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Taguatinga/DF 2019 DAYNARA VITOR PEREIRA O INFANTICÍDIO INDÍGENA À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 2 Taguatinga/DF 2019 O INFANTICÍDIO INDÍGENA À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade Anhanguera, como requisito parcial para a obtenção do título de graduado em Direito. Orientadora: Carina Kamei DAYNARA VITOR PEREIRA 3 DAYNARA VITOR PEREIRA O INFANTICÍDIO INDÍGENA À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade Anhanguera, como requisito parcial para a obtenção do título de graduado em Direito. BANCA EXAMINADORA Prof(a). Titulação Nome do Professor(a) Prof(a). Titulação Nome do Professor(a) Prof(a). Titulação Nome do Professor(a) Taguatinga/DF, ___ de ___ de ______. 4 Dedico este trabalho a Deus, à minha família, ao meu namorado, aos meus amigos e a todos os que acreditam no meu potencial. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, autor da vida, meu refúgio e fortaleza, por realizar os meus sonhos e me dar saúde e forças para superar todos os momentos difíceis pelos quais passei ao longo da minha graduação, sem Ele nada disso seria possível. À minha mãe, Alminda Vitor Soares, heroína e guerreira que não mede esforços para me ajudar, por todo o apoio e incentivo nas horas difíceis, de desânimo е cansaço, por suas orações e pelo seu amor incondicional, os quais me mantêm firme. Aos meus irmãos Paulo, Raiane, Dayane e Natalia por serem meus melhores amigos, pelas palavras de ânimo, pelo incentivo, companheirismo e pelo amor fraterno. Ao meu namorado Tiago pelo amor, respeito, companheirismo, compreensão, e por me motivar a alcançar meus objetivos. Aos meus sobrinhos João Pedro, Cecília e Luísa pelo mais puro amor e por me proporcionarem momentos de alegria e distração. Aos meus cunhados Alex e Paulo Silas pela amizade, motivação e companheirismo. Às minhas grandes amigas Fabiana, Hadassa e Maria Cristina por tornarem a caminhada acadêmica mais leve e feliz. Aos meus nobres amigos Raine e Aleilson pela amizade e motivação. Ao corpo docente do curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Brasília por todo o conhecimento transferido durante esses anos. À minha tutora Carina Kamei pelo profissionalismo e pela atenção. Aos meus familiares e a todos os que, direta ou indiretamente, fizeram parte da minha formação acadêmica e acreditaram que eu conseguiria realizar este grande sonho, meus sinceros agradecimentos. 6 Que todos os nossos esforços estejam sempre focados no desafio da impossibilidade. Todas as grandes conquistas humanas vieram daquilo que parecia impossível. (Charles Chaplin) 7 VITOR, Daynara. O infanticídio indígena à luz do ordenamento jurídico brasileiro. 2019. 32. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Faculdade Anhanguera de Brasília, Taguatinga/DF, 2019. RESUMO O infanticídio indígena é o ato pelo qual os pais, por razões culturais, são forçados a tirarem a vida do próprio filho que, porventura venha a nascer com alguma necessidade especial, ou por outros motivos que façam com que o bebê não seja aceito pela comunidade indígena. Várias tribos íncolas ainda cometem esses atos cruéis, valendo-se da proteção legal advinda da diversidade cultural. A Constituição Federal, no entanto, classifica a vida como direito fundamental inerente a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, indiscriminadamente, garantindo, assim, sua inviolabilidade. Desta forma, o presente estudo tem por escopo analisar o conflito resultante da relação entre os direitos fundamentais tutelados pela Constituição Federal e a diversidade cultural, com foco na proteção à vida, tendo em vista que os preceitos normativos constantes no ordenamento jurídico brasileiro abrangem a todos, não sendo, pois, justo que a cultura de um povo se sobreponha à soberania da lei universal, razão pela qual se buscará as respostas a respeito do tema, compatíveis com o real sentido e finalidade da lei. Palavras-chave: Infanticídio indígena; Constituição Federal; Direitos; Vida; Cultura. 8 VITOR, Daynara. Indigenous infanticide in the light of the Brazilian legal system. 2019. 32. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Faculdade Anhanguera de Brasília, Taguatinga/DF, 2019. ABSTRACT Indigenous infanticide is the act by which parents, for cultural reasons, are forced to take the life of their own child who may be born with some special need or for other reasons that make the baby not accepted by the community indigenous. Several lowland tribes still commit these cruel acts, using legal protection from cultural diversity. The Federal Constitution, however, classifies life as a fundamental right inherent in all Brazilians and foreigners residing in the country, indiscriminately, thus guaranteeing its inviolability. In this way, the present study has as scope to analyze the conflict resulting from the relation between the fundamental rights protected by the Federal Constitution and the cultural diversity, focusing on the protection of life, considering that the normative precepts contained in the Brazilian legal system cover all , therefore it is not right that the culture of a people overlaps with the sovereignty of the universal law, which is why we will seek the answers about the theme, compatible with the real meaning and purpose of the law. Key-words: Indigenous infanticide; Federal Constitution; Rights; Life; Culture. 