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C G Jung O CAMINHO DE JUNG

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1 
 
 
 
 
 
2 
 
SUMÁRIO 
 PREFÁCIO 
 INTRODUÇÃO 
 CAPÍTULO 1 AS ORIGENS 
 CAPÍTULO 2 OS ARQUÉTIPOS 
 CAPÍTULO 3 OS SONHOS 
 CAPÍTULO 4 INDIVIDUAÇÃO 
 CAPÍTULO 5 PARA LER JUNG 
 CAPÍTULO 6 ESPIRITUALIDADE JUNGUIANA 
 CAPÍTULO 7 AS QUATRO FACES DE DEUS 
 CAPÍTULO 8 GNOSE E ALQUIMIA 
 CAPÍTULO 9 JUNG E A ARTE 
 CAPÍTULO 10 CONFLITO DE GÊNIOS 
CAPÍTULO 11 RESIGNIFICAÇÃO 
CAPÍTULO 12 O CAMINHO 
 
3 
 
PREFÁCIO 
O renascimento do interesse pela obra de Jung reflete as 
condições próprias do terceiro milênio, o clima da Nova Era, 
com sua espiritualidade difusa e seu pensamento multipolar e 
fragmentado. Poderia ser a saída para a crise da psicologia 
profunda, nome sob o qual é usual incluir a psicanálise e a 
psicologia analítica, além das demais correntes que lidam 
com o conceito de inconsciente. No centro de tudo está, é 
claro, a psicanálise, cujas origens situam-se no ambiente 
sombrio dos dias finais do império Austro-Húngaro. Com a 
decadência do poder político, a intelectualidade burguesa 
vienense passou a se dedicar mórbida e compulsivamente, 
aos temas da sexualidade e da morte. A Viena de Freud não 
era mais a Viena da música alegre das valsas, mas, sim, a 
das sufocantes lembranças de um tempo perdido, o que se 
refletirá, na teoria psicanalítica, em uma preocupação 
obsessiva com o passado. Este clima pesado e inquietante 
moldou o pensamento de Freud, sem que, talvez, ele 
percebesse o quanto era vulnerável ao mesmo. Entretanto, 
na burguesa e republicana Suíça, outras correntes de 
inquietações fervilhavam sob a calma superfície de seus 
lagos, forças muito antigas e poderosas e que muitos 
julgavam desaparecidas. Dali surgiu uma alternativa para a 
psicologia sem alma de Freud, formulada por seu colaborador 
e depois rival, Carl Gustav Jung, que trabalhou com ele de 
1906 até 1913. 
 
 
4 
 
Freud preocupava-se com uma aceitação ampla para sua 
obra e temia que a psicanálise fosse vista como apenas 
um movimento cultural judaico. Recebeu Jung, portanto,
com todas as honras, tratando-o como o príncipe herdeiro, 
pois sendo o mesmo suíço e psiquiatra de reputação 
estabelecida, representava para o movimento psicanalítico 
um nível maior de reconhecimento internacional e 
diversidade. Após trabalharem juntos por sete anos, eles 
se separaram e passaram a trilhar caminhos bastante 
diferentes, mas o que os uniu, no início, foi a paixão por 
um lado da psique humana, denominado “o inconsciente”, 
ideia que, de modo vago, já circulava no pensamento do 
século XIX. 
Como escreveu Hugo Von Hofmannsthal
1
: 
Não possuímos nosso Eu. 
ele sopra de fora sobre nós, 
foge de nós por muito tempo, 
e nos retorna em um suspiro. 
A crise da modernidade provocou o surgimento de 
variados e exóticos sistemas de pensar a natureza 
humana, ou modos de ver o mundo, métodos de 
interpretação totalizantes que pretendiam ser capazes de 
explicar a nova realidade. Os que permaneceram são 
agora defrontados com a visão crítica da pós 
modernidade, encontrando o seu maior e, talvez último, 
desafio. 
1. Hugo Von Hofmannsthal (1875 1929) poeta austríaco 
 
5 
 
INTRODUÇÃO 
O tempo quente e seco criava uma atmosfera pesada e 
inquietante, prenúncio daquelas rápidas e intensas tempestades 
de verão, comuns na região de Zurique. Alguma coisa parecia 
preste a explodir e uma enorme ansiedade se apossava das 
pessoas na casa. Duas xícaras, sem que ninguém tivesse se 
encostado nelas, tinham saltado no ar e se espatifado no chão. 
Jung se inquietava, apesar de ter sido avisado em sonhos.
Nesse momento a sineta da porta soou duas vezes. A 
governanta abriu a porta, a tempo de ver a sineta se mover 
sozinha, por uma terceira vez, mas não havia ninguém lá fora. 
Voltou assustada para informar ao seu patrão, que apenas 
acenou com a cabeça, em um vago sinal de apaziguamento. 
Jung compreendeu que eles tinham chegado. “São os mortos, 
que voltaram de Jerusalém”, murmurou. Deu instruções para 
que não fosse mais incomodado naquela tarde e que iria ficar 
sozinho no seu consultório. Reclinou-se na sua poltrona e sua 
mão, aparentemente sem controle, traçou no papel o que 
parecia ser um título e que dizia simplesmente: “Sete Sermões 
aos Mortos”. Jung sorriu, enquanto os vultos enchiam a sala, a 
sua volta. Um mundo extraordinário e transparente se abria mais
uma vez para ele, um mundo que Freud jamais conheceria. 
 
6 
 
CAPÍTULO 1 
AS ORIGENS 
Freud iniciou a sua carreira como neurologista, 
dedicando-se ao estudo dos distúrbios mentais. Seus 
primeiros trabalhos foram sobre pacientes histéricas, que o 
levaram à seguinte noção: algo fala de dentro dessas 
pessoas e não é algo consciente e racional. Ele definiu esta 
parte escura da mente como o inconsciente, embora a ideia, 
em sua essência, já fora levantada por outros cientistas, 
como ele mesmo admitiu. Na sua definição, o inconsciente 
tem as seguintes características: desconhece a palavra não, 
é atemporal, amoral, não esquece nem perdoa e nele nada 
passa, nada termina. 
O inconsciente seria a sede das pulsões, não se 
deixando acessar diretamente. São os atos falhos chamados 
de deslizes freudianos, os esquecimentos inexplicáveis, as 
associações livres e os sonhos que permitirão o seu acesso, 
embora de uma maneira indireta. 
Freud representa um tipo de mentalidade própria do 
final de século XIX e começo do século XX. O estilo das 
ciências humanas, na época, espelhava-se nas teorias da 
física e o conceito de energia parece tê-lo influenciado, 
levando-o a propor um equivalente psíquico, a libido, que 
seria algo como uma energia sexual. O perigoso fascínio 
pela analogia, que contaminará a psicanálise, começava aí. 
 
 
7 
 
Há ecos também do Romantismo, como a 
passionalidade, a exaltação do conflito de opostos, a 
rebeldia contra a autoridade, o amor impossível ou 
inaceitável o incesto, em particular, a concepção do 
homem irracional e a obsessão pelo lado marginal do 
ser humano. 
Jung, por outro lado, vinha de uma família religiosa 
e desde criança tinha visões e sonhos premonitórios. 
Caso sua obra fosse analisada por um espírita, talvez 
ele poderia identificar ali um médium. Isto está muito 
discretamente colocado em suas obras, mas as 
sensações que ele descreve como imaginação ativa, 
podem ser interpretadas como o equivalente do 
chamado transe mediúnico. Jung interessava-se 
profundamente por filosofia, religião, mitologia, alquimia
e esoterismo em geral e foi ficando cada vez mais 
envolvido com misticismo. Freud, entretanto, achava 
que a psicanálise, para se firmar como ciência, deveria 
manter-se completamente afastada de qualquer 
conexão com o ocultismo, ou com qualquer forma de 
religião. 
Em 1913 ocorreu o rompimento entre Freud e Jung. 
Após ásperas trocas de cartas e muitas discussões, 
Jung é intimado a se demitir como presidente da 
Associação Psicanalítica Internacional (conhecida como 
IPA). Jung retirou-se e, do primeiro time, só Carl Riklin e 
Alphonse Maeder o seguiram. 
 
 
8 
 
Como consequência, estabeleceu-se em Zurique a 
sede da Associação Internacional de Psicologia 
Analítica (conhecida como IAAP), que congrega os 
seguidores de Jung e, em Londres, permaneceu a sede 
da IPA, Associação Psicanalítica Internacional, em torno 
dos freudianos ortodoxos, embora a situação atual seja, 
na verdade, muito mais complicada do que isto, mas 
fugiria ao assunto deste livro. Sabine Spielrein curiosa e 
trágica personagem não pode ser esquecida, pois ela 
teve um papel importante, só agora revelado, graças à 
liberação da correspondência trocada entre ela e Jung. 
Sabine começa como sua paciente. No final do 
tratamento, Jung convenceu-a a se tornaruma 
psicanalista (essas coisas eram fáceis naquela época). 
Ela tornou-se amante de Jung, que após algum tempo 
decide encerrar a relação. 
 Desesperada com o abandono, ela chegou a 
agredi-lo com uma faca. Posteriormente ela se aliou a 
Freud e teria contado ao mesmo as opiniões negativas 
que Jung tinha sobre ele, ajudando a envenenar o já 
difícil relacionamento entre os dois. 
Jung exercia reconhecidamente um grande 
fascínio sobre as mulheres, que formavam a maioria 
do seu círculo interno de discípulos, chamadas por 
muitos de as valquírias, uma alusão irônica às deusas 
guerreiras dos mitos germânicos. Esta personalidade 
carismática parece explicar muito do seu sucesso 
como terapeuta. 
 
