Eliade (1907-1986) Fonte: http://www.google.com.br Literalmente do grego: hieros = sagrado; fania = manifestação. Modos simples ou complexos pelos quais o Sagrado pode se manifestar. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 69 a escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa.” Ou como diz Eliade (2001, p. 19), “o mundo profano na sua totalidade, o Cosmos totalmente dessacralizado, é uma descoberta recente na história do espírito humano.” Tanto que, de modo geral, a educação orientava- se, ou inspirava-se no paradigma religioso, ratificado por relatos de milagres, aparições, experiências divinas ou demoníacas, de modo que se acreditava que seres, fenômenos e eventos revelavam ou escondiam um poder espiritual. Mas adveio um outro tempo em que Deus e as experiências religiosas perderam a força centrípeta. Atravessou-se de uma época em que no cenário aromático da fé nada acontecia fora do poder sagrado e que Deus protegia os crentes e castigava severamente os incrédulos, para uma época demarcadamente antropocêntrica na qual razão passa a ser a luz autossuficiente. Habermas (2000, p.3) observa que Max Weber “descreveu como ‘racional’ aquele processo de desencantamento na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura profana.” Numa palavra, chegamos a um tempo da modernidade racional. “O homem aprendeu a lidar com todas as questões de importância sem recorrer a Deus como hipótese explicativa”, escreveu Bonhoeffer em Cartas da Prisão no começo dos anos 50. Vejamos como Rubem Alves assinala bem a transição para o cenário da modernidade: Onde os homens antes viam poderes miraculosos em operação, a ciência constatava apenas a presença de leis fixas e imutáveis. O universo que se abria para o transcendente e o divino fechou-se sobre si mesmo, e tudo passou a ser explicado em termos de leis imanentes à própria natureza. A ciência criou um problema habitacional para Deus. Na medida em que ela penetrava em novos domínios, Deus se tornava supérfluo e obsoleto, e era despojado. A realidade foi ‘desencatada’: não mais necessitava de hipóteses teológicas para se explicar (ALVES, 1988, p. 36). Neste mundo moderno, de acordo com Battista Mondin, o homem, entre outros caracteres, é antimetafísico, antidogmático, livre, pragmático, massificado, alienado e, principalmente, secularizado. A partir da secularização, Deus deixa de ser Habermas observa que a descoberta do novo mundo, o renascimento e a reforma protestante, fatos registrados no limiar do século XVI, demarcam a fronteira entre tempos medieval e moderno. FILOSOFIA70 explicação e intervenção necessária sobre o mundo e sobre o homem. Tornando-se senhor do passado e do futuro, ele assumiu a providência de si mesmo. [...] a partir do início da modernidade, [...] ele [o homem] excluiu sistematicamente Deus da política, da ciência, arte, moral, direito e um pouco também de todas as manifestações da vida social, limitando a religião quando muito à esfera particular. Lançou- se a mesmo tempo a descoberta e a conquista do mundo através da ciência e da técnica (MONDIN, 1986, p. 50). Considere, então, o fato que desde os meados do século XV, filósofos cientista e artistas aderem de forma lenta, depois mais explícita e célere, ao paradigma antropocêntrico. Pico della Mirândola afirma que “[...] o homem é artífice do próprio destino, a sua natureza é a articulação ou realização de sua essência.” (CHORÃO, 1989, p. 140). Nicolau Copérnico inaugura a teoria heliocêntrica. Francis Bacon, em Novum Organum defendendo a separação entre ciência e religião, defende a independência e a relevância do método científico. Galileu radicalizou o heliocentrismo e metodologia científica. Referindo- se a Galileu, Japiassu (1978, p. 29) é enfático: “sua ciência veio destruir o esquema de um Cosmos organizado hierarquicamente no interior de um espaço fechado e impregnado de ressonâncias mítico-religiosas.” Maquiavel defendera a dicotomia entre os poderes eclesiástico e político. Hobbes, Locke e Rousseau compartilham a tese de que a sociedade é uma construção humana e que o poder emana do povo e não de Deus. Para o materialista Feuerbach, a religião resume-se a invenção e projeção de um homem pusilâmine. Comte, o pai do positivismo, garante que era fruto da ignorância infantil da humanidade. Darwin publica A Origem das Espécies em 1859, para deixar claro que o homem em vez de criado, é resultado de um processo evolutivo. Por outro lado, para o linguista Carnap, as afirmações teológico-religiosas são abusos linguísticos. Diante do que está dito, você certamente já percebeu que entramos numa conjuntura ideológica cuja antipatia pela religião é sintomática. Todavia, o teor de ojeriza pela religião se consolida ainda mais explicitamente nas concepções dos “mestres da suspeita”: Marx, Freud e Nietzsche. Estes assumem uma postura radicalmente crítica. Rudolf CARNAP, um dos expoentes da Escola de Oxford - crítico radical da Metafísica, advoga em favor do que designa como proposições protocolares, isto é, enunciados por natureza e por princípio experimentáveis. Os demais seriam, segundo Carnap, vazio de sentido, tais como: Deus existe/Deus não existe; alma do homem, vida transcendente etc. A professora Ouelbani, ressalta para o Círculo de Viena, que a tarefa dos filósofos deveria ser de esclarecimento e não de informação. “A filosofia se transforma em uma atividade de elucidação e não pode mais ser um sistema de enunciados ‘de significação duvidosa’” (OUELBANI, 2009, p. 21). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 71 Acompanhemos, então, ainda que brevemente suas linhas de pensamento. Para Marx, em princípio inspirado pelo materialismo feurerbchiano, a totalidade do ser consiste nisto: o homem é um ser real, diante de objetos reais que formam o mundo das suas relações. Existiria algum ser fora dessa realidade concreta? Não! Responde Marx. “Um ser não- objetivo é um não-ser.” (STACONNE, 1989; p. 98). Quem criou o mundo e o homem? Para Marx, é uma pergunta tipicamente abstrata que, aliás, desconhece a realidade humana. Ora, se não há criação, não há criador; logo a afirmação da autonomia existencial do homem (por si e para si) exclui automaticamente Deus, no caso, enquanto criador. A propósito, Staconne (1989, p. 109) alude a Parinetto que, por sua vez, refere-se ao seguinte argumento de Marx: “Aquilo que eu me represento realmente (realiter) é uma representação real e ativa sobre mim; neste sentido todos os deuses, tanto pagãos como cristãos, não têm existência real,” (grifos em Staconne). Assim, segundo Marx Deus só é real na imaginação humana. Com efeito, o conteúdo da religião é autoconsciência do homem. A religião não faz o homem, mas ao contrário, o homem faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é autoconsciência e o autoconsentimento do homem que ainda não se encontrou ou já se perdeu. [...]. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. [...] A religião é a teoria geral deste mundo...[...] sua razão geral de consolo e justificação. É a realização fantástica do homem, porque a essência humana carece de realidade concreta (MARX, 2005, p. 85). Decorre, então, que a religião é essencialmente alienação. Marx (2005, p. 86) acentua a facealienante da religião nestas célebres palavras: “a miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real, e de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação sem espírito. É o ópio do povo.” A religião torna-se, pois, um dos maiores obstáculos à realização de uma nova sociedade, porque, por um lado, é uma invenção da sociedade FILOSOFIA72 capitalista e, por outro, evasão da realidade; por isso mesmo a crítica e a luta radicais contra a religião, são premissas indispensáveis a qualquer ação emancipadora da humanidade. As palavras de Marx (2005, p. 86) são incisivas: A verdadeira felicidade do povo exige que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade. Convém ressalvar que paradoxalmente no interior do próprio cristianismo, principalmente na igreja católica há uma vertente em que textos, teólogos, agentes de pastoral, pastorais (como as sociais, incluindo aí as Comunidades Eclesiais de Base), atualizam ou reinterpretam a crítica marxiana (em parte pelo menos) tanto em relação à estrutura capitalista opressora como à própria forma alienada de religiosidade. Portanto, “unem” a crítica e a proposta de Marx ao grito profético bíblico, especialmente na “Boa Nova” de Jesus Cristo, em favor da libertação e da emancipação do homem. Há, inclusive, quem diga que se Marx tivesse conhecido propostas da Teologia da Libertação, ações das pastorais sociais e das Ceb’s e ações similares de outras religiões cristãs, teria certamente uma compreensão diferente daquela que celebrizou sobre a religião. Pois bem, assim como Marx, Sigmund Freud também relegava a religião ao mundo da realização fantástica principalmente em O Futuro de uma Ilusão (1927). Para Freud, toda civilização humana expressa tudo aquilo em que a vida do homem elevou- se acima de sua condição animal, em função da capacidade de controlar as forças naturais e de regulamentar as relações intersubjetivas. Entretanto, todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora esta se constitua objeto de interesse universal. A ciência e a O livro de Otto Maduro – Religião e Lutas de Classes (Ed. Vozes), explicita bem a correlação de religião e luta de classes. Onde a religião – e seus elementos, tanto pode aliar-se aos opressores como pode assumir a luta em favor dos oprimidos. A análise do autor dirige-se, sobretudo, à América Latina. Excluindo-se a “raiva” entre marxistas e religiosos, será que as críticas severas de Marx contra a exploração do homem no sistema capitalista, não se tocaria num certo sentido com semelhantes denúncias de Jesus Cristo contra semelhantes desumanismos em sua época? Há um livro de E. Morin, “Jesus e a estruturas do seu tempo” (Ed. Paulinas), que aborda justamente as acusações de Cristo aos opressores e seus aliados, inclusive, judeus ostensivamente religiosos e austeros. Sigmund Freud (1856-1939) Fonte: http://www.google.com.br ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 73 tecnologia podem ser utilizadas para aniquilar a mesma civilização. É por isso que medidas de coerção se destinam a reconciliar os homens com a civilização e recompensá-los por seus sacrifícios. Incluem-se entre medidas a frustração – a não satisfação de um instinto; proibição – regulamento proibitivo e a privação – efeito da proibição. Com efeito, afirma Freud, a coação externa gradativamente internaliza-se, porque o superego – agente mental – é assumido como mandamento pelo homem. Neste contexto, qual a significação psicológica das ideias religiosas? Para Freud (1997, p. 40), “são ensinamentos sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que reivindicam nossa crença.” E em que se fundam os ensinamentos religiosos? Segundo Freud em três alegações básicas: eram acreditados por nossos antepassados; possuímos provas desde os primevos e é proibido questioná-los. Conclusão: [...] todas as informações proporcionadas por nosso patrimônio cultural, as menos autenticadas constituem precisamente os elementos que nos poderiam ser da maior importância, ter a missão de solucionar os enigmas do universo e nos reconciliar com os sofrimentos (FREUD, 1997, p. 43). Pensemos agora, com Freud, a seguinte questão: Apesar da inautencidade, de onde vem a eficácia das ideias religiosas? Para ele, as ideias religiosas são ilusões. E o que são ilusões? Desejos fortes e prementes dos seres humanos. Não se confundem com o erro, nem com a contradição à realidade. Ora, uma crença ilusória implica uma realização de um desejo como motivo, desprezando-se, por isso, relações com a realidade e verificabilidade. Além disso, mesmo que se soubesse que a religião não tem a verdade, dever-se-ia ocultar tal fato e manter a prescrição filosófica do “como se”. De qualquer forma, Freud reconhece que a religião ajudou a refrear os instintos associais, mas não o suficiente. De fato, se houvesse tornado mais feliz a maioria da humanidade, não se desejaria alterar as condições existentes. Então o que se vê? Grande número de pessoas decepcionadas com a civilização. FILOSOFIA74 Ora, o espírito científico suscita uma forma inovadora de compreender os assuntos do mundo. Por isso, Freud (1997, p. 61) diz que: [...] quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa, a princípio somente de seus ornamentos obsoletos e objetáveis, mas, depois também de seus postulados fundamentais. Convicto das forças decrépitas da religião, ele radicaliza ressaltando que a “religião seria a neurose obsessiva da humanidade; tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai [...], o afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento...” (FREUD, 1997, p. 69). Tem-se que dizer, argumenta Freud, que as verdades religiosas são tão deformadas e disfarçadas que a massa não pode tomá-las como verdade. A ciência, ao contrário, afirma Freud (1997; p. 85), “através de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu provas de não ser uma ilusão” e seus inimigos mais intransigentes são os que manifestam ou secretamente temem que a fé religiosa seja esclarecida e depois suprimida pelo saber científico. Freud encerra o texto sublinhando que se ele e os partidários posteriores de suas ideias estiverem iludidos as expectativas serão abandonadas. Ao contrário, as ilusões religiosas não admitem correções. Além disso, as falhas de sua crítica não implicariam afirmação da religião. Se os objetivos da razão são históricos, os da religião se esperam em Deus e depois da morte; porém, a longo prazo, a própria religião não escapará à sobrepujança científica. Pensemos, enfim, nesta assertiva com a qual Freud encerra seu livro: “Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar.” (FREUD, 1997, p. 40). Portanto, para Freud a ciência será a única força terapêutica capaz de expurgar essa “neurose obsessiva da humanidade”, a religião, cujos fundamentos são essencialmente psicológicos. Battista Mondin observa que já em Totem e Tabu, Freud afirmara que no complexo de Édipo acham-sejuntos os princípios da religião, da moral, da sociedade e da arte. A religião é, pois, neurose e delitos coletivos. No livro O Antricisto (1895) - aforismo 49, Nietsche aproximar-se-ia de Freud neste sentido, ao afirmar: “O sacerdote conhece apenas um grande perigo: a ciência – a sadia noção de causa e efeito.” Desde que Freud (em O Futuro de uma Ilusão, 1927) defendeu a superação da religião pela ciência, se esta realmente avançou sobre a religião, em que nível estaria este avanço em nossos tempos? Ou ao contrário, a religião conserva margem de autarquia perante evoluções científico- tecnológicas? ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 75 Friedrich Nietzsche é o terceiro grande ateu do século XIX. Thrower (s/d, p. 131) frisa que para Nietzsche “a estabilidade política e o desenvolvimento da época não valiam nada, comparadas com o único fato que para ele contava, mas que seus contemporâneos se recusavam a aceitar: Deus tinha morrido.” Depois de uma década numa solidão montanhosa, Zaratustra decide descer para o meio dos homens e, entre estes, encontra um velho à procura de raízes na floresta. Ao velho, Zaratustra pergunta: E que faz o santo no bosque? O santo respondeu: - Faço cânticos e canto-os, e quando faço cânticos rio, choro, murmuro. Assim louvo a Deus. [...]. Zaratustra, porém, ao ficar sozinho falou assim ao seu coração: Será possível que este santo ancião ainda não ouviu no seu bosque que Deus já morreu? (NIETZSCHE, 1999, p. 24-25). Em A Gaia Ciência (2003, p. 115) Nietzsche afirma que o anúncio da morte e dos assassinos de Deus é feito por um louco. Nunca ouviram falar de um louco que em pleno meio dia acendeu sua lanterna e pôs-se a correr na praça pública sem cessar: Procuro Deus! Procuro Deus! Como lá se encontravam muitos que não acreditavam em Deus, seu grito provocou uma grande hilaridade. Ter-se-á perdido? perguntou um. [...]. Ou estará escondido? Terá medo de nós? Terá partido? O louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o olhar. Para onde Deus foi? – bradou. – Vou lhes dizer: Nós o matamos, vós e eu! Nós todos somos assassinos! Com isto, ainda em Gaia Ciência, ele propala que a morte do Deus cristão é a magna notícia dos últimos tempos e que, portanto, a crença em Deus, já indefensável, espraia-se pela Europa. A morte de Deus para Nietzsche, implica o fim de todo idealismo assimilado e apregoado pelo cristianismo. Na verdade, a crítica cortante de Nietzsche à religião cristã e à moral, descendente desta, configura-se praticamente em todas as obras do filósofo. Mas o livro O Anticristo publicado originalmente em 1895, explicita, particularmente, sua contundente aversão. Observe, por exemplo, o que ele declara no aforismo 18: O conceito cristão de Deus – Deus como deus dos doentes, Deus como aranha, Deus como espírito – é um dos mais corruptos conceito de Deus que já foi alcançado na Terra; [...] Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! Friedrich Nietzsche (1844-1900) Fonte: http://www.google.com.br Aforismo, etimoligicamente, significa proposição ou sentença. A genialidade de Nietzsche lhe faculta escrever de forma, digamos, seccionada, aparentemente desconexa aos incautos. A rigor, entretanto, a veia do discurso subjaz à forma livre da sistematicidade formal ou condensada. Enfim, o que Nietzsche pronuncia tem certo teor de sentença! Esta é sua forma particular de filosofar, como se diz, com martelo! FILOSOFIA76 Na concepção nietzscheana, o cristianismo é detestável porque sempre esteve implicado na tarefa de tornar homem o prometedor e cumpridor de promessas, cuja memória foi sempre marcada pelo sacrifício. Vejamos o que ele assevera na segunda seção de Genealogia da Moral: Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; [...]. O castigo teria o valor de despertar no culpado o sentimento da culpa, nele se vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada ‘má consciência’ ou ‘remorso’ (NIETZSCHE, 1998, p. 51-70). É por isso que sobre a doutrina cristã pesa para Nietzsche a acusação de inversão de valores – “não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos...” (NIETZSCHE, 2000, p. 73) – logo, o cristianismo articula seu triunfo sobre as falsas promessas, ao preço do sacrifício da humanidade do homem. É por isso que ele radicaliza sua crítica quando em O Anticristo (2007, p. 23), Aforismo 5, destaca o seguinte: Não se deve embelezar nem ataviar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra esse tipo mais elevado de homem, ele proscreveu todos os instintos fundamentais desse tipo, ele destilou desses instintos o mal, o homem –mau – ser forte como o tipicamente reprovável, o ‘réprobo’. O cristianismo tomou partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito. [grifos do tradutor] Sua abominação prossegue no aforismo seguinte onde peremptoriamente observa que “o cristianismo é chamado de religião da compaixão. – A compaixão se opõe aos afetos tônicos que elevam a energia do sentimento de vida: ele tem efeito depressivo.” (NIETZSCHE, 2007, p.7). Notemos que, segundo Nietzsche, nada é mais patético e patológico do que a piedade cristã, haja vista que esta é deprimente porque reprime as paixões, as sensações impregnadas na vida, em vez disso o homem contagiado pela piedade assume e dissemina o sofrimento, ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 77 enfim, sobrepõe o sacrifício à energia vital. No quarto artigo da “Lei Contra o Cristianismo”, registrado no epílogo de o Anticristo (2007, p. 81), repudia, particularmente, o cânone da castidade, nestes termos: A pregação da castidade é uma incitação pública à antinatureza. Todo desprezo da vida sexual, toda impurificação através da mesma, através do conceito de ‘impuro’ é o autêntico pecado contra o sagrado espírito da vida. Veja esta constatação semelhante em “Para Além do Bem e do Mal”: “Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual...” (NIETZSCHE, 2000, p. 53). Assim, o cristianismo histórico, mais que deturpação, é sabotagem à vida através da força sistêmica do moralismo. Na verdade, Nietzsche afirma que no “fundo houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O ‘evangelho’ morreu na cruz. O que desde então se chamou ‘evangelho’, já era o oposto daquilo que ele viveu; uma má nova, um disangelho (NIETZSCHE, 2007, p. 45). E Paulo de Tarso é o grande deturpador do evangelho, entre outras coisas, porque inventou um Deus que reduziu a nada a sabedoria do mundo, para ele, Paulo, sombra das vaidades. Com efeito, “o pecado, diga-se mais uma vez, esta forma de autoviolação humana par excellence, foi inventado para tornar impossível a ciência, a cultura, toda elevação e nobreza do homem, o sacerdote domina mediante a invenção do pecado.” (NIETZSCHE, 2007, p. 59). A partir dessas razões, Nietzsche, em O Anticristo (2007, p. 79-80), apresenta seu veredicto sobre o cristianismo: Eu condeno o cristianismo, faço à igreja cristã a mais terrível das acusações que um promotor já teve nos lábios. Ela é, para mim, a maior das corrupções imagináveis... [...]. Quero inscrever essa perene acusação ao cristianismo em todos os muros,onde quer que existam muros – eu tenho letras que os cegos enxergarão... Eu declaro o cristianismo a grande maldição, o grande corrompimento interior, o grande instinto de vingança, para o qual meio nenhum é suficiente venenoso, furtivo, subterrâneo, pequeno – eu o declaro a perene mácula da humanidade... FILOSOFIA78 O que significa a declaração da morte do Deus cristão? O nascimento de um novo homem – o super-homem. Assim, Nietzsche anuncia solene e explicitamente o novo homem no Assim Falou Zaratustra (1999, p. 23): Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super- homem, o sentido da terra. Exorto-vos, meu irmãos, a permanecer fiéis à terra e em não acreditar em quem vos fala de esperanças supraterrestres. E, ainda à frente, ele ratifica a necessária morte de Deus e a consequente aurora de uma humanidade nova. O princípio de um tempo de liberdade. [...]. Mas agora esse Deus morreu! Homens superiores, esse Deus foi o vosso maior perigo. Ressuscitaste desde que ele jaz na sepultura. Só agora torna o Grande Meio-Dia; agora torna-se senhor o homem superior. [...]. Homens superiores! Só agora vai dar à luz a montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós queremos que viva o Super-homem (NIETZSCHE, 1999, p. 217). Denota-se, pois, a invenção e a inversão da existência humana dada pela tradição religiosa e moral. Como sublinha Bernhard Welte (1981, p. 71), “...trata-se de o homem pretender eliminar toda forma de alienação e heteronomia, isto é, de não deixar comandar, de não dobrar os joelhos diante de ninguém, de não seguir cegamente a ninguém. O que se quer à autonomia do homem.” Como escreve em recente artigo “O Jesus sem culpa”, o Professor Renato Bittencourt (Faculdade de Comunicação CCAA – RJ), sobre as violentas críticas de Nietzsche ao cristianismo: “não significam necessariamente uma negação do valor da experiência religiosa, quando esta se pauta em valorações imanentes e extramorais.” O Reino de Deus, para Nietzsche, ressalta Bittencourt, não é algo escatológico, apocalíptico, em algum lugar fora do mundo e após a morte, mas é um “estado de coração” uma experiência interior “um sentimento de júbilo e de bem-estar íntimo na vida do indivíduo que compreende intuitivamente a existência de uma unidade que perpassa todos os seres humanos.”(BITTENCOURT, 2010, p. 15-17.) Assim, a nova era habitada pelo homem superior é marcada essencialmente pela transvalorização. Scarlett Marton (2000, p. 62), uma grande estudiosa no Brasil do pensador alemão, explica: “Transvalorar, ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 79 [...] é criar novos valores. Aqui Nietzsche pretende realizar obra análoga à dos legisladores: estabelecer novas tábuas de valores”. O falecido padre Lima Vaz – outro importante pensador brasileiro –, retomando esta tese de Nietzsche da formação para o ethos como submissão da animalidade humana e da orientação moral, enquanto interditos e sanções e seus castigos correspondentes, contrargumenta o seguinte: A explicação nietzscheana da origem do ethos deixa, no entanto, sem resposta a questão decisiva sobre as razões que impelem a humanidade a trilhar esse imenso e doloroso caminho e a empreender esse inenarrável esforço para escalar dolorosamente as escarpadas alturas da moralidade. A ideia de uma prioridade dialética do ethos sobre o indivíduo empírico [...] oferece uma resposta infinitamente mais aceitável à interrogação fundamental em torno da presença constitutiva do ethos na estrutura da socialidade humana (VAZ, 1993, p. 28). Não obstante, se concordarmos com as palavras de Marton, Nietzsche permanece um mensageiro indispensável, porque transvalorar é demolir valores fixados; permanece um iconoclasta necessário, porque transvalorar implica demolir ídolos e fundamentos. Numa palavra final, é neste sentido que se torna ininterrupta a incisiva crítica de Nietzsche à metafísica, à religião, à moral. Agora convém perguntar o seguinte: a religião desapareceu? Se você pensou imediatamente não, sua resposta condiz com a de Rubem Alves. Ele diz: A religião não se liquida com abstinência dos atos sacramentais e a ausência de lugares sagrados.[...]. a religião fala sobre o sentido da vida. Ela declara que vale a pena viver.[...]. E o que todas elas propõem é nada mais que uma série de receitas para a felicidade. Aqui se encontra a razão por que as pessoas continuam fascinadas pela religião, a despeito de toda crítica....” (ALVES, 2003, p.12-119). De modo semelhante, Durkheim argumenta que as religiões de formas particulares respondem às condições existenciais do homem. Aceite o desafio de entrar nesta polêmica: Por um lado, se tem visto que para Nietzsche nossa educação não passa de um sistema impostor de regras e valores conformados a uma tradição doentia. Por outro, Lima Vaz, que a educação é o emblema do esforço de inscrever o homem e no homem valores e regras necessárias. Entre estes lados, qual sua postura? FILOSOFIA80 Qual a natureza da vivência ou da experiência religiosa? Segundo Rubem Alves a experiência religiosa é essencialmente relação. Assim como na experiência estética, trata-se de um estado de sensibilidade, e não uma situação em que o sujeito – crente – apreende o objeto sagrado. A experiência religiosa não se reflete essencialmente no esquema da institucionalização. Rubem Alves (1988, p. 40), reportando-se Rudolf Otto, ressalta que: [...] o erro de se tomarem as formas institucionalizadas, reificadas de religião, como o objeto religioso, se deve ao fato de que nada garante ‘a priori’ que as instituições que se batizaram a si mesmas como religiosas realmente desempenhem, para a consciência, uma função religiosa. Destarte é notório que a experiência religiosa transcende a toda moldura sistêmica. E então o que caracteriza a experiência religiosa? Para Alves (1988, p. 40), “a consciência religiosa é uma expressão da imaginação” [grifos do autor]. E em que consiste a imaginação? Ele responde contundentemente: “Através da imaginação o homem transcende a facticidade bruta da realidade que é imediatamente dada e afirma que o que é não deveria ser, e o que ainda não é, deverá ser.” (ALVES, 1988, p. 40). A religião, nesta perspectiva, procura tornar o mundo significativo. Certo dia Albert Einstein (1981, p. 13), escreveu algo intrigante: “Tem um sentido minha vida? A vida do homem tem um sentido? Posso responder a tais perguntas se tenho o espírito religioso.” Entretanto, Riolando Azzi argumenta: “A função da crença, porém, não se esgota como uma maneira de tornar o mundo significativo. Em via de regra a religião, ao dar sentido à existência humana, exige também uma nova postura diante da própria vida.” (AZZI, 1993, p. 22). Ora, esta é uma atitude peculiar àquela vocação humana da transcendentalidade. Aliás, um tema lucidamente abordado pelo teólogo Leonardo Boff em Tempo de Transcendência. O que é a Transcendência? Boff (2000, p.28) explica: é “essa dimensão de abertura, de romper barreiras, de superar os interditos, de ir para além de todos os limites.[...]. Esta é uma estrutura de base do ser humano.” Sobre a imaginação, convém lembrar que Freud em Totem e Tabu a vincula à neurose, portanto, um estado de anormalidade. À luz da consciência objetiva da ciência, a imaginação é um passe de fantasia. Porém, Rubem Alves pergunta: onde haveria esta objetividade “pura”? Não seria um mito? O fato é que se constata que a imaginação subjaz, inclusive, na consciência do cientista e na produção científica. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 81 A transcendência permite a liberdadecriativa, isto é, capacidade de protestar e transigir toda forma de opressão sistemática: educação, família, política, religião etc., por isso, Boff (2000, p. 39) alerta: “Não nos deixemos mediocrizar, mantenhamos nossa grandeza, nossa capacidade de voo, nossa capacidade de transcendência.” Entretanto, existem a mídia, o cinema, a arte e a religião que podem promover as pseudotranscendências à medida que permitem uma viagem fantástica, isto é, como álibi, como fetichização de modo que se negue o mundo em que se vive. Ora, estas ultrapassagens artificiais podem destruir a liberdade e a vida. Julgo que o critério para saber se a transcendência é boa, se potencia o ser humano ou diminui, está na resposta que damos a essa pergunta: em que medida tal experiência ajuda a enriquecer e a assumir o cotidiano? (BOFF, 2000, p. 55). Estas pseudotranscendências podem, dessa forma, manobrar a dimensão humana do desejo, canalizando-a para algo limitado, tomado, porém, na totalidade. Como alguém que se imagina plenamente realizado na conquista de bem de consumo ou como alguém preso numa sistemática religiosa, pensa ter adquirido como que uma “senha” para o céu. Sem perder suas raízes – dos desejos, inclusive –, o homem não pode restringir-se, porém, aos limites. O ser humano é assim aberto ao infinito, à totalidade e “aquele Deus ex maquina pregado por religiões ou anunciado por dogmas não preenche, necessariamente, essa busca humana, porque vem de fora para dentro e de cima para baixo.” (BOFF, 2000, p.69). Neste sentido, para Boff não há caminho errante, cada um deles leva à fonte, de modo que todas as religiões falam de Deus, dos mistérios, da felicidade. É claro que a integração da transcendência no homem em tempos hodiernos é atropelada, sedada, deturpada ou encoberta pela nuvem ou atmosfera do materialismo exacerbado, unilateral e desumano, não obstante, não é demais lembrar que essa contracorrente não liquida a capacidade humana de protestar, enfim, de transcendê-la. Boff lembra que Jesus, por exemplo, morreu na cruz por conta de um processo FILOSOFIA82 de insurgência no qual assume o lado dos excluídos. Ou seja, é o filho de Deus que assume a condição de imanente para anunciar a possibilidade e a necessidade de transcendência. A PESSOA E SUAS MARCAS FUNDAMENTAIS Consideremos em princípio que, quando se reflete sobre sentido essencial de pessoa, afirma-se primordialmente que “a fonte última da dignidade do homem é sua condição de pessoa.” (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p 81). E Carl Rogers (1997, p. 122) ratifica dizendo: “o que o indivíduo mais pretende alcançar, o fim que ele intencionalmente ou inconscientemente almeja, é o de tornar-se ele mesmo.” Pela relevância do significado de pessoa, é então correto ressaltar que o homem é inviolável, ou seja, agressões ao homem são sempre desordem, portanto, atitudes caóticas. De acordo com Stork e Echevarría, existem algumas marcas que definem a pessoa. A primeira delas é a intimidade. A segunda é a expansão (manifestação). A terceira é a liberdade. A quarta é a dialogicidade. Os dois autores supracitados demonstram como na pessoa essas marcas, caracteres ou elementos se entrelaçam, partindo do conceito nuclear de intimidade. De fato, eles ilustram que: A intimidade indica um dentro que só a própria pessoa conhece. O homem tem um dentro, é para si, e se abre ao seu próprio interior, na medida em que se atreve a conhecer-se, a introduzir-se na profundidade de sua alma.[...]. Possuir interioridade, um mundo interior aberto para mim e oculto para os demais, é intimidade: uma abertura para dentro.” (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 83). Você talvez se pergunte agora: o que é mesmo o íntimo da intimidade? Esta é realmente uma área tão nuclear que se busca protegê-la através da vergonha ou pudor. É o sentimento que surge quando os outros veem o que não se quer mostrar. “A vergonha surge não por se ter feito algo A partir da mitologia grega, entende-se Kaos – desordem, indistinção, confusão, anomia exatamente oposto ao Kosmos – ordem, nomia, organização, resultado do trabalho do reinado Zeus após sobrepor-se a todos os seus adversários. Edgar Morin, atualizando o conceito, afirma, por sua vez, que delega-se comumente à ciência ordenar e simplicar o que está difuso e confuso. Expansão - Hannah Arendt na já referida obra A Condição Humana, afirma que a palavra e o ato exprimem a inserção humana no mundo, como um segundo nascimento. Dialogicidade - Carl Rogers traça os seguintes elementos envolvidos no processo do tornar-se pessoa: abertura às experiências orgânicas; desenvolvimento da confiança em seu próprio sistema orgânico enquanto instrumento de vida sensível; admite autoavaliação porque centra-se em si mesma e assimila a vida como processo fluído no qual descobre novos aspectos de si mesmo no fluxo de suas experiências. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 83 errado, mas, sim, porque se publica algo que por definição não é público.” (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 85). A intimidade é diversificada, pois “nenhuma intimidade é igual à outra. [...]. A pessoa é única e irrepetível, porque é um alguém; não é apenas um que, mas sim um quem. [...]. A pessoa é um absoluto, no sentido de um único, irredutível a qualquer coisa.” (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 86-87) [grifos do tradutor]. O corpo, a linguagem e a ação são manifestações da intimidade. E a apresentação social da pessoa dá-se através da cultura. Retornando ao corpo, ressalta-se que ele é condição de possibilidade da manifestação humana, sobretudo, através do rosto e das ações expressivas. Mas também o corpo exprime tanto a proteção da intimidade pessoal através da roupa ou da maquiagem, como, por outro lado, a renúncia mediante a pornografia ou o sexualismo. A fala é outro elemento pelo qual o homem se publiciza, manifesta sua intimidade. Por natureza, o homem é dialógico, portanto, social e comunitário. É neste sentido que expressa o encontro da expansão e da reciprocidade. E o diálogo é o campo onde se fertilizam estas dimensões. Realmente, a formação da personalidade humana exige a intersubjetividade, porque é por ela que se consolida identidade e consciência próprias. A partir dessas marcas, denota-se que a pessoa, pelo que significa, já atrai sobre si o devido respeito. Por isso Stork e Echevarría (2005, p. 95) asseveram que “respeitá-la é a atitude mais digna do homem, porque ao fazê-lo respeita a si mesmo; e ao contrário: quando uma pessoa agride a pessoa, se prostitui a si própria, se degrada.” Consequentemente, manipular, condicionar, dirigir alguém é profundamente imoral; é o não reconhecimento da dignidade inerente em cada indivíduo. O reconhecimento não é uma declaração jurídica abstrata, mas um tipo de comportamento prático com os outros. Todas as pessoas devem ser reconhecidas como pessoas concretas, como uma identidade própria e diferente das outras, nascida de sua biografia, de sua cultura e do exercício de sua liberdade. (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 97). Há que se ressaltar, ainda, que a pessoa tem sua existência configurada essencialmente no espaço e no tempo. Viver se expressa no verbo estar no mundo, instalar-se nas coordenadas da realidade mundana, no mundo fenomênico, para usar uma expressão kantiana. Todavia, “o homem Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant afirma o princípio racional do qual decorre seguinte imperativo prático universal: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” Assim, Kant adverte, claramente, que instrumentalizaruma pessoa é não considerá-la livre. FILOSOFIA84 luta contra o tempo, trata de deixá-lo pra trás, de estar acima dele. Esta luta não seria possível, se não existisse no homem algo de efetivamente atemporal, imaterial e imortal.” (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 97). Preservação da memória, retenção de algo significante do presente e antecipação do futuro seriam mecanismos humanos de superação da temporalidade. Ademais, a estrutura da vida humana tem um traço de renovação constante, isto é, a vida é sempre nova porque há nela a iminência constante (simbolicamente falando, como que sucessão de gravidezes) de projeções e novidades. Daquilo que foi dito até aqui e do que já se sabe, entretanto, há que se repetir, enfim, que o homem é em essência um ser finito e inacabado. Lembremo-nos de Ferreira Gullar, o que inicia seu famoso poema. Traduzir-se dizendo eloquentemente: “Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo.” E superar-se a si mesmo e ao mundo, projetar-se para além, transcender, é o desafio eterno do homem. Para o conhecido filósofo alemão Martin Heidegger, o homem é um ser- para-a-morte. Aliás, ele ratifica essa tese numa frase lapidar na qual afirma que “assim que o homem começa a viver, tem a ideia suficiente para a morte.” Peter Berger, afirma que a morte é a máxima situação marginal, haja vista ser a ruptura definitiva, um desafio implicado e encaminhado no discurso doutrinário da maioria das religiões, embora na prática, obviamente, eternamente insolúvel. José Luis Maranhão sublinha três argumentos célebres sobre a morte. O primeiro é de Heidegger para quem a morte pertence à estrutura fundamental da existência. Ela não é acidental. Caminha-se para ela. A hora da morte é a hora em que acaba-se de morrer. A morte sendo intransferível, o enfrentamento dessa possibilidade é sinal de autenticidade e libertação, inclusive da angústia a partir e em torno da morte. Sartre, em segundo lugar, pensa ao contrário. A morte, para ele, revela o absurdo da vida humana, porque interrompe projetos e sentidos da vida. É a destruição de toda possibilidade, sendo ela puramente externa, aliena o homem. Gabriel Marcel, em oposição a ambos pensadores, pensa a morte não como princípio destruidor, um estado de desespero, mas uma passagem de esperança absoluta, uma transição do tempo para a transcendência (MARANHÃO, José Luis de Sousa. O que é a Morte. São Paulo: Brasiliense, 1985). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 85 Mas, apesar da morte, ou justamente por causa dela, o homem está sempre buscando algo mais enquanto atravessa ou trafega pela existência. Maranhão (1985, p. 64), argumenta justamente que “à medida que nos conscientizamos de nossa condição de mortais, percebemos mais a mais, que não temos o direito de desperdiçar o pouco tempo da nossa existência.” Neste sentido, é que o homem aspira ao infinito, pretende alcançá-lo através dos aperfeiçoamentos ininterruptos. Entre as formas de perfeição, ainda se verifica, de modo geral nas culturas a ideia de vida após a morte. De fato, como se disse acima, uma bandeira comum na maioria das religiões. Por essa razão, o homem adora, cultua, referencia seres divinos, enfim, nutre uma espiritualidade na expectativa de uma transcendência ou completude final. Pensemos, enfim, neste fato interessante: apenas o homem sabe da sua finitude, que está situada no arco da existência do começo para o fim – como se simbolicamente se pudesse dizer: viajante consciente entre o ventre e o túmulo. Mas a crença e a esperança na “superação” da morte são diversamente emblemáticas em culturas e religiões pelo mundo afora, de modo que a epopeia humana se tensiona, surpreendentemente, entre o imanente e transcendente. CONCLUSÃO Ao fim desta primeira unidade, convém reiterar alguns tópicos. Primeiramente, reafirmar que a questão “o que é o homem?” situa- se no centro das pesquisas, análises, desafios e proposições da Antropologia Filosófica. Ao mesmo tempo sujeito e objeto, o homem não se exprime por unilateralidades, menos ainda numa época pluriversal e tecnocientífica como a nossa. Contudo, alguns traços caracterizam o fenômeno humano. Primordialmente natural e material, enquanto corpo o homem radicaliza-se no mundo: natureza, cultura, trabalho, relações. Nós o FILOSOFIA86 conhecemos através dos meios pelos quais produz a vida, diz Marx. Mas o homem é também razão e logos; essencialmente humano é prognóstico, edificante e problemático, refletido, por excelência, nas articulações políticas. A política é propriamente a ação humana, diz Arendt. Cerceamento de liberdades, corrupções e protecionismos do Estado tendem a desvirtuá-la; não obstante, ela é condição de emancipação social. Embora não expurgue a corruptibilidade, a ética, resumida na Justiça, permanece sendo referência da política. A partir desse vínculo, ética e política, é que são possíveis contentamentos coletivos. Esta aposta no homem é intrépida porque é um ser de práxis: reflexão e ação, inclusive, pela política e pela arte. Esta, além de expressão de sensibilidade e veículo de conhecimento, quando prático- pedagógica a arte é transcendente e transformadora. Além da estética, as experiências religiosas, inerentes em todas as culturas, atestam os sonhos e esperanças humanas. Entretanto, quando induzem a desumanismos e alienações, são substancialmente falsas. De fato, por nenhuma ideologia, menos ainda religiosa, se justifica intolerâncias e desrespeitos aos semelhantes. Manipulações, impiedades, insensibilidades contrapõem-se à configuração humana: intimidade, manifestação, liberdade e dialogicidade. Imagine-se envolvido numa pesquisa em Antropologia Filosófica. Discuta com seus colegas e comente brevemente sobre a importância e o desafio de sua pesquisa, levando em conta o fato singular que você é ao mesmo tempo pesquisador e objeto de pesquisa. Considerando a compreensão multidimensional do homem, reflita e comente sobre a seguinte afirmação do antropólogo francês, François Laplantine: “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 87 integrativa que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. [...] uma das maiores vocações de nossa abordagem (antropológica) consiste em não parcelar o homem...” (LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 16). Tomando como premissa a complexidade humana, explicite brevemente algumas ideias básicas em torno dos seguintes caracteres humanos: a) o homem como ser natural/material e racional; b) o homem como sociopolítico; c) o homem enquanto ético-moral d) o homem com ser de práxis e) o homem como ser estético Marx, Freud e Nietzsche, como percebemos, são críticos incisivos da religião, principalmente do cristianismo. Escolha um deles e destaque tópicos de sua crítica. Sugestão: discussão em pequenos grupos ou duplas. Em termos ainda de religião ou experiência religiosa, como Leonardo Boff distingue experiência entre transcendência verdadeira e pseudo-transcedência? Se possível, apresente alguns exemplos. Discuta com um colega seu antes de redigir sua resposta. Pelo fato mesmo da nossa condição de pessoa, a dignidade está impregnada em cada um de nós. Neste sentido, comente a seguinte frase pronunciada por Martin Luther King: “Quero que um dia meus filhos sejam respeitados pelo seu caráter, não pela cor de sua pele.” 4 5 6 FILOSOFIA88 Comente brevemente os seguintes aspectos sui generis de cada pessoa: intimidade, manifestação, liberdade e dialogicidade.1. Hominização • A guerra do fogo (França/Canadá, 1981 – direção Jean-Jacques Annaud). Filme sobre o processo de hominização e os primeiros tempos da humanidade • 2001 – uma odisséia no espaço (Inglaterra, 1968 – direção: Stanley Kubrick) Filme que mescla temas como mitologia, hominização e tecnologia. • O enigma de Kaspar Hauser (Alemanha, 1974 – direção Werner Herzog) Um jovem distante da convivência humana inclusive sem domínio de fala, aparece numa praça, daí começa seu processo de formação • Blade Runner, o caçador de andróides (EUA, 1982 – direção: Ridley Scott) Uma ficção sobre a vida terrestre no século XXI, à medida que questiona o que é o ser humano, dada a semelhança entre este e os andróides 2. Problema da razão • Matrix (EUA, 1999 – direção: Lary Wachowski e Andi Wachowski) Trilogia interessante sobre projeções da em torno da artificialização da razão. 7 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 89 3. Problema sociopolítico • O menino selvagem (França, 1969 – direção François Truffaut). França século XVIII, encontra-se uma criança selvagem. Um professor encarrega-se de educação social. • Fahrenheit 9/11 (EUA, 2004 – direção: Michael Moore). Documentário sobre a invasão de tropas americanas sobre o Iraque, motivada por falsas alegações políticas e ideológicas capitaneadas pelo então Presidente Georg W. Bush. • O que isso, companheiro? (Brasil, 1997 – direção: Bruno Barreto). Aborda a organização de movimentos clandestinos durante o regime militar. Baseado no livro de mesmo título do jornalista e político carioca Fernando Gabeira. • O quarto poder (EUA, 1998, direção: Costa-Gravas. O filme retrata em estilo de suspense o poder e a manipulação da mídia. 4. Problema ético-moral • Pulp Fiction (EUA, 1994 – direção: Quentin Tarantino). O filme retrata a banalidade da violência, colocando em pauta a perda dos valores morais na sociedade atual. • Mississipi em chamas (EUA, 1988 – direção: Alan Parker). O filme narra os problemas do racismo e da intolerância nos EUA. • Crimes e pecados (EUA, 1989 – Woody Allen). Reflexão sobre traição, desejo e culpa envolvida na relação conjugal. • A letra escarlate (EUA, 1995 – direção: Roland Joffé). O filme apresenta o problema da vergonha, do preconceito e da exclusão social, por conta do adultério de uma mulher casada (Demi Moore). FILOSOFIA90 • Eternamente Pagú (Brasil, 1987 – direção: Norma Bengell) Patrícia Galvão, a Pagú, musa dos intelectuais das décadas de 20 e 30 como sua forma de pensar, de ser e de amar, escandalizou a burguesia de sua época. • Uma verdade inconveniente (EUA, 2006 – direção: Davis Guggenhein) Documentário em que Al Gore ex-presidente dos EUA, alerta sobre as mudanças climáticas e as ameaças consequentes. 5. O homem como ser estético • Minha amada imortal (EUA, 1994 - direção: Bernard Rose) Sobre a biografia de Beethoven, além de realçar a beleza do romantismo. • Vinte dez (Brasil, 2007 – direção: Francisco César Filho e Tata Amaral) Documentário sobre o hip-hop paulista • Camille Claudel (1988 – direção: Bruno Nuytten) Filme sobre o envolvimento da escultora Camille com o escultor Auguste Rodin, suscitando, pois, um debate entre a fragilidade humana e o poder da arte 6. Religião e transcendência • Excelente documentário (legendado) “O poder do mito.” O jornalista Bill Moyers entrevista o historiador das religiões Joseph Campbell, sobre mitos, religião, mitos, simbologias etc. Um cd acompanha o livro de Leonardo Boff – Tempo de Transcendência. Excelente sugestão para ler e ouvir reflexões do teólogo sobre os sentidos e os tipos de transcendências. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 91 TEXTO COMPLEMENTAR A relação homem-mundo Edvino A. Rabuske Os seres vivos têm um princípio interno de unidade. É o princípio de sua identidade que nos faz manterem-se os mesmos através das fases da vida; e também é princípio de uma totalidade, isto é, origem das partes, de sua regeneração e de sua solidariedade. O que aqui nos interessa mais é a relação entre o ser vivo e o outro. Esta relação com o outro pertence ao ser vivo: trata-se de uma “presença”, em que tanto ele mesmo (no sentimento), quanto o outro (na percepção) podem ser para ele. No animal o fundamento dinâmico desta presença é o instinto, que se manifesta em necessidades ou carências em energias de excesso. Pelo instinto o animal está relacionado dinamicamente com elementos do seu meio-ambiente, que pertencem, como outros, à vida mesma do animal. A referência ao outro se mostra anatomicamente nos órgãos sensoriais, sexuais, motores etc. Também o animal é sujeito. Podemos definir: sujeito é um ente que se relaciona consigo enquanto se relaciona com outro. [...]. Pode-se falar dum “mundo-fechado” dos animais, fechado e pouco modificável. Quando se dá um desastre ecológico, muitas espécies de animais desaparecem, porque não consegue adaptar-se ao novo ambiente. A especialização pode ser um beco sem saída. Não se deve esquecer, que cada espécie de animais tem seu ambiente específico, que corresponde ao seu aparato instintivo. As coisas e os fatos não entram neste esquema inato não são percebidos; percebido é somente o que tem relevância biológica. Aqui os pesquisadores apresentam fenômenos interessantes (Jacob von UEXKULL). [...]. Mais conhecidas são as incríveis façanhas das abelhas da comunicação entre si e na construção de favos. O animal não percebe tudo como os homens. Só percebe o que lhe é de proveito biológico, que desencadeia uma reação instintiva. [...]. FILOSOFIA92 Considerada como operação subjetiva, é um funcionamento instintivo, inato, invariável, que lembra mais o automatismo das máquinas do que a criatividade humana. Consideremos a relação do homem com o mundo. Já afirmamos o sujeito e seu outro são correlativos. Um sujeito como tal não se torna manifesto, quando indico suas propriedades puramente “coisas” [...], mas apenas quando conheço algo sobre suas relações, os seus interesses, o ambiente de sua vida. [...]. Também devo saber o que ele ama, de que gosta, como se relaciona etc. [...]. Os outros, porém, não aparecem isolados. Aparecem num contexto que fornece o horizonte para a experiência particular. Este horizonte se chama mundo. O que concretamente fazemos, suportamos, planejamos, sentimos etc. nunca é um fato isolado. [...]. A partir deste mundo com suas múltiplas referências de significação, resulta a significação do ato correto. O mundo dum professor é diferente do mundo dum barbeiro ou do mundo dum proprietário de uma empresa de ônibus. [...]. O homem não é originalmente um sujeito puro, sem mundo e sem história. [...], nos encontramos no outro: na unidade dialética de autorrealização e hetero-realização, de autocompreensão e hétero- compreensão. [...]. A nossa existência está condicionada de diversas maneiras também no seu desenvolvimento espiritual. O que eu sou, como me experiencio e compreendo, é o resultado dum permanente intercâmbio entre mim e o meu mundo. O termo “mundo” não é tomado aqui no sentido cosmológico como a totalidade dos entes.... [...]. O conceito transcendental de Kant procura dar conta do caráter apriórico: o mundo significa para ele o “conjunto de todas as aparências” [...], isto é, a totalidade projetada a priori de todos os possíveis objetos da experiência. [...]. Ao invés desta concepção formal e estática compreendemos o mundo como a apriori concreto, pois os conteúdos da experiência entram na nossa concepção do mundo e a modificam continuamente. [...]. O mundo é a totalidade do nosso espaço de vida e o horizontede nossa compreensão. E o homem é “ser-no-mundo” – usando uma expressão de HEIDEGGER. [...]. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 1 93 A experiência humana sempre está penetrada pela compreensão racional, pela avaliação volitiva e emocional, pela recordação do passado e pela antecipação do futuro. No nosso mundo da experiência nos encontramos, antes de tudo, como homens entre homens. O ser- no-mundo é inseparável do ser-com-outros. A compreensão do mundo é social: somente pela relação com os outros homens participamos dum mundo histórico-cultural. [...]. O homem é um animal extraordinário. [...]. Por natureza o homem é um ser cultural. Não consegue viver no imediato, em virtude de não- especialização dos seus órgãos e dos seus instintos. RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 34-39. ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. 4. ed. Campinas: Papirus, 1988. ARENDT, Hannah. Da Dignidade da Política. Rio Janeiro: Relume-Dumará, 1993. ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao Discurso. 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Como todos nós sabemos, ou vamos perceber o estatuto científico da Antropologia Filosófica de fato é consolidado na modernidade, mas, é claro, as inquirições, debates e teorias antropológicas retroagem bastante; remontam-se aos gregos arcaicos. Neste sentido, vamos situar brevemente a antropologia no quadro das ciências humanas; em seguida, vamos perceber algumas divisões internas da antropologia e, em terceiro lugar, destacar a relevância e a metodologia desta disciplina. OBJETIVOS DESTA UNIDADE: Compreender a natureza e a especifidade da Antropologia Filosófica; Destacar teorias e autores fundamentais para a sistematização científica da Antropologia Filosófica; Sublinhar metodologias e técnicas mais apropriadas neste campo de pesquisa. 2 CONSTITUIÇÃO CIENTíFICA DA ANTROPOLOGIA NO OCIDENTE FILOSOFIA96 INTINERÁRIO DE ESTUDOS A particularidade da Antropologia Filosófica entre as ciências humanas; Autores importantes na história da Antropologia Filosófica; Elementos metodológicos apropriados à pesquisa em antropologia filosófica. O CAMPO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA Talvez você se pergunte: Antropologia Filosófica é mesmo ciência? Sendo considerada ciência, o que lhe assegura legitimidade? Questões como estas se tornaram prementes em tempos modernos, principalmente desde que Galileu reivindicou para qualquer produção científica séria um suporte metodológico. O que ocorre é que por um lado há os que afirmam que o método das ciências exatas e naturais é a referência fundamental para qualquer pesquisa científica; por outro, estão os que dizem que o fenômeno humano é tão singular que exige um método absolutamente diferente, portanto, específico. De acordo com Pedro Demo, o que parece razoável é uma postura intermediária, ou seja, métodos para pesquisa natural podem também servir para coisas humanas. Regras lógicas do conhecimento, por exemplo, valem para as duas esferas. Ademais, vejamos que em certas questões, estas duas áreas científicas entrecruzam-se nitidamente. A chamada medicina pública ou social leva em conta questões sociais e as condições psicológicas dos doentes; a psicologia, por sua vez, pode vincular-se em certos meios às ciências da saúde. Mais ainda: se um agrônomo, por exemplo, considera informações antropológicas sobre uma determinada comunidade da baixada ou do sertão maranhense seu trabalho, além de politicamente correto, tem maior possibilidade ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 2 97 de êxito e, reciprocamente, o sucesso da pesquisa ou atuação de um antropólogo pode ser facilitada se ele levar em conta dados agronômicos relativos aos regimes de estilos e trabalhos agrícolas de uma determinada comunidade rural daquelas mesmas regiões tomadas como exemplo. Em tese, portanto, ciências exatas e naturais e ciências sociais e humanas não se excluem mutuamente. Pelo contrário, frisamos acima que o homem é, a rigor, um objeto de pesquisa razoavelmente inteligível se tomado sob o critério da interdisciplinaridade. Não obstante, Demo (2006, p. 13) ressalve que “[...] justifica-se uma metodologia relativamente específica para as ciências humanas, porque o fenômeno humano possui componentes irredutíveis às características da realidade exata e natural.” Assim, existem particularidades que “demarcam” o campo das ciências humanas e sociais, entre elas, obviamente, a Antropologia Filosófica. Em primeiro lugar, a historicidade. Os objetos destas ciências são efetivamente históricos. “A provisoriedade processual é a marca básica da história, significando que as coisas nunca ‘são’ definitivamente, mas ‘estão’ em passagem, em transição.” (DEMO, 2006, p. 15). Isto quer dizer que um antropólogo ou um sociólogo não pode analisar como objeto estático um movimento social, uma organização sindical rural ou urbana, festas como bumba-meu-boi, do divino espírito santo, tambor de crioula: rituais religiosos. Em segundo lugar, a consciência histórica. Na esfera das ciências naturais, não se verifica nenhuma consciência nos objetos, ao passo que no mundo das ciências sociais e humanas nós fazemos história, mesmo considerando os condicionamentos. A história pode ser “feita”, isto é, nós a planejamos e a articulamos. Em terceiro lugar, ressalta-se a identidade sujeito e objeto, no sentido de quando estudamos objetos sociais e humanos estudamos, a rigor, nós mesmos. Um estudo sobre psicopatologias, exclusão social, expressões folclóricas etc. pode suscitar no pesquisador uma projeção de estar no lugar do outro (objeto de estudo). Uma situação diferente é o cientista analisando uma pedra ou uma ameba sob o microscópio. Como afirma Demo (2006, p. 16), “[...] nenhum objetopode ser totalmente estranho e exterior, porquanto é possível imaginá-lo como FILOSOFIA98 parte nossa em outras circunstâncias. Tal identidade não precisa ser confusão ou excessivo envolvimento. [...], o que se pode dizer é que tal envolvimento pode ser maior no caso dos objetos sociais.” Em quarto lugar a qualidade sobreposta à quantidade, no sentido da mensuração, não do critério primordial das ciências humanas. Isto não quer dizer menos rigor metodológico ou cuidado analítico. O que se afirma é que fenômeno como movimento social ou ritual não pode ser mensurado à semelhança de processos químicos num laboratório de Química. Em quinto lugar, o caráter ideológico está impregnado no interior das ciências humanas, isto é, no seu objeto. A ideologia pode incidir sobre as ciências naturais, porém de forma extrínseca. A análise da água em si não é ideológica. “Enquanto o cientista natural pode abstrair [...] do uso que pode fazer do conhecimento gerado, o cientista social que se coloque tal pretensão já é nisto ideológico, porquanto faz parte de suas ideologias mais baratas a pretensão de não ser ideológico.” (DEMO, 2006, p. 18). Finalmente, a dimensão da prática. Pedro Demo explica esta diferença entre ciências naturais e ciências sociais e humanas, ilustrando que o químico pode interessar-se em analisar uma molécula somente para acumular informações ou conhecimento. Ora, na sociologia como na antropologia o distanciamento para com a prática significa alienação. Lima Vaz (1993, p. 11) ressalta que na classificação de Jean Ladrière, “as ciências humanas constituem o grupo das ciências hemenêuticas, na medida em que nelas o fato (p. ex. o comportamento do indivíduo ou as aspirações do grupo) traz em si próprio interpretação e nunca se apresenta como fato neutro.” Nos parece claro, então, que cientistas naturais e cientistas sociais e humanistas se assemelham por seguirem procedimentos, critérios e metodologias exigíveis numa produção científica, mas se distinguem pelo envolvimento com fatores axiológicos específicos de cada área. O esclarecimento de Demo não deixa nenhuma dúvida: ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 2 99 O cientista natural tem seu desenvolvimento inevitável como cidadão que é: mas isto não faz parte intrínseca de seu objeto de estudo, embora faça parte extrínseca. Políticos somos todos nós, pelo simples fato de ocuparmos uma posição qualquer na sociedade, dominante ou dominada. Não precisa ser posição partidária. O cientista social tem tal imbricação no próprio objeto de estudo, com o qual em última instância se identifica (DEMO, 2006, p. 19). O TERMO, A LEGITIMIDADE E BREVES TRAÇOS HISTÓRICOS DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA A pergunta “o que é o homem?” pode se dizer que se origina de um sentimento, como diz Rabuske, de uma espécie de percepção não clara, porém abrangente e afetuosa. Podemos dizer que aquela pergunta tem as matizes da admiração clássica e da inquietação hodierna. Sófocles, em Antígona, enaltece as habilidades do homem para dominar os desafios e os inimigos. Para ele, os limites são a morte e as leis (moralidade) da pólis. Estas últimas, é claro, ele pode recusar. Com efeito, conclui o poeta: nada é mais terrível que o homem. No contexto da modernidade prevalece a inquietação, porque a posição do homem no cosmos é tanto de construir como de destruir, espantosamente de forma cada vez mais planetária e célere e por estas façanhas, inclusive, ele se torna objeto de uma pluralidade de ciências. Do ponto de vista histórico, retornemos, todavia, à Antiguidade, onde, segundo Lima Vaz, na cultura ocidental, desde seus primórdios (convencionalmente século VIII a.C. – Grécia), a interrogação fundamental “o que é o homem?” permanece impregnada nas várias expressões da cultura: mito, filosofia, ciência, religião, literatura, ethos, política etc. Da reflexão sobre o fenômeno humano decorre o fato peculiar de que ao interrogar-se sobre si mesmo o homem torna-se simultaneamente sujeito e objeto, abrindo-se, com efeito, ao mundo externo. A natureza da interrogação, considerada, particularmente, na perspectiva das tradições filosóficas – greco-romana e bíblico-cristã FILOSOFIA100 – compreende o homem como portador de razão universal e de liberdade de escolha, originando, com efeito, a Metafísica e a Ética como sublimes saberes humanos. A Antropologia Filosófica absorverá, então, estas duas expressões da razão: a teorética e a prática. Em tempos modernos, a interrogação sobre o homem adquire relevância célebre nas quatro questões de Kant: • o que posso saber? - teoria do conhecimento; • o que posso fazer? - teoria da ação ética; • o que posso esperar? - filosofia da religião; • o que é o homem? – antropologia filosófica. Observemos que, desde os fins do século XVIII, as questões sobre o homem se complexificaram com o advento das ciências do homem e da biologia humana e de novas disciplinas que abordam sobre o homem de alguma forma. Por isso, exigiu-se um estatuto próprio para a Antropologia enquanto disciplina específica e depois sua correlação com as demais ciências. A questão sobre o homem na modernidade retesou-se entre a tendência naturalista e a culturalista. A primeira representada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, e o biólogo compreende que o homem deve ser explicado a partir da sua natureza material; a segunda assumida, sobretudo, pelo filósofo Wilhelm Dilthey, assegura a necessidade de separar no homem os aspectos natural e cultural, daí advém, consequentemente, a separação entre as ciências da cultura (espírito) e as da natureza. Assim, a compreensão de homem estende-se entre os polos da cultura e da natureza. Vejamos então que esta situação problemática do homem aponta pelo menos duas tarefas básicas para a Antropologia Filosófica: a) elaboração de uma ideia de homem que considere tanto temas e questões permanentes ao longo da história da filosofia como as contribuições recentes fornecidas pelas ciências do homem; b) sitematização filosófica dessa ideia de homem, na intenção de constituir uma ontologia humana que possa responder à questão essencial: “O que é o homem?” ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 2 101 A fase atual de conhecimentos, diante da complexidade de saberes que envolvem o homem-objeto e, consequentemente, suscita uma variedade de abordagens sobre o homem confluídas naquela pergunta “o que é o homem”? A Antropologia Filosófica assume o desafio de sistematizar e sintetizar as diversas explicações sobre o homem, buscando constituir, enfim, o discurso filosófico sobre o homem ou, de outro modo, um discurso antropológico de teor ontológico. De acordo com Lima Vaz, em nossos tempos se ampliaram os paradigmas, ou melhor, as orientações epistemológicas, à luz das quais se elaboram, desenham-se ou “formatam-se” as imagens do homem. Da perspectiva da formas simbólicas, localizam-se as ciências da cultura; da perspectiva da subjetividade, as ciências do indivíduo e do agir individual e sócio-histórico, e da perspectiva da natureza as ciências naturais do homem. A escolha de uma destas perspectivas implica, consequentemente, a escolha do método científico correspondente: culturalista e dialético ou fenomenológico – ciências hermenêuticas; e naturalista – ciências naturais. Lima Vaz (1993, p. 13) resume da seguinte maneira: Uma Antropologia integral deve tentar uma articulação entre esses três polos que não ceda ao reducionismo e não se contente com simples justaposição, mas proceda dialeticamente, integrando os três polos da natureza, do sujeito e da forma na unidade das categorias fundamentais do discurso filosóficosobre o homem. Convém ressaltar, entretanto, que na filosofia existem duas fontes das quais ela recebe seus problemas: a experiência natural e a ciência cujas compreensões são, respectivamente, pré-compreensiva e compreensiva. Mas na Antropologia Filosófica, essas duas fontes confluem no homem que é ao mesmo tempo sujeito e objeto na interrogação antropológica. Interessante realçar ainda que na esfera das ciências naturais, incluem- se os problemas de gênese e estrutura. No primeiro caso, “a questão fundamental gira em torno da possibilidade de se alcançar uma compreensão adequada da essência do homem seguindo-se a linha dessa sua derivação natural.” (VAZ, 1991, p. 14). No segundo, trata- se do clássico problema da estrutura dupla do homem: alma e corpo. FILOSOFIA102 Na esfera das ciências hermenêuticas, lugar das ciências humanas, localiza-se, obviamente, a Antropologia Filosófica e seus problemas fundamentais. Pelo menos cinco deles, são os seguintes: a) cultura. Para Hegel, é o campo do espírito objetivo; para Cassirer das formas simbólicas. Abre-se o debate entre o entendimento das formas enquanto expressões humanas do mundo e de si mesmo ou do sujeito como “genitor” intencional das formas. Tomando a ótica das formas, relevam-se a origem e a evolução da cultura como reflexos do homem ou a originalidade da cultura enquanto oposta ao mundo natural. b) sociedade. Considerando o desenvolvimento das ciências sociais e econômicas desde o século XIX e as mudanças na sociedade ocidental, desde a guinada da modernidade, impõem-se problemas relativos às estruturas sociais, às inter-relações e ao trabalho, desembocando, inclusive, em reducionismos como o econômico em Marx; c) psiquismo. Entre os séculos XIX e XX formalizaram-se e desenvolveram-se as ciências psicológicas e a estas somaram-se as ciências da linguagem, no interior das quais movimenta-se o debate sobre o conceito de homem dotado de razão e corpo; d) histórico. Trata-se da historicidade do homem, isto é, sua natureza e seu destino, sempre presente nas reflexões filosóficas da Antropologia. Nesta perspectiva, elementos como tempo histórico e tempo físico, origem e meta da história, história como evento e história como narração, incrementam a especificidade da discussão. e) ethos. É a dimensão que abrange ações individual e social, presentes na normatividade e no dever-ser. “Sendo co- extensivo à cultura, o ethos é objeto, desde os inícios da história da filosofia ocidental, de saberes específicos: a Ética, tendo por objeto o agir individual e o Direito e a Política, o agir social.” (VAZ, 1991, p. 17). Assim, o campo ou a esfera das ciências do homem é lugar privilegiado para a apresentação de antigos e atuais problemas antropológicos, tematizados, debatidos e sistematizados abertamente à luz da reflexão filosófica. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 2 103 Battista Mondin (1980, p. 6) retoma uma interessante observação de Max Scheler, sobre a importância da Antropologia Filosófica que diz o seguinte: É uma ciência fundamental acerca da essência e da estrutura eidética do homem; sua relação com os reinos da natureza [...] e com o princípio de todas as coisas; da sua origem essencial metafísica e ao seu início físico, psíquico e espiritual do mundo; das forças e potências que agem sobre ele e aquelas sobre as quais ele age; das direções e das leis fundamentais do seu desenvolvimento biológico, psíquico, espiritual e social, consideradas nas suas possibilidades e realidades essenciais. Pedro Dalle Nogare chama atenção para uma observação de Jean- Paul Sartre, na qual este diz que “é humanista, filosoficamente, toda doutrina que atribui ao homem algo de característico, de específico em relação aos outros seres do universo.” (NOGARE, 1978, p. 14). Neste sentido, é que o humanista alemão Otto Casman, em 1596, numa obra intitulada Psychologia anthopologica propõe um estudo sobre a alma e corpo do homem. O termo “antropologia” consolidou, entretanto, somente no final século XVII, precisamente em 1798, quando Kant entendeu-o como “uma doutrina do conhecimento do homem ordenada e sistematicamente,” num tempo em que, efetivamente, já se havia transitado dos paradigmas clássico-medievais para os modernos. Para o antropólogo brasileiro Mércio Gomes, a Antropologia enquanto ciência é fruto do contexto fértil do Iluminismo, quando Filosofia favorece especulações sobre o homem e suas alternativas de ser e agir. O autor faz, neste sentido, uma importante reflexão: Apesar de sua etimologia [anthropos = homem; logia/ logos = razão, lógica, estudo; – literalmente, estudo sobre o homem] não foram os geniais gregos criadores da filosofia que inventaram a Antropologia. Eles se consideravam tão superiores aos povos e nações vizinhos, seus contemporâneos, a quem chamavam de ‘bárbaros’, que mal tinham olhos para os ver e os apreciar. Para surgir a Antropologia [...] seria preciso um tempo de dúvidas e ao mesmo tempo de abertura ao reconhecimento do valor próprio de outras culturas. Tal tempo só surgiria depois, quando a Europa [...] pôde assim olhar e conceber outros povos, ao menos teoricamente, como variedades da humanidade, cada qual com seus próprios valores e significados (GOMES, 2009, p. 11). FILOSOFIA104 A partir de então, seguiu-se uma série de autores, sobretudo, desde o século passado, focados em problemas humanistas ou imagens do homem. Entre outras pode se destacar as seguintes: • o homem econômico: Karl Marx • o homem instintivo: Sigmund Freud • o homem angustiado: Sören Kierkegaard • o homem ex-istente: Martin Heidegger • o homem falível: Paul Ricoeur • o homem hemenêutico: Georgs Gadamer • o homem cultural: Arnold Gehlen • o homem religioso: Thomas Luckmann. Não obstante as abordagens em torno do homem que se estendem desde a Grécia arcaica, a estrutura da antropologia enquanto ciência é recente e, de modo geral, estas imagens do homem ajustam-se em três segmentos ou orientações antropológicas: a) antropologia física – estudo físico-somático do homem. Esta abordagem pretende, inicialmente, apresentar uma tipologia das raças, para isso lançava mão de procedimentos antropométricos tais como craniometria e osteometria e métodos fisiológicos, análise sanguínea, por exemplo. Nesta categoria podemos localizar também a Antropologia Biológica que para Mércio pretende entender a ordem escalar da evolução humana e o quanto de animal (natural, orgânico) permanece no homem atual. b) antropologia cultural – estudo sobre o homem numa perspectiva histórica. “O objeto próprio é a pesquisa particular, com vistas à conexão interna de suas dimensões (sistema de parentesco, direito, religião, técnica, forma de economia etc.).”(RABUSKE, 2001, p. 15). É importante notar que as antropologias supracitadas incluem a Arqueologia, a Linguística e a Etnologia que, por sua vez, engloba ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 2 105 a Etnografia e a Antropologia Social. A Arqueologia, ligada à Antropologia Física, analisa uma cultura antepassada através de vestígios deixados em objetos, moradias, artes etc. Escavação é uma das técnicas mais usadas nesse tipo de pesquisa; a Linguística volta-se para a compreensão do sistema linguístico de povo e, por extensão, axiomas, costumes, regras etc., e a Etnologia, como o termo induz, analisa ou estuda a identidade de um povo em seus vários aspectos, sobretudo o cultural. O método comparativo é comum neste tipo de pesquisa. c) antropologia filosófica – reflexões sobre os princípios essenciais e últimos do homem. É este enfoque que sem desconsiderar aspectos particularestoma o homem numa perspectiva globalizante. Todavia, não seria supérflua uma disciplina filosófica que trata especificamente do homem? A antropologia experimental e as disciplinas científicas não são suficientes para conhecer o homem? Ora, a legitimidade da antropologia filosófica justifica-se porque as disciplinas científicas apresentam visões parciais e superficiais do homem. Por sua vez o filósofo, por que é filósofo, se empenha em buscar uma resposta total, completa, exaustiva, última, uma resposta em condições de esclarecer plenamente o que seja o homem tomado globalmente, em seu todo, o que ele efetivamente além e sob as aparências, o que seja em si mesmo afora as diferenças causadas pelo ambiente, pela idade, pela educação, pelo sexo (MONDIN, 1980, 14). Ou na explicação de Rabuske (2001, p. 17): [...] as ciências particulares pressupõem uma pré- compreensão do que é o homem. Só assim o conhecimento empírico-particular pode selecionar o que é antropologicamente relevante. Portanto, as ciências particulares não oferecem um ponto de partida filosoficamente legítimo para a Antropologia Filosófica.” [grifos do autor]. FILOSOFIA106 AS qUESTõES DO ESTATUTO E DA METODOLOGIA NA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA Dilthey distingue, segundo Mondin, os conceitos de explicar (erklären) e compreender (versterhen), no interior dos debates filosóficos. Assim, a compreensão histórica do homem contrapõe-se à explicação física dos fenômenos. De fato, enquanto a natureza é explicada, a vida é compreendida; com efeito, antropologia filosófica é fundamentalmente um saber explicativo e, por isso, o estatuto epistemológico científico dessa disciplina distancia-se do da ciência e assemelha-se aos da religião e da história. Ora, o problema epistemológico da Antropologia conduz imediatamente à questão do método. Mondin ressalta que o objeto da Antropologia Filosófica, o homem, pode ser enfocado por paradigmas diferentes, isto é, por métodos como o empírico-formal, o dialético, fenomenológico assumido por Husserl; o existencialista por Heidegger e demais autores existencialistas; o hermenêutico por Ricoeur; o transcendental por Marcel; o estrutural por Lévi-Strauss; Entretanto, se concordarmos com Mondin (1980, p. 16), a antropologia exige, a rigor, um método complexo que incluiu os estágios fenomenológico e transcendental. “Na fase fenomenológica se recolhem os dados relativos ao ser do homem, na fase transcendental se busca revelar o significado desses últimos dados, o significado profundo que lhes dá um sentido e os torna possíveis.” Rabuske diz a mesma coisa de outra maneira: O fenômeno como aquilo que se mostra já que sempre é interpretado a partir dum horizonte. Por isto uma fenomenologia que compreende sua própria essência deve retornar às condições prévias, deve perguntar de modo transcendental pelas condições de sua própria possibilidade. A reflexão transcendental exige um ponto de partida fenomenológico: algo perguntado, que mostra como condicionado e exige a pergunta por sua condição (RABUSKE, 2001, p. 17-18). Destarte da perspectiva da fenomenologia, mesmo quando a antropologia busca compreender objetivamente o fenômeno humano, sua objetivação à diferença das ciências experimentais não pretende ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 2 107 mensurar, controlar e manipular, mas busca compreender as interpretações, o pensamento sobre o objeto em pesquisa. Há neste sentido uma coligação com o método transcendental, haja vista que este “move-se a partir dos fenômenos e os estuda profundamente com a finalidade de descobrir as raízes últimas. No caso do homem, ele busca uma justificação última de todos os seus comportamentos, inferindo as condições que os tornam possíveis.” (MONDIN, 1980, p. 17). CONCLUSÃO Daquilo que explicitamos nesta unidade, as ciências humanas, inclusive a Antropologia Filosófica, precisam, por conta da exigência acadêmica de praxe, orientar suas pesquisas por regras metodológicas, considerando, obviamente, os limites dos métodos e a especificidade científica. As ciências humanas, conforme Pedro Demo, se caracterizam basicamente pela historicidade, consciência histórica, sobreposição da qualidade sobre a quantidade, ideologia e prática. Ademais, os cientistas se orientam por axiologias cientificamente particulares, isto porque todos somos políticos à medida de nossas posturas sociais. A antropologia Filosófica consolidada desde Kant em 1798, enquanto conhecimento sistemático sobre o homem, assume hoje o desafio de considerar simultaneamente a pluriversalidade de saberes sobre o homem e a escusa aos reducionismos. De fato, a Antropologia consagrou-se, conforme Mércio Gomes, quando pensadores reconheceram a diversidade de culturas e, com efeito, interpretações variadas de homem: econômico (Marx), instintivo (Freud), angustiado (Kierkegaard), cultural (Gehlen), religioso (Luckman). Enfim, como percebemos, o objeto da Antropologia Filosófica, o homem, pode ser visualizado por ângulos diversos, logo utiliza- se métodos diferentes: fenomenológico (Husserl), existencialista (Heidegger/Sartre), hermenêutico (Ricoeur), estruturalista (Lévi- Strauss). FILOSOFIA108 Destaque alguns caracteres específicos da esfera das ciências sociais e humanas. Seja a interrogação fundamental “o que é o homem?”, ou a eterna recomendação socrática “conhece-te a ti mesmo”, constitui compromisso básico da Antropologia Filosófica. Discuta e discorra brevemente sobre este desafio antropológico. Entre os problemas de alçada da Antropologia Filosófica, estão os da cultura, da sociedade, do psiquismo, da história e do ethos. Descreva brevemente o sentido de cada um deles. Que tipos metodológicos são apropriados à pesquisa antropológica? 4 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 2 109 TEXTO COMPLEMENTAR Legitimidade da Antropologia Filosófica Battista Mondin Até que Kant não pôs em dúvida a possibilidade de uma investigação metafísica das coisas, não havia aparecido uma suspeita sobre a legitimidade de um estudo do homem de caráter filosófico. Hoje, depois do empurrão dado pelo autor da Crítica da Razão Pura, na especulação sobre a “coisa em si”, esta legitimidade não é mais tida como dada. Antes muitos se perguntam se a investigação filosófica do homem não é supérflua; se não bastam as disciplinas científicas, as várias antropologias experimentais para fazer-nos conhecer quem é o homem. A essa pergunta muitos estudiosos responderam que não basta reivindicar a legitimidade da antropologia filosófica, seja quando a filosofia venha a ser concebida como disciplina aporética ou como disciplina teórica. No primeiro caso, a antropologia filosófica se propõe desmarcar a autossuficiência do saber científico e mostra que a realidade humana traz problemas que a razão de per si não consegue resolver. No segundo caso, ela tem por objetivo o levar avante e completar o conhecimento do homem empreendido mas desenvolvido apenas setorialmente pelas várias ciências. Com efeito, cada uma das disciplinas científicas nos oferece só um conhecimento parcial e superficial do homem. Nenhuma abarca o quadro completo e nenhuma se propõe responder à pergunta: “Quem é o homem enquanto tal?” É certo que também o biólogo, o fisiólogo, o médico, o antropólogo, o historiador interrogam-se a respeito do homem. Mas nenhum deles tem a pretensão de dar uma resposta completa. Por sua vez o filósofo, justamente porque é filósofo, se empenha em buscar uma resposta total, completa, exaustiva, última, uma resposta em condições de esclarecer plenamente, em seu todo, o que ele seja efetivamente além e sob as aparências, o que sejaem si mesmo afora as diferenças causadas pelo ambiente, pela idade, pela educação e pelo sexo. FILOSOFIA110 “O homem nos interessa na sua totalidade, não por esse ou aquele de seus aspectos. As ciências especializadas (antropologia, linguística, fisiológica, medicina, psicologia, economia, ciências políticas), malgrado os seus esforços, tendem a limitar a totalidade do indivíduo, considerando-o do ponto de vista de uma função ou de um impulso particular. O nosso conhecimento do homem resulta fragmentado: muito frequentemente tomamos uma parte pelo todo. É esse erro que nos propomos evitar” Portanto, existe lugar para uma pesquisa diferente, independente da científica, de caráter filosófico, que tem por objetivo responder à questão: “quem é o homem?”. MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? 5. ed. São Paulo: Paulinas, 1980, 13-14. DEMO, Pedro. Introdução à Metodologia da Ciência. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. GRECETHUYSEN, Bernad. Antropologia Filosófica. Lisboa: Presença, s/d. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007. MONDIN, Battista. O Homem, quem é ele? São Paulo: Paulinas, 1980. PELTO, Perti J. Iniciação ao Estudo da Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. RABUSKE, Edvino R. Antropologia Filosófica. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001. VAZ, H. C. de Lima. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola: 1991. UNIDADE CONCEPÇõES ANTROPOLÓGICAS À LUZ DA FILOSOFIA NO OCIDENTE OBJETIVOS DESTA UNIDADE: Explicitar as etapas e os esforços principais pelos quais perpassou o processo de construção científica da Antropologia Filosófica; Destacar contribuições decisivas para compreensão universal de homem; Demarcar caracteres que explicam o homem em suas diversas fases históricas; Analisar o permanente desafio antropológico diante da ininterrupta complexidade humana. 3 PALAVRA INICIAL... Caro estudante, Esta terceira unidade é relevante, porque poderemos acompanhar, ainda que com certos limites, compreensões antropológicas retesadas entre os gregos arcaicos e os nossos tempos. Seguindo basicamente as primorosas reflexões do filósofo brasileiro Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz na sua valiosa obra Antropologia Filosófica (2 vol.), de 1993, poderemos perceber com nitidez as diversas interpretações, por conseguinte, as multifaces pelas quais o homem vem denotado ao longo dessa trajetória histórica, cerca de 29 séculos. No mundo arcaico, Lima Vaz ressalta o homem – esse animal que fala e é político, tensionado entre a imanência e a transcendência: distinto essencialmente dos deuses; situado num cosmos que lhe é superior e paradoxal porque composto de alma e corpo. Ora, os sofistas em vez dessa compreensão cosmológica, definirão o homem a partir de suas realidades naturais e sociopolíticas, estas últimas caracterizadas pelas convencionalidades. 112 FILOSOFIA A guinada socrática, demarcada pela crítica aos sofistas, privilegia a essência íntima do homem (o daimon socrático), cuja preocupação principal é a alma: sede de toda sabedoria e virtuosidades. A filosofia de Platão substancializa definitivamente a sobreposição da vida da alma às demais experiências humanas. Embora mais realista que o mestre, porque afirma a inerência da natureza, da política e da paixão, Aristóteles, ratifica, contudo, a superioridade da alma e da vida contemplativa, como está explicito no Livro X da sua Ética a Nicômacos. Nos séculos posteriores entre a Patrística e a Idade Média, encontramos repercussões das teorias dos três mestres gregos, agora, porém, dialetizadas com a incidência da Revelação. A filosofia e a Bíblia, a razão e a fé provocam debates e polêmicas acaloradas. A rigor, entretanto, o significado de homem, dessa época de certo modo teocêntrica, pode ser resumido, grosso modo, na frase de Agostinho: O homem é um itinerante para Deus. Um novo homem se manifesta na modernidade que começa se esboçar no final do século XII e se consolida finalmente nos século XVIII e XIX, um tempo assinalado pela antropologia pluralista. A concepção moderna de homem enraíza-se no humanismo renascentista dos fins do século XIII até o século XV, quando a ação em lugar da contemplação, identidade na diferença em lugar da ideia de igualdade e a concepção mecanicista da realidade. Francisco Petrasca, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Bartolomeu de las Casas, Pico de Mirândola, Maquiavel, entre outros, são intelectuais envolvidos nessa transição que desembocará no racionalismo de Descartes onde o homem está traçado entre a subjetividade do espírito (res cogitans) e a mecânica corpórea (res extensa). Pascal nessa época compara o cosmo - infinitamente grande e o homem – o infinitamente pequeno, cuja grandeza está basicamente na moralidade. A antropologia moderna adquire contornos indeléveis com a Ilustração no século XVIII, quando sob as luzes da razão e do progresso pautam-se em temas como humanismo, civilização, progresso e revolução. Neste contexto, Hobbes explica a passagem do estado de natureza ao estado civil. Entretanto, o Idealismo na Alemanha, numa crítica aberta ao racionalismo, realça as sensibilidades e as paixões humanas e Rousseau, por sua vez, afirma que a cultura ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 113 degenera valores humanos e a propriedade privada é a matriz das injustiças espraiadas na civilização. Ainda neste cenário moderno, nos fins do século XVIII, Kant escreve um texto sobre antropologia no qual ressalta as dimensões histórica, política e pedagógica e no interior destas a educação, a política e a liberdade civil. Hegel, como perceberemos, afirma que o homem é matéria, forma e figura, portanto, objeto, respectivamente, da antropologia, da fenomenologia e da psicologia. No caminho para a contemporaneidade, vamos nos deparar com as reflexões dos pós-hegelianos Feuerbach e Marx. Inspirado no materialismo feuerbachiano – para o qual tudo restringe-se à materialidade, Marx localiza a dialética de Hegel nas condições econômico-políticas nas quais o homem produz sua sobrevivência. Ele é crítico radical do capitalismo, porque é essencialmente desumanizante, portanto, absolutamente incompatível com a emancipação humana. Esta depende decisivamente da superação das alienações social e espiritual e, em seguida, de uma guerra intensa contra o capitalismo e seus aliados, entre eles, a ciência, o Estado e a religião. Este horizonte de pensamentos descortina, obviamente, interpretações pluridimensionais do homem em tempos contemporâneos. Várias correntes, teorias e autores o focalizam pelos mais diversos ângulos, constatando, com efeito, aquilo que disse Heidegger: nenhuma outra época como a nossa teve tantas informações sobre o homem, porém, nenhuma outra, igualmente, soube menos sobre o homem que a atual, realçando, pois, o alto nível de complexidade humana, justamente porque se raramente na natureza um dado ou uma ocorrência se evidencia totalmente, quanto mais o fenômeno humano que, como afirmou Pascal, transcende infinitamente a si mesmo. Assim, caro estudante, o que veremos a seguir são pontos de vista sobre o homem que, para repetir, nunca se revela suficientemente sob um ponto de vista. 114 FILOSOFIA ITINERÁRIO DE ESTUDOS Concepções de homem na Grécia arcaica, na Sofística e na Grécia clássica de Sócrates, Platão e Aristóteles; O conceito de homem na Patrística e na Idade Média; Interpretações e comparações antropológicas na Modernidade, passando pela Renascença e pela Ilustração; Reflexões sobre a compreensão pluriversal do homem contemporâneo.A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DE HOMEM O homem na Grécia arcaica As bases da compreensão antropológica expressas na filosofia clássica remontam-nos principalmente à cultura grega arcaica florescida entre os séculos VIII e VII antes de Cristo. Conforme Lima Vaz, (1991, p. 27), “a cultura clássica elabora uma imagem de homem no qual são postos em relevo dois traços fundamentais: o homem com o animal que fala e discorre (zoôn logikón) e o homem como animal político (zoôn politikón)”. Enquanto dotado de logos o homem pode entrar numa relação de consenso com seu semelhante e instituir a comunidade política. Ora, esta vida política (bios politikós) – que traduz a excelência da vida humana conforme a concepção clássica se exerce mediante a livre submissão ao logos codificado em leis justas (nomoi). Por outro lado, o homem discursivo e o homem político, traduzem duas específicas atividades humanas: respectivamente contemplação (theoria), ação moral e político (práxis). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 115 A imagem do homem na Grécia Arcaica, tem, pelo menos, três níveis fundamentais. Teológico ou religioso Refere-se à nítida separação entre o mundo dos deuses (theoí) e mundo dos humanos mortais (thanatoí). Os homens são efêmeros e infelizes, os deuses imortais e bem-aventurados. Quando eventualmente homens ousam assemelhar-se aos deuses, estes os respondem com o decreto do destino implacável (moira). Daí as sentenças sapienciais: “conhece- te a ti mesmo” e “nada em excesso.” Cosmológico Implica a contemplação diante da natureza sistematicamente ordenada. Assinala-se uma admiração (thauma) pela ordem e beleza que fazem do universo visível todo bem adornado (kosmos). Além disso, propugna- se uma homologia entre a ordem da natureza (physis) e a ordem da cidade (polis) norteada por leis justas. Todavia, esta compreensão cosmológica de mundo cruza-se com a teológica mediante o conceito de necessidade (anánke), que submete homens e deuses. Ora, conciliar esta necessidade cósmica com a necessidade humana será um desafio permanente para a filosofia. Antropológico A condição humana é expressa na oposição entre o apolíneo e o dionisíaco, como explicitam Ésquilo nas Eunêmidas e Eurípedes nas Bacantes. O apolíneo é a dimensão ordenadora que orienta para a claridade o pensar e o agir humanos. O dionisíaco representa o lado 116 FILOSOFIA turvo ou terreno (ctônico), onde prevalecem as forças do eros, do desejo e da paixão. Ora, esta concepção desencadeará a “eterna” discussão ocidental entre alma e corpo e os destinos consequentes na assunção de uma das posturas. É interessante ressaltar ainda que do ponto de vista sociopolítico na visão da Grécia arcaica, a “excelência” – virtude (arete) demarca primeiramente o homem guerreiro e depois o herói fundador da cidade. Depois, essa ideia de areté transfere-se para a figura do sábio (sophós), no momento em que se organizam as formas democrática e participativa da sociedade. Neste contexto, o conceito de areté estende-se ao conceito de justiça (dikê), de modo que em vez do herói fundador, celebram-se os heróis legisladores (nomotéthes), tais como Sólon, Péricles etc. Enfim, convém dizer que o homem grego arcaico está acima de tudo submetido ao destino em dois sentidos. Primeiro um pessimismo radical, pelo qual o homem encontra-se frágil e desamparado, e depois o moralismo fundado na responsabilidade pessoal, pela qual imputa- se o mérito ou demérito de sua escolha. A antropologia sofística No século V a.C., em Atenas, o pensamento antropológico alcança seu pleno desenvolvimento, porque os Sofistas tomaram o problema da cultura (paideia) como mais importante da filosofia. De fato, sophistês designa saber teórico e habilidades práticas, revelando, pois, o homem e suas competências como objeto principal da filosofia. Dentre outras diretrizes da ilustração sofística ateniense, podemos destacar as seguintes: • o conceito de natureza humana (anthropinê physis) com seus atributos e exigências próprias; • oposição entre convenção (nomos) e a natureza (physis) na organização da polis e nas normas do agir subjetivo, originando, assim, teorias do convencionalismo jurídico; ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 117 • individualismo relativista como reflexo das primeiras articulações ceticistas em relação à verdade; • compreensão de homem como de necessidade e carência e, portanto, responsável pelo suprimento cultural daquelas deficiências naturais; • ideia de homem dotado de logos - palavra e discurso, por isso capaz de demonstrar e convencer. A transição socrática Segundo o helenista Werner Jaeger, a concepção filosófica de Sócrates exerce uma influência decisiva sobre o pensamento antropológico ocidental, uma vez que, situado no centro da crise ateniense do século V, ele pensa o homem a partir da essência interior, ou seja, a alma (psyché). Na visão socrática, o “humano” só tem sentido e explicação se referido a um princípio interior ou a uma dimensão de interioridade presente em cada homem e que ele designou justamente com o antigo termo de “alma” (psyché), mas dando-lhe uma significação essencialmente nova e propriamente socrática (VAZ, 1991, p. 34). E o que é a alma para Sócrates? É a sede da arete (virtude), pela qual o homem escolhe o justo ou o injusto; e isto implica a grandeza humana. Introduz-se a ideia de personalidade moral que irá embasar concepções da Ética e do Direito de nossa civilização. Entre outros aspectos antropológicos socráticos, convém destacar, seguindo Lima Vaz, os seguintes: • teleologia do bem e do melhor como necessários à compreensão de homem; • valorização do indivíduo expressa na fórmula “conhece-te a ti mesmo”, resultando na cura e zelo pela alma através da ironia, indução e maiêutica; 118 FILOSOFIA • primazia da intelectualidade humana ao exaltar o lógos como fonte da virtude-ciência projetada para o finalismo moral. Antropologia platônica A filosofia de Platão é indiscutivelmente marcante na concepção ou na imagem do homem em nossa civilização. Basta lembrar que, historicamente, quando se aborda qualquer aspecto ou dimensão humana, atualiza-se Platão de alguma maneira. Tem razão Lima Vaz (1991, p. 36) quando afirma: A antropologia platônica pode ser considerada uma síntese na qual se fundem a tradição pré-socrática da relação do homem com o kosmos, a tradição sofística do homem como ser de cultura (paideia) destinado à vida política, e a herança dominante de Sócrates do “homem interior” e da alma (psyché). O homem platônico tensiona-se, pois, entre a vida da alma e a vida terrena. Grecethuysen (s/d, p. 38) afirma que em Platão “o problema humano não se coloca a partir do homem como tal, mas por um lado, da alma, da experiência que o homem tem da sua alma ao filosofar, e, por outro, do Estado, dos fins que o legislador tem em vista.” Além disso, o logos (Apologia, Críton, Menon, Fédon), sob a luz da Teoria das Ideias, reflete o destino, reminiscência e purificação da alma; noutro polo, pensa-se o eros como representação da pulsão amorosa a dimensão do corpo e da beleza sensitiva. O Banquete as unifica na tese da contemplação do Bem absoluto. Na República (IV), a tese da alma dividida racional, irascível e concupiscível e respectivamente orientada pelas virtudes sabedoria, coragem e moderação transpõe-se para o campo da paideia na medida que a formação do indivíduo para a vida política justa pretende unir eros e logos através contemplação das ideias do Belo e do Bem. Platão ressalta, no Timeu, por outro lado, que embora o homem seja duplo pela conjunção decorpo e alma, prevalece, contudo, o finalismo inteligível próprio da alma racional. Platão Fonte: http://www.google.com.br Sócrates Fonte: http://www.google.com.br ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 119 Enfim, ressalta Lima Vaz, em vários dos seus Diálogos célebres, Platão enfoca temas humanos, influenciando, definitivamente, a imagem de homem em nossa civilização: • logos verdadeiro e destino/imortalidade da alma (Críton, Fédon); • educação e formação política (República); • desejo amoroso/estética e movimento da alma (Banquete, Fedro); • lugar do homem no cosmos (Timeu e Leis-X); • relação do homem com o divino (Fédon, Leis). Antropologia aristotélica Não obstante a influência de Sócrates, Platão e Sofistas, a antropologia aristotélica enquanto “filosofia das coisas humanas”, cujo enfoque centra-se entre a investigação sobre a natureza à qual o homem se insere à ciência das coisas primeiras e divinas à qual o homem pode elevar-se. Há uma distinção considerável que Grecethuysen (s/d, p. 50-51) ressalta entre as antropologias de Platão e Aristóteles. Vejamos: No mundo platônico, o homem não se confina no seu próprio mundo. Não podia aí permanecer; esse mundo não lhe oferecia uma pátria; aí só podia perder-se ou esforçar-se por ultrapassá-lo. No mundo aristotélico, pelo contrário, o homem sente que habita em si. As coisas falam aí sua língua, a língua que ele compreende; as palavras revestem um sentido no contato com as coisas. [...]. Em Aristóteles, efetiva-se o retorno do homem a si próprio. O homem torna-se algo de positivo. Lima Vaz demarca a antropologia aristotélica assinalando o seguinte: O centro da concepção aristotélica de homem é, assim, a physis, mas animada pelo dinamismo teleológico da forma (entelécheia) que lhe é imanente, e que, como forma ou eidos, é o seu núcleo inteligível. Aristóteles transpõe desta sorte para o horizonte da physis o telos 120 FILOSOFIA ou o fim do ser e do agir do homem, que Platão situara no horizonte do mundo ideal. [...]. Aristóteles celebra também no homem a capacidade de passar além das fronteiras do seu lugar no mundo e elevar-se, pela theoría, à contemplação das realidades transcendentes e eternas.” [grifos do autor] (VAZ, 1991, p. 39). Seguindo Lima Vaz, podem-se destacar os seguintes traços fundamentais do homem em Aristóteles: • homem biopsíquico. Como os demais seres, o homem compõe-se de psyché e soma (alma e corpo), sendo a alma perfeição e, logo, definição do corpo organizado; • homem como zôon ligikón, uma vez que distingue-se pela sua racionalidade; dotado de logos o homem não é, pois, meramente um “ser natural.” Neste sentido, destacam-se três aspectos: primeiro, enquanto psyché o homem eleva sua atividade intelectual (nous) acima dos sentidos; segundo, finalismo explícito no saber objetivizado seja na contemplação (theoría) – busca da verdade: Física, Matemática e Teologia; ação (práxis) – busca do bem ou da virtude: Ética e Política e fabricação (poíesis) – artificialidades prazerosas como a linguagem na Poética e Retórica; e terceiro, os processos formais como na ciência lógica em que a codificação da forma do pensamento implica tradução simbólica do saber científico. Portanto, ressalta Lima Vaz (1981, p.40), reportando-se a Eric Weil (L’Anthropologie d’Aristote),“que enquanto ser dotado de logos (da fala e do discurso), o homem transcende de alguma maneira a natureza e não pode ser considerado simplesmente um ser ‘natural’”. • homem ético-político. Como sistematizador da Ética e da Política ocidentais, Aristóteles atrela a racionalidade humana à polis, onde se exercem virtudes herdadas ou adquiridas. Na ética e na política se manifesta a finalidade do homem. Referindo-se a Aristóteles, Lima afirma que “o homem tal como ele considerava na sua expressão acabada, isto é, o homem helênico, é essencialmente destinado à vida em comum na polis e somente aí se realiza como ser racional.” (VAZ, 1981, p. 42). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 121 • homem passional e desejante. Aspectos incluídos tanto na psyché, sede das paixões (pathê), e desejo (órexis), como na própria ação “irracional” que intervém na ética, na política e no fazer humano. Há que se dizer, enfim, que indiscutivelmente a antropologia aristotélica é um dos fundamentos da compreensão de homem no mundo ocidental, uma vez que problemas e categorias humanas, embora abordadas por ela, ainda que no contexto do mundo grego do seu tempo, repercutem nas reflexões filosóficas sobre o homem desde então. CONCEPÇÃO BíBLICA E PATRíSTICA DE HOMEM Convém ressaltar, inicialmente, que duplos temas gregos clássicos como o homem e o divino, o homem e o universo, o homem e o destino etc. aparecem também na antropologia bíblica, porém, neste caso, à luz da linguagem religiosa da revelação, supondo-se, com efeito, uma origem transcendente ao homem. No Antigo Testamento, a tese da imago Dei – o homem considerado como imagem de Deus, é o ponto central da antropologia veterotestamentária, porque de acordo com Mondin o homem, por assemelhar-se ao criador, é o ápice da criação e depois é o representante de Deus no universo e o governante principal do que é criado. Em que consistiria então a imago Dei? Segundo a maioria dos intérpretes antigos e modernos, a semelhança resulta da capacidade de o homem agir como Deus; como Deus, cria e ordena o mundo, assim o cultiva e o governa. Por isso a semelhança não está em nível antológico, mas dinâmico; não está no ser, mas no agir (MONDIN, 1982, p. 94). “A concepção cristão-medieval do homem procede, assim, de duas fontes: a tradição bíblica, vetero e neotestamentária, e a tradição filosófica grega.” (1982, p. 59). De fato, num importantíssimo texto sobre este cruzamento, Jaeger afirma: 122 FILOSOFIA Desde o despertar da consciência histórica moderna, na segunda metade do século XVIII, que os estudiosos teológicos estão cientes [...] de que, entre os fatores que determinaram a forma final da tradição cristã, a civilização grega exerceu uma profunda influência na mente cristã. [...]. Com a língua grega, todo um mundo de conceitos, categorias de pensamento, metáforas herdadas e sutis conotações de sentido entra no pensamento cristão. [...]. É claro que este processo da cristianização do mundo de língua grega dentro do Império Romano não foi de forma alguma unilateral, pois significou ao mesmo tempo a helenização. [...]. Ao chamar ao Cristianismo a paideia de Cristo, o imitador acentua a intenção do apóstolo de apresentar o Cristianismo como a continuação da paideia grega clássica...” (JAEGER, s/d, p.14-17-26). A partir dos testamentos bíblicos, qualquer dualismo ontológico no homem é compreendido não como oposição natural, mas confronto entre as vicissitudes humanas e as iniciativas salvíficas de Deus. Lima Vaz fala de dois traços que unem a teologia bíblica do homem e a antropologia cristã. O primeiro a unidade radical do ser do homem, definida pela escuta da palavra de Deus. Esta unidade soteriológica implica dom de Deus, aceitação ou recusa do homem. Assim, no homem entrecruzam-se traços paradoxais: carne (ruah/sarx) – dimensão frágil e transitória da existência; alma (nefesh/psyché) – vigor de sua vitalidade e dimensão de transcendentalidade; espírito (ruah/pneuma) – aspecto superior da vida e via de relação com Deus e coração (leb/kardía) – intimidade humana de afetos, paixões, pecados e conversão a Deus. Enfim, a concepção bíblica de homem não é um discurso demonstrativo como em filosofia, mas uma história da salvação onde o Antigo Testamento consuma-se no Novo Testamento – profunda novidadeem relação ao antigo, porque Jesus Cristo, além próprio Deus manifesto (hierofania máxima no cristianismo), torna-se arquétipo de vínculo do humano com Deus, por isso mesmo, absoluta referência da concepção cristã de homem. Hellenismos substantivo do verbo hellenizo (falar grego), originalmente o uso correto da língua grega livre solecismo e barbarismo. O conceito parece ter sido usado pela primeira vez pelos professores de retórica. Soteriologia, teologicamente doutrina relativa à salvação realizada por Jesus Cristo em prol da humanidade. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 123 CONCEPÇÃO MEDIEVAL DE HOMEM As inspirações básicas dos temas medievais remontam-se a três fontes principais: a) a Sagrada Escritura, enquanto palavra revelada, é incontestável autoridade maior; b) os Padres da Igreja, dentre os quais Santo Agostinho é a referência principal; c) os filósofos gregos e latinos, sobretudo Aristóteles, a partir do século XIII é destacado como o principal filósofo. Observe-se que não obstante a estereotipa visão de atraso medieval, este foi um tempo de evoluções complexas e crises estruturais, destaque-se, no plano intelectual, a célebre querela entre os partidários do aristotelismo e os do agostinismo, cujo equilíbrio encontra-se na tradição bíblico-cristã. Neste contexto, Santo Agostinho ressalta duas questões antropológicas interessantes: a historicidade onde o destino do homem é definido pelos acontecimentos salvíficos e a corporalidade, pela qual se compreende o corpo humano vinculado ao mistério da Encarnação do Verbo. De fato, segundo Grecethuysen a antropologia agostiniana pensa um homem marcado pela tensão ao inacessível, ele é desejo de ultrapassagem, de aspiração a um objetivo transcendente. Todavia, segundo Lima Vaz (1981, p. 68), “a síntese mais bem- sucedida da antropologia medieval encontra-se no pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Nela convergem as grandes teses da antropologia clássica e da antropologia bíblico-crsitã, encontrando finalmente seu ponto de equilíbrio.” São Tomás assume com Aristóteles a unidade hilemórfica do homem, considerando, entretanto, que alma criada por Deus transcende, essencialmente, a matéria. Dessa conexão de razão e alma emanam as faculdades humanas de agir e fazer. Lima Vaz (1981, p. 70) observa ainda que “o rationale como diferença específica do homem designa primeiramente a razão discursiva (ratio), forma do conhecimento intelectual inferior à Hilemorfismo (do grego – hilê = matéria e morphê = forma), conforme Jolivet, é a “doutrina filosófica em virtude da qual os corpos são o resultado de dois princípios distintos e complementares, chamados matéria e forma, que são fontes, respectivamente, das propriedades quantitativa e qualitativa pelas quais o corpo se impõe à experiência e à ciência.” (JOLIVET, 1975, p. 109). 124 FILOSOFIA inteligência propriamente dita (intellectus) que é própria dos espíritos puros, mas da qual também o homem participa.” Em segundo lugar, a partir da racionalidade como especificidade, o homem localiza-se na natureza e busca seu telos e, por fim, o tema bíblico da imago Dei em Tomás implica a perfeição relativa do homem partícipe da perfeição absoluta de Deus. É em torno desse tema que na antropologia tomásica, “se articulam os três planos da natureza, da graça e da glória, que são os três estados da existência humana considerada filosoficamente na sua essência e teologicamente na sua história.” (VAZ, 1981, p. 70-71). Por fim, convém lembrar que na Idade Média registra-se paulatinamente o restabelecimento do homem artífice sacrificado pela relevância da contemplação na tradição clássica. A escola de São Vítor na França (Paris) é uma referência nessa reconfiguração e, sem dúvida um traço marcante na transição para a aurora da antropologia moderna. CONCEPÇÃO MODERNA DE HOMEM Na aurora da antropologia moderna, convém que ressaltemos o nome de Francisco Petrarca, não que ele tenha sido um subversivo inovador, entretanto, como acentua Grecethuysen, a partir dele o homem começa a explicar sua vida a partir da vida, pois “a razão não se coloca além da vida, mas que pertence ao próprio conjunto da vida. [...] os valores estáveis do conhecimento tornam-se os valores instáveis da vida” (GRECETHUYSEN, s/d, p. 131). Para Petrarca, males do seu tempo como corrupções e impiedades, não poderiam ser curados por exercícios dialéticos ou abstrações metafísicas, mas através do conhecimento de si mesmo e o método para tal sabedoria encontra-se nas artes liberais. A concepção moderna de homem no contexto da cultura ocidental emerge, a rigor, por volta do século XII, desenvolvendo-se entre os séculos XIII e XV, completando seus traços completados no século XVIII, quando o chamado homem moderno já alcançou considerável relevância e, portanto, referência para as formulações antropológicas ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 125 dos séculos XIX e XX. Nessa época, as concepções se complexificam em decorrência da “pluralidade antropológica” que, por conseguinte, dissipa aquela unidade cultural (grega) ou religiosa (medieval) em torno da imagem do homem, a qual doravante “é desfeita pela descoberta da imensa diversidade das culturas e dos tipos humanos e pelo próprio avançar das ciências do homem que submetem o seu objeto a uma análise minuciosa e, aparentemente, desagregadora de sua unidade.” (VAZ, 1981, 77). Concepção humanístico-racionalista de homem Entre os séculos XIV e XVI as múltiplas mudanças ocorridas na Europa ocidental favorecem o nascimento da Renascença, demarcada pela relevância da literatura clássico-latina graças às elaborações filológicas e do livro impresso; pela permanência do humanismo cristão num novo cenário sócio-político e religioso. Nesse contexto renascentista, se destacam as ideias antropológicas do nominalista Cardeal Nicolau de Cusa, que Lima Vaz (1981, p. 79) explica desta forma: O que desaparece sob a crítica nominalista é a posição de um mundo ideal, identificado com o Intelecto divino e assegurando a inteligibilidade intrínseca dos seres que permitia, por sua vez, a aplicação do procedimento analógico ao conhecimento da existência e da transcendência de Deus. Nicolau, ao contrário da metafísica clássica que privilegiava a transcendência divina, enfatiza a imanência do divino, embora não o ponha em questão. A inalcançável infinitude de Deus e do cosmos incita no homem, segundo Nicolau, uma ansiedade de infinito conhecimento de ambos. “Nicolau de Cusa, pode ser, assim, considerado um precursor da concepção moderna e é como tal que ele se situa como um pensador tipicamente de transição, mas poderosamente original.” (VAZ, 1981, p. 79). Mudanças - A Europa foi revitalizada nos últimos séculos da Idade Média, pelo reaquecimento do comércio e da vida urbana. [...] o homem moderno deixou de olhar tanto para o alto, em busca de Deus, passando a prestar mais atenção em si mesmo. O homem se redescobre como centro de preocupações intelectuais e sociais, como criatura e criador do mundo em que vive. Tudo se refletiu nas artes, na filosofia e nas ciências.” (COTRIM, 1997, p. 212). Renascença - Renascimento pode ser definido como o movimento intelectual e cultural que marcou a mudança de mentalidade medieval para a moderna, no interior da qual humanismo, racionalismo e individualimo sinalizam revolução axiológica. 126 FILOSOFIA Nesta conjuntura renascentista – solo fértil para o nascimento da antropologia filosófica – a dignidade é o traço característico do novo humanismo.Entretanto, não mais a dignidade volvida para a contemplação (theorein), mas para o agir transformador do homem; não mais as particularidades (civil, servo, cristão, pagão etc.), mas a universalidade humana abstrata; não mais igualdade e unidade, mas a identidade na diferença nas esferas política, jurídica e religiosa. Marsílio de Ficino, Pico della Mirandola, Bartolomeu de las Casas, Nicolau Maquiavel, Jean Bodin são exemplos de homens que assumem e advogam este novo humanismo. A partir dessa antropologia de ruptura e transição, abre-se o horizonte do racionalismo predominante entre os séculos XVII e XVIII, cujo teor é esclarecido lucidamente por Lima Vaz (1981, p. 81): “A antropologia racionalista prolongará a tradição do zoon logikón, mas dando-lhe um novo conteúdo, pois nela o esquema mecanicista (ou primazia do modelo da máquina) se estenderá à explicação da vida e do homem.” René Descartes é, neste sentido, a referência obrigatória porque parte do método e suas regras dirigidas ao objeto do saber, considerando o fundamento da certeza. O Cogito é o fundamento evidente, cuja verdade e certeza opõe-se à verdade e certeza do mundo externo, desembocando, assim, na exigência da existência veraz de Deus explicitada a priori pela imanência da ideia de infinito na mente humana. Ou seja, a partir da Metafísica erige-se a Física e daí repõe-se a situação de relação entre alma e corpo. Com efeito, decorrem dois elementos importantes: a subjetividade do espírito – como res cogitans e a exterioridade (mecânica corpórea) – como res extensa. A antropologia dualista cartesiana, explica Lima Vaz, bifurca, consequentemente, a metafísica do espírito e a física do corpo, ambas clara e distintamente completas e independentes. “O corpo humano é integrado no conjunto dos artefatos e das máquinas e só a presença do ‘espírito’, manifestando-se sobretudo na linguagem, separa o homem do ‘animal-máquina’”. (VAZ, 1981, p. 84). De fato, a revolução cartesiana na filosofia e a galileiana na ciência –, impregnam uma nova racionalidade, capaz de favorecer um campo epistemológico apropriado à constituição das ciências humanas. Interessante notar que a res cogitans separa-se da res extensa, não para a contemplação como na teoria platônica, mas para conhecer e controlar o mundo, como diz Descartes no Discurso do Método. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 127 Na segunda metade daquele século XVII, o pensamento de Blaise Pascal é tensionado, por um lado pela ordem eterna da natureza contemplada nos abismos do infinitamente grande e do infinitamente pequeno e, por outro, pela miséria bem expressa na corrupção da natureza e das faculdades humanas. Para Lima Vaz, o Cogito pascalino também ressalta a importância do homem; porém à diferença de Descartes, não se volta para o domínio do mundo, mas para a dimensão moral. O mais importante em Pascal não é a ciência, mas a situação cósmica do homem: demasiado pequeno supera pelo pensamento, compreende o universo cuja dimensão absorve-o. O homem pascalino encontra-se, pois, num dilema trágico: nem se abriga na ordem cósmico-teológica da compreensão cristã- medieval, nem se apossa do mundo como em Descartes. Para Thomas Hobbes, ao contrário de Pascal o homem e a sociedade se explicam a partir do racionalismo mecanicista. De acordo com Lima Vaz (1981, p. 86), “seu materialismo é radical e integral. Só o corpo ocupando o espaço existe, e Deus mesmo é corporal, sendo compreendido no universo cuja totalidade e unicidade abrangem todas as ordens existentes.” O homem, especificamente, se realiza, conforme Hobbes, na transição do estado de natureza para o estado civil e, precisamente, pela instituição do Estado enquanto força prepotente que ordena, coage, organiza a vida social. Neste mesmo contexto, o também inglês John Locke contra Hobbes afirma a socialidade natural, enquanto possibilidade de convivência pacífica dos indivíduos no estado de natureza. Além disso, contra as ideias inatas cartesianas, defende as disposições humanas naturais para conhecer a Deus, a natureza e a si mesmo como ser moral e, neste sentido, numa crítica às esgrimias religiosas de seu tempo, defende fervorosamente a tolerância religiosa. Enfim, apesar de seu naturalismo otimista Locke também admite que o indivíduo, embora soberano, delega ao Estado e à lei a coordenação da vida social. Logo, sociedade política e estado de natureza recaem em situação paradoxal. A imagem de homem na época da Ilustração De forma geral, pode-se dizer que a Ilustração na Europa do século XVIII, foi um movimento ideológico ou um “espírito de saber” em 128 FILOSOFIA várias esferas: política, religião, filosofia, ciência, literatura e artes. Assim: [...] o próprio conceito de Ilustração, expresso por uma metáfora luminosa (Lumières, Aufklärung) encontra na ideia de progresso assim definida o espaço de irradiação. [...], algumas características fundamentais [...] se desenvolve no interior de duas coordenadas que definem esse espaço: as luzes da Razão e do progresso (VAZ, 1981, p. 93). Deste mundo animado pelo espírito da Ilustração, decorrem algumas ideias referenciais para nossos tempos: a) humanidade: “o sentido que esse termo assume já é nitidamente secularizado e seu matiz é marcadamente axiológico, em contraposição à humanidade objeto do universalismo salvífico cristão.” (VAZ, 1981, p. 93). A primazia das relações humanas supera as relações com Deus ressaltada nas antropologias precedentes; b) civilização: sendo um fato e um valor designa essencialmente ideal de progresso e de otimismo na vida futura é, portanto, o signo da passagem do estado de natureza ao estado de cultura, ao estado de civilização propriamente dito; c) tolerância: defendida no contexto dos conflitos religiosos XV por Nicolau de Cusa, tornar-se-á um estandarte da Ilustração em favor dos discriminados: mulheres, crianças, judeus, negros e índios das colônias americanas. Além disso, Locke defendeu a tolerância civil e César Becarria traça fundamentos do Direito moderno em Dos Direitos e das Penas, em 1764. d) revolução: da origem astronômica, sobretudo, relativo a Copérnico, o termo indicará desde então transformações sociais e políticas que anunciam um mundo melhor. Portanto, humanidade, civilização, tolerância e revolução são ideias impregnadas nas motivações fundamentais de luzes e progresso no contexto da Ilustração, onde o homem, efetivamente, é o centro da inteligibilidade. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 129 Compreensão kantiana de homem A Antropologia, fundamentada nos ideais da Ilustração é criticamente acolhida por Immanuel Kant. Como Lima Vaz observa, entre 1772 e 1773 ele leciona Antropologia como disciplina independente, resultando, então, no texto Antropologia desde o Ponto de Vista Pragmático de 1798, onde afirma a praticidade da filosofia, como a que ajuda ao homem tomar atitudes razoáveis diante das situações que se apresentem. “A Antropologia... corresponde, assim, a uma intenção [...] de tornar a filosofia útil, para a vida, [...] sem dúvida um dos aspectos fundamentais da concepção kantiana de homem, aquele pelo qual ele participa do movimento pedagógico da Aufklärung.” (VAZ, 1981, p. 97). Neste sentido, alguns tópicos presentes na ideia de homem em Kant, são os seguintes: a) sensitivo-racional. No homem enquanto cognoscente convergem dois polos: ser de natureza, porque situado no tempo e no espaço e ser racional porque capaz de articular o ideal de razão pura e de ideias transcendentais como mundo, alma e Deus; b) físico-pragmático. Implica dizer que o homemé primeiramente mundano, natural e depois que sendo livre o homem, pelo “fato da Razão”, assume ou não a moral internalizada; c) histórico. O destino assumido pelo homem, Kant o compreende pela perspectiva religiosa onde explica que o mal radical é superável pelo princípio do bem, aliás, segundo ele, sinal do reino de Deus e em segundo lugar, pela perspectiva pedagógico-política pela qual cruzam-se questões como educação, experiências políticas e liberdade civil. As ideias de Kant, com efeito, fornecem, sem dúvida, uma orientação indelével para o tratamento filosófico sobre o homem em tempos hodiernos. 