9 SUMÁRIO 1.INTRODUÇÃO........................................................................................................10 2. AS TRADIÇÕES INDÍGENAS E A CRIANÇA COMO SUJEITO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS................................................................................12 2.1 INFANTICÍDIO INDÍGENA NO BRASIL............................................................12 2.2 DISPOSIÇÕES LEGAIS SOBRE A PROTEÇÃO INFANTIL........................... ..15 3. TRATAMENTO DISPENSADO AOS ÍNDIOS À LUZ DA LEGISLAÇÃO PÁTRIA..................................................................................................................19 3.1 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E OS DIREITOS DOS ÍNDIOS...................................................................................................................19 3.2 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E O DIREITO À VIDA.................21 4. POLÍTICAS PÚBLICAS DE ERRADICAÇÃO DO INFANTICÍDIO INDÍGENA....24 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................28 REFERÊNCIAS..........................................................................................................29 10 1.INTRODUÇÃO De acordo com o Código Penal Brasileiro, infanticídio é o ato peloqual a mãe, estando em estado puerperal, tira a vida do próprio filho, durante o parto ou logo após. Diferente do infanticídio comum, o infanticídio indígena comporta peculiaridades, dentre as quais se destacam a ausência do puerpério, caracterizado pela mudança física e mental da mulher, que resulta na rejeição do próprio filho, a inexigência da condição de neonato do filho, dados os relatos de crianças de um ano ou mais que sofreram rejeição e cujos casos se enquadraram nesta tipificação legal, bem como a não cominação de pena, haja vista se tratar de um ato cultural. O infanticídio indígena ainda é realidade em várias etnias íncolas, haja vista a determinação cultural de que a própria mãe deva ceifar a vida de seus filhos que, porventura, sejam gêmeos, portadores de necessidades especiais, filhos de mãe solteira, ou cujo sexo seja indesejado. Considerando que os índios têm seus direitos tutelados por leis específicas, o Estado se mantém inerte diante desta prática que se estende de geração a geração, a qual é vista com normalidade pelo Governo, que deveria intervir diretamente, por meio de políticas de conscientização dos povos indígenas quanto à ilegalidade deste ato e o dever de preservação da vida acima de qualquer outra coisa. Diante dos fatos supracitados, e tendo em vista a recorrente polêmica em relação à presente temática, a dúvida que surge é se os costumes tradicionais de um povo realmente podem se sobrepor ao direito à vida e à integridade física do ser humano, direitos estes plenamente tutelados tanto pela Carta Magna brasileira, quanto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Com base no que fora dito, o objetivo geral da presente pesquisa foi a análise do costume indígena do infanticídio a partir das garantias fundamentais de proteção à criança dispostas no ordenamento jurídico brasileiro. De igual modo, os objetivos específicos foram baseados no estabelecimento de um parâmetro histórico sobre as tradições indígenas, com foco no tratamento dispensado aos infantes, na abordagem sobre os direitos indígenas e sobre a ilegalidade do infanticídio indígena à luz da legislação pátria, bem como na proposta de intervenção estatal por meio de políticas públicas de erradicação pelo diálogo intercultural. O resultado do que fora proposto neste trabalho foi alcançado por meio da revisão bibliográfica, com base no estudo da legislação específica, bem como de 11 artigos publicados no decorrer dos últimos 10 (dez) anos. A metodologia utilizada, por sua vez, foi a pesquisa bibliográfica e telematizada. 12 2. AS TRADIÇÕES INDÍGENAS E A CRIANÇA COMO SUJEITO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS 2.1 INFANTICÍDIO INDÍGENA NO BRASIL O termo infanticídio originou-se do latim e advém da palavra infans, que significa criança, e da palavra caedere, que traduz a ideia de matar. Assim, o termo infanticídio é definido como “dar morte a uma criança”. No Código Penal de 1940, o infanticídio está previsto no artigo 123, com a seguinte redação: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos”. É sabido que essa prática é comum em pelo menos 13 etnias indígenas do Brasil, principalmente as mais isoladas. De acordo com dados disponibilizados pela FUNAI, segundo resultados do Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em 2010, a atual população indígena brasileira é de 817.963 mil indígenas, dentre quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 nas zonas urbanas, representando 305 diferentes