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C SÉRIE q 
rUNDAMENTOO
Alfredo Bosi
CULTURA
BRASILEIRA
Temas e situações
4
Cordel, intelectuais e o 
Divino Espirito Santo*
(N o ta s sob re a r te s do povo e 
e s té t ic a da rep re sen ta ção )
J osé A ntôn io Pasta J r . **
A nossa (minha) tentativa, aqui, é a de abordar as questões 
presentes na contribuição inicial a este debate — as questões da 
“deturpação” e “consumo” das manifestações da chamada “cultura 
popular” — através de um tipo bastante particular de sua “trans­
formação” no interior da sociedade: uma determinada “leitura”, 
avaliação ou interpretação que delas fazem alguns intelectuais. Por 
esse caminho, quem sabe, gostaríamos de tocar na questão da 
memória, tema básico proposto para este debate.
A questão é ampla, muito ampla, das mais complicadas e tem 
muitos enfoques possíveis. O nosso ângulo não é dos mais agradá­
veis, porque não parte do entusiasmo (às vezes excessivamente 
fácil) em torno das manifestações culturais populares nem fala
* Este texto foi escrito inicialmente para um debate da SBPC, em 1979, a 
que o autor compareceu como pesquisador do antigo Idart. Foi em seguida 
publicado, com algumas modificações, no n.° 3 de Arte em Revista (SP, 
Kairós/CEAC, 1979). Sai agora praticamente como estava, salvo a revisão 
necessária e pequenos cortes. A finalidade polêmica e a destinação oral nele 
estão inscritas de várias maneiras e respondem, em parte, por certa dureza 
de formulação e articulações. Penso também que ele se move em um campo 
temático no qual as possibilidades de enfoque se modificam muito rapida­
mente, mas em que a situação de base quase não se altera, antes se repõe 
com a tenacidade que só têm as questões muito diretamente ligadas às bases 
da organização social. Por isso — levando-se ainda em conta as alterações 
pelas quais passou o ponto de vista pessoal ao longo desses anos — eviden­
temente se coloca o desejo de refazê-lo, mas se põe também a hipótese de 
que ele ainda possa desempenhar o seu papel.
** Professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo.
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO ESPIRITO SANTO 59
ilirctamente sobre o popular, perdendo, assim, até os residuos de 
muís possíveis encantos que às vezes sobram para os discursos 
'cultos”. O nosso caminho é, antes, o do indireto e o da negação, 
mas gostaríamos, ao ensaiá-lo, de ajudar a romper com a consi­
deração quase sempre separada que se faz do popular e dos códigos 
altos”.
O discurso dos intelectuais sobre as manifestações culturais 
populares — qualquer que seja o matiz teórico/ideológico ou o
• ufoque que apresenta — é sempre colocado, imediatamente, sob 
nspeita. Freqüentemente é, de viva voz, argüido de oportunismo 
e ilegitimidade. Escrever sobre as chamadas artes do povo seria 
algo como duplicar, por urna última e cruel ironia, a espoliação 
ii que já são submetidas as classes trabalhadoras. O intelectual 
aparece ai como uma espécie de assaltante sórdido, o que rouba 
mi já roubados, aquele que assalta os espoliados para tomar-lhes 
n que por último lhes resta — a pobre pele, exibida depois como 
iioféu na Academia, em nome da carreira etc.
Com a facilidade esperável, arma-se no terreno desse conflito 
ii tedioso teatrinho da má-consciéncia, que tanto ocupa a cena 
intelectual brasileira.
A questão da chamada cultura popular é, com efeito, como 
uno poderia deixar de ser, uma região de fogos cruzados. Por um 
liiilo (dadas as peculiaridades dos meios intelectuais), o desconhe- 
i Imcnto do campo de estudos, ao incentivar um conhecido charla- 
luiiísmo e uma ideologização imediatista, começa a repugnar ao 
intelectual “sério”, homem de mãos limpas. Por outro lado, vencida 
i .mi precária barreira, o impacto inicial com um conjunto de dife- 
i ruças (o intelectual não encontra refletido o seu próprio rosto ou 
" encontra em desfiguração) leva freqüentemente a atitudes extre­
madas. Desde a recusa integral dessas produções culturais (“defor­
mação”, “fala de escravos”, “insuficientes”, “limitadas”, “incapazes 
de totalização”, “miseravelmente presas ao empírico” etc.) até o
• uliisiasmo fácil pela “pujança cultural popular”, passando por uma 
ladainha de lamúrias e um vale de lágrimas pelo sofrimento do 
I ii ivo, podem-se encontrar discursos de vário tom, mas cuja crueza
Ircqüente patético dão testemunho da densidade político/ideoló- 
iai a da questão, da cerrada batalha que em seu espaço se fere. 
i • próprio adensamento dessa plétora de discursos cria uma espécie 
d. \urplus ideológico, uma selva conceituai e teórica, sobreposta à
miplcxidade de base da questão, que se torna tão difícil quanto 
"i i essário desbastar.
60 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
Complexidade e, sobre ela, complicações têm tido como uma 
de suas conseqüências mais freqüentes — e das menos desprezíveis
— um discurso de paralisação, sob a forma do interminável dis­
curso adaptatório, uma prudente dança de volteios e recuos — 
pavana do intelectual que, fascinado por uma alteridade que ele 
não chega a constituir, examina o conjunto de enfoques e desdo­
bramentos possíveis da questão sem, no entanto, atingi-la e, em 
primeira instância, oferecendo em espetáculo o brilho de suas armas
— pensamento e argúcia. Em segunda instância, o que ameaça 
ocorrer, e que mais importa, é a crise/crítica do aparato intelectual 
reconhecendo-se em sua parcialidade e arbitrariedade, o que talvez 
seja uma primeira prova de força das práticas culturais populares.