9 
 
Podia ser de um charme extraordinário quando 
quisesse, mas muitas vezes o que aflorava era o 
temperamento de um rude camponês suíço. Muitos 
estranharam essa mistura de forte espiritualidade e 
disposição ao embate acalorado, marcas de uma 
personalidade cheia de contradições. Difícil é imaginar 
que Freud, sombrio, amargo e austero, pelos padrões 
de hoje, fosse continuar amigo dele por muito tempo. 
O psiquiatra britânico Ernest Jones, o “carrasco”
de Freud, foi o encarregado da tarefa de isolar Jung, 
conseguindo para isso o apoio da maioria dos 
membros da Associação Psicanalítica Internacional, 
através de pesadas manobras de bastidores. 
Uma disputa de ideias que, portanto, nunca foi 
resolvida por um debate aberto, algo muito estranho 
para um movimento que se pretendia, pelo menos no 
início, uma ciência. Aqui vale lembrar que o mesmo 
tratamento de choque foi aplicado aos demais 
dissidentes da psicanálise. As duas correntes 
principais em que esta se cindiu mantiveram por muito 
tempo a animosidade dos mestres e apenas nas duas 
últimas décadas os contatos entre ambas tornaram-se 
mais frequentes. Após a ruptura com Freud, Jung ficou 
livre para elaborar a sua própria variante da 
psicanálise, que ele denominou de psicologia analítica. 
Uma das suas mais importantes proposições nessa 
nova fase é que, além do inconsciente individual, cada 
ser humano compartilharia um inconsciente coletivo 
com toda a humanidade. 
 
10 
 
O inconsciente, para Jung, não atua somente como 
função do passado pessoal, como propôs Freud. 
Também gera sonhos premonitórios, percebe eventos 
paralelos em lugares distantes talvez uma forma de 
telepatia e reflete o passado remoto da humanidade. 
Um super inconsciente, ao lado do qual o proposto por 
Freud não passaria de algo bem menor. 
Ponto para Jung? Isto depende de como olharmos 
a questão. O foco mais estreito de Freud poderia ser 
mais correto cientificamente e a opção de Jung poderia 
parecer uma combinação indevida de coisas. Em seus 
escritos profissionais, Jung leva a entender que seria 
algo como uma função hereditária. Em seus escritos 
particulares, entretanto, ele parece crer em um acesso 
da mente a uma fonte espiritual coletiva. 
Conforme o caminho proposto por Jung, o 
inconsciente não é visto apenas com temor, como 
sendo apenas um depósito de recalques, mas é 
observado e praticado em uma postura de admiração e 
expectativa. 
Ele é percebido como o local primordial, pois de lá 
emana a consciência, surge alguém, um sujeito 
singular, preso a uma história acima de tudo através de 
muitas gerações, uma história que deve ter uma 
sequência. 
O relacionamento com o inconsciente se revela 
uma dialética de contínuo desenvolvimento, cujo eixo se 
encontra fora de nós e que nos escapa sempre, mas 
que ainda assim nos estrutura e nos orienta. 
 
11 
 
Se o inconsciente nos molda e nos cria, a 
consciência humana não tem uma história separada 
dele. Somos, portanto, a história dessa união e por 
isso o centro da psique será deslocado, por Jung, do 
“ego” freudiano, essencialmente um conceito 
iluminista, para um novo ponto de equilíbrio que ele 
chama de “Si-Mesmo”, ou Self, núcleo de integração 
de todos os elementos da personalidade, conscientes 
e inconscientes. 
Do inconsciente coletivo, conforme proposto por 
Jung, surgem os grandes mitos da humanidade, 
manipulados por todas as religiões. Os mitos e as 
lendas podem ser considerados como os sonhos de 
um povo e devem ser preservados como herança 
cultural da humanidade, pois não são fantasias 
arbitrárias, mas, sim, registros de um longo 
desenvolvimento psíquico coletivo. 
Os estudos de Joseph Campbell, autor de "O 
Poder do Mito" e "As Mil Faces do Herói", contribuíram 
para mostrar as semelhanças das mitologias dos 
diferentes povos, outro fator importante para a 
hipótese do inconsciente coletivo. Ele, que como 
professor de literatura estudou mitologia comparada, 
encontrou em Jung uma base científica para as suas 
observações. Ele assessorou o diretor de cinema 
George Lucas no roteiro de "Guerra nas Estrelas" que 
é, de fato, uma releitura de mitos antigos. 
 
12 
 
Os padres missionários espanhóis ficaram muito 
impressionados ao encontrar na América, no século 
XVI, entre os astecas, um ritual religioso em que uma 
massa de sementes de amaranto, mel e sangue era 
consagrada como corpo de deus e depois ingerida 
pelos devotos. A analogia com a comunhão cristã 
horrorizou os espanhóis, que então proibiram o cultivo 
de amaranto. Poderíamos pensar aqui que este ritual 
estivesse presente, de alguma forma, no inconsciente 
coletivo. 
Os críticos, porém, enxergam duas outras 
alternativas: a difusão cultural, na qual ocorreria a 
lenta transmissão de um conceito de uma cultura para 
outra ao longo dos tempos. Pode ter havido também 
uma evolução cultural independente, com o 
surgimento, em muitas sociedades agrárias primitivas, 
de um ritual em que algum produto da terra, 
simbolizando a fertilidade da natureza, fosse 
consagrado e consumido, representando uma união 
com os deuses. 
 
 
13 
 
CAPÍTULO 2 
OS ARQUÉTIPOS 
Os arquétipos não são imagens, na realidade, mas 
sim as estruturas de relações entre motivos e emoções, 
associadas a padrões de comportamento e que 
aparecem sob a forma de imagens para a psique. 
Pertencem à mesma classe das pulsões e não devem 
ser confundidas com as representações que adquirem 
nos sonhos e visões. Na realidade, estas formas 
exteriores variam de cultura para cultura, ou de pessoa 
para pessoa. É a estrutura interna do arquétipo que 
pertence ao inconsciente coletivo e não a sua 
representação por imagens. 
É importante ressaltar que os arquétipos são 
combinações de motivos, ações e reações emocionais, 
com várias possíveis alternativas de desenvolvimento 
no tempo e nem sempre podem ser representadas por 
pessoas. Situações como o nascimento, a morte e o 
casamento, por exemplo, são também arquétipos. Jung 
criticava Freud por ter trabalhado apenas um arquétipo, 
o que ativa o complexo de Édipo. 
 
14 
 
Jung foi muito influenciado pelo conceito de 
polipsiquismo da escola de psiquiatria francesa do 
século XIX, isto é, a ideia de que a mente é o resultado 
do funcionamento de unidades semiautônomas, que ele 
denominou de complexos e que, no caso de uma 
personalidade bem integrada, atuariam em sintonia, 
criando a unidade da psique. Uma cisão temporária na 
integração da personalidade possibilita o surgimento de 
complexos autônomos que adquirem domínio sobre a 
personalidade, em resposta a uma forte crise. 
A esse conceito, digamos, horizontal, se 
contrapõe o conceito vertical de Freud, de que a 
personalidade é o resultado de uma sequência
histórica de acontecimentos na vida do indivíduo, 
conceito influenciado pela psiquiatria alemã da época 
que via, na história da linhagem familiar, no sucessivo 
enfraquecimento do sangue através das gerações, a 
razão do surgimento de doenças mentais. Freud muda 
apenas o conceito de história das gerações para o da 
história do indivíduo.Em vez de sangue ruim, infância 
ruim. Para Jung a dissociação da personalidade é o 
fator principal de crise, enquanto que para Freud é o 
recalque que ocupa esse papel. 
 Para o pensamento mecanicista e reducionista de 
Freud, a complexidade da personalidade se cria 
simplesmente a partir de níveis ascendentes de 
interações sucessivas de princípios básicos simples, 
biológicos, no caso as pulsões, com o ambiente, 
criando, portanto, um determinismo histórico-biológico. 
 
15 
 
Para Jung esta complexidade também depende 
de outra direção, descendente, partindo de uma 
orientação preexistente de um nível superior. Os 
fatores básicos de motivação ficam bastante 
ampliados em relação à teoria freudiana, o que resulta 
em um sistema aberto, estando o ego pressionado 
tanto pelas pulsões, quanto por uma quantidade 
indeterminada de arquétipos. É preciso lembrar que 
são as associações de uma sequência de padrões de 
comportamento e atitudes, com as respectivas 
emoções, que identificam o arquétipo. Podemos dizer, 
simplificadamente, que o arquétipo é uma forma 
complexa e elaborada de pulsão. 
Entre os principais arquétipos, podemos ressaltar 
o do herói salvador. Esse mito surge em todas as 
culturas, em todos os tempos, sempre gerando muita 
emoção. Seu nascimento é sempre misterioso, corre 
perigo de vida quando criança, demonstra sabedoria 
precoce, é informado de seu destino, geralmente, 
através de um mentor, é submetido a uma série de 
provações, executa ações milagrosas em prol de seu 
povo e no final é traído e morto. 
O arquétipo do herói salvador explicaria a força de 
muitas religiões, pois quando se é associado a um 
arquétipo, uma tremenda energia emocional é 
desencadeada. Sobre a pessoa que está sendo 
considerada como um herói em potencial, começa a 
atuar a projeção por parte dos que o admiram, 
reforçando o processo de identificação com o arquétipo. 
 
16 
 
Caso ocorra essa dupla situação, teremos, através 
do reforço mútuo, o surgimento de um personagem 
histórico com uma atuação representativa do arquétipo 
do herói salvador. Após a morte do assim considerado 
herói, os seus adeptos simplesmente transferirão a 
projeção para a instituição que ele deixar, ou for 
atribuída ao mesmo. Este mecanismo, fonte de enorme 
poder, é a base de quase todas as religiões, o mito 
fundador, que parece ser uma condição essencial para 
qualquer entidade que pretenda sobreviver através dos 
séculos. 
Jung usou uma analogia com o espectro da luz, 
sugerindo que se o consciente fosse a luz visível, as 
pulsões estariam na região do infravermelho, tendo a 
sua base na fisiologia. No outro extremo, na região do 
ultravioleta, teríamos os arquétipos, cuja formação viria 
de um nível superior, os princípios organizadores 
universais. 
Em um nível próximo, individual, teríamos o efeito 
dos arquétipos residentes de atuação permanente e 
contínua que são, na realidade, complexos que se 
formam em torno da ativação de determinados 
arquétipos (a persona, a sombra, a anima e Self). Essa 
simplificação, embora de uso corrente, é fonte de 
confusão, uma vez que o arquétipo reside no 
inconsciente coletivo e não no individual. 
 