etnias, que falam 274 idiomas. Este censo apontou a presença de populações indígenas em todos os Estados do país. Há também 69 referências de indígenas não contatados, além dos grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao Órgão Federal Indigenista. O infanticídio indígena acontece há séculos, desde antes do descobrimento do Brasil. Essa tradição faz pais tirarem a vida de suas próprias crianças, logo após o nascimento destas e ocorre por diversos fatores, como crianças com algum tipo de deficiência física ou mental, o nascimento de crianças gêmeas, filhos de mães solteiras, fruto de adultério ou aquelas consideradas pelas comunidades portadoras de má-sorte. Ao sentirem as contrações do parto, as mulheres vão para a floresta, e quando a criança nasce, é analisada pela mãe, que abandona o bebê na floresta ou o enterra vivo, caso constate alguma anomalia física. Entre as etnias que incorrem nessa prática, estão os Suruwahas, Ianomâmis, Kamaiurás, uaiuai, bororo, mehinaco, tapirapé, ticuna, amondaua, urueu-uauuau, deni, jarawara, jaminawa, waurá, kuikuro, parintintin, paracanã e kajabi. 13 Destaca-se que o termo em questão é usado apenas para fazer menção a essa tradição comum nas comunidades tribais, mas o fato comporta peculiaridades como a ausência do puerpério, caracterizado pela mudança física e mental da mulher, que resulta na rejeição do próprio filho, a inexigência da condição de neonato do filho, dados os relatos de crianças de um ano ou mais que sofreram rejeição e cujos casos se enquadraram nesta tipificação legal, não cominação de pena, destacando-se que existem casos de crianças de 3, 4, 11 e até 15 anos que foram mortas pelas mais diversas causas, como, por exemplo, o surgimento de alguma doença física nessa fase. Segundo os índios, o que os leva a matarem crianças com as características já citadas, é o fato de que essas crianças podem trazer má-sorte à comunidade, se tiverem muitas índias, o trabalho de caça, pesca e o sustento das famílias será prejudicado, motivo pelo qual matam mais meninas do que meninos, a fim de controlar o desenvolvimento de sua população. Júlio Jacobo, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, autor do Mapa da Violência 2014, levantamento feito para o Ministério da Justiça elaborado com dados de anos anteriores, afirma que “a pesquisa ocorreu efetivamente com as certidões de óbito e registravam crianças de cor ou raça indígena, de 0 a 6 dias de idade. E, a partir deste fato, começou-se a concluir que realmente tratava-se de uma cultura indígena meio não falada, meio oculta”. Em entrevista cedida ao Fantástico no ano de 2014, o secretário de Segurança Pública de Roraima, Amadeu Soares, falou sobre o fato de que o Estado de Roraima foi considerado um dos mais violentos do país, explicando que essa evolução ocorreu porque foi o ano em que a Secretaria Especial começou a fazer os registros desses casos de infanticídio. Segundo esses registros, Caracaraí, cidade do interior de Roraima, com apenas 19 mil habitantes, transformou-se em um dos municípios mais violentos do Estado. Em um ano, 42 pessoas foram assassinadas em Caracaraí, dentre as quais, 37 índios, todos recém-nascidos, mortos pelas próprias mães. Anualmente, enfrenta-se um desfio no levantamento de dados confiáveis sobre o número de crianças indígenas vítimas da prática do infanticídio. Por isso, nos dados estatísticos, muitas mortes ocasionadas pelo infanticídio são tidas como morte por desnutrição ou causas específicas. Nesse sentido, argumenta Marcelo Santos: 14 Não existem dados precisos [...] O pouco que se sabe sobre esse assunto provém de fontes como missões religiosas, estudos antropológicos ou algum coordenador de posto de Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que repassa as informações para a imprensa, antes que elas sejam enviadas ao Ministério da saúde e lá se transformem em “mortes por causas mal definidas” ou “externas”. Com base no CensoDemográfico de 2000, pesquisadores do IBGE constataram que para cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um ano de vida, enquanto no mesmo período, a população não indígena apresentou taxa de mortalidade de 22,9 crianças por cada mil. A taxa de mortalidade infantil entre índios e não índios registrou diferença de 124%. E a mortalidade infantil indígena chegou a 74,6 mortes nos primeiros 12 meses de vida. Embora os dados sejam exorbitantes, nas notícias do IBGE e do Ministério da Saúde não há qualquer explicação da causa mortis: (causas mal definidas - 12,5%, causas externas - 2,3%, outras causas - 2,3%). Há casos de crianças que, por nascerem portando limitações físicas, estavam destinadas à morte, mas, felizmente, tiveram outro destino. Um deles é o caso de Iganani, criança sobrevivente do infanticídio, nascida na tribo isolada do Amazonas, a Suruwaha. Sua mãe Muwaji, quando deu à luz, estava sozinha no meio da floresta e percebeu que a criança não abria as mãos e tinha “as pernas cruzadas e duras”, sua filha nasceu com paralisia cerebral. Mesmo assim, Muwaji resolveu amamentar pela primeira vez a filha, dando a ela uma identidade