130 FILOSOFIA O HOMEM NA FILOSOFIA CONTEMPORâNEA O pensamento de Kant demarca, justamente, a fronteira do debate filosófico que se desenvolveu entre os séculos XIX e XX designado geralmente como filosofia contemporânea da deriva dos contornos antropológicos hodiernos. Concepção de homem no Idealismo Alemão e em Rousseau O século XVIII é marcado pelo Idealismo Alemão designado, em geral, como a corrente que inicia a filosofia contemporânea e, vinculado ao Idealismo, destaca-se o Pré-Romantismo como movimento que contrapõe o sentimento à razão; o eu sensível sobre o Cogito racional. E no fim daquele século passa-se, como nota Lima Vaz (1981, p. 113) para o Romantismo “como projeto global de cultura e, mesmo, de civilização, que caracteriza-se pela sua rejeição do Classicismo, do qual a Ilustração se mostra uma exacerbação racionalista.” A antropologia no estilo romântico, ao contrário da clássica, destaca as sensibilidades, as paixões e as emoções humanas. Ressalta Lima Vaz (1981, p. 113): O individualismo romântico é, assim, profundamente diferente do individualismo racionalista: neste o indivíduo se define pelo seu Cogito que o une à razão universal; naquele o indivíduo se define pelo sentimento do Eu que o leva a comungar como o Todo orgânico ou com o uno que é, ao mesmo tempo, o todo: o ‘uno e o todo’ [...] será um dos lemas do pensamento romântico. Convém sublinhar brevemente, ainda neste contexto, reflexões antropológicas de Rousseau. Para este pensador francês, por um lado, a consciência moral implicada no sentimento, e por outro, a estrutura racional e axiomático-dedutiva são imprescindíveis para a compreensão de homem. No Discurso sobre as ciências e as artes ele assinala que as corrupções do indivíduo e da sociedade decorrem da cultura. Esta é a sobreposição humana à natureza, mas também pelo Paulinho da Viola canta um samba “Chico Brito” (de Wilson Batista e Afonso Teixeira), que reflete o pensamento de Rousseau: “Quando menino esteve na escola/ era aplicado, tinha religião/ quando jogava bola/ era escolhido capitão/ mas a vida tem os seu reveses/ diz sempre Chico defendendo teses/ se o homem nasceu bom/ e bom não se conservou/ a culpa é da sociedade/ que o transformou”. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 131 distanciamento da vida natural, caminho de vida infeliz. No Discurso sobre a Origem da Desigualdade estabelece as razões da desigualdade e da injustiça social. Com efeito, homem natural e sociedade integram- se, essencialmente. Enfim, Vaz observa que a antropologia de Rousseau é marcada pela “rejeição de toda transcendência, seja ideonômica como no platonismo seja teonômica como Cristianismo, imanência absoluta da Natureza como fonte de todo bem e de todo valor, enfim crítica da cultura existente e da sua moral, fonte do mal e da corrupção do homem.” (VAZ, 1981, p.115). O homem na perspectiva hegeliana O pensamento hegeliano é entrelaçado por aspectos como da natureza, do espírito subjetivo, espírito objetivo e Absoluto. Nessa dialética denotam-se influências do racionalismo, romantismo, herança clássica e herança cristã. Estas influências repercutiram na concepção de homem em Hegel, de modo que ele destaca os seguintes traços antropológicos: a) dialética fundamental entre o mundo natural e o mundo humano; b) a relação do homem com a cultura, pela qual a humanização propriamente ocorre à medida que o homem integra o movimento constitutivo da história; c) relação entre homem e história, na qual se pensa não o tempo físico, mas tempo dialético, onde na cadência histórica se revelam o sentido da vida humana e do Absoluto; d) o Absoluto é ápice do Espírito Objetivo traduzido na Arte, na Religião e na Filosofia e que o homem através da intuição (Arte), da representação (Religião) e do conceito (Filosofia) manifesta o Espírito como absoluto. 132 FILOSOFIA Vaz (1981, p. 123), resume lucidamente compreensão de Hegel da seguinte maneira: A concepção hegeliana do homem abrange, efetivamente, estes três momentos, pois o Espírito subjetivo – o indivíduo – passa necessariamente pra o Espírito objetivo – a cultura ou a história – no qual tem a sua verdade, e este passa necessariamente para o Espírito absoluto – a Ideia, exprimindo-se como Arte, Religião e Filosofia – no qual tem sua verdade absoluta. Portanto, a pergunta “o que é o homem?” desde Hegel se desdobra entre os constitutivos do ser do homem e o tornar-se homem, mediante três níveis: o da matéria (em si, como alma – Espírito natural) objeto da Antropologia; o da forma (para si – particularidade como consciência) objeto da Fenomenologia e o da figura (determinando em si e para si – subjetividade) objeto da Psicologia. Antropologia pós-hegeliana: Feuerbach e Marx Depois da morte de Hegel, em 1831, seus seguidores separaram- se entre “hegelianos de direita” – que primavam pela fidelidade ao pensamento do mestre –, e “hegelianos de esquerda” – voltados para uma crítica sociopolítico, sua filosofia contrapunha-se, com efeito, à filosofia do próprio Hegel. Entre estes últimos, pode-se destacar Ludwig Feuerbach e Karl Marx. Pode-se afirmar, sucintamente, que em Feuerbach apresenta-se um antropocentrismo radical, pois rejeitando-se a homologia microcosmo- macrocosmo afirma-se um materialismo que define o homem como ser sensível, desembocando, consequentemente, num antropoteísmo, porque o homem é o único deus para o homem e atributos de Deus relevados na teologia convertem-se me discurso antropológico. Enfim, os caracteres divinos nada mais são que projeções humanas. Deus seria, pois, uma invenção humana. Inspirado mas ao mesmo crítico de Feuerbach, Marx concebe o homem em princípio a partir de sua relação com a natureza por meio Ludwig Feuerbach (1804-1872) Fonte: http://www.google.com.br ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 133 da qual produz sua vida, empregando-se neste processo elementos como: intencionalidade, linguagem, instrumentos e cooperação intersubjetiva. As necessidades pluriformes (biológicas, psicossociais, culturais etc.) e as buscas respectivas de satisfação, constituem, segundo Vaz, um problema essencial na antropologia marxiana. Por outro lado, há o problema da alienação em dois sentidos: espiritual e social. A primeira reflete-se, sobretudo, na coisificação, isto é, à proporção que os objetos (coisas) predominam sobre o indivíduo que, portanto, não se autorrealiza, e a segunda implica o domínio do produto sobre aquele que produz. É importante ainda ressaltar dois elementos interrelacionados na compreensão de homem em Marx, bem assinalados por Lima Vaz (1981, p.124): Natureza humana definida pelas suas carências ou necessidades e pela dialética da satisfação dessas necessidades, desdobrando-se seja na relação do homem com a natureza exterior pelo trabalho, seja na sua relação com os outros homens pela sociedade. E em segundo lugar, [...] a situação histórica definido pelo estágio das forças e relações de produção e pelo fenômeno daalienação social que resulta da inadequação deste estágio às exigências de realização da natureza humana. Tal fenômeno se verifica de maneira exemplar no capitalismo, onde se pode identificar explicitamente o fenômeno da fetichização das relações sociais alienadas que aparecem como propriedades naturais das coisas (VAZ, 1981, p. 131). Como se sabe, o fetichismo se configura como alienação efetivamente detectada na estrutura do capitalismo, onde pode representar-se em várias situações: econômica, política, cultural, religiosa. Nelas o homem produz entidades reais ou imaginárias que passam a dominá- los e, desta forma, inviabiliza sua vocação emancipatória. Ora, parece que o pensamento de Marx tem um horizonte escatológico no sentido em que afirma uma plena emancipação humana no reinado comunista, em que não mais se verifica homens oprimidos e alienados. Intencionalidade - Marx diz que o homem mais estúpido sobrepõe-se à eximia abelha, porque aquele premedita, isto é, intencionaliza sua ação. Intersubjetiva - A cooperação se dá fundamentalmente pelo trabalho que para Marx é um meio de humanizar o homem à medida que ele humaniza a natureza. Mas o trabalho no mundo capitalista é a explícita manifestação da expropriação e da alienação humana. 134 FILOSOFIA O caminho para esta civilização feliz exige uma revolução capaz de destruir o monstro do capitalismo e seus aliados: principalmente o Estado e a religião. Modelos de Antropologia Contemporânea Reflexões antropológicas desde a segunda metade do século XX remontam-se, necessariamente, ao pensamento de alguns importantes filósofos, sobre os quais é oportuno breves alusões. Um destes autores é o dinarmaquês Sören Kierkegaard (1813- 1855), que para Lima Vaz é mais um pensador solitário, um teólogo de profissão, que propriamente um filósofo. Não obstante, seu pensamento é situado nos primórdios do existencialismo concebido como uma crítica direta ao sistema hegeliano, uma vez que para ele a existência humana e suas implicações não pode ser emoldurada num sistema lógico. Os tradutores de Kierkegaard: Carlos Marinho, Maria José Monteiro e Adolfo Casais (1979, p. VIII), ressaltam a seguinte observação de Sartre: “A vida subjetiva, na própria medida em que é vivida, não pode jamais ser objeto de saber [...] Essa interioridade que pretende afirmar-se contra toda filosofia [...] para além da linguagem, face aos outros e de Deus, eis o que Kierkegaard chamou de existência.” Isto porque para Kierkegaard, os sistema filosóficos e seus conceitos, particularmente os de Hegel, esvaziam a existência humana de todo caráter efetivo da existência humana, cuja ação depende não do que se compreende mas do que se quer. A escolha é, assim, o núcleo existencial. Ainda no pensamento kierkegaardiano, há que ressaltar que a vida humana fundada na escolha é atravessada por absurdos estéticos, éticos e religiosos e, consequentemente, com experiências pessoais como o tédio, a angústia, o desespero, o medo etc. No nível estético predomina o hedonismo romântico e sofisticado; o campo ético situa o homem no campo das regras universais e tarefas incondicionais, que podem ser contrariadas na passagem para o campo religioso, onde a fé significa um salto para o absurdo. Kierkegaard toma como exemplo o ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 135 caso de Abraão, cuja prova de obediência a Deus para matar o próprio filho Isaac ultrapassa os códigos éticos. Numa palavra final, em Kiekegaard o homem é uma espécie de resumo de finito e infinito, de tempo e eternidade, de necessidade e liberdade. A presença de Friedrich Nietzsche (1844-1900) é sem dúvida indispensável quando se pensa o homem atual. À pergunta o que é o homem? Nietzsche a desdobra em três segmentos: o que foi o homem – como ele aparece na natureza e na vida; o que o homem não é – sua descaracterização derivada da doença cultural-religiosa e o que o homem pode e deve ser – tematizado na passagem do homem para o super-homem. No estágio da crítica radical à cultura, Nietzsche ressalta que os sistemas morais e religiosos erigidos no ocidente, isto é, de Sócrates ao cristianismo europeu do seu tempo, passando pelos tempos patrístico- medievais, são fundamentalmente perversos, hipócritas, desumanos, retrógados e, como tais, incidentes em todas as esferas da civilização, por isso, essencialmente, se opõem à vida e ao advento do super- homem. O incisivo espírito crítico de Nietzsche – como um profeta que simultaneamente denuncia e anuncia – aparece em todos os seus escritos. Assim Falou Zaratustra, Para Além do Bem e do Mal, Humano Demasiado Humano, Genealogia da Moral, Gaia Ciência, O Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Vontade de Potência são algumas das célebres obras caracterizadas comumente pela ojeriza de seu autor aos sistemas e esquemas – religiosos, morais e racionalistas – articulados para domar, controlar, educar, enfim, reprimir o homem, ao preço de sacrifícios desde os físicos aos da própria alienação de consciência. Portanto, para Nietzsche no mundo ocidental instituições e doutrinas convergem na missão comum de inviabilizar a humanidade do próprio homem à medida que estabelecem e impõem valores e regras puramente convencionais e tendenciosas. Ele apregoa diante desta tradição a necessidade de demolição dos fundamentos envolvidos na formação humana até então, como condição sine qua naon para o aparecimento consequente do homem novo: o super-homem. 136 FILOSOFIA Jean-Paul Sartre (1905-1979) é outro autor que trata em seus textos romanescos, teatrais, políticos e filosóficos problemas éticos e políticos, tomados a partir do enfoque existencialista. Textos como O Existencialismo é um Humanismo e O Ser e o Nada, centram-se nas estruturas fundamentais da existência humana. Em Sartre, é importante dizer brevemente, o homem não se define como ser-em-si porque não é um objeto maciçamente acabado, mas com ser-para-si, enquanto consciência de si próprio, sobretudo no sentido da autoconstrução. De fato, quando ele enfatiza que a existência precede a essência, pretende negar qualquer determinação a priori ao homem, haja vista que este é projeto de si mesmo; o homem é, sendo. Não há, pois, força alguma externa que o prescreva, de maneira que, para ele, se Deus existisse – e para ele não existe (Sartre assume seu ateísmo), nada mudaria quanto à responsabilidade humana sobre sua história e da humanidade. Assim, na inesquecível frase de Sartre, o homem é condenado à liberdade. Ainda neste contexto contemporâneo, substancialmente antropocêntrico, são importantes dois enfoques da ciência antropológica: o personalismo e o materialismo. Na primeira corrente, sobressai-se o conceito de pessoa nos diversos níveis: ontológico, ético, político, pedagógico. Há, inclusive, o personalismo de inspiração cristã cuja característica comum “é a afirmação de Deus pessoal transcendente como paradigma e fim último da pessoa.” (VAZ, 1981, p. 139). Nesta categoria destacam-se Jacques Maritain (1882-1973) – onde se conexam a inspiração tomista e os temas humanos atuais e Emmanuel Mounier (1905-1950) que juntou o personalismo ao movimento político-cultural sob orientação de sua vivência católica em meados do século XX. O segundo enfoque materialista prioriza a Natureza como polo de explicação básica sobre o homem, de modo que fatores naturais superam os fatores simbólicos. Neste sentido, além da tradição marxista, alinham-se ciências como Psicanálise, Linguística, Biologia Humana, Ecologia, Paleontologia etc., estas últimas geralmente inspiradas na teoria da Evolução. Estas diversasfaces da antropologia ocidental inteligível à luz da tradição filosófica, por um lado, afluem para a ideia invariante do homem como ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 137 espelho convergente de intencionalidade de toda a realidade e, por outro, abrem a polêmica sobre essa centralidade humana em função da diversidade das ciências da natureza e do próprio homem. De fato, Lima Vaz (1981, p.141), observa o seguinte: As antropologias contemporâneas preferem reco- nhecer a pluridimensionalidade dos sentidos que a experiência do seu próprio ser revela ao homem e procuram situar-se numa perspectiva que lhes pareça privilegiada, para, a partir dela, construir um discurso englobante e coerente sobre a totalidade da experiência humana. A rigor, portanto, à perene pergunta o que é o homem? se descortina no cenário contemporâneo a versão antropológica da pluriversalidade: o homem é o ser que inquire-se a si mesmo e daí expande as interrogações em todas as dimensões. Três delas serão tratadas a seguir: a linguagem, a cultura e a liberdade. CONCLUSÃO Ao final desta unidade, em que fizemos um ligeiro percurso pelas linhas antropológicas no ocidente, alguns tópicos merecem destaque. Vimos que na chamada Grécia arcaica entre os séculos VII e VIII a. C. prevalece uma imagem de homem marcada por três caracteres: religioso – consciência da separação entre imortais (deuses) e mortais (humanos); cosmológico - onde há leis supremas que regem a natureza e os homens e conceito de homem traçado pelo apolíneo (correto/bom/celeste) e o dionisíaco (desorientado/ pervertido/terreno). Mas os sofistas, interessados pelo homem situado no contexto social defendem o relativismo e as convenções das regras, leis e axiomas. Ora, para Sócrates esta postura banaliza a humanidade do homem por isso, contrariamente, defende com força a dimensão interior (daimon) do homem – o “conhece-te a ti mesmo” alcançado pelo processo da ironia, indução e maiêutica. Esta teoria é definitivamente sistematizada por Platão, para quem, 138 FILOSOFIA como sabemos, a alma enraizada no mundo superior das ideias é adversária do corpo – “essa coisa má”, como ele diz no Fédon. Assim, política, arte, educação, religião e filosofia devem servir para qualificá-la e, com efeito, restituí-la ao Olimpo. A antropologia de Aristóteles é mais realista e discorda, inclusive, dessa rivalidade entre corpo e alma; não obstante, ele ratifica a excelência da alma, tal como na vida do contemplador (filósofo). Durante a Patrística e a Idade Média, vimos que essa dualidade é reconfigurada entre as iniciativas salvíficas de Deus e a recusa possível do homem. Em Santo Agostinho a historicidade humana tem como referência a Encarnação do Verbo e a Salvação Final. Em Tomás de Aquino, a alma superando o corpo, é acolhimento e reflexo da graça e da glória divinas. Para ambos, podemos afirmar, o homem é um peregrino para Deus. A partir da modernidade fundamentalmente antropocêntrica, acompanhamos de maneira geral a sobrepujança da racionalidade. Rupturas e fatos históricos roturantes tais como Renascença, Ilustração, Revoluções Protestante e Industrial motivam ou são motivados pelo espírito humanista da época. Pluralidade cultural, tolerância, criticidade, laicização, progresso, liberdade, revolução, pragmatismo, são conceitos consequentes e, doravante comuns entre os humanistas, filósofos, cientistas e, de modo geral, quando se pensa o mundo sócio-humano. Esse progresso histórico desaguou na fase atual polemicamente designada como “pós-moderna” e até “pós-humana”, parece-nos, contudo, demarcada por uma situação paradoxal: ramificações e especializações científicas agregam ininterruptamente informações sobre o homem; entretanto, ele, ao mesmo tempo, permanece, surpreendentemente, objeto instigante, motivador desafiante para quem por alguma perspectiva pretende responder à perene questão: o que é o homem? ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 139 Que tipo de mudança conceitual sobre o homem se verifica na sofística em relação à conceitos antropológicos da Grécia arcaica? Assinale alguns traços semelhantes e divergentes entre as antropologias de Sócrates, Platão e Aristóteles? O homem ocidental, depois da herança grega é fortemente influenciado pelo cristianismo patrístico-medieval. Destaque algumas dessas marcas que resistem ao tempo apesar da chamada era moderna “dessacralizado”. Que mudança de paradigma antropológico verificamos a partir da Ilustração? Como Hobbes e Rousseau compreendem o homem? Depois de ver o filme Tempos Modernos de Charles Chaplin e ler o tópico sobre a crítica de Marx ao capitalismo opressor, discuta com seus colegas e aponte brevemente até que ponto a crítica marxista pode ser atualizada. Discuta com seus colegas e discorra brevemente a complexidade e o consequente desafio de representar o homem contemporâneo. 4 5 6 7 140 FILOSOFIA • Odisseia Interessante filme sobre a mitologia grega, retratando, precisamente, a relação entre o homem e os deuses na dramática volta de Ulisses para Ítaca, após ter vencido a guerra de Troia. • A marvada carne (Brasil, 1984 – direção: André Koltzel). Abordagem sobre mitos atuais. • Sócrates (Itália/França/Espanha, 1971 – direção: Roberto Rossellini). O filme trata do processo, defesa, condenação e morte o filósofo grego. • Agostinho (Alemanha/França, 1986 – direção: Roberto Rosselini. O filme destaca a importância do filósofo durante a decadência do Império Romano, perpassam temas como teologia, ética, estética etc. • Giordano Bruno (Itália/França, 1973 – direção: Giuliano Montaldo). O filme aborda a condenação de G. Bruno à fogueira, por haver defendido ideias sobre universo contrárias às doutrinas eclesiásticas. • O Nome da Rosa (Alemanha/França, 1986 – direção: Jean-Jacques Arnaud). O filme ocorre num mosteiro medieval, retratando questões éticas, religiosas e, sobretudo, científicas emergentes. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 141 TEXTO COMPLEMENTAR A crise do conhecimento de si do homem Ernst Cassirer Que o conhecimento de si mesmo é a mais alta indagação filosófica parece ser geralmente reconhecido. [...]. Nem os pensadores mais céticos negam a possibilidade e a necessidade de autoconhecimento. [...] O autoconhecimento – declara – é o requisito da autorrealização. Devemos tentar romper as cadeias que nos ligam ao mundo exterior para podermos desfrutar nossa verdadeira liberdade.[...] A filosofia moderna teve início com o princípio de que a evidência de nosso próprio ser impregnável e inatacável. [...] Poucos psicólogos modernos admitiriam ou recomendariam um simples método de instrospecção. [...]. Estão convencidos de que uma atitude behaviorista estritamente objetiva é a única abordagem possível para uma psicologia científica. Sem a introspecção, sem uma consciência imediata dos sentimentos, não poderíamos sequer definir o campo da psicologia humana. No entanto, [...] a introspecção revela-nos aquele pequeno segmento da vida humana acessível à nossa experiência individual. [...] Aristóteles declara que todo conhecimento humano tem origem em uma tendência básica da natureza humana que se manifesta nas ações e reações mais elementares do homem. [...]. Em Platão, a vida dos sentidos está separada da vida do intelecto por uma brecha ampla e insuperável. O conhecimento e a verdade pertencem a uma ordem transcendental – ao reino das ideias puras e eternas. O próprio Aristóteles estava convencido de que o conhecimento científico não é possível unicamente através do ato da percepção. Mas fala comoum biólogo ao negar a separação platônica entre o mundo ideal e o empírico. [...]. Nas primeiras explicações mitológicas do universo encontramos sempre uma antropologia primitiva lado a lado com uma cosmologia primitiva. A questão da origem do mundo está inextrincavelmente entrelaçada com a questão da origem do homem. A religião não 142 FILOSOFIA destrói essas primeiras explicações mitológicas. [...]. A partir de então, o autoconhecimento não é mais concebido como um interesse meramente teórico. Deixa de ser apenas um tema de curiosidade ou explicação; é declarado como obrigação fundamental do homem. Os grandes pensadores religiosos foram os primeiros a afirmar essa exigência moral. [...]. “Conhece-te a ti mesmo” é vista como um imperativo categórico, como uma lei religiosa e moral suprema.[...] Em seus primeiros estágios, a filosofia grega parece ocupar-se exclusivamente do universo físico. [...]. Para além da filosofia física da escola de Mileto, os pitagóricos descobrem uma filosofia matemática, enquanto os pensadores eleáticos são os primeiros a conceber uma filosofia lógica. Heráclito posta-se na fronteira entre o pensamento cosmológico e o antropológico. [...] É no problema do homem que se encontra o marco que separa o pensamento socrático do pré-socrático. [...]. Sócrates sustenta e defende sempre o ideal de uma verdade objetiva, absoluta e universal. Mas o único universo que ele conhece e ao qual se referem todas as suas indagações, é o universo do homem. [...] Sócrates oferece- nos uma análise detalhada e meticulosa das qualidades e virtudes humanas. Procura determinar a natureza dessas qualidades e defini- las: bondade, justiça, temperança, coragem e assim por diante. Mas nunca arrisca uma definição de homem. [...] A filosofia que fora até então concebida como um monólogo intelectual é transformada em um diálogo. Só por meio do pensamento dialógico ou dialético podemos abordar o conhecimento da natureza humana. [...]. É impossível – diz Platão na República – implantar a verdade na alma de um homem [...]. Por natureza, a verdade é fruto do pensamento dialético. Logo, só pode ser obtida mediante constante cooperação dos sujeitos em mútua interrogação e resposta. [...]. Podemos otimizar o pensamento de Sócrates dizendo que o homem é definido por ele como o ser que, quando lhe fazem uma pergunta racional, ele dar uma resposta racional. [...] Sócrates e Marco Aurélio [imperador romano] têm em comum a convicção de que para encontrar a verdadeira natureza ou essência do homem, devemos primeiro remover dele os traços externos ou ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 143 incidentais. Não chamai do homem nenhuma daquelas coisas que não lhe cabem como homem... [Marco Aurélio]. [...]. Riquezas, posição, distinção social, até mesmo a saúde e os dotes individuais – tudo isso torna-se indiferente. Tudo o que interessa é a tendência, a atitude interior da alma; e tal princípio não pode ser perturbado. [...] Aquele que vive em harmonia consigo mesmo, com seu demônio, vive em harmonia com o universo; [...]. A própria vida está mudando e flutuando, mas o verdadeiro valor da vida deve ser buscado em uma ordem eterna que não admite qualquer mudança. [...] A declarada independência absoluta do homem, que na teoria estoica era considerada como virtude fundamental do homem, na teoria cristã torna-se o seu vício e erro fundamentais. [...]. A luta entre essas duas visões conflitantes durou muitos séculos e no início da era moderna – na época da Renascença e no século XVII – sentimos ainda a sua força. Aqui podemos apreender um dos traços característicos da filosofia antropológica. [...]. Segundo Agostinho, toda a filosofia anterior ao aparecimento de Cristo padecia do mesmo erro fundamental e estava infectada por uma única e mesma heresia. [...] o que o homem jamais poderia ter sabido, até ser iluminado por uma revelação divina especial, é que a própria razão é uma das coisas mais questionáveis e ambíguas do mundo. [...]. Para Agostinho, a razão não tem uma natureza simples e única, mas antes dupla e dividida. [...] Assim é a nova antropologia, tal como é entendida por Agostinho, e mantida em todos os grandes sistemas de pensamento medieval. Até Tomás de Aquino [...] não aventura a desviar-se desse dogma. Ele concede à razão humana um poder muito mais alto que o concedido por Agostinho; mas está convencido de que a razão não pode usar corretamente esses poderes a menos que seja guiada e iluminada pela graça de Deus. O que outrora parecia ser o mais alto privilégio do homem revela-se como seu perigo e sua tentação; o que surgia como seu orgulho torna-se sua mais profunda humilhação. [...] Nos tempos modernos apareceu um pensador que deu a essa antropologia um novo vigor e um novo esplendor. [...]. Pascal parece aceitar os pressupostos do cartesianismo e da ciência moderna. Não há na natureza nada que possa resistir ao esforço da razão científica, 144 FILOSOFIA pois não existe nada que possa resistir à geometria. [...] Mas nem todos os objetos são passíveis de serem tratados desse modo. [...]. O que caracteriza o homem é a riqueza e sutileza, a variedade e a versatilidade de sua natureza. [...]. É ridículo falar do homem como se fosse uma proposição geométrica. [...]. Todas as chamadas descrições do homem não são mais que especulações visionárias se não forem baseadas em nossa experiência de homem, e por ela confirmadas. [...]. A contradição é próprio da existência humana. [...]. Existe, portanto, apenas uma abordagem para o segredo da natureza humana: a da religião. A religião mostra-nos que há um homem duplo – o homem antes e depois da queda. [...]. A religião não pode ser clara e racional. A religião, portanto, nunca pretende esclarecer o mistério do homem. [...]. A religião não é nenhuma “teoria” do Deus e do homem e de sua relação mútua. [...], a religião que não diga que Deus é oculto não é verdadeira. [...]. Portanto, por assim dizer, a religião é uma lógica do absurdo, pois só assim pode apreender o absurdo, a contradição interna, o ser quimérico do homem. [...]. Ao mesmo tempo, porém, tem início um lento desenvolvimento intelectual pelo qual a questão “O que é o homem?” é transformada e, por assim dizer, elevada a um nível superior. [...] A busca agora é por uma teoria geral do homem baseada em observações empíricas e em princípios lógicos gerais. [...] A nova cosmologia, o sistema heliocêntrico introduzido na obra de Copérnico, é a única base sólida e científica para uma nova antropologia. [...]. A pretensão do homem a ser o centro do universo perdeu o seu fundamento. [...]. É compreensível, e foi necessário que a primeira reação a essa nova concepção de mundo só pudesse ser negativa – uma reação de dúvida e medo. [...]