17 
 
 
 
 
 Os arquétipos residentes - na realidade, complexos – e
suas representações nos sonhos serão descritos a seguir, 
de uma forma sucinta: 
 A anima (ou, para as mulheres, o animus) é o lado
complementar, de sexo oposto, que atua como acesso ao
inconsciente coletivo. É a parte de nossa personalidade 
que lida com o transcendente e, portanto, com o espiritual. 
As pessoas muito pragmáticas e extrovertidas podem ter
dificuldade de perceber sua anima. A anima surge nos 
sonhos como uma fada ou uma deusa, ou algum ser alado. 
 A sombra é o lado obscuro, rejeitado da personalidade,
que pode surgir nos sonhos como um malfeitor ou alguém 
de aspecto grotesco. Equivale vagamente ao Id freudiano. 
Nem sempre é negativa, podendo representar as 
habilidades e os dons não desenvolvidos de uma pessoa. 
Reconhecer e aceitar sua sombra faz parte do processo de 
individuação. 
 A persona é a máscara com qual nos apresentamos ao
mundo. É a parte da nossa personalidade acessível às 
outras pessoas no convívio diário. Em grande parte é 
consciente, embora sua formação seja determinada por 
processos inconscientes. 
 
18 
 
 
 
 O Self - também chamado de Si-Mesmo em algumas
traduções - é o arquétipo que representa equilíbrio, 
aceitação, conciliação, integração e totalidade. O Self 
pode surgir nos sonhos como a figura de Cristo, ou um 
rei, ou um símbolo circular, como o sol ou uma mandala
ou, às vezes, como uma árvore. O complexo central da 
personalidade, ativado por esse arquétipo, também 
chamado de Self é, ao mesmo tempo, o ponto central e 
o todo da psique. Enquanto o Self como arquétipo é fácil 
de entender, o Self como complexo da psique é um 
conceito bastante complicado. A notar que nos escritos 
iniciais de Jung falava-se em Imago Dei e não em Self. 
Este complexo superior, capaz de coordenar todos 
os outros, inclusive o complexo do ego, seria o 
equivalente de uma representação interna da divindade, 
um símbolo do deus interior. Costuma surgir nos sonhos 
quando se inicia o processo de individuação e 
representa um processo de busca do equilíbrio na 
atuação dos diferentes complexos e uma integração dos 
fatores conscientes e inconscientes. 
Este processo se inicia por uma viagem interior 
cheia de perigos na sua parte inicial (o confronto com o 
lado obscuro da mente, nossos demônios interiores) 
podendo, se mal conduzido, levar a uma perda de 
contato com a realidade. 
 
19 
 
CAPÍTULO 3 
OS SONHOS 
Os sonhos sempre interessaram a humanidade, 
sendo associados à religião, mensagens dos deuses ou 
dos mortos, ou previsões do futuro. No século XIX, 
entretanto, os sonhos eram vistos pelos homens da 
ciência como um fenômeno de descontrole, como se o 
cérebro adormecido funcionasse desordenadamente, 
ao acaso. 
Freud vai recuperar a importância dos sonhos, 
considerados por ele como a Estrada Real para o 
Inconsciente. Esse lance de mestre por ele mesmo 
considerado como a sua maior descoberta , 
revolucionaria para sempre a psicologia. Sonhar não 
custa nada, mas desprezar suas mensagens pode 
custar muito caro. Um antigo provérbio diz que um 
sonho não analisado é como uma carta importante que 
a pessoa recebe e joga fora sem a abrir. Os livros de 
interpretação de sonhos que existiram em tantas 
culturas constituíam sistemas fixos de interpretação, 
mas a partir de Freud e de Jung, uma novidade 
importante surge: a interpretação depende do contexto 
pessoal. 
 
20 
 
 
Para Freud, o sonho é a realização de um desejo, 
mas este desejo não aparece de uma forma clara. O 
sentido latente fica disfarçado no sentido manifesto, 
processo denominado trabalho-do-sonho, que ocorre 
para driblar o censor da consciência. Aqui há uma 
discordância importante com Jung, que considerava não 
haver tal processo, uma vez que, no momento do 
sonho, esta função crítica deveria estar desativada; 
caso contrário, por que existiriam os pesadelos? E se a 
consciência está em repouso, o que é este censor 
acordado? Não pode ser parte do Inconsciente, pois o 
Inconsciente não censura. 
Para os freudianos, o sentido manifesto do sonho, 
sua narrativa aparente, é rapidamente abandonado e 
através do método das associações livres, procura-se 
atingir o conteúdo latente, sua mensagem oculta, ou 
seja, à percepção dos complexos. Jung, porém, 
discordava frontalmente disto, achando que este 
processo equivaleria a se afastar do sentido específico 
do sonho. 
Para Jung as imagens do sonho são uma 
linguagem simbólica própria, não lógica, específica do 
inconsciente. Não conseguimos acessar facilmenteas 
informações do inconsciente, não em função do 
recalque, mas porque estes dados estão em uma 
linguagem que não entendemos (imprecisa, emocional, 
sem logica, amoral, desconexa em relação ao tempo e 
ao espaço). 
 
21 
 
 
Ele achava que o conteúdo manifesto, a narrativa 
original, é de suma importância e por causa disso o 
método da amplificação é usado, procurando-se o maior 
número possível de referências associadas às imagens 
originais. Os sonhos serão, portanto, interpretados de 
diferentes modos pelas várias correntes da psicologia 
profunda, incluindo aí a grande diferença que para Jung os 
sonhos podem estar se referindo ao futuro, e não apenas 
ao passado. As terapias convencionais buscam uma 
adaptação, pretendem moldar o psiquismo a uma linha de 
normalidade preestabelecida e, portanto apresentam um 
juízo de valor, por mais disfarçado que possa parecer. Ao 
contrario, tanto na psicanálise quanto na psicologia 
analítica é proposto um mergulho nas profundezas do ser, 
um autoconhecimento sem um referencial ético prefixado. 
Os sistemas de Jung e de Freud têm em comum, além do 
individualismo, o relativismo moral e compartilham do 
mesmo ponto fraco, que é a falta de uma visão política e 
social. Apesar dos grandes esforços, por alguns de seus 
adeptos atuais para a inclusão de uma agenda de atuação 
no campo social, esta se revela algo desajeitada, precária 
e ineficaz, problema que remonta à origem desses 
sistemas, como veremos adiante. 
 
 
22 
 
 
 
 Do lado da psicologia analítica, o grande defensor da
atuação política é Andrew Samuels. Segundo ele, a única 
coisa em que os analistas são realmente bons é em 
conseguir que as pessoas expressem conscientemente o 
que já sabem inconscientemente, mas ainda não 
perceberam ou pensaram. 
Os analistas deveriam se aliar expressamente aos 
grupos marginais ou minorias, desvendando a experiência 
psicológica de ser um excluído. Eles poderiam ajudar a 
superar os estereótipos defensivos impostos pela cultura 
dominante, ao analisar a natureza e a existência da 
diferença em si, como é se sentir diferente, como é viver 
essa diferença. 
 
23 
 
 
 
 
 
 
 
Quando o Ego se defronta com o Self, isto se parece 
muito com uma experiência religiosa, como a dos grandes 
místicos como Meister Eckhardt, Tauler, Hildegard Von 
Bingen, Angelus Silesius e São João da Cruz e seus 
encontros com o Deus interior. Jung mergulhou nesse 
processo, de 1913 a 1916 e relatou o extremo desgaste e a 
ameaça de colapso mental que essa sua viagem interior lhe 
provocou. Existem registros de que, no início da psicologia 
analítica, vários pacientes foram levados através desse 
mesmo processo, tendo o analista como guia. O caso mais 
bem documentado foi o de Herman Hesse1, que escreveu 
“Demian” inspirado no seu processo de individuação. Esse 
modo de encarar o processo de individuação como uma 
crise aguda de grandes proporções, estimulada pelo 
analista, que começaria por uma nekyia, ou descida aos 
infernos, foi abolido na psicologia analítica a partir dos anos 
70, quando várias práticas polêmicas - entre elas a da Soror 
Mystica - foram abandonadas. 
 
 
 
 
CAPITULO 4 
 
INDIVIDUAÇÃO 
__________ 
1. Herman Hesse (1877 - 1962) escritor alemão. 
 
24 
 
 
 
 
 
 
 
Andrew Samuels, a grande voz do bom senso 
dentro da psicologia analítica, sugere que o processo 
de individuação seja visto como três possibilidades 
distintas: a primeira, um processo genérico de 
amadurecimento ao longo de toda a vida. A segunda, 
como um processo típico de crise na meia-idade, que 
requer um esforço deliberado de superação, mas que, 
a rigor, consistiria de um processo de evolução e 
adaptação. No terceiro sentido, esse sim próprio da 
psicologia analítica na sua fase heroica, o processo de 
individuação seria um processo mais drástico e 
complexo, envolvendo uma integração total da 
personalidade, incluindo aspectos transcendentais, 
algo que seria restrito a pessoas com necessidades 
espirituais mais profundas. Ao centrar o foco nas 
questões sexuais e na sua ligação com a infância mais 
tenra, “aos cinco anos o jogo já está feito”, disse Freud, 
o pensamento freudiano subestima o desenvolvimento 
da personalidade nas etapas posteriores da vida. 
A religião se reduz à neurose obsessional coletiva 
da humanidade e o surgimento de temas míticos em 
sonhos seria apenas a revelação de insignificantes 
resíduos fósseis do inconsciente. É exatamente sobre 
tais resíduos, contudo, que Jung vai construir sua 
grande obra. Se para Freud a religião é uma doença, 
para Jung é a falta de religião, mais especificamente a 
falta de uma vida espiritual, que seria uma doença. 
 
25 
 
CAPÍTULO 5 
PARA LER JUNG 
Ao contrário de Freud, que foi um brilhante 
explanador, Jung, com os seus trabalhos densos, 
introspectivos e técnicos, jamais superou suas 
dificuldades de comunicação. Mesmo o livro mais 
conhecido sobre o pensamento junguiano, "O Homem 
e seus Símbolos", do qual ele apenas escreveu o 
primeiro capítulo, rende-se a essa dificuldade. Seus 
discípulos, a quem orientou e encarregou de escrever 
os demais capítulos, também não primavam pela arte 
de comunicação, com exceção de Jolande Jacobi. 
Uma farta gama de belas ilustrações, presentes na 
maioria das edições, tenta compensar visualmente o 
que falta no texto complexo, mas em vão procurar-se-
á, ali, a alma do movimento junguiano. Para termos 
uma melhor ideia de quem foi Jung, é preciso ler, 
antes de tudo, o livro "Memórias, Sonhos, Reflexões", 
parcialmente escrito por ele e completado, com base 
nos seus diários, por Anniela Jaffè. 
 