e o direito de viver, pois a primeira mamada é o ritual que torna o bebê um ser vivo de fato, mas seu irmão insistia que ela devia matar o bebê em nome da tradição do seu povo. Mas Muwaji enfrentou os costumes do seu povo e fugiu da tribo, para salvar a vida de sua filha e garantir seu tratamento. O caso deu origem ao Projeto de Lei n° 1.057/2007 – Lei Muwaji, a qual dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais. Outro caso muito interessante é o da menina Hakani, nascida em 1995 e filha de uma índia suruwaha. Nos primeiros dois anos de sua vida, a menina não falava, nem andava. Com a constante pressão de seu povo para matá-la, pois haviam percebido que existia algo “diferente” na menina, seus pais foram levados a se suicidarem, pois se sentiram incapazes de sacrificá-la. Assim, a responsabilidade de sacrificar Hakani após o acontecido, ficou nas mãos de seu 15 irmão mais velho, que a enterrou, ainda viva. Porém, alguém ouviu seu choro, a desenterrou e levou-a para seu avô que, como membro mais velho da família, sabia o que a tradição exigiria dele. O avô da menina munido de um arco e flecha atentou contra a vida dela, mas Hakani sobreviveu mais uma vez e tomado pela culpa e remorso, seu avô ingeriu uma porção de veneno para provocar a própria morte. Em decorrência disso, Hakani passou a ser vista pela comunidade indígena como uma “amaldiçoada” e durante três anos experimentou o abandono e viveu sob condições desumanas. Foi resgatada por um de seus irmãos, que a levou à casa de um casal de missionários que desenvolvia trabalhos na comunidade suruwaha há bastante tempo. Foi aí que Hakani recebeu tratamento médico e o devido suporte familiar. A história de vida de Hakani repercutiu nacionalmente, motivando a criação de um projeto que recebeu seu nome e reforça a campanha da ONG Atini – Uma Voz pela Vida, uma organização sem fins lucrativos, reconhecida internacionalmente por sua atuação na defesa do direito das crianças indígenas Fatos como esses acontecem corriqueiramente, sem que o Estado intervenha, muito embora o ordenamento jurídico brasileiro garanta taxativamente a proteção do direito à vida e à integridade física de todos, inclusive das crianças, não fazendo distinção entre crianças indígenas e não indígenas. 2.2 DISPOSIÇÕES LEGAIS SOBRE A PROTEÇÃO INFANTIL O ordenamento jurídico brasileiro prevê a todos, indiscriminadamente, o direito mais fundamental de todos, sem o qual os demais inexistem, o direito à vida. A Constituição Federal, nossa Lei Magna, dispõe em seus artigos 1°, III e 5°, caput, a dignidade da pessoa humana, afirmando que todos são iguais perante a lei, sem qualquer tipo de distinção, e a todos é garantido, dentre outros, o direito à vida e à igualdade. Embora a Constituição e leis específicas também disponham sobre a proteção dos costumes, crenças e tradições indígenas, não é justo que esses elementos sejam mais tutelados que o direito à vida. Ora, se a Carta Magna veda a pena de morte para os crimes mais bárbaros cometidos por agentes detentores de pleno discernimento sobre o que julga ser certo e errado, sob a pretensão de proteger a dignidade do ser humano e o direito de viver, é incontestável que o 16 Estado deve dar total amparo a essas crianças inocentes e sem culpa de portarem deformidades físicas e neurológicas, dispensando a elas e sua família meios alternativos de lidarem com o problema. Nesse sentido, Barreto afirma que: “[...] a CF/88 que reconhece o índio como diferente, sem que essa diferença possa ser confundida com incapacidade e que reconhece a capacidade do índio para ingressar em juízo na defesa de seus direitos sem depender da intermediação – alterou substancialmente a natureza do regime tutelar indígena: primeiro, esse regime passou a ter natureza exclusivamente protetiva; segundo, passou a ter estatura constitucional. Portanto, esta proteção constitucional está protegida de ataques pela via do processo legislativo ordinário”. (2009, p. 43); [...] que seria o cúmulo da contradição invocar a tutela indígena como base de entendimentos que coloquem em risco, ou não protejam, o direito mais importante de qualquer ser humano: o direito à vida. A CF/88, numa proposta de interação, reconheceu aos indígenas direitos e também impôs à União o dever-poder de “proteger e fazer respeitar” esses direitos. (2009, p.43). Ingo Wolfgang Sarlet sustenta que: Dignidade Humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. Assim, nota-se a prioridade da proteção à vida antes de proteger culturas e tradições de um povo, e essa proteção é assegurada também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que trata dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, e da responsabilidade que a família, a sociedade e os órgãos públicos têm pela vida da criança e do adolescente. Note-se que o ECA assegura direitos à criança e ao adolescente, na literalidade do art. 3°, in verbis: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes 17 facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (incluídopela Lei nº 13.257, de 2016) O artigo 4°, por sua vez, confere à família, à