. A filosofia e a ciência [...] tiveram o que a nova cosmologia, longe de enfraquecer ou obstruir o poder da razão humana, estabelece e confirma este poder. [...] Giordano Bruno foi o primeiro pensador a enveredar por esse caminho, que, de certo modo, tornou o caminho de toda metafísica moderna. [...]. No pensamento grego clássico, a infinidade é um conceito negativo. O infinito é o sem limites ou indeterminado. [...]. Na doutrina de Bruno [...] significa a imensurável e inesgotável abundância da realidade e o poder irrestrito do intelecto humano. É neste sentido que Bruno entende e interpreta a doutrina copernicana. [...] ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 145 Foram necessários os esforços combinados de todos os metafísicos do século XVII para superar a crise intelectual provocada pela descoberta dosistema copernicano. [...]. Galileu afirma que, no campo da matemática, alcança o ápice de todo conhecimento – conhecimento que não é inferior ao do intelecto divino. [...]. Descartes começa sua dúvida universal que parece encerrar o homem nos limites de sua própria consciência. [...]. Mas mesmo neste caso, porém, a ideia do infinito acaba sendo o único instrumento para a derrubada da dúvida universal. Só por meio desse conceito podemos demonstrar a realidade de Deus e, de maneira indireta, a realidade do mundo material. Leibniz combina essa prova metafísica a uma nova prova científica. Pelas regras desse cálculo [infinitesimal] o universo físico torna-se inteligível. [...]. É Spinoza quem se aventura a dar o último passo, decisivo, nessa teoria matemática do mundo e da mente humana. [...], concebe uma nova ética, uma nova teoria das paixões e afetos, uma teoria matemática do mundo moral. [...]. A razão matemática é a chave para uma verdadeira compreensão das ordens cósmica e moral. [...]. Em 1754 Denis Diderot [...] declarou que a superioridade da matemática no domínio da ciência não é mais inconteste. [...] Diderot é um dos grandes representantes da filosofia do Iluminismo. [...]. De acordo com Diderot, superestimamos demais nossos métodos lógicos e racionais. [...]. Na ciência do século XIX, deparamos com a marcha triunfal de novas ideias e novos conceitos matemáticos. Não obstante, a previsão de Diderot continha um elemento de verdade. [...] Uma nova força começa a surgir. O pensamento biológico toma a precedência sobre o pensamento matemático. [...], após a publicação da obra de Darwin A Origem das Espécies [...] o verdadeiro caráter da filosofia antropológica parece ter fixado de uma vez por todas. [...]. O nosso problema é simplesmente colher as evidências empíricas que a teoria geral da evolução colocou à nossa disposição em uma medida rica e abundante. [...]. Um dos principais objetivos da obra de Darwin foi livrar o pensamento moderno dessa ilusão de causas finais. Devemos procurar entender as estrutura da natureza orgânica unicamente por causas materiais, ou não podemos entendê-la. [...]. A teoria da evolução havia destruído os limites arbitrários entre as diferentes formas de vida orgânica. [...]; há apenas uma contínua e ininterrupta corrente de vida. [...]. Será o mundo cultural, tal como o 146 FILOSOFIA mundo orgânico, formado por mudanças acidentais? [...] Hippolyte Taine em sua Filosofia da Arte disse não temos mais que um problema mecânico... [...]. É o mesmo círculo de ferro de necessidade que encerra tanto a nossa vida física como a cultural. [...] Mas neste ponto surge outra questão. Poderemos contentar-nos em contar de modo meramente empírico os diferentes impulsos que encontramos na natureza humana? [...] A meta principal de todas as teorias era provar a unidade e a homogeneidade da natureza humana. Mas, se examinarmos as explicações que tais teorias foram concebidas para dar, a unidade da natureza humana parece extremamente duvidosa. [...] Cada pensador individual nos oferece a sua própria imagem da natureza humana. [...]. Nietzsche proclama a vontade de potência, Freud analisa o instinto sexual, Marx entroniza o instinto econômico. [...]. Em virtude desse desenvolvimento, nossa teoria moderna perdeu seu centro intelectual. [...]. O fator pessoal tornou-se cada vez mais prevalecente, e o temperamento do escritor tendia a ter um papel decisivo. [...] No pensamento filosófico recente, Max Scheler foi um dos primeiros a perceber e assinalar esse perigo. “Em nenhum outro período do conhecimento humano”, declara ele, o homem tornou-se mais problemático para si mesmo que em nossos dias. [...]. A multiplicidade cada vez maior das ciências particulares que se dedicam ao estudo do homem confundiu e obscureceu muito mais que elucidou o nosso conceito de homem. [...]. Comparado à nossa própria abundância, o passado deve parecer muito pobre. Nossa riqueza de fatos, contudo, não é necessariamente uma riqueza de pensamentos. A menos que consigamos achar um fio de Ariadne que nos conduza para fora deste labirinto, não teremos qualquer compreensão real do caráter geral da cultura humana; continuaremos perdidos em uma massa de dados desconexos e desintegrados que parecem carecer de toda unidade conceitual. CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 9-43. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 3 147 GRECETHUYSEN, Bernard. Antropologia Filosófica. Lisboa: Presença, s/d. JAEGER, Werner. Paideia. São Paulo: Martins Fontes, 1995. NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos. Petrópolis/RJ: Vozes, 1978. RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica. Petrópolis/RJ: 2001. VAZ, H. C. de Lima. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. OBJETIVOS DESTA UNIDADE: Possibilitar compreensões básicas sobre o fenômeno humano da linguagem: sua estrutura, trajetória e, principalmente, suas funções, destacando neste caso a teoria habermasiana do discurso; Explicitar de maneira clara o conceito de cultura, especialmente no sentido abordado pelo professor Álvaro Vieira Pinto; Contribuir para reflexões críticas em torno do conceito satreano de liberdade responsável e engajada. 4 UNIDADE DIMENSõES FUNDAMENTAIS DO HOMEM PALAVRA INICIAL... Caro estudante, Nesta quarta unidade descortinam-se para nossas leituras, reflexões e discussões três dimensões fundamentais do ser humano: a linguagem, a cultura e a liberdade. Poderiam ser outras como o conhecimento, a socialidade, a religião, a estética etc. Elegemos estas três porque as consideramos radicalmente inerentes à condição humana e ao mesmo tempo acompanham indiscutivelmente a desenvoltura da humanidade do homem. A linguagem, disse muito bem Ernest Cassirer, é um dos recursos do espírito graças ao qual transitamos da sensação para a representação. O homem é o que é pela linguagem, disse Humboldt. De fato, a linguagem manifesta o homem ao mundo. É ela que o identifica: sua cultura, sua língua, sua religião, sua arte, seu conhecimento, suas habilidades e criatividades, sua postura política diante da história e diante do mundo. Como está na epígrafe abaixo, Rousseau teve 150 FILOSOFIA muita lucidez ao afirmar que quando um homem fala se sabe a que mundo ele pertence. Partindo, pois, desta premissa de que a linguagem é o produto mais importante da mente humana, como afirma Susanne Langer, neste tópico vamos nos volver para a fenomenologia, os aspectos estruturais e a trajetória histórica da linguagem, na intenção fundamental de ressaltar que as diversas perspectivas teóricas - do estruturalismo de Saussure à pragmática transcendental de Habermas, discutem e teorizam sobre um sentido básico: a função comunicativa da linguagem. A linguagem entrelaça-se intimamente com a cultura. Esta como Herskovits, é o mundo feito pelo homem, engloba todas as suas criações. Neste sentido, vamos perceber com Rabuske que a cultura é inerente ao homem, é produção e produto e é teleológica. Estudaremos mais detidamente a propósito o conceito de cultura situado por Álvaro Vieira Pinto dentro da estrutura de produção, para demonstrar que juízos, interpretações, distorções, preconceitos, numa palavra: ideologias, em torno da cultura vinculam-se necessariamente ao sistema de produção e manutenção da existência. Ao mesmo tempo que o homem culturalmente é “condicionado” pelo sistema de produção no qual se insere, é também capaz de ultrapassar ou romper estruturas porque pode articulare efetivamente negar uma situação. A liberdade exprime o sentido de homem. O homem é o autor de si próprio. Nenhuma vontade, nenhum projeto a prori determina sua direção. O homem é, enquanto se faz. Vamos assim pautar nossas reflexões sobre a liberdade conforme a orientação das ideias de Sartre escritas principalmente no texto “O Existencialismo é um Humanismo” de 1946, como objetivo de expor as correlações entre liberdade e responsabilidade, escolha e engajamento social. Neste sentido, cruzaremos em certo momento o conceito de liberdade do sujeito em Sartre como o de liberdade política em Hannah Arendt. Destarte, vamos perceber que a linguagem é a condição fundante de qualquer realização humana, destacadamente a cultura enquanto marca distinta da artificialidade humana, esta tornada possível porque a liberdade é a recusa expressa da tese de qualquer determinismo. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 151 ROTEIROS PARA ESTUDOS Leituras sobre a fenomenologia da linguagem; Teorias básicas sobre a origem e aspectos estruturais da linguagem; A teoria da linguagem no paradigma discursivo de Habermas; Aspectos da cultura: natureza e sociedade; Cultura e sistema de produção; A liberdade na teoria de Sartre. FENOMENOLOGIA DA LINGUAGEM: conceitualizações e relevância Não se sabe de onde um homem é, antes que ele tenha falado. (Rousseau) A importância da linguagem aparece sublinhada logo nas primeiras páginas da célebre obra Política de Aristóteles, quando o filósofo grego enfatiza que o homem é um animal político (zoon politikón), porque, por propósito natural, ele é o único entre os animais que tem o dom da fala (zoon echón); para além da voz que indique a dor e o prazer, a fala do homem tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e, portanto, também o justo e o injusto; somente o homem tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais. Ora, exprimir e possuir em comum esses valores é o que possibilita a vida social e política, para qual só os homens são capazes. De fato, hoje se admite que o homem como ser falante – homo loquens, é uma definição bem apropriada porque realmente a categoria da fala estabelece nitidamente a fronteira entre o homem e os outros animais, acentuando, assim, a particularidade daquele sobre estes últimos. 152 FILOSOFIA Mondin retoma alguns juízos interessantes a respeito da linguagem. Huxley à pergunta sobre o que faz do homem o que ele é, responde que a linguagem é a resposta por excelência. O que senão o poder da linguagem dá a capacidade de registrar a experiência humana e tornar, assim, cada geração mais sábia do que a precedeu? Cassirer (2001, p. 180), observa que “a linguagem é dos meios fundamentais do espírito, graças ao qual se realiza nossa passagem do mundo da sensação ao mundo da representação.” Por sua vez, como ressalta Mondin (1980, p. 136), Gusdorf diz: “A invenção da linguagem é a primeira das grandes invenções, a que contém em estado embrionário todas as outras, talvez menos sensacional que a domesticação do fogo, mas mais decisiva.” Heidegger, lembra Mondin (1980, p. 137), assegura que “falamos de um jeito ou de outro. Falamos porque falar nos é natural. Falar não provém de uma vontade especial. Costuma-se dizer que por natureza o homem possui linguagem. Falamos porque o falar nos é inato. O falar não nasce de um particular ato de vontade.” Convém lembrar, ainda, o destaque de Marilena Chaui sobre o que disse Hjelmslev acerca da linguagem: o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforças, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana. A força da linguagem se manifesta contundentemente quando correlacionada com os mitos e a religião. Cassirer (2001, p. 181) afirma que “a linguagem e os mitos são parentes muito próximos. Nos primeiros estágios da cultura humana, sua relação é tão íntima e sua cooperação tão óbvia que é quase impossível separar um do outro.” A palavra mythos, significando narrativa, portanto, linguagem, narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas, da vida social e comunitária. Mais que isso “os mitos são a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e a interpretam.” (CHAUI, 1994, p. 138). A força realizadora da linguagem aparece nas liturgias mítico-religiosas enquanto capacidade para reunir o sagrado e o profano, de “seduzir” e trazer os deuses à terra, integra o homem ao mundo cósmico transcendental. Cassirer (2001, p. 183) explica que “para mente primitiva o poder social da palavra, experimentado em inúmeras ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 153 ocasiões, torna-se uma força natural, e até sobrenatural.” Não obstante acreditarmos ou não em palavras mágicas e místicas atribuídas à linguagem, [...] este poder decorre de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco (CHAUI, 1994, p. 139). É por isso que Heidegger (2003, p. 7), sabiamente, afirma que “a linguagem se encontra em toda parte. [...], tão logo o homem faça uma ideia do que acha ao seu redor, ele encontra imediatamente também a linguagem, de maneira a determiná-la numa perspectiva condizente como que a partir dela se mostra.” Assim, pode-se dizer, fundamentalmente, que o homem ingressa ou integra propriamente seu mundo pela mediania da linguagem. É pela linguagem, por outro lado, que o mundo passa propriamente a existir, porque é restritamente por ela que toda coisa, qualquer coisa, é identificada, portanto, por assim dizer, presentificada ou pelo menos é explicitada pelo homem. Esta magnitude da linguagem é realçada por Susanne Langer, quando lucidamente ela diz: A linguagem é, sem dúvida, o produto mais momentoso e ao mesmo tempo mais misterioso da mente humana. Entre o mais claro grito de amor, ou de advertência, ou ira, e a mínima e mais trivial palavra de um homem, permeia um dia inteiro da Criação – ou numa frase moderna, um unidade da evolução. Na linguagem, temos o uso livre e consumado do simbolismo, o registro do pensar conceitual e articulado; sem a linguagem parece não existir nada semelhante ao pensamento explícito. Todas as raças de homens [...] dispõem de sua linguagem completa e articulada (LANGER, 2004, p. 111). Com efeito, percebe-se que a linguagem e o homem inseparam-se de tal forma que a personalidade, o espaço natural, os objetos, o país, a humanidade, enfim, a vida, se traduz efetivamente por ela, a linguagem. Neste sentido, a professora Sonia Souza (1995, p. 107) frisa o que Hjelmslev observa: “possível indagar-se se ela não passa de um simples 154 FILOSOFIA reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do desenvolvimento dessas coisas.” Torna-se, então, conveniente penetrar, ou melhor, abordar ao menos nocionalmente alguns elementos implicados na estrutura da linguagem. Aspectos estruturais da linguagem: divisão, essência e níveis Os autores Cleverson e Kleber sublinham que a linguagem é sistêmica, é estrutural, independe, assim, da situação cultural ou manifestação individual. Eles lembram que Saussure assinalou a linguagem como capacidade humana de se comunicar com seus semelhantes através de signos, por isso ela é tanto matéria do pensamento – nível do conteúdo, como realidade do pensamento – nível da expressão. Portanto, é ao mesmo tempo física, fisiológica, psíquica ede domínio social. A língua é a manifestação cultural da linguagem, tanto que é um código sígnico articulado e utilizado por uma comunidade humana particular (franceses, chineses, africanos, brasileiros, etc). Neste sentido, dizem os autores que “a língua pressupõe um grupo social e esse não é concebível sem aquela. [...]. A língua é ao mesmo tempo, um produto social da linguagem e um conjunto de convenções normativas, necessárias, arbitrárias adotadas pelo corpo social que regula o exercício dessa faculdade pelos indivíduos.” (BASTOS: CANDIOTTO, 2007, p.15- 16). É importante ressaltar que a língua é dinâmica, isto é, está aberta às alterações ou reconfigurações decorrentes do processo sociocultural e histórico. A fala, tal como diz Mondin, é forma concreta e individual do sistema, conforme os significados pessoais. É a execução psicofísica da linguagem. Ademais, “é uma práxis individual, manifesta em um ato momentâneo, fruto e função de necessidades psicológicas, comunicação e expressão.” (BASTOS: CANDIOTTO, 2007, 16). Estes elementos – linguagem, língua e fala refletem alguns níveis importantes. Em primeiro lugar o referente, enquanto situações do mundo correspondentes, por sua vez, ao conteúdo sinalizado que determinam as condições de significação e verdade; ou ainda é Signo “sentido mais geral, designa, assim como o símbolo, o índice, ou o sinal, um elemento A – de natureza diversa, substituto de um elemento .” (DUBOIS 2004, p. 541). Signo refere-se, pois, a índice, sinal e símbolo. Indica, portanto, algo diverso de si mesmo como a pomba que remete à ideia de paz ou o punho erguido e fechado indicando luta. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 155 o designado por uma expressão quando a linguagem se refere aos estados de mundo. A sintaxe refere-se à análise da estrutura interna dos signos em níveis de conteúdo e expressão. Todavia, convém ressalvar que normatividade, hierarquização e prescrição de uma língua dependem de fatores (ideologias, poderes, juízos de valores etc.) externos à sintaxe. A semântica, terceiro lugar, representa o signo linguístico em relação aquilo que ele se refere. Trata-se, portanto, de uma mediação homem-mundo e homem-homem e, neste sentido, a semântica não sendo neutra pode, consequentemente, reproduzir traços ideológicos. Por fim, no aspecto pragmático considera-se a dinamicidade do signo linguístico, isto é, uma cadeia de interpretantes põe em ação ou exercitam a complexidade sígnica. É conveniente que, a partir destes elementos, se indague: em que consiste propriamente a essência da linguagem? Rabuske responde reportando-se a Eugenio Coseriu que em sua obra Homem e sua Linguagem afirma a linguagem primeiramente como atividade cognoscitiva efetivada mediante símbolos. E enquanto atividade ela é repetida e repetível diversamente, por isso, liga-se ao produto (língua), porém vai além dele; além disso, a linguagem é uma atividade criadora a partir da herança linguística. Em segundo lugar, a linguagem é expressão com significado objetivo. Battista Mondin explica a distinção entre o significante, que se refere a uma realidade tal qual denotada e estruturada pela linguagem, e o significado, que diz respeito ao modo parcial e histórico pelo qual a língua falada atualiza o significante. (Exemplo: a palavra terra é um significante que tem sentido aferido por uma estrutura de linguagem particular onde o significado tem conotação sociopolítico, cultural e religiosa). A origem e trajetória da linguagem Uma questão inicial é a seguinte: como se originou a linguagem? Existem pelo menos quatro teorias básicas, a rigor, não excludentes: a primeira diz que a linguagem foi recebida de Deus ou da Natureza. 156 FILOSOFIA Defensor desta tese, Humboldt argumenta que se o homem é o que é pela linguagem, logo ele não pode ser o autor da mesma. A segunda, atualmente mais comum, é que ela se origina da evolução, sendo esta, para alguns, determinada pela onomatopeia e, para outros, pela convenção. No primeiro caso, as palavras possuiriam sentido necessário; no segundo o sentido das palavras seria arbitrário. Desta discussão, conforme Marilena Chauí, chegou-se à conclusão de que enquanto a linguagem é natural, em função da predisposição físico - anatômica e nervosa – do homem para a palavra a língua é cultural em decorrência das condições histórico- geográficas e econômico-políticas, portanto, é convencional. A terceira teoria argumenta que a linguagem surge da necessidade: fome, sede, abrigo, segurança, afeto etc. A partir de um vocabulário rudimentar a linguagem tornou-se complexa, transformando-se em língua. Enfim, a quarta afirma que a linguagem surgiu das emoções: grito (medo, surpresa, alegria), choro (dor, medo) e do riso (bem- estar felicidade). Chauí refere-se, neste caso, a Rousseau que no seu Ensaio sobre a Origem das Línguas, diz: “[...] as primeiras línguas foram cantantes e apaixonantes antes de serem simples e metódicas.” Historicamente, a reflexão mais remota da cultura ocidental é a crítica da linguagem desenvolvida por Platão no Crátilo, onde, segundo Manfredo Oliveira, o filósofo imprime uma “discussão entre o naturalismo e o convencionalismo linguístico.” Embora admitindo que haja razões nos segmentos, não adota, contudo, nenhum deles. Sua tese básica é de que pela linguagem não se atinge a verdade, o real é conhecido sem a mediação da linguagem. A contemplação das ideias – diálogo da alma consigo mesma independe das palavras. Com efeito, a linguagem tem função posterior, ou seja, enquanto instrumento, ela é designativa: designa em sons o que o intelecto percebeu sem ela. Os estoicos no século I a.C. elaboraram uma importante teoria da linguagem quando afirmavam que as sensações, a memória e a experiência formam as ideias racionais. Deste processo surgem os conceitos. “A representação, sendo intelecção pela qual se reconhece a verdade das coisas, permite que haja assentimento, compreensão e pensamento.” (LACERDA, 2004, p. 20). Mais tarde em Agostinho, a linguagem serve para ensinar ou recordar; além disso, serve à fala Onomatopeia é uma unidade léxica criada a partir de um som natural, como o cocoricó que imita o canto do galo. Jean Dubois et.all observa já Saussure tratava a onomatopeia como situação marginal. Os autores ressalvam ainda o seguinte: “A teoria da arbitrariedade do signo opõe-se radicalmente a uma concepção onomatopaica da origem das línguas.” (DUBOIS, 2004, p. 441). Cleverson Bastos e Kleber Candiotto, em seu livro Filosofia da Linguagem (Ed. Vozes, 2007), tem uma unidade que trata exatamente das bases genética, anatômica e evolutiva da linguagem, especialmente da sistematização cerebral. Escola Estoica ou Estoicismo (as lições eram dadas sob os pórticos - stoá, de Atenas) foi um movimento filosófico registrado entre os séculos IV a.C e III d.C, representado por Zenão, Epícteto, Sêneca e Marco Aurélio. Uma afirmação básica desta escola é que a felicidade humana depende da prática da virtude e, consequentemente, da recusa radical aos sentimentos e paixões. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 157 interior, ou seja, ao pensamento de palavras aderidas à memória, o que implica absorção das coisas pela mente. As palavras são sinais das coisas. Ainda no tempo medieval, o problema dos universais impõe o debate sobre a relação entre os conceitos e as coisas. Para nominalistas como Guilherme de Ockam reais são os entes particulares, os universais estão na mente apenas como formas e não como substâncias. Na aurora dos tempos modernos, René Descartes assegurou queo pensamento independe das línguas; aliás, a linguagem à medida que intermedeia a relação entre o ser e o pensamento pode ofuscar o conhecimento claro e distinto do seres. Esta tese cartesiana influenciou a teoria de Lancelot e Arnauld e sua Gramática de Port-Royal, onde a língua é um sistema de signos e as palavras um “envoltório” das ideias. Subjacente aos signos, há um sistema lógico de ideias e juízos. Ora, como estes se relacionam com a realidade, é o que demonstra a Gramática. O inglês John Locke, com seu empirismo, atribui à linguagem um papel mais relevante e complexo, de modo que ela transmite pensamentos mediante sinais que são, a rigor, marcas externas de ideias internas. Ora, o significado traduz uma ideia que advém da experiência, sem a qual a mente é apenas uma folha em branco. Também Hobbes nota que a linguagem é a mais nobre e útil invenção humana, tanto que por ela é que existem homens, Estado, sociedades e contratos. Com efeito, sinais servem para registrar, aconselhar, expressar vontades. Além disso, seguindo princípios nominalistas, ele afirma que verdade e falsidade são atributos não das coisas, mas da linguagem. Entremos agora em tempos contemporâneos, onde a diversidade de perspectivas analíticas sobre a linguagem atesta a relevância e a complexidade do assunto. Tem razão Ghiraldelli quando afirma: “Assumindo que o século XVIII foi o século da razão e o século XIX, o século da história, então podemos dizer que o século XX foi o século da linguagem.” (JUNIOR, 2008, p. 7). Manfredo (1996, p. 11), reporta- se a uma afirmação de Karl-Otto Apel, segundo a qual “a linguagem se transformou em interesse comum em todas as escolas e disciplinas filosóficas da atualidade.” Certos linguistas como Chomsky e Pinker, advogando em favor dos universais linguísticos, têm em comum entre outras teses, a seguinte: “Todos os idiomas possuem elementos estruturais básicos comuns: assim como cada idioma possui suas regras de geração (gerativas), também existem regras gramaticais gerais, que se aplicam a todos os idiomas, como sujeito, verbo, objeto direto. Fenômeno que só pode ser explicado se houver componente inato significativo para o desenvolvimento da linguagem.” (BASTOS; CANDIOTTO, 2007, p. 114). Pinker, particularmente, assegura que a linguagem surgiu por uma reestruturação e adição de circuitos vocais nos cérebros dos primatas. A propósito, observam Cleverson e Kleber, que esta é uma tese inerente à unidade da chamada virada biológica da linguagem no estudo do desenvolvimento da linguagem. 158 FILOSOFIA Contudo, pouco antes da metade do século XIX, o grande linguista e filósofo alemão, Wilhelm von Humboldt, interessando-se por traços fundamentais dos fenômenos linguísticos, já observava que a fala humana não poderia reduzir-se uma coleção de palavras. “A verdadeira diferença entre as línguas não é de sons ou sinais, mas de perspectivas de mundo. Uma língua não é um simples agregado mecânico de termos. [...]. A linguagem não é uma coisa pronta, mas um processo contínuo; é o esforça reiterado da mente humana no sentido de usar sons para expressar pensamentos.” (CASSIRER, 2001, p. 200). Aliás, é neste século que surge a linguística, enquanto estudo científico da linguagem. A análise da linguagem contemporânea necessariamente pelo estruturalismo nas primeiras décadas do século XX na Europa, é pertinente a nota de Cassirer quando frisa: “Para o estruturalismo [...] cada linguagem não é um simples agregado de sons e palavras; é um sistema. [...]. Cada idioma tem sua estrutura própria, tanto no sentido material como no formal.”(CASSIRER, 2001, p. 205). Neste sentido estrutural, Ferdinand Saussure, um dos pioneiros, assegura que o objeto da linguística é a análise do signo que é arbitrário, isto é, a relação entre significante e significado. Para ele, “o signo linguístico é uma entidade psíquica de duas faces: uma imagem acústica (significante) de um conceito (significado). Esquematicamente: SIGNO = CONCEITO + IMAGEM ACÚSTICA VINCULADA SIGNIFICADO SIGNIFICANTE Outra relevante distinção saussuriana, é a seguinte: linguagem é a soma da língua e da fala; enquanto instrumento tem um lado social. A língua é o conjunto de regras: fonológicas sons; morfológicas formação, estrutura e classificação; sintáticas palavras, orações, período, discurso e semântica evolução e significado e fala é a parcela concreta , individual, da língua que é posta em ação por um falante é uma situação real de comunicação. A teoria de Saussure influenciou o estruturalismo posterior de teor funcionalista, refletido principalmente em dois movimentos: o Círculo De acordo com Bárbara Weedwood, o termo linguística a partir de meados do século XIX designa um novo estudo da língua em relação à filologia tradicional. Imagem acústica, correlato psíquico do som material que evoca um conceito.” (Cleverson e Kleber). Estruturalismo - Cleverson e Kleber observam que Estrutura é um conjunto de elementos entre os quais existem relações de forma que toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta modificação dos outros elementos e relações. Especificamente, no campo da linguagem, estruturalismo é a tentativa de descobrir atrás das aparências, além da organização aparente do objeto, estruturas inteligíveis que expliquem certo funcionamento, e isso num campo que se relaciona com a atividade humana, individual ou coletiva. A referência ao estruturalismo é a publicação em 1916 do Curso de Linguística Geral de Sausurre, obra póstuma fruto das anotações de seus alunos. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 159 de Praga e o Círculo de Copenhague. Da primeira Escola, destacam-se Trubetzkoy e Jakobson. O primeiro, distingue fonética como ciência dos sons da fala de fonologia – ciência dos sons da língua. Esta última só considera um som que tem determinada função numa língua. “O fonema é a soma das particularidades fonológicas pertinentes que uma imagem fônica comporta” e “os sons concretos que figuram na linguagem são antes simples símbolos materiais dos fonemas.” O segundo, Jakobson, destacou, entre suas contribuições, que os signos enquanto elementos distintivos de uma língua possuem doze oposições binárias. Nove delas quanto à sonoridade: vocálico/não vocálico, consonantal/ não-consonantal, compacto/difuso, tenso/frouxo, sonoro/surdo, nasal/oral/descontínuo/contínuo, estridente/doce e brusco/fluente e três quanto à tonalidade: grave/agudo, rebaixado/sustentado e incisivo/raso. E ainda: que a comunicação linguística envolve fatores fundamentais: remetente (emotivo), contexto (referência), contato (fato), destinatário (conato), código (metalinguagem) e mensagem (poética). À segunda Escola pertence Hjelmslev, o qual afirma, basicamente, que a língua é um sistema a partir do qual se elaboram textos que possibilitam outros. E neste contexto, o signo é fundamental porque funciona, designa, significa. O linguista norte-americano Noam Chomsky, por sua vez, critica tanto o behaviorismo de Bloomfield (para quem o significado implicaria relação entre estímulo e reação verbal), como o estruturalismo vigente. Em contrapartida, assegura a tese da distinção fundamental entre o conhecimento que um indivíduo tem de uma língua (competência) e o uso ou desempenho concreto da mesma (performance). Neste sentido, comenta Weedwood (2002, p. 133): “os falantes usam sua competência para ir muito além de suas limitações de qualquer corpus, sendo capazes de criar e reconhecer enunciados inéditos, e de identificar erros de desempenho.”A competência é vista, com efeito, como a capacidade psicológica do homem. Portanto, lembra a autora que, para Chomsky, o estudo da linguagem não deveria se limitar à descrição da competência. Noam Chomsly (1928) Fonte: http://www.google.com.br De fato, a fala de cada pessoa não implica um desempenho ou nuance particular de expressão, no interior de sua própria língua? 160 FILOSOFIA Consideremos, agora, uma outra relevante perspectiva de abordagem que adveio com o Pragmatismo e seu paradigma Semântico. Neste vertente, a semiótica de Peirce acentua as referências sígnicas. Um signo é um símbolo se aquilo que ele apresenta lhe é convencionalmente associado. Um signo é um índice quando a(s) ocorrência(s), liga(m)-se àquilo que ele é índice (fumaça-fogo; sintoma-doença) e o signo é ícone quando em parte remonta-se àquilo de que é signo (signo icônico das maquetes dos arquitetos, as fotografias), por isso é um tipo “degenerado”. Frege, em sua teoria da significação, atribui à semântica, duplo sentido: denotação e sentido. Todo nome designa algo e possui um sentido. Para ele, observa Manfredo, a linguagem possui três dimensões: signativa (sinais linguísticos), objetiva (objeto designado) e significativa (sentido). Frege introduz, assim, a capital distinção entre sentido e referência. “A referência é o próprio objeto de que se fala por meio de uma expressão linguística. A referência é algo extralinguístico. É nada menos que o mundo exterior, ao qual, em última instância, concerne a linguagem. (ARMENGAUD, 2006, p. 33).” O clássico exemplo, “estrela da manhã” e “estrela da tarde” tem a mesma referência – Vênus, porém, tem sentidos diferentes. “Para Frege, o pensamento que a frase expressa é o que se modifica. ‘A Estrela da Tarde é Vênus’, é um enunciado que expressa uma ideia que é diferente daquela mostrada pelo enunciado ‘A estrela da Manhã é Vênus’.” (JÚNIOR, 2008, p. 91). Entretanto, Russel desconsidera a distinção fregueana entre sentido e referência. Para ele as descrições que não possuem referências são símbolos incompletos. Russel ensinava que “a forma lógica da proposição se mostraria como é o fato, sem que se ficasse perdido e embaraçado nos problemas gramaticais dos enunciados, exatamente aqueles que gerariam problemas filosóficos.” (JÚNIOR, 2008, p. 93). Rudolf Carnap é outro importante semanticista, pertencente ao Círculo de Viena. Assumindo o paradigma comum nesta corrente, admitia a ideia de que a reabilitação da filosofia consistia em torná-la rigorosamente atividade científica, rechaçando, com efeito, a metafísica que, para ele, não conduzia a nenhum conhecimento verdadeiro. Daí a articulação de uma linguagem artificial capaz de suprir qualquer falta de sentido, o que ele a designou de sintaxe lógica. Por outro lado, Manfredo Oliveira (1996, p. 84), ressalta que, para Carnap: Pragmatismo - Amengaud, sublinha duas definições de Pragmática: Charles Morris que afirma que é a parte da semiótica que trata da relação entre signos e os usuários dos signos.” E Anne-Marie Diller e François Récanati dizem que ela “estuda a utilização da linguagem no discurso e as marcas específicas que, na língua, atestam sua vocação discursiva.” A pragmática, neste sentido, frisa a relevância do signo linguístico no seus aspectos semântico – enquanto relação entre signos, palavras e frases e sintático – estudo das relações entre signos entre si, das palavras nas frases ou das frases nas sequências de frases (ARMENGAUD, 2006, p. 11-12). Semiótica - De acordo com Lúcia Santaella (PUC-SP), Semiótica vem do termo grego semeion, que literalmente significa signo. Semiótica é ciência dos signos. “A Semiótica é ciência que tem por objeto a investigação de todas as línguas possíveis [...], o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção, de significação e de sentido.” (SANTAELLA, 1994, p. 13.) ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 161 [...] uma semântica se apresenta quando as regras sintáticas são completadas por regras de designação que especificam as coisas à quais as expressões linguísticas se relacionam e as regras de linguagem explicitam as condições de verdade. Além disso, para Carnap numa frase a intensão é a proposição e a extensão é o objeto designado. Convém ainda mencionar o Wittgenstein do Tratactus Lógico Philosophicus, onde o autor assegura que os pensamentos não são processos mentais, mas sentenças e proposições projetadas no mundo real. Assim, “o pensamento poderia ser totalmente expresso em linguagem, e então a tarefa da filosofia seria a de estabelecer os limites das expressões linguísticas do pensamento.” (JÚNIOR, 2008, p. 97). Nesta dimensão, preocupado com os problemas da relação entre linguagem e mundo, ele desenvolveu sua teoria do significado que a denominou “teoria da figuração”, cuja tese básica é resumida por Ghiraldelli (2008, p. 101), da seguinte forma: [...] a linguagem consiste de proposições que figuram ou representam o mundo. As proposições expressam pensamentos, e estes nada são senão quadros (figuras) lógicos dos fatos. As proposições e pensamentos espelham o mundo na medida em que compartilham algo em comum, que uma ‘forma lógica. A chamada Reviravolta Pragmática do século vinte, de acordo com Manfredo descortina um novo horizonte e uma imagem da linguagem a partir do problema do critério do sentido. Inês Lacerda observa o seguinte sobre a pragmática: Considerada como inabordável tanto científica como epistemologicamente pelos linguistas mais ‘puristas’, - aqueles cujos métodos se tornaram prática corrente tanto para a sintaxe, cujo limite é a frase gramaticalmente bem construída, como para a semântica, cujo limite é uma leitura da sentença que a traduz em termos de verdade enquanto função exclusiva dos componentes frasais - , a pragmática teve que fundar e explorar seu próprio território. [...] A virada pragmática traz como novidade o fator hermenêutico (interpretação e leitura em situação), sem o qual os papéis tão óbvios e enaltecidos do contexto e do falante ficam soltos, vagos, são chamados para resolver todas as questões e, com isso, perdem em força explicativa (LACERDA, 2004, p. 202-203). 162 FILOSOFIA Certamente, esta versão do pragmatismo ou neopragmatismo tem uma referência primordial no segundo Wittgenstein, o das Investigações Filosóficas, cujo propósito único, sublinha Inês Araújo (2004, p. 105), é “mostrar que a linguagem deve ser vista com um comportamento, como uma forma de vida, que falar é uma entre as formas possíveis de agir sobre o meio.” Ora, a linguagem enquanto ferramenta pública, é um jogo que implica uma variedade de usos: prometer, ordenar, descrever, sugerir, ironizar etc., numa palavra, “formas de vida.” A propósito deste jogo linguístico em Wittgenstein, Guiraldelli Júnior (2008, p. 106) frisa o seguinte: “Para se nomear algo não bastaria confrontar esse algo com a emissão de um som, porque solicitar e dar nomes são atividades que só podem se realizar no contexto de um jogo de linguagem.” Ademais, dado que os jogos ou usos linguísticos são públicos e não podem ser amarrados num fio único, Wittgenstein ataca o que seria uma “linguagem privada.” A língua não se restringe a um conjunto de regras da mente de um falante. Com efeito, a conclusão é clara: “não pode haver uma linguagem cujas palavras se refiram àquilo que só pode ser conhecido pelo falante da linguagem.” (JÚNIOR, 2008, p. 106). Tal como este argumento wittgensteiniano, Willard V. O. Quine, situando-se entre a analítica e o pragmatismo, com sua tese da indeterminabilidade dosignificado, entende “a linguagem como interação social que pressupõe um grupo organizado em que os falantes adquirem seus hábitos linguísticos. Desse modo, o significado não é uma entidade psíquica. É, sim, uma propriedade do comportamento – do comportamento social linguístico, social.” (JÚNIOR, 2008, p. 107). Para Quine, não se deve admitir as traduções na perspectiva de correlações de termos, como se se constatasse o significado universal dos termos na mente humana capaz de mediar a linguagem, aceitando-se, com efeito, a ideia de “semânticas acríticas”. A fluidez histórica das articulações teóricas da pragmática atingiram um estágio diferenciado com teria dos atos de fala, cujo primórdio é a seguinte convicção: “a unidade mínima de comunicação humana não é nem a frase nem qualquer outra expressão. É a realização A propósito, Guiraldelli exemplifica que a palavra “dor” não depende de uma definição solitária da sensação, mas integra-se, essencialmente, num jogo de linguagem comunitário. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 163 (performance) de alguns tipos de ato.” (ARMENGAUD, 2006, p.99). O pioneiro dessa concepção é o filósofo de Oxford, John Langshaw Austin. Compreendamos que, partindo do princípio de que a teoria dos atos de fala é um estudo sistemático entre os signos e seus intérpretes, Austin distingue os enunciados constatativos (os de pura constatação) dos performativos (dos inglês to perform) que a rigor executam uma ação. Neste caso, uma fala implica alguma ação: afirmar, perguntar, ordenar, prometer, descrever, felicitar, sugerir, culpar-se, suplicar, desafiar, autorizar etc. É por isso que Manfredo (1996, p. 157), ressalta que, para Austin, cada ato de fala é uma realidade complexa e, por isso, “para tentarmos captar a ação linguística em sua totalidade, faz-se necessário, em primeiro lugar, tentar analisar suas diferentes dimensões.” Austin distingue, então, os atos de fala em: locucionários – “totalidade da ação linguística em todas as suas dimensões, [...] cada procedimento linguístico é, pois, um tipo de ação humana, isto é, um ato locucionário.” (OLIVEIRA, 1996, p. 157). Quem diz: “este cachorro é perigoso”, diz algo analisável foneticamente; exprime uma frase num idioma particular (comunidade linguística) e afirma algo sobre um animal. Ilocucionários quando a fala implica ação, “é aquele que se executa na medida em que se diz algo. [...]. Trata-se da determinação não do significado, mas do papel exercido pela expressão na linguagem.” (OLIVEIRA, 1996, p. 159). Quem disse: “este cachorro é perigoso”, quis informar? Fazer um juízo? Advertir? Perlocucionários quando expressões provocam sentimentos, pensamentos e ações de outras pessoas. Quem disse “este cachorro é perigoso” teve a intenção de afastar as pessoas do animal. Mas também ficar convencido, irritado, intimidado, emocionado etc. são também efeitos perlocionários. Enfim, convém destacar que em sua teoria dos atos de fala e, chamando atenção, particularmente, para os atos ilocucionários, Austin destaca cinco categorias e seus respectivos verbos: veriditivos – pronunciam veredictos oficiais e não-oficiais (avaliar, estimar); exercitivos – proferem decisões favoráveis ou não (ordenar, suplicar, aconselhar); compromissivos – comprometem o falante com uma ação (aderir, prometer, jurar); expositivos – explanam concepções (afirmar, De fato, a obra capital de Austin sobre o assunto tem o apropriado título: “Quando Dizer é Fazer”. Poderíamos dizer que nossa formação institucional ocidental (família, igreja, escola), nossa vivência social (Estado, Justiça, Entidades, Igreja) e as nossas relações sociais, teriam uma prática exaustiva de verbos de comando e obediência, refletindo, com efeito, uma tradição de moralismos e poderes do centro às terminações sociais, como diz Michel Foucault? 164 FILOSOFIA objetar, aceitar) e comportativos – incluem reações/atitudes antes os outros (aplaudir, contestar). Filiado também a essa teoria dos atos de fala, o filósofo norte-americano John Searle, ressalta Manfredo (1996, p. 172), entende que uma filosofia da linguagem “pretende chegar a descrições esclarecedoras de determinadas características universais da linguagem, como por exemplo: referência, verdade, significação etc.” Por isso, ele também é um autor situado nesta área da pragmática voltada para os atos de fala. De fato, Searle (2000, p. 127), afirma: “[...] sempre que eu emitir uma dessas rajadas acústicas em situação de linguagem normal, pode-se dizer que realizei um ato de fala. [...]. Faço uma afirmação, uma pergunta, dou uma ordem ou faço um pedido, explico algum problema científico ou prevejo um evento.” Assim, Manfredo (1996, p. 173) frisa que para Searle, “aprender uma língua e dominá-la significa aprender a dominar as regras desse tipo de comportamento.” Com efeito, a linguagem é um comportamento intencional regrado. Embora reconheça a relevância do estudo de Austin, Searle (1995, p. 18) destaca certos limites na teoria desse autor, na seguinte crítica: A taxionomia de Austin depara-se como (no mínimo) seis dificuldades inter-relacionadas; em ordem crescente de importância: há uma confusão constante entre verbos e atos, nem todos os verbos são verbos ilocucionários, há sobreposição demais entre as categorias, muitos dos verbos catalogados nas categorias não satisfazem a definição dada para a categoria, e, o que é mais importante, não há princípio consistente de classificação. Searle propõe então a seguinte taxionomia alternativa: assertivos – comprometem o falante com a proposição expressa (reclamar, concluir, deduzir); diretivos – induzir o ouvinte a fazer algo (pedir, permitir, desafiar); compromissivos – Searle assume a definição austiniana; expressivos – expressam situação psicológica de sinceridade (agradecer, condoer) e declarativos – exitosa correspondência proposições- realidade (palavra-mundo). As perspectivas abertas desde Wittgenstein II até Searle, como se percebe, impuseram à Pragmática como telos principal, os entendimentos subjetivos. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 165 Ora, este paradigma contraiu atualmente maior notabilidade e, consequentemente, amplos debates por conta de Habermas, o herdeiro vivo da Escola de Frankfurt. Ele redimensiona a linguagem, sobretudo teoria dos atos de fala no sentido da Pragmática Universal. Realmente a guinada pragmática habermasiana situa-se num programa que reconfigura, inclusive, o conceito de racionalidade. No princípio da década de 80, Habermas (1987, p. 16) já assinalava que por “racionalidade antes de tudo, a disposição de sujeitos capazes de falar e agir para adquirir e aplicar um saber falível.” Recentemente ele o ratifica da seguinte forma: Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se orienta performativamente por pretensões de validade...” ( HABERMAS, 2004a, p. 102). Entretanto, a partir de sua compreensão de Pragmática, Habermas ressalva que as teorias da semântica formal (Frege, Russel, Wittgenstein I e Carnap), do significado (Wittgenstein II e Quine) e dos atos de fala (Austin e Searle) à medida que se embasam no empirismo e priorizam as estruturas lógicas da linguagem, localizam-se numa tradição analítica que “se interessam antes de tudo pela função representativa da linguagem e pela estrutura propositiva de sentenças afirmativas simples, enfocando assim a relação entre a sentença e o fato.” (HABERMAS, 2004b, p. 51-52). Observe esta afirmação de Habermas: muito mais do que traduzir o mundo, a linguagem tem uma vocação intersubjetiva. E é neste sentidoque ele situa conceito e função Pragmática Universal: [...] pleiteia a pretensão de reconstruir a capacidade dos falantes de insertar de tal sorte orações em referência a realidade, que essas orações podem assumir as funções pragmáticas de exposição, autoexposição e estabelecimento de relações interpessoais (HABERMAS, 1989, p. 332). De modo mais explícito ele argumenta que quando um falante pela pretensão de validez aduz razões em prol da validade do ato de fala, “o ouvinte que reconhece as condições de aceitabilidade e compreende o que é dito, é desafiado a tomar uma posição, baseado em motivos racionais..” (HABERMAS, 1990, p. 82). Então, é assim na possibilidade do entendimento universal, que Habermas acentua pelo menos quatro pretensões básicas de validez incluídas nos atos de fala: compreensibilidade (mensagem), verdade Flávio Beno Siebeneichler (um dos tradutores de Habermas no Brasil), explica que com a Pragmática Universal, Habermas pretende “reconstruir sistematicamente as estruturas presentes em toda e qualquer situação de fala possível...” (SIEBENEICHLER, 1989, p. 90). Ou seja, a Pragmática trata de expressões específicas que situam os falantes em realidades igualmente específicas de fala. Assim, ordenar, pedir, concordar, reagir, indagar, negar, afirmar etc. situam-se em interlocuções específicas. 166 FILOSOFIA (conteúdo), correção e justeza (conteúdo normativo) e sinceridade (subjetividade/expressividade). O local privilegiado de exercício, legitimidade e aferição dessas pretensões, é exatamente o discurso ao qual Habermas (1997, p. 42) dá a seguinte definição: ‘Discurso racional’ é toda tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições de comunicação que permite o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Compreendamos então que, para Habermas, o discurso se constitui, assim, na teoria habermasiana, o espaço legítimo onde a linguagem sob a égide da liberdade e da democracia envolve os sujeitos e seus processos discursivos. É neste campo que se pode operacionalizar os consensos racionais e, ao mesmo tempo, detectar os pseudo-consensos. Para tanto, Habermas propõe o que ele chamou de situação de fala ideal, onde “as comunicações não somente não vêm impedidas por influxos externos e contingentes, senão tampouco pelas coações que se seguem da própria estrutura da comunicação. A situação de fala ideal exclui as distorções sistemáticas de comunicação.” (HABERMAS, 1979, p. 153). Embora contrafáticas, por isso ideais, seus quatro postulados são: igualdade comunicativa; igualdade de fala; igualdade de expressão subjetiva; e igualdade de correções regulativas. Podemos encerrar este tópico sobre a linguagem reforçando que com Habermas, à luz da sua racionalidade comunicativa o paradigma da linguagem traduzido numa Pragmática Universal em que se elege o discurso e neste, precisamente, as condições ideais de fala, constituiu-se, efetivamente, uma possibilidade legítima, científica e politicamente correta de propor, analisar, avaliar, criticar e reconstruir questões que envolvam os diversos mundos. Desta forma, portanto, não há como negar que a linguagem cumpre sua magnânima natureza de comunicabilidade e, principalmente, suportar a atuação do homem no processo emancipatório da civilização. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 167 A CULTURA A cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. (Ruth Benedict) Diante desta epígrafe, a princípio, podemos levantar algumas questões: a) Poderia ter existido por acaso algum povo desprovido da lente dessa cultura pela qual enxerga-se o mundo? b) Um tipo de lente (pense numa orientação ideológica) pela qual determinado povo interpreta o mundo, não poderia gerar exata- mente uma visão distorcida do mundo? c) No mundo hodierno, chamado pós-moderno, que categorias ou ti- pos de lentes fornecem ou alimentam, sobretudo ideologicamente, nossa compreensão de mundo? A rigor compreendamos que todo homem nasce numa estrutura complexa de formas, práticas, linguagens, simbologias e instituições; numa palavra: num ethos específico. Ora, a essa herança do recém- nascido dá-se nome de cultura. E neste sentido, é procedente o que Ullmann (1990; p.85), afirma: As gerações humanas surgentes são plasmadas e moldadas pelas gerações que as antecederam ou com elas convivem. [...]. Assim, forma-se um elo de continuidade, não invariável e rígido, mas mutável, de acordo com as circunstâncias do momento histórico, dentro do princípio já aludido, de que o homem aprende a viver e pode aprender a viver melhor. Na verdade, como afirma o antropólogo brasileiro, José Luís, o desenvolvimento da humanidade é demarcado por contatos e conflitos impregnados nas diferentes maneiras de constituir a socialidade, de apoderar-se dos recursos da natureza e transformá-los em prol da manutenção da vida e de compreender e traduzir de alguma forma a realidade circundante. “A cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nações e sociedades e Quando escreviam com E (Ethos) os gregos diziam literalmente “costume”. 168 FILOSOFIA grupos humanos.” (SANTOS, 1984, p. 8). E é neste sentido, que estudos sobre a cultura devem ajudar a compreender o complexo universo da cultura e, com efeito, a combater os preconceitos e, ao mesmo tempo, estabelecer uma orientação para respeito e dignidade das relações humanas. Evitando, assim, comportamentos etnocêntricos e daí as xenofobias. Conceitualizações Enquanto realidade complexa, a cultura pode ser sublinhada por diversos conceitos. Mércio Gomes observa que em 1950 Alfred Kroeber catalogou mais de 250 definições de cultura. Edward Tylor por volta de 1871 teria elaborado o primeiro conceito científico de Culture - cultura, compreendendo-a “como complexo que inclui conhecimento, fé, arte, moral, lei, costume e outras capacidades e hábitos, adquiridos pelo homem enquanto membro duma sociedade.” (RABUSKE, 2001, p. 46). Régis de Morais (1992, p. 23) destaca que para Herskovits, “a cultura é a parte do ambiente feito. Vele dizer, tudo, absolutamente tudo que em nosso mundo nasceu da inteligência, da intencionalidade e da habilidade do ser humano se objetiva em algo que é cultura.” Jean Ladrière, por sua vez, admitindo à luz da antropologia cultural a cultura como conjunto de instituições funcionais e normativas que, por conseguinte, impõem modelos de personalidade e esquemas de vida, afirma precisamente, o seguinte: A cultura, desse ponto de vista, não é outra coisa senão a sociedade mesma, tomada em sua realidade objetiva, enquanto impõe aos indivíduos que dela fazem parte certo estilo de existência. [...] como a Etnocentrismo, para o antropólogo Everardo Rocha, “é uma visão do mundo onde nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e de todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência.” (ROCHA, Everardo, P. G. O que é Etnocentrismo. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984). Xenofobia – aversão a coisas e pessoas estrangeiras” (Dicionário Ilustrado Barsa), portanto, ao que é diferente do meu grupo da minha sociedade, da minha cultura. Culture - Roque Laraia frisa que “no final do século XVIII [...] o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilzation referia-se principalmenteàs realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832- 1917) no vocábulo Culture.” (LARAIA, 1992, p. 25). Preconceitos, desrespeitos, conflitos, violências, guerras, não são geradas justamente de pensamentos e atitudes etnocêntricas? ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 169 ciência e a tecnologia, e os valores que encerram, podem situar-se, em definitivo, em relação aos sistemas culturais? [...]. Por um lado, deve permitir ao ser humano encontrar-se no mundo e interpretar-se a si mesmo como ser humano. [...]. Por outro, dever permitir-lhe orientar-se tanto em sua vida individual quanto em sua vida coletiva, congregar suas atividades numa visada unificadora capaz de conferir um sentido aceitável em seus empreendimentos (LADRIÈRE, 1979, p. 77 e 2002). Este sentido de cultura como construção sintoniza-se com aquele proposto pelo antropólogo brasileiro Mércio Gomes (2009, p. 36): a “cultura é o modo próprio do ser humano em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte inconsciente, constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o Absoluto, e enfim, reproduzir-se.” Ademais, conforme José Luís dos Santos, duas concepções de cultura devem ser consideradas. A primeira compreende cultura como tudo que caracteriza a existência social de um povo ou ainda grupos dentro de uma sociedade. Quando falamos de cultura chinesa ou cultura guajajara estamos nesse conceito. A segunda refere-se às ideias, às crenças e ao conhecimento bem como às formas de existência social. Neste caso, ao falarmos da cultura guajajara, estamos falando da língua, da política, das relações de gênero, da religião, das festas, das táticas de caça etc. Enfim, de aspectos que compõem o nível de conhecimento desse povo indígena. Ora, quando ajuizamos a cultura alheia a partir dos paradigmas da nossa, tendemos a considerar exótico o que nos é diferente e partir disso, num eventual encontro de culturas, achamos que o outro precisa adequar-se ao nosso sistema cultural - aculturar-se, porque nos julgamos superiores. Este fenômeno antropológico inadmissível, como já vimos, é a típica postura etnocêntrica, isto é, “julgar a cultura do ‘outro’ nos termos da cultura do grupo do ‘eu’” (ROCHA, 1984, p. 13). A partir dessas ideias, nós agora podemos admitir as orientações de Rabuske, sobre alguns caracteres gerais inerentes à cultura: a) Todos os homens tiveram e têm cultura. Nenhum povo pode ser considerado desprovido de cultura; 170 FILOSOFIA b) A cultura é produção e produto. É atividade de cultivar e o resultado desta atividade; c) O sujeito da cultura é o homem, mas também é objeto. A rigor, entenda-se sujeito como o universo dos membros de uma sociedade; d) A cultura é uma estrutura. Há uma diversidade de segmentos culturais que não podem ser menosprezados; e) A cultura é teleológica. Conforme diferentes perspectivas a cultura tem diferentes finalidades f) A cultura é plural. Há tantas culturas tanto quanto são os povos. Natureza e Cultura Régis de Morais (1992, p. 29) acentua a seguinte ideia de natureza do pensador russo V. Mezhúiev: “natureza é tudo que surgiu e existe por si mesmo, por via natural, independentemente da vontade e dos desejos dos homens; cultura é aquilo que foi criado, elaborado e aperfeiçoado pelo homem, acomodado a ele por suas necessidades e exigências.” De inspiração marxista, este pensador realça que a cultura se diferencia da natureza, porém, simultaneamente, a pressupõe, de modo que a fronteira entre ambas não é absoluta, mas relativa. De fato, em Marx encontramos a ideia dessa correlação natureza- cultura através, obviamente, do homem, como bem explicita, a partir de Marx, o pensador francês Auguste Etcheverry (1975, p. 145), nas seguintes palavras: O homem encontra a natureza não só em si próprio, mas também no exterior. A sua dependência em relação a ela é radical, no ato de conhecimento e para a satisfação das suas tendências e necessidades. [...] Uma análise profunda da práxis revela um diálogo contínuo entre o homem e a natureza. A natureza enriquece evidentemente o homem e forma-o; contudo, o homem, por sua vez, domina a natureza e transforma-a. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 171 Na sua Ideologia Alemã, Marx (1984, p. 15), diz que “[...] os homens se distinguem dos animais assim que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física.” É neste sentido, que também Marx afirma que o homem à medida que humaniza a natureza, humaniza-se também, indicando com isso que a partir e sobre o mundo natural, o homem ergue o próprio mundo humano. Saindo um pouco dessa linha mais próxima de Marx, Rabuske retoma a relação natureza-cultura, isto é, impulso natural e tendência cultural, a partir da vida sexual e da nutrição. No primeiro caso, ele toma como referência a proibição do incesto e afirma que a causa da proibição não se embasa no pavor de que crianças de pais consanguíneos sejam defeituosas, porém que a aversão por relações sexuais em tais situações já reflete internalização de regras ou valores culturais. Do ponto de vista da alimentação, o autor frisa que a nutrição não se restringe a uma satisfação simplesmente biológica. Neste sentido, vejamos então que rituais, proibições, seletividades, hábitos, etiquetas, gastronomias, culinárias particulares e sofisticadas etc. em torno do alimento demonstram bem que “a cozinha é um lugar de manifestação da passagem da natureza à cultura.” (RABUSKE, 2001, p. 52). Ademais, o autor cita oportunamente as palavras de Levi-Strauss, as quais concluem bem esta parte: “Todas as tentativas que empreendemos para reduzir explicativamente fenômenos culturais a fenômenos naturais de modo causal ou mecânico, se mostraram como más soluções, que não levaram avante a Etnologia.” (RABUSKE, 2001, p. 53). Batistta Mondin observa que as relações entre natureza e cultura foram interpretadas em algumas épocas em termos de exclusões recíprocas. Nos períodos clássico, medieval, renascentista e romântico, considerava-se a natureza como centro e a cultura como sua extensão mediada pelo homem. Inversamente, o racionalismo posterior passa a considerar natureza como campo caótico ou confuso de possibilidades, a partir do qual o homem opera autonomamente para artificializar a cultura. Podemos admitir estas perspectivas unilaterais? Não parece coerente admiti-las. Aliás, Rabuske afirma que a superação desta unilateralização possível entre natureza e cultura parece, efetivamente, mais razoável. 