26 
 
Que Jung é difícil de ler, talvez esta seja a única 
unanimidade a respeito da sua obra. Parte da 
dificuldade é a sua intenção de esconder ou minimizar o 
forte conteúdo espiritual presente na mesma. Uma 
associação com fenômenos espiritualistas levaria a uma 
acusação de ocultista, que representava, para a 
mentalidade então dominante, uma ideia de coisa 
doentia, louca, decadente, que poderia destruir sua 
credibilidade científica. Daí o cuidado com que evita 
termos que poderiam soar estranhos ou mesmo não 
científicos. Por exemplo, o que ele chama de 
imaginação ativa poderia ser entendido como transe 
mediúnico ou, diríamos hoje, estados alterados da 
consciência, mas este é um assunto que ele queria 
evitar a todo custo. A um leitor descuidado poderia 
parecer que ele está falando sempre de sonhos, mas 
analisando-se bem o texto, percebe-se que este não é o 
caso. 
Arquétipo é um termo que cobre várias situações 
diferentes na sua obra. Em algumas situações o termo 
se refere às próprias imagens arcaicas, em outras a 
predisposições atemporais, estruturas sem conteúdo. 
Em outras, ainda, são determinantes teleológicos, 
afetando o desenvolvimento da psique como atratores 
estranhos. Em algumas passagens do texto, contudo, 
não há como evitar a estranha sensação de que o termo 
ativação de arquétipos poderia ser substituído por 
possessão por espíritos. 
 
27 
 
Mais uma vez nos deparamos com a famosa 
ambiguidade de Jung e as suas tentativas de esconder 
uma conexão espiritualista. Essa ambiguidade
ocasional, que afinal ele mesmo admitiu ter empregado, 
exige um trabalho de releitura. É preciso lembrar que 
até o final da sua vida ele repudiava com veemência o 
epíteto de místico. 
As dificuldades não param nisto. Para provar suas 
ideias, ele normalmente não usa um simples raciocínio 
dedutivo, mas algo que poderíamos chamar de 
processo de ilustração. Cita uma longa sequência de 
analogias e exemplos, similares à ideia original e, a um 
determinado momento, dá-se por satisfeito. O acúmulo 
de evidências paralelas parece ter sido suficiente paraele. O leitor fica com a estranha sensação de ter pulado 
o trecho do texto onde a ideia teria sido demonstrada. 
Isso pode parecer pouco científico para nós, mas não 
para a época, quando o modelo mais admirado de 
ciência era a arqueologia, não no sentido atual, mas à 
moda de Heinrich Schliemann, o descobridor de Tróia 
que, munido de versos de Homero, pás e uma brilhante 
imaginação, julgou ter descoberto a Tróia da Ilíada. Sua 
mulher, Sophia, desfilava nos melhores salões da 
Europa usando as joias encontradas nas escavações, 
que Schliemann jurava, mesmo sem provas
convincentes, terem pertencido a Helena de Tróia. A 
atuação de uma mente ousada, aventureira e 
especulativa, parecia naturalmente científica para os 
contemporâneos de Jung e Freud. 
 
28 
 
Os textos de Jung também atravessam com alguma 
dificuldade a barreira da latinidade. Portam uma pesada e 
quase indecifrável ironia norte-europeia, um modo peculiar, 
espiralado, de rodear o assunto, multiplicando as descrições 
paralelas, inflacionando o texto de substantivos, algo estranho 
à nossa maneira latina, digamos, adjetivada. A França, por 
exemplo, apresentou uma significativa resistência às ideias
tanto de Freud como de Jung. Os franceses sempre 
consideraram os pensadores germânicos como soturnos e 
sombrios, depressivos e indigestos. Junte-se o 
antigermanismo ao antissemitismo da burguesia e teremos a 
perfeita barreira às ideias de Freud na França da época. 
Só com o alegre jogo de palavras de Lacan é que, 
finalmente, Freud se tornou palatável para os sutis intelectos 
gauleses. “Enfim, uma psicanalise à francesa!” exclamará 
Edouard Pichon. E o que aconteceu foi que essa 
“Psicanalise à Francesa” direcionou-se para teoria e analise 
textual, em vez de priorizar a prática clínica. Contra o 
biologismo de Freud, surge então Lacanismo, filosófico e 
literário, muito mais próximo da tradição intelectual francesa. 
Além disso, o movimento lacaniano vai herdar do meio 
intelectual parisiense, fortemente impregnado de marxismo, o 
zelo doutrinário, a impaciência com pensamentos divergentes
e uma auto confiança injustificável. 
 
29 
 
Por um outro lado, é curioso o interesse por Jung 
no Brasil, onde, pelo menos em tese, a aversão à 
introspecção profunda seria um traço cultural 
dominante. Pode-se supor que haja um terrível mal-
entendido na fonte, pois esta introspecção profunda, na 
sua vertente germânica, é uma busca frenética e 
alucinada do eu interior, uma procura obsessiva da 
própria identidade, com ímpetos destrutivos, à moda de 
Nietzsche e não de acordo com a nossa vertente 
melancólica e jansenista. Os textos de Jung estão 
impregnados dos sentimentos da sua classe 
conservadora, com citações profusas de autores 
clássicos gregos, além do inevitável "Fausto" de 
Goethe1, conhecimentos comuns às pessoas de sua 
educação no mundo cultural germânico de então. 
Platão, Kant, Schoppenhauer e Nietzsche são 
influências importantes na sua obra que é, sob certos 
aspectos, uma resposta a Nietzsche. Mesmo assim, é 
preciso lembrar que informações importantes sobre 
Jung foram por muito tempo omitidas, como as várias 
sessões mediúnicas das quais ele participou entre 1920 
e 1923 e o que teria sido o seu maior sonho (ou transe) 
em que ele se sentiu transformado no deus Mitras, fatos 
só divulgados após 1980. Essas histórias geraram 
acusações posteriores de que ele estaria tentando 
fundar um culto. 
1. Johann W. Goethe (17491832), o grande gênio da literatura alemã. 
 
30 
 
Além da arqueologia e da mitologia, temos uma 
influência da contracultura da época em Jung, o que não 
ocorre com Freud. É um pouco difícil definir as 
dimensões exatas dessas influências, mas o ocultismo e 
as ideias de um retorno a uma religião anterior ao 
cristianismo certamente estão presentes nas divagações 
da chamada volkisch kultur, a cultura popular germânica 
da época. 
A onda orientalista, que surgiu a partir do 
movimento hippie dos anos 60, foi um movimento 
difuso, populista, liberal, não hierarquizado, repleto de 
cores, danças e incensos. Mas a onda orientalista 
esotérica que varreu a Europa dos meados do século 
XIX ao início do século XX teosofia, antroposofia e 
outros – teve um caráter diferente, dual. Mas foi, 
principalmente, um orientalismo conservador, elitista e 
hermético. 
Algumas formas, contudo, atingiram um público não 
convencional e passaram a integrar o circuito de 
contracultura de Schwabing-Ascona, de 1880 até 1920, 
que foi o equivalente do movimento hippie dos anos 60 
do século XX. Schwabing era o bairro boêmio de 
Munique e Ascona, na Suíça, o ponto de encontro dos 
jovens adeptos do amor livre, das drogas e dos cultos à 
natureza, para o que naturalmente ajudava muito que a 
polícia suíça fosse mais tolerante que a alemã. 
 
31 
 
Jung, certamente, esteve em contato com alguns 
desses elementos, diríamos hoje, alternativos, porque 
muitos acabavam internados, provavelmente por 
consumo excessivo de drogas, no hospital psiquiátrico 
de Burghölzli, onde ele clinicava como psiquiatra. 
Essa contracultura teve uma estranha combinação 
de elementos: o orientalismo, o culto à natureza e ao 
solo da pátria, o povo como entidade mítica, a 
mitologia germânica como fonte de inspiração, a 
paixão pelos acampamentos ao ar livre e cânticos em 
torno de fogueiras, elementos que o nazismo soube 
muito bem explorar. 
Como a mitologia germânica ficou fora de moda 
por causa da sua adoção pelo nazismo, hoje em dia 
nossos esotéricos apelam para a mitologia céltica, que 
não tem essa vinculação, embora aparentada e 
continuam as danças sob o céu estrelado, as túnicas 
brancas, o culto à Lua. Sai Wotan, entram os druidas. 
Em todo caso, não convém alimentar ilusões. 
Filhos de sua época, tanto Jung quanto Freud, eram 
politicamente conservadores e adeptos de soluções 
autoritárias, sem nenhuma simpatia com posições de 
esquerda. Ambos mantiveram suas vidas, pelo menos 
oficialmente, dentro dos padrões da respeitabilidade 
burguesa vigente. 
 
32 
 
Em que sentido, então, poderiam ser considerados 
revolucionários? Na realidade, esses presumíveis 
herdeiros do iluminismo eram portadores de uma visão 
humanista e liberal restrita ao campo do comportamento 
individual. 
Estavam em oposição, apenas, a uma postura 
autoritária que pretendia impor um controle rígido dos 
comportamentos e dos modos de pensar individuais, 
uma característica marcante da era Vitoriana. Em uma 
análise sociopolítica, deveríamos considerar que o 
surgimento da psicologia profunda caracteriza, a rigor, 
apenas uma revolta liberal e não uma revolução no 
sentido mais amplo. Isso talvez explique porque 
tentativas posteriores de achar uma conexão entre a 
psicanálise e os movimentos de reforma da sociedade 
(como tentaram Wilhem Reich, Herbert Marcuse, Jean 
Paul Sartre e Norman Brown) nunca foram bem 
sucedidas. Parecia tentador ligar a libertação do 
indivíduo à libertação das massas, mas isto acabou se 
revelando um projeto utópico. 
Deve-se registrar também que Jung foi acusado de 
simpatia pelo nazismo, pois em alguns de seus escritos 
nota-se alguma velada admiração pelo mesmo, 
essencialmente pelas forças míticas desencadeadas, 
postura que ele abandonou a partir de 1938, horrorizado 
com os rumos que as coisas tomaram. Mas a sombra 
ficou, pelo menos pelas estranhas companhias, uma 
vez que os círculos de hermetismo e a extrema direita 
sempre tiveram uma certa afinidade entre si, como 
documentado no livro de Miguel Serrano, “Hesse e Jung 
– história de duas amizades”. 
 