comunidade e ao Estado o dever de proteger os interesses dos infantes, dispondo que: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Diante disso, resta comprovado que crianças também são sujeitos de direitos e garantias fundamentais, e esses direitos devem ser tratados com prioridade, a fim de que se garanta a elas pleno desenvolvimento físico, social e psicológico. A Declaração dos Direitos Humanos também dispõe sobre direitos essenciais do ser humano, apregoando no art. 1° que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Afirma também no art. 3° que “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, declarando que “todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito à proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do diploma legal acima exposto, declara a universalidade dos direitos humanos, reconhecendo que os direitos previstos são para todos, sem distinção alguma, de raça, cor, língua, religião, opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. “São direitos inatos, inerentes a todos os seres humanos, universalmente”. Não se tratam, pois, de privilégios conferidos a alguns, mas direitos que acompanham cada um desde a concepção, efetivando-se com o nascimento. As crianças, naturalmente, são vulneráveis, mas tendem a ser ainda mais quando colocadas em situação de risco, necessitando de proteção especial. Dessa forma, as crianças indígenas, submetidas à pena de morte pelos próprios membros 18 de suas tribos, encontram-se extremamente vulneráveis, tendo em vista a violação de seus direitos básicos. Em diversas situações essa violação ocorre a partir do consentimento daqueles que têm obrigação e condições de protegê-las e evitar esse tipo de prática. Nesse diapasão, verifica-se a essencialidade da tutela dos direitos das crianças, cabendo a todos a luta por mudanças nos grupos culturais, respeitando as tradições e culturas de cada povo, no entanto, evitando-se que se sobreponham ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, buscando dessa forma, a defesa da vida dessas crianças e o acesso aos tratamentos adequados nesse tipo de situação. 19 3. TRATAMENTO DISPENSADO AOS ÍNDIOS À LUZ DA LEGISLAÇÃO PÁTRIA 3.1 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E OS DIREITOS DOS ÍNDIOS A primeira previsão sobre direitos indígenas surgiu na literalidade do Alvará de 1º de abril de 1680, o qual reconheceu o direito de posse permanente das terras ocupadas pelos índios, o que simbolizou o início de proteção aos direitos indígenas. Em 1910, por força do Decreto nº 8.072, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), tendo sido substituído pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1918. O SPI institucionalizou a política indigenista brasileira, fundando-se no direito de autoafirmação dos indígenas e na garantia de preservação dos seus respectivos territórios. Conforme ressalta Darcy Ribeiro: “Pela primeira vez era estatuído, como princípio de lei, o respeito às tribos indígenas como povos que tinham o direito de ser eles próprios, de professar suas crenças, de viver segundo o único modo que sabiam fazê-lo”. (RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. [S. L.]: Companhia das letras, 2000, p.168). Nesse sentido, ressalta-se que a criação do SPI foi o pontapé da efetivação dos direitos dos povos indígenas, no entanto, sob influência de governantes detentores de interesses econômicos no tocante às terras indígenas, os direitos desses povos foram deixados de lado, fato que resultou na extinção do SPI, no ano de 1967 e, consequentemente, na criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que visa promover a defesa dos interesses indígenas, assumindo papel importante no processo de demarcação de terras. Posteriormente, surgiu a Constituição Federativa do Brasil de 1934, efetivando-se, então, a proteção constitucional dos povos indígenas. A partir dessa Constituição os silvícolas passaram a ser de fato reconhecidos como sujeitos de direitos e deveres, ocasião em que lhes foram concedidos direitos diversos, dentre os quais se destaca o direito a posse de seus territórios. O artigo 129 da CF/34 determinava o respeito à posse de terras dos índios que nelas estivessem permanentemente localizados. 20 A Constituição do Brasil de 10 de novembro de 1937 manteve os direitos a terra em seu artigo 154: “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.” Assim, o direito a posse das terras dos índios e a vedação da alienação foram resguardados também por essa Constituição Federal, garantindo o direito de uso e a proteção contra eventuais compradores. A Constituição de 1946, por sua vez, foi promulgada em 18 de setembro de 1946, mantendo os mesmos artigos da constituição de 34: “Art. 5º - Compete à União: XV - legislar sobre: r) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. Art. 216 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem. ” Assim, continuou assegurando o direito de terra, bem como a proibição de sua alienação. A Constituição de 1967, além de manter os direitos preexistentes, acrescentou taxativamente no artigo 186 que as terras indígenas são bens da União, in verbis: “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.” A CF/67 preocupou-se em garantir aos índios o uso dos recursos naturais existentes nas terras que eles habitavam, protegendo, portanto, essas propriedades contra possíveis vendas e loteamentos. Ao seu turno, a Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969 dispôs sobre uma mudança importante no que tange a relação jurídica: “Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.” 