172 FILOSOFIA Em semelhante conclusão, convergem os autores Morais e Mondin. Para o primeiro, “ao mesmo tempo em que há uma visível separação entre o mundo da natureza e o da cultura, há uma tal interdependência entre ambos que acaba por evidenciar sua unidade essencial.” (MORAIS, 1992, p. 31). Por sua vez, Mondin (1980, p. 172), ressalta que “hoje prevalece a tendência de interpretar as relações entre cultura e natureza como uma espécie de diálogo, o qual comporta um recíproco dar e receber: por meio da cultura o homem humaniza a natureza; e vice-versa: mediante os seus recursos, o mundo naturaliza o homem.” Cultura e Sociedade Você sabe que a sociedade, obviamente, diz respeito a um conjunto de indivíduos que vivem em grupos e em geral partilham de situações comuns de existência. Estas situações se representam como instituições e categorias sociais. Família, local de vivência – zona rural ou urbana, trabalho, educação, etc. – são exemplos evidentes de que asatitudes dos indivíduos são influenciadas pelas expectativas que se tem em relação a eles conforme se integrem nelas. Ora, quando se fala em visões de mundo e atitudes, já se fala de cultura, porque esta é o espelho do modo de ser partilhado por seus membros. A cultura é assim uma dimensão da sociedade, diz Mércio Gomes. Este autor ressalva que na grande maioria das sociedades hodiernas a participação dos indivíduos nos bens materiais e simbólicos não é equitativa, logo tem-se uma situação óbvia de desigualdade social, evidenciando no mundo capitalista, principalmente, a categoria classe social que, por sua vez, sobrepõe-se instituições e dimensões sociais. Com efeito, um dos caracteres básicos das classes sociais é o conflito, este motivado pela diversidade de participação qualitativa dos indivíduos, definida, por sua vez, conforme nível ou situações econômicas. A cultura, na verdade, observa Gomes, é um modo de ser da sociedade e que uma de suas funções é estabelecer a coesão ao que está dividido. Especificamente, numa sociedade de classes desiguais, apesar do ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 173 desequilíbrio haveria uma cultura com força agregadora, que favoreça, dessa forma, uma identidade comum. Conclui, então, o autor: “A cultura seria uma vivência que mantém o todo, que produz a unidade daquilo que é desigual. Seria uma categoria de conservação.” (GOMES, 2009, p. 46). Cultura como bem de produção e bem de consumo Para começarmos nossas reflexões sobre este tópico, façamos inicialmente a seguinte questão: as expressões culturais humanas só são compreendidas no interior da estrutura socioeconômica, ou ao contrário, a cultura independe da conjuntura econômica? O cientista social brasileiro Álvaro Vieira Pinto, à luz de uma leitura de inspiração notadamente marxista teoriza a cultura sob a compreensão de que esta é simultaneamente produzida e consumida pelo homem, no interior da conjuntura socioeconômica capitalista, demarcada, por natureza, pela divisão de classes. Portanto, seu conceito de cultura sendo essencialmente realista é levar em conta a inserção conjuntural e, consequentemente, os limites da conceitualização. Vamos tomar doravante como referência para o conceito de cultura o que escreve Vieira Pinto, em sua importante obra, Ciência e Existência de 1979. Ele começa dizendo que a cultura é uma criação humana, decorrente da complexidade das operações que ascendentemente este animal precisa desenvolver para assegurar a própria existência. Deste modo, a cultura está intimamente vinculada ao processo de hominização, no sentido de que a partir do contato inventivo com o mundo natural o homem processualmente vai inserindo contornos mais definidos de seu pensamento, consequentemente, destacando o mundo cultural do mundo natural. Hominização é um termo de cunho antropológico para designar, de modo geral, o processo de evolução humana em todas dimensões. 174 FILOSOFIA Vieira Pinto (1979, p. 123), neste sentido, afirma: Desde os primórdios a cultura tem esses dois componentes: os instrumentos artificiais, fabricados para prolongar e reforçar a ação dos instrumentos orgânicos de que o corpo é dotado a fim de opor-se à hostilidade do meio; e as ideias que correspondem à preparação intencional, sempre social, e à antevisão dos resultados de tal ação. Neste contexto de relação produtiva do homem sobre o mundo natural, a cultura na dupla situação bem de consumo e bem de produção, como bem explica o autor nestes termos: [...] bem de consumo enquanto resultado, simultaneamente materializado em coisas e artefatos e subjetivado em ideias gerais, da ação produtiva eficaz do homem na natureza; e de bem de produção no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida, de subjugação da realidade pelas ideias que a representam, constitui a origem de nova capacidade humana, a de realizar em prospecção os possíveis efeitos de atos a realizar, de conceber novos instrumentos e novas técnicas de exploração do mundo, e criar ideias que significam finalidades para as ações a empreender (PINTO, 1979, p. 124). Entretanto, em sociedades desiguais estes dois bens são, por conseguinte, desequilibradamente distribuídos, de maneira tal que apenas uma parte minoritária enquanto detentora dos bens culturais, formando assim a classe dos privilegiados – os “cultos”, enquanto as massas que somente manejam os bens de produção e só raramente consomem os bens de consumo, por isso adquirem, ideologicamente, a aparência de parte “inculta” da sociedade. Ora, quando se toma o conceito de cultura exclusivamente como complexo de conhecimentos científicos, criações artísticas, operações técnicas, enfim, como infinitas produções da inteligência humana, descuida-se intencionalmente ou não do paradigma da lógica dialética, pela qual se pode apreender a cultura fundamento-a no processo de produção. De fato, diz Vieira Pinto (1979, p 126): “o homem produz a cultura por uma necessidade existencial, para se apropriar dela, pois é por meio dela que chega a postular as finalidades da sua ação.” O conceito de massa para o filósofo espanhol Ortega y Gasset é o seguinte: “A massa é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas. [...] é o monstrengo social, é o homem enquanto não se diferencia de outros homens, mas que repete em si um tipo genérico. [...] é todo aquele que não se valoriza a si mesmo – no bem ou no mal – por razões especiais, mais que se sente ‘como todo mundo’, e, entretanto, não se angustia, sente-se a vontade ao sentir- se idêntico aos demais.” (GASSET, 1971, p. 51-2). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 175 Num trecho seguinte de forma eloquente o autor explica a dialética em que se entrelaçam homem, produção, cultura e alienação. Quando dizemos que o homem é um bem de produção queremos entender com isso que deve ser um bem de produção de si mesmo, para si mesmo, ou seja, que sua ação sobre a realidade deve ser utilizada apenas em benefício de cada homem, para torná-lo mais humanizado na sua compreensão de mundo e nas relações com seus semelhantes. Se, porém, como de fato acontecerá, o homem se torna um bem de produção não para si exclusivamente, mas para o outro, e portanto se converte em instrumento de utilização alheia, desaparece a dignidade que o caracterizava como produtor de si mesmo pela mediação da cultura que fora criando e acumulando, e se estabelece um regime de convivência injusto e desumano.” (PINTO, 1979, p. 126). Como se percebe, a cultura não se explica em termos idealistas como um mundo abstrato de ideias e produções artísticas afluídas de um espírito especulador e reflexivo. Ao contrário, é a realização do homem por si mesmo mediante a ação produtiva localizada numa estrutura social concreta. Realmente a base da separação de classes, em decorrência da posição do sujeito no sistema de produção de bens, enraíza-se na dualidade da cultura que em suas formas materiais e objetivas são ao mesmo tempo bem de consumo e bem de produção. À medida que o saber aumenta a produção, ocorrem as especializações na criação e apropriação da cultura, resultando, então, na divisão social do trabalho. Assim, “o processo de distribuição da cultura [...] se vê corrompido pela introdução da desigualdade na apropriação do conhecimento e dos bens materiais dele resultantes entre grupos sociais, que se destacam, divergem e a seguir se contrapõem uns aos outros.” (PINTO, 1979, p. 127). Observemos, então, que neste cenário, como salienta Vieira Pinto, por um lado verificamos um grupo minoritário e dominante, que apropria- se da parte ideal de criação cultural,enquanto a imensa maioria se vê forçada a apenas operacionalizar os produtos materiais da cultura; por outro, percebemos que o mesmo grupo dominante além de absorver os produtos de fabricação mas o próprio homem enquanto instrumento produtivo. Chega-se, portanto, à extrema forma de apropriação distorcida da cultura. 176 FILOSOFIA Ora, percebamos que esta distorção reforça uma suposta aura sobre os homens de “conhecimento puro” porque produzem, por exemplo, as teorias científicas. Realmente, a classe trabalhadora, nesta compreensão é considerada incapacitada, porque é privada da capacidade de conhecer as propriedades dos corpos que manuseiam e de definir a finalidade das coisas que produz. Este tipo de interpretação conduz a constatação a seguir: O trabalho manual [...] fica votado a um plano inferior de dignidade. Se os produtos que a classe trabalhadora elabora são consumidos pela outra, torna-se compreensível que esta valorize soberanamente sua qualidade de consumidora, depreciando as massas, que permanecem estigmatizadas pela obrigação de produzir. A classe superior [...] não se julga ociosa; muito ao contrário, acredita que se entrega à mais valiosa de todas as formas de produção, a mental, a das ideias (PINTO, 1979, p. 131). Historicamente, observa o autor, o trabalho intelectual sempre prevaleceu sobre o manual ou prático, pelo menos até a Renascença (séculos XV e XVI) e a Revolução Industrial (século XVIII), quando então, embora continuasse a desvalia do trabalho produtor de bens começou-se a perceber que “não havia outra forma de arrancar da natureza o segredo de suas forças, para serem postas a serviço dos grupos sociais poderosos, senão manipulando-a diretamente, tal como milenarmente o faziam os escravos e os artesãos.” (PINTO, 1979, p. 133). Não é que se eliminou aquela divisão das categorias de trabalho e no campo especificamente da cultura sobressaiu-se a chamada “cultura tecnológica”. De fato, quando os operários, por exigências técnicas adquirem competências e habilidades para manusear as máquinas menos ou mais sofisticadas, partem sempre de baixo para cima e geralmente monitorados pelos guardiões do saber abstrato. Não obstante, acompanha-se nos tempos modernos o fortalecimento inovador de uma dialética pela qual passa-se a compreender a cultura como mediadora de toda realização. Com efeito, nesta perspectiva de aproximação do pensador teórico e do trabalhador prático, ressalta Vieira Pinto (1979, p. 134), o seguinte: ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 177 A cultura é simultaneamente operação inteligente exercida no mundo material e ideação operatória na esfera do pensamento.[...]. A cultura é um produto do existir do homem, resulta de vida concreta do mundo que habita e das condições, principalmente sociais, em que é obrigado a passar sua existência. Destarte, à medida que o homem atua sobre a realidade mediando as relações entre ele mesmo e o mundo, possibilitando sua existência, então ele, o homem, encorpa ou realiza sua vocação de artifex, de construtor. Pela sua práxis, portanto, como diz Lima Vaz, é efetivamente um fazedor de obras (ergon/opus), sobrepondo-se, em certo sentido, sobre o mundo natural (physis). Nas sábias palavras de Vieira Pinto (1979, p.136): Só o homem na sua atividade construtiva cria cultura, porque só ele, ao mesmo tempo em que opera sobre a natureza e obtém produtos do engenho, cria no pensamento ideias que representarão a realidade, a ação que pratica, e que por isso podem tornar-se guias e princípios para a organização dessa atividade. Enfim, a cultura, enquanto ideia, axiologias, conceitos e teorias científicas, gera-se a si mesma através de operações práticas, da descoberta de propriedades fenomênicas e da produção econômica dos bens indispensáveis para a vida social. A liberdade: a perspectiva sartreana Consideremos inicialmente o seguinte trecho da canção “Viagem” (disco “Vê Luz”) interpretada pelo cantor maranhense Carlinhos Veloz: Não há nada que me impeça de sempre seguir Cruzar a estrada não deixar ninguém me confundir Falando sério eu não me importo como que vão pensar Eu sei meu rumo só não sei que dia vou chegar. [...] Não me disfarço das vontades que estou afim, A carne é fraca e eu sou assim; Por isso eu me perdoo antes de você. Por que me necessito pra sobreviver. [...] Deixa eu viajar....Deixa eu viajar.. 178 FILOSOFIA A poesia da música não estaria de certa forma afinada como esta expressão célebre de Sartre: o homem é condenado a ser livre [...], porque uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer? É agora no campo da liberdade que vamos nos permitir pensar e discutir criticamente o que seja o homem livre. Inicialmente é importante acentuarmos que o problema da liberdade põe imediatamente duas perspectivas opostas: há os que não acreditam na possibilidade de escolha e há que os que a identificam com a ausência de qualquer constrangimento. Segundo o biblista P. Grelot (1986; p. 9), o homem real, imerso no processo histórico, experimenta inevitavelmente três tipos de dependências. A dependência cósmica “porque estamos imersos no cosmos e dele dependemos.” Dependência sexual, “porque ninguém pode escolher entre ser homem e ser mulher, entre nascer e não nascer, e, no entanto, isso pode condicionar toda nossa experiência concreta”. Dependência histórica “porque pertencemos ao gênero humano e somos condicionados pelos que nos precederam e por aqueles com os quais convivemos.” Entretanto, tomando como premissa o fato de que a liberdade é uma condição essencialmente humana tal com aparece à luz da compreensão de Sartre, não há determinismos a priori incidindo sobre o homem. De fato, o homem livre (eleuteria) para os gregos é o não escravizado, que possui o espírito de liberdade. Conforme esta compreensão, liberdade significa decisão e ação sem nenhuma determinação causal, seja externa (ambiente em que se vive), seja interior (motivações psicológicas ou emotivas). Ser livre é, portanto, ser incausado. Não obstante, Ferrater Mora diz que, de modo geral a liberdade pode ser considerada em três sentidos: liberdade natural, entendida como a “possibilidade de furtar-se (pelo menos parcialmente) a uma ordem cósmica predeterminada e invariável, a qual se apresenta como uma ‘forçosidade.’” (MORA, 1994, p. 407). Em segundo lugar, na esfera social ou política a liberdade fundamentalmente como autonomia ou independência. Claro, fala-se aqui de uma noção de relação muito Pode o homem ser absolutamente livre ou a liberdade sem a presença de determinações é impossível? Na Grécia, a eleutéria opunha-se à douléia (servidão do escravo). Trata-se da liberdade social e política que gozava o cidadão ateniense. Por exemplo: direitos à palavra em assembleia, a pedir contas ao magistrado, de ser julgado por um tribunal sem temer pressões. A rigor, “o ateniense era livre a vida cotidiana como bem entendesse, educar seus filhos [...] trabalhar ou ser ocioso, viajar, etc.” (MOSSÉ, 2004, p. 117). ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 179 superficial entre liberdade e política. De passagem, é conveniente notar que para Hannah Arendt, por exemplo, a razão de ser da política é a liberdade. As experiências totalitárias a levaram a questionar, porém, se política e liberdade não se excluiriam: “[...] com as formas de governo totalitárias [...], surge a questão de saber se política e liberdade são, de algum modo, conciliáveis, [...] se a liberdade, de certa maneira, não começa apenas lá onde a política termina...” (ARENDT, 1993, p. 118). Apesar dessa explícita frustração, relembremosque, para ela, a liberdade e a política condicionam-se simultaneamente. Em terceiro lugar, Ferrater Mora destaca que a liberdade pode chamar-se pessoal ou autônoma, neste caso, entretanto, como “independência das pressões ou coações procedentes da comunidade, quer como sociedade, quer como Estado.” (MORA, 1994, p. 408). Neste sentido, do conceito de liberdade do sujeito é que se pretende acentuar exatamente como Jean-Paul Sartre o propõe no texto “O Existencialismo é um Humanismo”, de 1946. A célebre frase sartreana, “o homem está condenado à liberdade”, significa justamente que o homem não é dado por natureza, mas é o que se faz no processo da existência. “[...] quando declaro que a liberdade, através de cada circunstância concreta, não pode ter outro objetivo senão o querer-se a si própria, quero dizer que, se algum homem reconhecer-se que está estabelecendo valores [...] ele não poderá mais desejar outra coisa a não ser a liberdade como fundamento de todos os valores...” (SARTRE, 1978, p. 19). O homem não efetiva nenhum conceito predeterminado pela inteligência divina. A liberdade proposta por Sartre exclui a existência de Deus, pois “não há natureza humana visto que não há Deus para a conceber. [...]; o homem não é mais que o que ele faz.” (SARTRE, 1978, p. 6). O homem livre apropria-se de sua vida e, por isso, é responsável pelo que lhe aconteça. Para Sartre, a existência precede a essência. Ele aparece no mundo e depois é que se define. Como bem observa Borheim (2007, p. 32), “a liberdade não tem essência, instaura-se desprovida de qualquer necessidade lógica. [...], pois a liberdade se explica como fundamento de todas as essências.” 180 FILOSOFIA Observemos esta afirmação encontrada em Sartre: Nada é dado a priori ao homem. Logo, não há nenhuma projeção prévia sobre o homem, como do artífice sobre sua obra. Reagindo aos que o acusavam de existencialista pessimista, ele responde: “Não existe nenhuma doutrina mais otimista, tendo em vista que o destino do homem está em suas próprias mãos, [...]; o existencialismo diz-lhe que a única esperança está em sua ação e que só o ato permite ao homem viver.” (SARTRE, 1978, p. 15). Assim, mesmo em situações mais adversas possíveis o homem está ininterruptamente em ação de escolha. É neste sentido, pois, a condenação à liberdade. [...]. Condenado porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é lançado ao mundo, é responsável por tudo que faz.” (SARTRE, 1978, p. 9). Ora, sendo a liberdade um fazer-se, Sartre afirma que em sua natureza é criativa. Nessa atualização da escolha, o homem engaja-se. Gilles (1975, p. 33), comentando esta afirmação sartreana, diz o seguinte: [...] a primeira condição da ação é a liberdade, que permite à consciência tomar distância face ao mundo do qual é consciência e face a seu próprio passado, [...]. E sabemos que o homem é livre porque não é a não ser presença a-si, e que a liberdade é precisamente esse nada no cerne da realidade humana, que o obriga a se fazer, em vez de ser. De fato, para Sartre, o homem é, sendo projeto de si próprio durante sua vida no mundo e isso o engaja na responsabilidade. “[...] é em face dos outros que escolhemos e nos escolhemos a nós.” (SARTRE, 1978, p. 19). Entretanto, à medida que o homem foge à liberdade, adota uma conduta de má-fé, que Sartre (1978, p. 19) explica claramente: Se definimos a situação do homem como uma escolha livre, [...] quem inventa um determinismo é um homem de má-fé. [...] A má-fé é evidentemente uma mentira, porque dissimula a total liberdade do compromisso. [...] direi também que há má-fé, escolho declarar certos valores existentes antes de mim... Mas o homem que assume sua condição de escolha, assume-se como livre e, consequentemente, tendo que decidir e por isso vive constantemente um estado de angústia que, para Sartre, não mais ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 181 significa senão “o homem ligado por um compromisso e que se dá conta que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira...” (SARTRE, 1978, p. 7). Para quem imagina que a liberdade como Sartre a prega seja individualista, equivoca-se totalmente. Como ele mesmo frisa, a liberdade responsável implica engajamento que reconhece a consciência do semelhante. Ele é, portanto, enfático quando diz o seguinte: Ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas uma vez que há ligação de um compromisso, [...] só posso tomar a minha liberdade como um fim se tomo igualmente a liberdade dos outros como fim. (1978; p. 19) Neste aspecto o conceito satreano aproximaria-se do pensamento de Arendt quando ela escreve em Entre o Passado e o Futuro (1954), a unidade “Que é Liberdade?” para afirmar que a liberdade só existe na esfera da política. Sem esta, aquela fica impossibilitada de se manifestar. Com efeito, há uma inequívoca reciprocidade entre liberdade e política. “Sem ela [a liberdade], a vida política como tal seria destituída de significado. A raison d´être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação”, diz Arendt (2001, p. 192). Assim, para ela nem o conceito antigo de liberdade como fuga do mundo (vida contemplativa), nem conceito cristão de livre-arbítrio enquanto cruel dialética entre equívocos e impotências do coração presentes em São Paulo e Santo Agostinho expressam, essencialmente, a liberdade. Porque a liberdade se faz representar pela ação do homem na polis, realizam-se ao mesmo tempo: “A liberdade como fato demonstrável e a política coincidem e são correlacionadas uma à outra como dois lados de uma mesma matéria.” (ARENDT, 2001, p. 195). Portanto, a liberdade compreendida sob a luz do pensamento sartreano, e também em Arendt, como acabamos de ver, nos conduz a uma conclusão clara: o homem é basicamente protagonista de seus projetos assumidos na perspectiva da humanidade. E mesmo que haja uma Parafraseando Sartre, um individuo que decida fumar diante de um tanque inflamável não é livre, mas um insensato ou aloprado. Alguém que decida aleatória e futilmente depredar bens públicos (escolas, praças, prédios, hospitais, telefones etc); passar trotes na polícia ou serviços de saúde (ambulâncias) ou atitudes do genêro, pode ser considerada um pessoa livre? Ou antes, é um permissivo cujas ações negam o sentido real da liberdade? 182 FILOSOFIA prova da existência de Deus, em nada se altera esta sua angustiante responsabilidade, que apenas em condição de má-fé poderia recusá- la, entretanto, já não seria um ser condenado à liberdade. CONCLUSÃO As reflexões que acabamos de tratar sobre a linguagem, a cultura e a liberdade intentaram basicamente explicitá-las como dimensões fundantes da natureza humana. Ressaltamos com Susanne Langer, que a linguagem é a invenção mais importante e misteriosa da mente humana. De fato, dos tempos arcaicos mitológicos aos “pós-modernos” cibernéticos, a linguagem revela-se como um “médium” entre o homem, o mundo e o tempo. A fala identifica o homem, disse Rousseau, e é também, para Gusdorf, a senha para o mundo, que é campo de cultura e espaço de liberdade. Historicamente o fenômeno da linguagem envolvendo, principalmente, sua origem, estrutura e funções suscitam importantes teorias e debates. Já em Platão a encontramos como instrumento designativo do intelecto; Para Agostinho ela é, sobretudo, um sinal das coisas e um diálogointerior. Entre Descartes e Hobbes é assumida como intermediária, portanto, funcional, seja entre o ser e o pensamento ou entre as relações e contratos sociais. Todavia, a partir do advento da Linguística – “ciência que estuda a língua com métodos próprios”, com Ferdinand de Sausurre, behavioristas, estruturalistas, semanticistas, pragmatistas, entre outras correntes, são travados complexos e frutuosos debates resultando em mais informações e questões em torno dos elementos fenomenológicos da linguagem. Especialmente desde a virada pragmática, autores como Wittgenstein (II), Austin, Searle, Apel e Habermas, entre outros, tomando-a na perspectiva do discurso, estimulam os debates. Em Habermas, como frisamos, a discursividade racional condiciona qualquer proposta emancipatória. Ora, a linguagem é co-extensiva ao mundo cultural. Este, afirma Herkovitz, é “a parte do ambiente feito”, ou como diz José Luis Santos, ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 183 é tanto a existência social como o conhecimento complexo de um povo. Com efeito, universalidade, estrutura, teleologia e pluralidade culturais são subconceitos agregados e, portanto, inerentes às culturas; importantes, inclusive, para precaver ou advertir atitudes etnocêntricas. Todavia, além dessa compreensão, é importante perceber a cultura inserida num contexto de relações de produção como nos mostrou Vieira Pinto, onde podemos apreendê-la em níveis de produção, distribuição, equalização, fragmentação, hierarquização, alienação no interior de uma comunidade específica. A autarquia dos indivíduos no interior de um mundo cultural se exprime na condição de liberdade. Sartre nos mostrou que não há mundo a priori, nem qualquer força externa determinante. Cada indivíduo apropria-se de sua vida assumindo escolhas que incluem os outros e, por conseguinte, angústias e abandonos. Omitir-se ou subjugar- se é vergonhosa atitude de má-fé. Ora, um sujeito livre é também responsável. Enfim, política e liberdade são categorias recíprocas, aprendemos com Hannah Arendt. Para Susanne Langer a linguagem é o produto mais importante da mente humana. A partir desta ideia, realce o papel decisivo da linguagem para civilização humana. Antes de responder, veja, se puder, o filme nacional “Narradores de Javé.” Em que os pragmatistas diferem dos estruturalistas em termos de função da linguagem? Discuta com seus amigos e comente a importância e os limites da teoria do discurso de Habermas envolvendo questões locais ou universais. Se possível, aponte alguns exemplos de êxito ou fracasso do discurso. 184 FILOSOFIA Invertendo a frase de Ruth Benedict, estaria certo dizer que o mundo vê (ou conhece) o homem pela lente de sua cultura? É comum percebermos associação do termo cultura a produções artísticas e conhecimentos. Para além destas restrições, Vieira Pinto relaciona o conceito de cultura às condições de trabalho e sobrevivência, logo à divisão de classes. Converse com seus amigos e exponha seu ponto de vista sobre esta correlação. Discuta com alguém e interprete a famosa frase de Sartre “a existência precede da essência.” Após ter estudado a tese sartreana da liberdade, que aspectos você considera importantes e que outros (se for o caso) você considera inconvenientes ou críticos? Se você conseguiu algum dos filmes sugeridos, explicite brevemente a relação com o respectivo assunto ao qual se refere. 4 5 6 7 8 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 185 1. Dimensão da linguagem • Narradores de Javé. (Brasil, 2003 – direção: Eliana Café) Filme relata de forma humorística o desafio de uma comunidade (Javé) narrar sua história para registro de um funcionário dos correios 2. Cultura • A encantadora de baleias (Nova Zelândia, 2003 – direção: Niki Caro) Excelente reflexão sobre cultura, questão de gênero, diversidade e preconceito • A marvada carne (Brasil, 1985 – direção: André Klotzel) Filme pode ser visto da perspectiva da cultura popular e globalizada • A caminho de Kandahar (Irã, 2001 – direção: Mohsen Makhmalbaf) Filme retrata questões como a diversidade cultural e de gênero e política. 3. Liberdade • Um grito de liberdade (Inglaterra, 1987 – direção: Richard Attenborough) Excelente abordagem sobre os temas da liberdade e da discriminação • Um sonho de liberdade (EUA direção: Tim Hobbes) Excelente filme sobre o problema e o desafio da liberdade humana. 186 FILOSOFIA TEXTOS COMPLEMENTARES Estudo da linguagem e teoria da linguagem Louis Trolle Hjelmslev A Linguagem – a fala – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influência e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a experiência, é quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças as lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do desenvolvimento dessas coisas. HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978 p. 179. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 187 Agir Comunicativo versus Agir Estratégico Jurgen Habermas O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados. Através de ações de fala são levantadas as pretensões de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo. A oferta contida num ato de fala adquire força obrigatória quando o falante garante, através de sua pretensão de validez, que está em condições de resgatar essa pretensão, caso seja exigido, empregando o tipo correto de argumento. O agir comunicativo distingue-se do agir estratégico, uma vez que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais de ação, mas na força racionalmente motivadora de atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente. HABERMAS, Jurgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 71 Teoria da Cultura Álvaro Vieira Pinto A cultura é uma criação do homem, resultante da complexidade crescente das operações que