33 
 
A modernidade fez surgir na terra de ninguém entre 
o recuo da Igreja e o avanço da Ciência, dezenas de 
novos sistemas de pensamento, a maioria deles 
baseada em racionalizações parcialmente científicas, a 
rigor misturasde ideologia e ciência, com a típica e 
enervante tendência à militância. Criados de um modo 
extremamente personalista, abusivamente abrangentes, 
muito marcados pelo contexto específico de uma época,
a modernidade, e de uma cultura eurocêntrica, 
utilizaram métodos de divulgação e conversão 
semelhantes a movimentos políticos ou seitas. 
Freud tinha percebido claramente o perigo de ser 
considerado apenas mais um ponto de vista e escreveu 
um longo texto negando que a psicanálise fosse um 
modo específico de ver o mundo e que, na realidade, 
ela deveria fazer parte da visão científica geral. Ele usou 
o termo alemão weltanschauung, literalmente 
cosmovisão, mas o seu raciocínio parece bastante 
ingênuo para os tempos de hoje, em que as grandes 
narrativas perderam seu brilho e têm que dividir o 
espaço democraticamente com uma infinidade de novas 
opções. 
Os defensores atuais da psicanálise preferem uma 
atitude mais elástica, jogando em três posições 
simultaneamente. Assim, a psicanálise seria uma 
ciência, um processo terapêutico e um método de 
interpretação e investigação, querendo dizer com isso 
que se trata de um sistema triplamente qualificado. 
 
34 
 
A questão, porém, é se na realidade não se trata 
de uma combinação incompleta de um pouco de cada 
uma dessas coisas. No modo pragmático e imediatista 
atual, as pessoas estão mais preocupadas com 
soluções do que com interpretações e, portanto, são 
tempos de crise para a psicologia profunda. 
Esta crise não deriva de que a psicanálise esteja 
certa ou errada, mas da incapacidade de uma fórmula, 
tão vinculada à modernidade, se manter dominante em 
um mundo pós-moderno, no qual o contexto não lhe é 
absolutamente favorável. A psicologia analítica só não 
foi tão atingida porque inclui elementos que são 
especialmente caros ao pensamento contemporâneo, 
como a questão espiritualista, da qual James Hillman 
tentou, sem sucesso, se libertar. 
Andrew Samuels distingue, com fina ironia, quatro 
tipos de analistas junguianos: o fundamentalista, que se 
orienta rigorosamente pela vida e obra de Jung; o 
clássico, ligado às ideias pessoais de Jung, mas com 
uma visão crítica. O desenvolvimentista, que associa a 
psicologia analítica com os estudos freudianos sobre o 
desenvolvimento da criança e do adolescente. 
Finalmente, o chamado psicanaliticamente orientado, 
que valoriza a transferência como o problema maior e, 
neste caso, a diferença entre esse modelo e a 
psicanálise ortodoxa freudiana cai quase a zero. 
 
35 
 
CAPÍTULO 6 
ESPIRITUALIDADE JUNGUIANA 
O pai de Jung, Paul Jung, era um pastor 
protestante que parece ter perdido progressivamente a 
sua fé, ficando bastante deprimido em consequência, 
situação que o jovem Jung acompanhou angustiado e 
que o influenciou muito, tanto que ele atribuiu a morte 
precoce do pai ao fato de a religião não ter sido capaz 
de lhe dar uma vida espiritual de intensidade esperada. 
Para sempre carregaria uma desconfiança pelo 
cristianismo e um desejo inconsciente de reformá-lo. 
A mãe de Jung, Emilie Preiswerk, como também 
vários parentes do ramo materno, tinham dons 
mediúnicos. O pai de Emilie, Samuel Preiswerk, que 
também era pastor, “conversava” com sua falecida 
primeira mulher e costumava pedir à sua segunda 
mulher que ficasse atrás dele enquanto fazia sermões, 
para afastar os maus espíritos que ele sentia perto de si. 
 
36 
 
Helene Preiswerk, prima de Jung, também tinha 
estranhos poderes e foi o tema da dissertação doutoral 
de Jung: "Sobre a Psicopatologia dos Fenômenos 
Ditos Ocultos". No trabalho ela é citada com um 
pseudônimo, mas como Basiléia era uma cidade 
pequena, todos acabaram por identificá-la. Ela, 
provavelmente por causa disto, jamais conseguiu 
casar-se. Na época, tais dons eram interpretados 
como o chamado sangue fraco, meio caminho andado 
para a loucura, destino provavelmente temido por 
Jung. Talvez, por isso, ele quisesse tanto tornar 
científicas as observações sobre fenômenos 
paranormais, justificando essas tendências, retirando a 
sua ligação com a chamada fraqueza da mente e é
evidente que nesse caso ele advogava em causa 
própria. Os fatos relatados acima explicam porque a 
posição de Jung em relação à espiritualidade foi tão 
influenciada por fatores familiares. 
Quando lhe perguntaram se acreditava em Deus, 
Jung respondeu: "Eu não acredito (...) eu sei!" A 
religião para ele, portanto, não era nem uma crença 
racional, nem fé em uma revelação transmitida. Seria 
uma vivência interna, intensa e individual, como para 
os grandes místicos, cuja experiência de Deus parecia 
bem pouco ligada à estrutura oficial das religiões 
organizadas. De fato ele afirmava que a religião
organizada é a melhor maneira de matar a experiência 
espiritual. Esta espiritualidade selvagem, que ele 
propunha, não teria realmente como agradar às 
correntes religiosas mais conservadoras. 
 
37 
 
Esta é a distinção fundamental que ele fazia: o 
fenômeno religioso era uma realidade para a psique, 
mas nada se poderia dizer sobre a existência da coisa-
em-si. Nisso ele pretendeu seguir a filosofia de Kant1, 
mas os filósofos profissionais consideram que ele 
manipulou esses conceitos, apenas para evitar definir-
se sobre a realidade última das coisas espirituais. Já 
os teólogos negam que a religião possa se basear na 
análise de experiências e observações psicológicas, 
uma vez que seu poder deriva da verdade revelada, 
portanto, fora do alcance da pesquisa empírica. Essa 
foi a posição do padre dominicano inglês Victor White, 
que passou três meses discutindo com Jung, a convite 
do mesmo, sem que eles chegassem a um 
entendimento comum. Pouco tempo após a morte do 
padre Victor White, Jung escreveu para seus amigos, 
lamentando essa perda e declarando que gostaria que 
o mesmo tivesse sido seu sucessor. Estranhas 
palavras para quem sempre insistia que seu sistema 
não era uma religião. Se Jung pretendeu recriar um 
culto pagão, direcionado a Mitras ou Dionísio conforme 
suposição precariamente formulada por seus críticos 
mais radicais, ou simplesmente propor uma reforma do 
cristianismo, tornando-o mais místico, como afirmam 
outros, é uma questão aberta a debates, mas de 
interesse apenas histórico. 
1. Immanuel Kant (1724 1804), filósofo alemão. 
 
38 
 
Embora nenhuma religião dê a sua aprovação 
oficial, na prática os contatos são intensos e 
permanentes. Existem, no momento, vários padres 
católicos e pastores protestantes que são analistas 
junguianos, sem que o grande público se dê conta. 
No "Guild of Pastoral Psychology" analistas 
junguianos e padres da igreja anglicana se reúnem 
semanalmente em Londres, há cinquenta anos. Devem 
ser lembrados também os interessantes debates com o 
reverendo Vincent Cox, de confissão anglicana, que 
constam da obra de Jung "Vida Simbólica”. 
A partir de 1980 o pensamento junguiano foi sendo 
redescoberto pelo grande público, coincidentemente 
com a falência do modelo materialista, mecanicista e 
reducionista da ciência e com o surgimento gradual de 
uma nova espiritualidade. Esta nova espiritualidade, ou 
espiritualidade da Nova Era ou onda de esoterismo, 
como é popularmente conhecida, parece ser um 
fenômeno caótico, principalmente se observarmos o 
ecletismo das chamadas lojas de artigos esotéricos. Se 
prestarmos atenção, contudo, veremos que algumas 
ideias dão uma certa unidade a esse conjunto de 
movimentos, como a ideia de que a religiosidade é 
muito mais uma experiência pessoal do que a 
submissão a uma verdade revelada. Podemos observar 
também a aceitação da expressão multicultural, ou seja, 
a ideia de que a liturgia e os textos sagrados são visões 
culturalmente diferenciadas dos mesmos fenômenos 
espirituais básicos. 
 
39 
 
Ainda outra ideia é a do carátersagrado do mundo 
em que vivemos, uma certa visão panteísta. Tudo isso 
encontra apoio direto nos escritos de Jung, que enxerga 
o ser humano como conectado a uma Alma do Mundo, 
referida também como Anima Mundi ou Unus Mundus. 
Não é de se estranhar, portanto, que Jung tenha se 
transformado em um guru da nova era, embora isso leve 
a uma visão limitada de sua obra. Os que se fascinam 
pelos aspectos mágicos da vida de Jung provavelmente, 
se decepcionarão com seus seguidores atuais. Há 
sempre uma distância entre o criador de uma obra e a 
instituição por ele legada e a psicologia analítica atual 
tornou-se, gradualmente, um movimento psicoterápico 
quase convencional, embora com um interesse incomum 
por questões de religião e espiritualidade. 
O desejo humano por transcendência encontra eco 
em Jung, mas não em Freud. Seria de se esperar que as 
religiões organizadas tivessem se interessado por aquele, 
devido à sua abertura para o fenômeno religioso. A 
concepção junguiana, contudo, insinua o que os líderes 
religiosos mais temem: que a diferença entre as religiões 
seja pouco relevante, sendo a experiência direta da 
divindade possível através de qualquer uma delas ou 
mesmo sem elas e, portanto, o interesse por Jung surge 
mais da periferia do poder eclesiástico do que do seu 
centro. 
 