21 Dessa forma, tornou nulo os efeitos jurídicos de domínio, posse ou ocupação por terceiros das terras indígenas sem direito a ação ou indenização contra a União e a FUNAI. Já a Constituição Federal de 1988 deu origem a outros direitos e garantias fundamentais, propiciando a inclusão de um capítulo específico com dois artigos que traçaram diretrizes relevantes.Com a promulgação da CF/88, houve diversos avanços no tratamento conferido aos índios, como o reconhecimento de suas diferenças culturais na qualidade de habitantes primatas, garantindo-lhes a liberdade de conservarem suas crenças vivas, ao passo que não poderiam ser obrigados a se habituarem a outras culturas. A Carta Magna preocupou-se em versar sobre esses direitos, reservando um capítulo exclusivo para tratar sobre eles, além de criar outros 8 artigos distribuídos em diferentes capítulos. Dentre esses artigos, o artigo 231 foi um dos mais importantes: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” A importância do artigo supracitado encontra-se no fato de que a partir daí garantiu-se aos povos indígenas o reconhecimento de sua organização social, de seus costumes, crenças e tradições, buscando, portanto, garantir aos índios a preservação de seus valores culturais, colocando-os a salvo de quaisquer tipos de repressão. 3.2 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E O DIREITO À VIDA Em análise aos fatos supracitados, nota-se que os povos silvícolas têm direitos especiais, haja vista sua condição de habitantes originários do Brasil, detentores de crenças, costumes e tradições peculiares. Embora a Constituição Federal garanta a preservação das tradições indígenas, ela prevê também o direito à vida, elencando-o como o direito supremo, sem o qual todos os demais direitos inexistem, sendo garantido a todos, indiscriminadamente. 22 O artigo 5º da CF/88 trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, ressaltando a presença dessa disposição constitucional, o direito à vida: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]. A partir da análise dos dispositivos acima mencionados, observa-se que a Lei Maior reconhece os costumes e tradições dos povos indígenas. Neste mesmo patamar, entretanto, garante a todos, sem distinção de qualquer natureza, a inviolabilidade do direito à vida, ficando, portanto, visível o conflito existente entre esses direitos fundamentais, de um lado o Direito à Identidade cultural desses povos, e do outro o Direito à Vida. Colocando ambos os direitos na balança, o que mais pesa é o direito à vida, pois nenhuma tradição deve suprimir esse direito que cada ser humano detém, o qual é assegurado pela própria Carta Magna. Perante as limitações estatais e os instrumentos de amparo aos direitos dos povos indígenas, o Estado deve proporcionar a efetiva observância e aplicação do princípio da dignidade humana, o direito à vida, dentre outros constitucionalmente garantidos, aos índios e suas comunidades. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim como a Constituição Federal, é pautada na dignidade da pessoa humana e na garantia de melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla. Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet defende que: Dignidade Humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. 23 Dessa forma, a valorização da dignidade da pessoa humana é plenamente assegurada tanto no âmbito do direito interno, quanto por meio de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. A Declaração de Viena (1993), aprovada pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em seu artigo 5º dispõe que: Todos os Direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve considerar os Direitos humanos, globalmente, de forma justa e equitativa, no mesmo pé e com igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os Direitos humanos e liberdades fundamentais. No entanto, basear-se em uma tradição cultural para denegar um direito humano é um ato discriminatório, haja vista que a violação de um direito humano é sempre condenável, independente da cultura do indivíduo violador desse direito. Nesse sentido, os direitos humanos estabelecem um padrão legal de proteção mínima à dignidade humana, devendo, portanto, prezar pelo direito à vida acima de qualquer outra coisa. 