40 
 
Também não poderia conquistar muita simpatia a 
opinião dele de que as religiões organizadas tradicionais 
seriam como conchas abandonadas de moluscos, 
estruturas ocas, das quais a verdadeira vivência 
religiosa já teria partido há muito tempo. 
Alguns estudiosos pretenderam achar semelhanças 
entre o pensamento de Jung e o budismo. É uma 
comparação difícil de ser feita, pois existem várias 
formas de budismo e a terminologia utilizada não tem 
equivalente exata no pensamento dito ocidental. Sempre 
é possível achar analogias, mas no caso o mais correto 
é admitir que haja alguns pontos de semelhança, talvez 
apenas com a tradição budista da linha Teravada. A 
nossa tendência de colocar os sistemas de pensamento 
em categorias rigorosamente definidas pode ser a razão 
das nossas dificuldades de entendimento, uma vez que 
no mundo budista e hinduísta não existe uma fronteira 
definida entre psicologia, filosofia e religião. 
Curiosamente, o pensamento de Jung partilha deste 
mesmo problema, pois transgrede as mesmas fronteiras. 
Para muitos psicólogos não seria verdadeiramente uma 
psicologia por causa da sua vertente espiritualista; para 
os teólogos não tinha nada a ver com religião por causa 
do seu empirismo e para os filósofos era um sistema 
insuficientemente estruturado. 
 
41 
 
CAPITULO 7 
AS QUATRO FACES DE DEUS 
Um tema recorrente em Jung é a significação 
mágica do número quatro. Ele considerava que na 
Trindade cristã faltava uma pessoa e escreveu um longo 
artigo de elogios ao dogma da Assunção de Nossa 
Senhora promulgada por Pio XII. Finalmente, afirmava, 
temos a quarta pessoa, o personagem feminino que 
faltava. Podemos imaginar a consternação que este 
elogio deva ter produzido no Vaticano, naquela época. 
Jung sugeria, com notório exagero e falta total de 
senso político, que também não se podia excluir o lado 
mau de Deus e que o diabo também deveria ser 
contemplado, levando o reverendo Vincent Cox a 
indagar, exasperado: "Afinal, o senhor quer quatro ou 
cinco pessoas divinas?", para o que Jung não forneceu 
qualquer resposta satisfatória. 
Estas incursões de Jung pelo campo teológico 
sempre foram recebidas com reservas, principalmente o 
seu livro "Resposta a Jó", com considerações sobre o 
chamado problema do mal. 
 
 
42 
 
Neste trabalho ele mostra o Deus do Antigo 
Testamento como arrogante e prepotente com Jó. Afinal, 
jogar todas as desgraças do mundo sobre o pobre homem 
só para ver se ele era realmente fiel, está bastante distante 
de um Deus infinitamente bom e justo. Jung mostra um Jó 
moralmente superior, que leva Deus a querer se 
aperfeiçoar, levando-O à sua decisão de se encarnar como 
homem. Essa concepção, digna de um José Saramago é, 
no mínimo, uma bela criação literária. Para os teólogos, a 
posição é a mesma de sempre: Jung está fora do seu 
campo, não deveria tratar de teologia. 
Mas qual a razão de Jung tocar nesse assunto? 
Simplesmente porque o Deus que aparece nos sonhos de 
seus pacientes e nos dele próprio, é um Deus com uma 
face cruel, que inspira temor. De acordo com Jung, se o 
inconsciente revela um Deus tão terrível, esta impressão 
deve decorrer de um fator psíquico inconsciente que 
conhece a essência ambivalente da divindade, de fato o 
Senhor do Bem e do Mal. Jung mostra que apenas o 
cristianismo insiste na bondade absoluta de Deus, 
embora com a exceção do calvinismo, que aponta Deus 
como justo, mas se recusa a defini-lo como infinitamente 
bom. Para a maioria das outras religiões a divindade 
suprema seria tanto criadora como destruidora. 
A obra de Jung suscita grandes objeções por parte 
dos setores cristãos mais conservadores. A "Coalizão 
Americana dos Cristãos Conservadores" chega a 
considerar, com grande exagero, Jung como a maior 
ameaça ao cristianismo nos tempos atuais. 
 
43 
 
Este temor deriva da grande penetração do 
pensamento junguiano junto às bases da maioria das 
denominações cristãs. Para esses conservadores 
Jung é um caminho para o neopaganismo, um fator 
principal do movimento Nova Era corrente. Não 
podemos nos esquecer, contudo, da origem calvinista 
da maior parte do cristianismo americano, com todas 
as implicações em termos de suspeita, exclusão e 
desprezo aos considerados não eleitos. Alavancadas 
pelo seu grande poderio financeiro, as organizações 
cristãs conservadoras americanas estão apoiando 
todo e qualquer ataque a Jung, como o tendencioso 
livro de Richard Noll, "O Culto a Jung", exemplo 
acabado do que a crítica literária chama hoje de 
patografia, ou seja, uma biografia que vasculha todos 
os aspectos negativos que se possa encontrar sobre 
alguém, concentrando-se sobre eles e dando-lhes a 
pior interpretação possível. 
Andrew Samuels argumenta que é perda de 
tempo simplesmente defender a pessoa de Jung. Ou o 
movimento junguiano gerou um sistema coerente de 
ideias que funcionam e atuam positivamente e se 
liberta da veneração ao seu fundador, ou fica 
marcando passo, na defesa de uma pessoa em vez de 
ideias; o que é inoperante, pois quase todos os 
grandes homens tiveram alguns pontos fracos 
indiscutíveis, indecisões, fraquezas e posições dúbias. 
 
44 
 
Já a reação a Jung entre os católicos varia muito, 
vai da posição extremada de incompatível com o 
cristianismo de acordo com o padre Raymond Hostie, 
passando pela admiração lúcida do teólogo Leonardo 
Boff até, no outro extremo, a posição do padre John 
Dourley de que a psicologia analítica deveria 
simplesmente absorver o cristianismo. 
Cabe aqui uma observação: o encontro de uma 
espiritualidade em aparente declínio com uma psicologia 
em expansão teria de ser traumático. Porém, as grandes 
religiões se movem lentamente, pois é da sua essência 
agir pensando em séculos e não em meses ou anos. 
Qualquer um que queira pensar no futuro do cristianismo 
deveria levar em conta o fator Jung. As mudanças, 
maiores ou menores, têm uma grande probabilidade de 
ocorrer nessa direção. 
O teólogo James Heisig, que estudou a fundo a 
questão, definiu o diálogo entre a psicologia analítica e o 
cristianismo como "(...) absolutamente caótico (...) apesar 
de quatro décadas de discussões (...)". As opiniões de 
Jung sobre religião continuam a gerar polêmicas, como a 
ideia de que a psique humana é e sempre será ativada 
por quatro faces de Deus: o Criador Severo e Irado, a 
Grande Mãe Compassiva, o Filho Salvador Heroico e o 
Espírito de Sabedoria. A quaternidade de Jung pode não 
ser correta teologicamente,mas parece refletir uma 
profunda sabedoria do inconsciente coletivo, ou uma 
faceta desconhecida da psicologia da alma. 
 
45 
 
CAPÍTULO 8 
GNOSE E ALQUIMIA 
Jung recuperou os estudos sobre a alquimia 
revelando que na estrutura do seu discurso se 
esconde uma discussão sobre a alma e o seu 
desenvolvimento espiritual. Estabeleceu uma ligação 
desses estudos ao antigo gnosticismo e daí, para 
tempos mais recuados, às religiões pagãs, como o 
mitraísmo e a religião do antigo Egito. Sua fascinação 
pelo gnosticismo era tanta que ele assinou com o 
pseudônimo de Basilides1 o seu famoso "Sete Sermões 
aos Mortos". Essa corrente espiritual, embora 
condenada como heresia, teria seguido paralela ao 
cristianismo, como uma sombra através dos séculos. 
Talvez seja o lado esotérico, complementar, nunca 
admitido publicamente. 
É a fascinação de Jung por essas ideias que gera, 
em tese, a acusação de paganismo, embora ele visse 
muito além disso, propondo uma ligação entre todas 
as formas de religião e os conhecimentos esotéricos. 
É lógico que uma maneira tão peculiar de encarar a 
religiosidade teria uma reação bastante controvertida. 
1. Basilides, gnóstico do século II d.C. 
 
46 
 
Seria complicado definir, em poucas linhas, o 
gnosticismo, mesmo porque o mesmo se constituiu de 
várias tendências com diferenças importantes entre si. 
Mas alguns princípios básicos são comuns: a ideia de que 
o mundo foi criado por um deus inferior, o demiurgo, 
sendo que o Deus supremo está acima desta criação 
imperfeita. Portanto, o mundo carrega o estigma do erro, 
mas cada pessoa possui em si mesma a centelha divina, 
que se libertando deste mundo de trevas, poderá alcançar 
a divindade suprema. Tal experiência só seria possível 
através de um conhecimento secreto, que é a gnose, ou 
conhecimento esotérico, que permitiria ao discípulo 
superar essa prisão do mundo, embora apenas poucos o 
conseguiriam. 
Jung afirmava que a religião estava ligada à história 
cultural de um povo. Nunca recomendou que as pessoas 
abandonassem o cristianismo. Ao contrário, afirmava que 
seria inútil as pessoas do mundo ocidental se dedicarem, 
por exemplo, às exóticas religiões orientais. O substrato 
cultural do ocidental jamais absorveria todo o contexto 
inerente àquelas formas de religiosidade. Seria perda de 
tempo um ocidental posar de budista. Ficaria no máximo 
uma caricatura, na sua opinião. Lembrava que embora 
houvesse no Japão, há alguns séculos, comunidades de 
japoneses cristãos, os seus descendentes continuavam a 
ter sonhos com motivos budistas. 
 
47 
 
Apesar de seu enorme interesse por religiões 
orientais, jamais advogou que as pessoas se 
tornassem budistas ou hinduístas, abandonando o 
cristianismo, ao contrário do que muitos possam 
pensar. 
O que adiantaria, ele perguntava, as pessoas 
aprenderem ioga, que surgiu numa cultura de fuga 
da realidade, enquanto continuassem altamente 
agressivas e competitivas dentro da sociedade 
ocidental? A retomada da religiosidade individual 
passaria pela religião ligada à cultura em que as
pessoas foram criadas. 
Sempre criticou o protestantismo tradicional por 
ter perdido seu sentido de liturgia, por sua rejeição do 
misticismo e pela perda da emoção religiosa mais 
profunda. Apesar disso, ele jamais abandonou 
formalmente a Igreja Reformada Suíça, de origem 
calvinista, embora matizada por influências luteranas, 
da qual seu pai tinha sido pastor. 
Jung via o catolicismo como muito mais 
saudável psiquicamente, devido ao seu alto 
conteúdo emocional. O que ele rejeitava de negativo 
no catolicismo era o centralismo e o autoritarismo, 
com o que ele declarou claramente jamais poder 
concordar, em seu artigo "Porque não sou católico". 
 Jung escreveu os prefácios de dois livros de 
Richard Wilhem, o "Livro das Mutações", um estudo 
sobre o I Ching, e o livro "O Segredo da Flor de 
Ouro", sobre alquimia chinesa. 
 