24 4. POLÍTICAS PÚBLICAS DE ERRADICAÇÃO DO INFANTICÍDIO INDÍGENA Tendo em vista que o infanticídio indígena é uma prática desumana que vai contra as disposições legais do ordenamento jurídico brasileiro, ferindo o direito fundamental à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, nota-se a ilicitude dessa prática, despertando a preocupação em extirpá-la. A proteção à vida é um direito fundamental e independe da etnia da qual a criança indígena faz parte, esse direito é garantido por lei às crianças indígenas, tanto pela Legislação Internacional, como Convenção dos Direitos da Criança, da ONU, da qual o Brasil é signatário, como também pela Constituição do Brasil e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei n° 8.069/90, busca garantir à criança e ao adolescente o direito à vida e a condições dignas por intermédio da aplicação de políticas públicas, ressaltando a proteção e as garantias tuteladas na Constituição de 1988. Assim dispõe: Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. [...] Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Sabendo disso, é inegável que as disposições previstas no ECA também abrangem crianças indígenas, garantindo-lhes, portanto, o direito ao crescimento saudável e seguro, bem como direito à convivência familiar, comunitária e à dignidade de vida. Corriqueiramente, trabalhos voltados à conscientização dos povos indígenas são feitos nas comunidades que ainda incorrem nessa prática ultrapassada e 25 desumana, a fim de orientar os índios a deixarem de atentar contra a vida das crianças por questões culturais.Dentre as Organizações não Governamentais que desenvolvem esse tipo de trabalho, destaca-se a ONG ATINI – Voz pela Vida. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos. Com sede no Distrito Federal, atua em defesa dos direitos de crianças indígenas, especialmente vítimas da prática do infanticídio. A ONG conta com o apoio de pessoas que nutrem profundo respeito pelas culturas indígenas, tais como antropólogos, advogados, religiosos, políticos, educadores, além de líderes indígenas. O que inspirou a criação do movimento foi a história de Muwaji Suruwahá, uma mulher indígena que lutou e desafiou a tradição de sua tribo para salvar a vida de sua filha Iganani, que estava condenada à morte pela própria comunidade por ter nascido com paralisia cerebral. Seu caso ganhou repercussão nacional através de uma entrevista concedida ao programa televisivo da Rede Globo, Fantástico, que foi ao ar em outubro de 2005, sensibilizando o país ao afirmar que seria capaz de abandonar a convivência com seu povo para manter a vida de sua filha e garantir o seu tratamento. A organização tem como missão erradicar a prática do infanticídio nas comunidades indígenas, visando, desta forma, os seguintes objetivos: Promover a conscientização e a sensibilização da sociedade sobre a questão do infanticídio de crianças indígenas, abordando o assunto nos mais diversos meios de comunicação, produzindo e distribuindo material informativo, promovendo ou participando de eventos culturais, seminários e palestras em universidades, igrejas, escolas, empresas etc. Prevenir o infanticídio junto às comunidades e profissionais atuantes em áreas indígenas, produzindo e distribuindo material informativo conscientização sobre os direitos humanos e direitos das crianças. Assistir crianças em risco de infanticídio ou sobreviventes, e seus familiares. Atualmente, a Atini assiste crianças das etnias Kamayurá, Kajabi, Suruwahá, Kuikuro, Ikpeng. Nesse sentido, o projeto baseia-se no objetivo de ajudar pessoas como Atini, que se viu à beira da morte simplesmente porque nasceu em condições alheias à sua vontade, o que fez com que a comunidade na qual estava inserida condenasse sua existência, amparando os índios que, estando nessa situação, procuram meios alternativos de salvarem suas vidas. 26 A Atini busca pauta suas ações no auxílio às diversas famílias vítimas dessa prática, baseando-se nos seguintes valores: Priorização da criança e defesa do seu direito inalienável à vida. Respeito e valorização da cultura e das práticas tradicionais indígenas, desde que em conformidade com os direitos humanos reconhecidos no âmbito nacional e internacional; Participação de indígenas em todas as etapas de planejamento e execução dos objetivos. Respeito e valorização da dignidade do indivíduo, sem discriminação de natureza alguma; Prestação de conta em todas as áreas de atuação (produção de material educativo e de conscientização em direitos humanos para ser usados dentro e fora das comunidades indígenas, palestras e participação em seminários e eventos culturais em universidades, igrejas, escolas e empresas, fomento à produção acadêmica de material referente ao infanticídio etc.). É evidente que essa ONG cumpre seus objetivos, buscando simplesmente amparar os índios reféns da condenação cultural, dando-lhes a alternativa de viver e a obtenção dos direitos que lhes são inerentes. O infanticídio é proibido pelo ordenamento jurídico, mas, tendo em vista a proteção constitucional aos índios e às suas tradições, torna-se difícil tentar fazer com que eles observem a legislação aplicada aos demais cidadãos. Alguns autores têm apresentado algumas soluções, a fim de que se possa efetivar esses direitos. Piacentini entende que esse entendimento entre as culturas deve-se dar pelo diálogo intercultural, que demonstra ser um projeto filosófico e hermenêutico, não como uma