48 
 
Seus estudos do I Ching e da alquimia chinesa 
relacionavam-se à questão da universalidade dos 
arquétipos e do substrato universal comum do 
inconsciente coletivo, não sendo uma simples 
validação dos processos ali descritos. 
O mesmo vale para suas observações sobre o 
tarô e a astrologia. Trata-se, em todos esses casos, do 
vislumbre de uma estrutura psicológica comum a todos 
esses temas e não, como erradamente se pensa, de 
acreditar que esses processos teriam uma validade 
total, um processo divinatório que realmente 
funcionasse em qualquer circunstância. Seja como for, 
Jung costumava fazer mapas astrais de seus clientes e 
sua filha Gret Baumann-Jung tornou-se a mais famosa 
astróloga de Zurique. 
É verdade que sob certas situações especiais, 
poder-se-ia ter muito mais que um acerto aleatório, 
através do fenômeno de sincronicidade quando, Jung 
acreditava, poderia ocorrer uma manifestação de 
arquétipos, contendo mensagens de significado 
específico e real. Por exemplo, o nascimento de uma 
pessoa predestinada a ser famosa estar associado ao 
aparecimento de uma estrela nova no céu, fato que 
evidentemente não poderia ser explicado pelas leis da 
física. 
A sincronicidade seria a ocorrência de 
coincidências significativas, sem nenhuma conexão 
causal, porém interligadas por um sentido simbólico. 
 
49 
 
Essas manifestações não estariam, contudo, sob 
controle da vontade, advindo daí as suas divergências 
com Rhine2 a respeito das pesquisas parapsicológicas. 
Não se tratariam de poderes, mas, sim, de 
ocorrências. Evidentemente, estamos falando de um 
dos pontos mais controversos das ideias de Jung. 
Aqui, estamos pisando em terreno realmente frágil. A 
sincronicidade não é, contudo, um ponto essencial do 
pensamento junguiano. 
Quanto à astrologia, o significativo seria a 
coincidência dos movimentos dos astros com as 
estruturas psicológicas. Os astrólogos, através de 
séculos de estudos, teriam projetado naqueles corpos 
celestes e nos seus movimentos, as percepções que 
jaziam no inconsciente coletivo. O que significa que se 
estamos lendo o que está escrito nas estrelas, 
estamos lendo, até certo ponto, o que a humanidade 
mesmo escreveu, porque ao atribuir símbolos e 
significados aos astros e seus movimentos, usando a 
intuição, o ser humano simplesmente parece ter 
transferido a sabedoria do inconsciente coletivo para 
um suporte específico. 
É importante destacar, como fez o filósofo e 
professor Renato Janine Ribeiro, que Jung deu um 
novo sentido à astrologia que, se antes era vista como 
uma maneira de detectar infortúnios ou lances de 
sorte, passa a ser mais uma análise das possíveis 
influências positivas e negativas atuando sobre a vida 
das pessoas, dando uma oportunidade ao ser humano 
de compreender a sua própria vida. 
2. John B. Rhine (18951980) parapsicólogo americano. 
 
50 
 
 
Alguns autores atuais, mesmo influenciados por 
Jung, preferem citá-lo apenas como uma referência 
distante, seja para evitar conexões com suas atitudes 
mais polêmicas, seja pela necessidade de parecerem 
originais. É o caso dos criadores da psicologia 
transpessoal e também do filósofo americano Ken 
Wilber que, curiosamente, reivindica ter sido o primeiro 
a estabelecer uma conexão entre psicologia e religião 
oriental. 
 Ele tece algumas críticas muito interessantes, 
como o pouco reconhecimento da importância das 
estruturas intersubjetivas (linguagem, cultura, ética, 
sistemas sociais) tanto por parte de Jung quanto de 
Freud e qualificando entre o que ele chama de falácias 
prétrans o fato de Jung não distinguir entre os 
componentes espirituais préracionais, ou seja, infantis 
e primários, e os transpessoais, ou seja, produtos de 
uma evolução espiritual. 
Ken Wilber falha, contudo, ao ficar preso ao 
paradigma do espiritualismo evolucionista, comogrande parte dos pensadores alternativos e, 
especialmente, os pseudobudistas da Califórnia e do 
Colorado. Há um otimismo ingênuo nessa postura, 
fruto de uma sociedade que acha que tudo se 
resolverá e da melhor maneira possível, apenas levará 
tempo. Não há o sentido do trágico, não há 
passionalidade em Ken Wilber. 
 
51 
 
CAPÍTULO 9 
JUNG E A ARTE 
Jung sempre incentivou os seus pacientes a 
desenhar ou pintar as imagens que apareciam em 
seus sonhos. Para ele, a forma era significativa e não 
apenas o conteúdo que pudesse ser extraído dessas 
representações. Ele achava importante que as 
pessoas desenhassem e pintassem regularmente, de 
modo livre, possibilitando a expressão dos conteúdos 
inconscientes. Sua ligação com a arte não encontra 
paralelo em Freud, que a considerava uma sublimação 
neurótica. Esta posição foi criticada por Jung como 
sendo o equivalente a considerar a obra de arte como 
uma doença. Afinal, considerar que as neuroses de 
um artista influenciaram a sua arte, não explica o 
apelo que a grande obra exerce sobre tantas pessoas. 
Para Jung, a Grande Arte apresenta-se como uma 
mensagem do inconsciente coletivo para toda a 
humanidade. Trata-se, portanto, de canalização e não 
de sublimação. 
 
52 
 
Devido ao excesso de energia psíquica consumida 
por tão grande tarefa, esse processo pode provocar um 
desequilíbrio da personalidade. Assim, para Jung, a 
atividade artística, em seu nível mais alto, pode alterar a 
mente do artista, levando-o a neurose, se seu psiquismo 
não estiver forte o bastante. Para Freud, ao contrário, 
são as neuroses que explicam a obra de arte. 
É interessante comparar a análise da obra de 
Leonardo da Vinci, "A Virgem, Santana e o Menino 
Jesus", sobre a qual tanto Freud, quanto Jung, 
escreveram. Fica claramente demonstrado o 
posicionamento diferente dos dois. Enquanto Freud
desdobra-se sobre os prováveis problemas sexuais de 
Da Vinci, a análise de Jung pergunta por que essa obra 
nos fascina e conclui que ali está representado o 
arquétipo da dupla maternidade, que nos remete ao mito 
do duplo nascimento, o físico e o espiritual, que seria o 
fator que nos comove profundamente. 
 A influência de Jung é muito marcante nas artes, 
por seu entendimento de que a criatividade é uma força 
positiva única e especial. Jung alertou para a força das 
imagens e a tremenda carga psíquica de que podem 
estar possuídas, influenciando nesse sentido até mesmo 
a psicanálise, apesar da mesma tradicionalmente ter 
valorizado a palavra em detrimento da imagem. Como 
vimos, ele tinha um grande sentido visual das coisas e 
considerava que a criatividade artística tenderia a ativar 
e expor o material inconsciente, levando a uma 
harmonização da psique. 
 
53 
 
Grandes cineastas como Ingmar Bergman, 
Frederico Fellini e Akira Kurosawa, foram diretamente 
influenciados por ele. Kurosawa tem uma frase 
interessante, com um tom muito junguiano: "o homem 
é um gênio enquanto sonha". 
Jung foi um grande incentivador da arte como 
terapia, insistindo que a realização e a contemplação 
dessas expressões plásticas tinham um efeito 
terapêutico importante. Considerava que uma imagem 
possuía um valor simbólico, portanto, não redutível a 
uma simples descrição racional. Em uma passagem 
breve, mas curiosa, chegou a especular que a dança 
poderia também ter efeito terapêutico, o que para a 
época era uma ideia incomum. 
A mandala (que significa círculo em sânscrito), 
figura muito utilizada para meditação no budismo 
tântrico tibetano, foi identificada por Jung como o 
símbolo da totalidade psíquica. Segundo ele, este 
motivo aparece frequentemente nos sonhos das 
pessoas na crise inicial que precede o processo de 
individuação. Surge ocasionalmente também em 
desenhos de psicóticos. E aparece como símbolo de 
uso comum em épocas de crise em muitas culturas. 
A mandala é formada por uma série de figuras e 
motivos ao redor de um ponto central, rodeado de
círculos ou de formas quadradas e está geralmente 
dividida em quatro, oito ou doze seções, apresentando 
cores variadas, além do seu desenho complexo. 
 
54 
 
Jung localizou figuras similares em quase todas as 
culturas e valorizava muito seu sentido universal. Ele 
também pintou uma série de mandalas e algumas dessas 
figuras estão representadas na sua obra "Os Arquétipos e 
o Inconsciente Coletivo". Desenhar ou pintar mandalas, 
segundo ele, teria um grande e importante efeito 
terapêutico. 
Os vitrais de rosáceas das catedrais góticas seriam 
um exemplo do uso religioso das mandalas. Ironicamente, 
há muitas vezes mais mandalas que cruzes nas igrejas. 
Formas circulares têm tradicionalmente uma conotação 
de totalidade e na forma de uma serpente mordendo o 
rabo, representavam a eternidade para os antigos 
egípcios, do mesmo modo que a serpente uroboros dos 
alquimistas. Muitos críticos acharam exagerada a 
obsessão de Jung por mandalas, mas para ele a 
universalidade de um símbolo como a mandala era um 
argumento muito forte para a teoria do inconsciente 
coletivo, daí sua importância. 
Jung irritou muitos ufólogos ao sugerir na sua obra 
"Um Mito Moderno" que as visões de discos voadores 
seriam alucinações compensatórias, visões de mandalas, 
provocadas pela angústia da sociedade moderna em 
relação a uma possível guerra nuclear. 
Jung deparou-se com a enorme quantidade de 
material mitológico contido nas alucinações dos 
psicóticos internados no Hospital psiquiátrico de 
Burghölzli, material para o qual ninguém antes tinha 
prestado atenção. 
 
55 
 
Ele percebeu que, muito além de ser apenas um 
sintoma, essas visões poderiam estar sinalizando uma 
tentativa de cura da própria mente. Ele tinha uma 
enorme capacidade de intuição, surpreendendo muitas 
vezes seus pacientes ao adivinhar situações que os 
mesmos tinham vivido antes de eles mesmos as 
contarem. 
Nise da Silveira, brilhante psiquiatra brasileira, 
utilizou muito a arteterapia com os internos do hospital 
do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. 
Entusiasmada com as ideias de Jung, encontrou-se com 
ele em Zurique. Depois de uma longa conversa, Nise 
perguntou: "Meus pacientes pintam, mas aquilo não faz 
sentido". Jung fez uma longa pausa. E, fitando-a nos 
olhos, respondeu: "Estude mitologia". 
Nise passou a ver com novos olhos os trabalhos de 
seus pacientes. Sim, ali estavam os deuses e demônios, 
seus enigmas, rituais e celebrações e as estranhas 
visões que provocavam, tudo colocado nessas obras 
hoje famosas e que são exibidas no Museu do 
Inconsciente. Esta atitude frente aos delírios acabou se 
disseminando por várias instituições psiquiátricas, tendo 
como exemplo mais famoso o caso de Artur Bispo do 
Rosário, embora o mesmo não estivesse ligado 
diretamente a Nise da Silveira. 
Artur Bispo do Rosário, negro, pobre, louco, gênio, 
hoje é tema de artigos e livros, um fenômeno cultural, 
exposto na Bienal de Veneza e eternizado no campo 
das artes. 
 
56 
 
O seu "Manto para Encontrar com Deus" é uma 
obra que emociona, arte em estado puro, absoluto, o 
ponto máximo de um processo de resignificação da 
loucura, de redenção daqueles que não tiveram voz, 
mas mantiveram a chama do contato direto com a 
essência divina. 
O grande pintor Van Gogh, em carta a Gauguin, 
lembra que a arte deve ser procurada no mais 
profundo de nossa alma, como um diamante 
escondido no interior da terra. Essa posição é muito 
semelhante à de Jung. A arte aqui não é sublimação, 
fuga, mas, sim, encontro, descoberta. Nesse caminho 
para dentro, a primeira camada encontrada é 
semelhante ao inconsciente proposto por Freud, ou 
seja, um depósito de sentimentos negativos 
recalcados. É quando se consegue passar para além 
desse ponto e continuar a viagem é que se chega ao 
reino da arte, dosublime, da espiritualidade e da 
transcendência, da unidade com o cosmos. A 
psicanálise freudiana, por se basear no materialismo 
absoluto, não consegue reconhecer, nem lidar, com 
esta dimensão extra. 
 
57 
 
CAPÍTULO 10 
CONFLITO DE GÊNIOS 
O pensamento de Freud oscilou muito durante os 
anos em que ele trabalhou. Apesar de ter feito uma 
opção materialista, rejeitando qualquer vertente 
espiritualista na psicanálise, no fim da sua vida 
declarou que se pudesse recomeçar, dedicaria mais 
tempo ao estudo dos fenômenos paranormais. Embora 
tenha se dedicado ao estudo de uma dinâmica da 
mente na qual os problemas psíquicos surgiriam 
através de processos mentais, previu, nos seus 
escritos finais, que com o passar do tempo seriam 
descobertos remédios que poderiam atuar nos 
distúrbios mentais e, então, a psicanálise, cara e 
demorada, poderia retirar-se de cena. Por que essas 
declarações são tão pouco conhecidas? Porque o já 
citado Ernest Jones se encarregou de classificar esses 
comentários finais como sendo escritos especulativos 
e não doutrinários e, dada a sua influência no 
movimento psicanalítico, a sua colocação acabou 
prevalecendo. Como sempre acontece, quem controla 
a interpretação, controla a doutrina. 
 
58 
 
O momento crucial da disputa entre Jung e Freud 
foi a publicação, em 1912, do livro "Símbolos e 
Transformações da Libido"1, por Jung, em especial o 
capítulo "O Sacrifício", que apresenta uma visão mítica 
do tema do incesto tratado como uma representação de 
uma regressão da libido em direção a um estágio 
anterior pré-natal, tendo apenas secundariamente uma 
conotação sexual. 
Esta versão da libido como uma força vital ampla 
e geral, cuja expressão como sexualidade 
representaria um estágio particular, contrariava o 
rígido enfoque freudiano de que a sexualidade fosse a 
força básica e primitiva. Freud apresentou, 
posteriormente, sua resposta no livro "Totem e Tabu", 
com a versão de que toda a civilização baseia-se na 
proibição do incesto, originada da culpa relativa ao 
assassinato do Grande Pai da horda primeva, a tribo 
original da qual todos nós descenderíamos. A ideia da 
horda primeva é de Darwin, do qual Freud era um 
grande admirador. Os estudos modernos sobre 
comportamento dos animais, especialmente sobre 
nossos parentes próximos, os primatas, não apoiam
essa teoria. Instintivamente, os animais superiores, em 
estado selvagem e em condições ecológicas normais, 
tendem a cruzar fora do seu grupo familiar original. A 
seleção natural teria favorecido comportamentos que 
criassem maior diversidade genética, um fato que não 
era conhecido na época de Freud. 
1. Esse livro foi revisto várias vezes por Jung, tendo a última edição recebida o título de 
"Símbolos da Transformação" (Obras Completas vol. 5). 
 
59 
 
Falta uma boa explicação de como este sentimento 
de culpa se transmitiria ao longo de um período que a 
moderna antropologia considera que poderia ter 
chegado a trezentos mil anos. Também não fica definida 
qual é a situação das mulheres no caso, uma vez que 
esta teoria do crime primitivo faz referência apenas à 
culpa de homens, que teriam matado o Grande Pai
porque o mesmo monopolizava as mulheres. 
Uma teoria, portanto, com fundamentos precários. 
O que não impede que "Totem e Tabu" seja o livro de 
cabeceira para muitos freudianos lacanianos, adeptos 
de uma flexibilização interpretativa que libera do 
compromisso com a realidade literal. De fato, 
argumentam, a hipótese do crime primitivo se adapta 
tão bem à teoria geral freudiana, que não importa que a 
mesma não seja verdadeira, mas, sim, que a construção 
desse mito atenda à necessidade da psique humana. 
Mas o que é isto, senão literatura! 
O que importa seria a eficácia do saber construído, 
não sendo relevante que seja verdade ou não. 
Poderíamos, contudo, dizer a mesma coisa da história 
de Pinóquio ou da Branca de Neve, porque aí estamos 
muito mais próximos da criação literária do que qualquer 
coisa que possa ser chamada ciência. A hipótese do 
crime primitivo, cuja culpa carregaríamos até hoje, pode 
ser considerada, então, como apenas uma postura 
solitária e bizarra de Freud. 
 
60 
 
Durante muito tempo, Freud acreditou no hipnotismo 
como terapia para, depois, abandoná-lo. Em 1884 
começou a advogar o uso da cocaína para melhorar o 
estado de espírito das pessoas, tendo inclusive o 
recomendado à sua futura esposa Martha Bernays e a 
alguns amigos. Só se deu conta do seu erro mais tarde, 
quando seu amigo FischerMaxlow, a quem tinha receitado 
cocaína, começou a apresentar alucinações, vendo 
pequenas cobras subindo por sua pele. 
O abandono da Teoria da Sedução por Freud também 
foi feito com muita hesitação, numa ação cheia de dúvidas. 
Com tantas idas e vindas, não teria sido possível somar as 
posições de Jung às suas? Por razões não muito claras ele 
resolve, no momento do conflito com Jung, definir uma 
ortodoxia severa em torno da origem sexual das neuroses. 
Logo ele, que tinha sido tão revolucionário e tão aberto a 
ideias novas. 
A sua fantástica flexibilidade, que lhe tinha permitido 
ir tão longe, deu lugar a uma ferrenha obstinação. Jung 
alertou-o de que sua obsessão era neurótica e causaria 
problemas futuros para a psicanálise, que poderia ficar 
rígida e limitada, previsão que muitos consideram 
confirmada. 
Freud não viu nenhum futuro na religiosidade, que 
atravessava um período de descrédito muito grande. Ele 
optou por um sistema rígido, materialista e reducionista. 
E, no médio prazo, a escolha deu certa, pois atendeu ao 
espírito da época. Estranhamente, contudo, uma parcela 
significativa dos textos de Freud trata de temas ligados à 
religião. 
 
61 
 
De fato Freud pertence ao brilhante grupo de 
cientistas e intelectuais judeus que surgiu na Europa do 
século XIX e início do século XX, período no qual as 
restrições aos judeus foram sendo retiradas na maioria 
dos países da Europa, até o surgimento do nazismo, 
quando a situação voltou a se deteriorar, atingindo o 
horror inimaginável. 
Durante o século XIX, abriram-se as portas da 
integração para esses jovens intelectuais ávidos de 
reconhecimento e ascensão social, mas o preço a pagar 
seria alto: o abandono das tradições judaicas e, em 
particular, do judaísmo como religião. Muitos deles vão 
optar, portanto, por um humanismo secular, pelo 
ateísmo ou, no máximo, por um vago deísmo. O sistema 
freudiano ficará, assim, marcado por esta falta de 
espiritualidade. 
No lugar de Deus, ausente, a força obscura do 
inconsciente, também invisível e também portador de 
ordens autoritárias, com o qual o ser humano pode no 
máximo alcançar um armistício duvidoso. Um destino 
triste e solitário, que se reflete na impressão de 
melancolia na obra de Freud. 
Jung, em contraste, propõe um mundo mágico, 
exuberante e irracional. Ele não está se afastando, mas 
sim procurando, as suas imaginárias raízes religiosas, 
estranhas e perigosas, perdidas nas brumas do tempo 
Acordar os deuses adormecidos pode ser um 
grande problema, talvez o que Freud temesse... 
 
62 
 
Para alguns estudiosos, portanto, Jung não 
deveria ser considerado um discípulo de Freud, pois 
sua abordagem, desde o início, já traria uma direção 
frontalmente diferente. 
Freud encarna o espírito modernista, tomado por 
um individualismo radical, secularismo absoluto e uma 
tendência à criação de ideologias puras e totalizantes. 
Jung, em contraste, revela algumas características 
surpreendentemente pós-modernas, como sua atuação 
multidisciplinar, sua aceitação da indeterminação, suas 
concepções de entidades coletivas. 
Isto torna as análises sobre ele prejudicadas 
quando se originam de um certo olhar modernista. Por 
exemplo, a crítica de que o pensamento de Jung é

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