meta final a alcançar, mas um processo aberto e sem fim. Esse diálogo é exercido com muita argumentação entre as culturas, o qual deve ser praticado com muita ética e respeito à diferença. (2007, p. 92). Só após um intenso diálogo intercultural é que será possível apresentar aos membros daquela comunidade ínclita que a vida é o maior bem de todos e não deve ser suprimida por questões culturais. Tomando por base os ensinamentos de Soriano, Silveira propõe quatro regras procedimentais, consideradas para se iniciar o diálogo: 1) regra da alteridade, compreendida como a capacidade de colocar-se no lugar do outro, em um exercício de abandono do etnocentrismo; 2) regra da reciprocidade, que supõe a cooperação entre as culturas, na busca por acordos e compromissos; 3) regra da autonomia, que indica a liberdade de cada cultura para estabelecer as relações interculturais que 27 desejar; e 4) regra da argumentação, pautada na observância das regras objetivas internas do discurso habermasiano, adaptados às relações interculturais (2011, p. 149). Santos, ao escrever sobre o assunto, enfatiza que o diálogo intercultural traz resultados, cita como exemplo o diálogo ocorrido na tribo Tapiraré, onde os índios tinham por costume sacrificar o quarto filho, limitando a família ao máximo de três. Freiras católicas que atuavam naquela comunidade argumentaram que a prática do infanticídio do quarto filho deveria ser repensada, tendo em vista que, já sendo reduzido o número de membros, chegaria um momento em que a tribo seria extinta frente à inexistência de índios na comunidade. Argumentos que foram aceitos pela tribo e cessou-se o infanticídio naquela comunidade. (2011, p 21) Nota-se que o único desejo universal das comunidades indígenas é o da continuidade e preservação dos seus membros; para que esse desejo continue, deve haver a valorização da vida, posto que sem vida não há cultura. (SANTOS, 2011, p. 22). O diálogo intercultural mostra-se extremamente importante, sendo o meio mais viável de pôr termo à prática do infanticídio nas comunidades íncolas. Partindo da gravidade da violação do direito à vida e à dignidade humana, é preciso que o Estado estabeleça meios eficazes para evitar que outras crianças sejam mortas cruel e injustamente por causa da imposição cultural. Até que toda a tribo chegue ao entendimento de que a prática do infanticídio é considerada um ato desumano e que existem outras soluções para os bebês que nascem com quaisquer limitações físicas, bem como da importância de preservar a vida da criança, que também é dotada de direitos e garantias fundamentais. Caso não se logre êxito na tentativa de erradicação do infanticídio indígena por meio do diálogo intercultural, é de suma importância que a FUNAI e demais órgão governamentais tenham autonomia para desenvolverem trabalhos voltados à inclusão das crianças rejeitadas pela sua tribo em alguma comunidade que reprima a prática do infanticídio, assegurando, assim, a preservação da vida e a garantia dos direitos fundamentais dos infantes, bem como sua integração social dentro dos seus padrões culturais. 28 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O infanticídio indígena ainda é realidade em várias etnias indígenas, haja vista a determinação cultural de que a própria mãe deva ceifar a vida de seus filhos que, porventura, sejam gêmeos, portadores de necessidades especiais, filhos de mãe solteira, ou cujo sexo seja indesejado, dentre outras razões que façam com que a criança seja rejeitada pela tribo. A análise dos dispositivos pertinentes ao estudo dessa cultura evidencia a necessidade de dispensar atenção especial ao infanticídio indígena, uma vez que viola direitos tutelados pela Constituição Federal e pelo Estatutoda Criança e do Adolescente, pois trata-se de um tema de enorme relevância para a sociedade, sendo grave, porém, pouco abordado tanto pela sociedade, quanto pelos líderes governamentais, motivo que desperta grande preocupação, pois somente com a divulgação e abordagem pode-se chegar à solução desse ato injusto e danoso. A partir do estudo acerca do tema, observa-se que as diversas etnias indígenas que formam o cenário cultural brasileiro, são racionais e dinâmicas, dispostas ao diálogo e argumento, visando dessa forma mudanças no seu ambiente tradicional, visto que suas tradições e costumes são resultado de escolhas e ações de seus ancestrais. É necessário, destarte, que o Governo Federal dê mais atenção a essa problemática, por intermédio da implementação de políticas públicas de conscientização dos índios, a fim de que se possa assegurar a proteção integral às crianças íncolas, garantindo-lhes o direito de nascerem, crescerem e se desenvolverem no núcleo familiar e social, sendo, acima de tudo, aceitas, respeitadas e valorizadas, visto que somente assim poderá se construir uma sociedade de fato livre, justa e solidária. 29 REFERÊNCIAS ATINI. Projeto Hakani. HAKANI, Uma menina chamada sorriso. Disponível em: <http://www.hakani.org/pt/historia_hakani.asp>. Acesso em: 17 de setembro de 2018. ATINI. 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