Com efeito, nenhum discurso sobre as manifestações culturais 
populares consegue escapar ao estilhaçamento de sua própria iden­
tidade, que aparecerá, de uma forma ou de outra, como autocrítica 
ou como insuficiência e recalcamento. Nesse caso, mais que nunca, 
crítica e autocrítica são obrigadas a andar juntas, o discurso tra­
çando a cada momento sua própria episteme, evidenciando seu 
próprio trajeto, voltando-se sobre seus próprios passos. Sob a 
suspeita mínima de etnocentrismo, o discurso intelectual é obrigado 
a fazer essa autocrítica, que deve estar nele permanentemente como 
uma dimensão que é, também, permanentemente ultrapassada em 
direção às questões substantivas, que podem alterar de maneira 
irreversível sua própria prática.
Este discurso mesmo que agora se faz, aparentando estar a 
cavaleiro das contradições, deve ser visto antes como auto-refe- 
rencial ou autocrítico do que como crítico de uma situação a que 
nos julgássemos alheios. Muito pelo contrário, como é óbvio, essas 
considerações tendem a voltar-se para si mesmas e, em larga me­
dida, é de suas próprias condições de produção e de sua signifi­
cação social que gostariam de falar. E, ainda, nesse contexto de 
autoquestíonamento de seus próprios pressupostos, qualquer apa­
rência de fechada certeza que essas considerações possam vir a 
ter, pediríamos que fosse vista, antes, como mero artifício expres­
sivo do que como afirmação categórica.
O tipo de “leitura” das manifestações culturais populares que 
aqui nos interessa examinar, como uma modesta picada nesse cipoal, 
acreditamos que tem justamente como determinação mais imediata 
o situar-se aquém da necessária autocrítica, ou o fato de paralisá-la, 
precocemente, num momento em que a postura imediatamente polí­
tica desse intelectual já lhe permite uma crítica de sua situação de
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO ESPÍRITO SANTO 61
classe (a experiência da dominação) e uma crítica da limitação do 
outro (a experiência do dominado), mas não lhe permite ainda o 
questionamento do próprio aparato teórico/conceitual com que rea­
liza essas operações. Em outras palavras, sua crítica é limitada­
mente política, pois, apesar de ter anotado protocolarmente a 
politicidade da cultura, não reconheceu ainda a especificidade polí­
tica do campo cultural, a feição particular do confronto social 
básico nessasua refração específica.
Como as duas tarefas são concomitantes e só podem ser levadas 
a cabo concomitantemente, esse intelectual fica a meio caminho, 
pois nem chega a especificar a alteridade cultural do “outro” nem 
perfaz com a radicalidade necessária a crítica de suas próprias 
matrizes culturais. Do seu próprio aparato teórico de origem, no 
qual está profundamente enraizada, essa postura conserva pratica- 
inente tudo, mas principalmente o conjunto dos pressupostos e das 
formações teóricas subjacentes — difícil de ser criticado; do espec­
tro cultural do “outro” vê-se apenas sua limitação, que assim 
aparece hipertrofiada, absolutizada: vê-se apenas a limitação e não 
\e deixa ver outra coisa que não ela. Nosso interesse está, assim, 
não em pessoas, mas na caracterização de uma postura específica. 
I ssa postura, cuja conseqüência mais notória é a visão do intelec­
tual como um iluminado, missionário, ou o que valha, dá-se como 
uma posição, digamos, dos “corações bem formados”, “dos que 
têm o coração do lado certo”, e apresenta interesse objetivo para 
as novas definições da questão da “Cultura Popular” que agora, 
de novo, se ensaiam em todo o País.
Presa a uma imagem do “outro” e, portanto, enxergando-o 
pela sua limitação, essa postura determina uma recusa (que é 
simultaneamente estética e política: nesse nível essas coisas já não 
se separam) das manifestações culturais populares, recusa que, 
acreditamos, tem três avatares principais, visíveis a olho nu e facil­
mente encontráveis.
O primeiro, e mais cru, é o recalcamento do popular. Essa 
atitude — que, ao contrário do que se pode pensar, também é 
ciicontrável fora da direita tradicional — é a prática da forma talvez 
mais aguda da negação: o desviar os olhos, recusar-se a conferir 
i xistência a essas manifestações, recalcando-as para níveis abaixo 
da possibilidade de irrupção no discurso. (A ameaça fatal é o 
i«torno do reprimido.)
O segundo é a negação de sua especificidade ou particulari­
dade. Essa postura vé as manifestações culturais populares e mesmo,
62 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
às vezes, as examina detidamente, mas encontra nelas tão-somente 
mais um lugar de reprodução das lógicas de dominação — só que 
um lugar especialmente “dramático” e terrível dessa reprodução, 
uma vez que ela se daria justamente num espaço de linguagem que, 
com astúcia, simula-se aberto a uma fala popular.
O terceiro é a anacronização das manifestações culturais popu­
lares. Essa consideração, mais sutil, vê essas manifestações como 
algo além (ou antes, aquém) da reprodução das lógicas de domi­
nação vigentes, algo como uma “ideologia de segundo grau” — 
só que, agora, na esfera popular, e com a diferença significativa 
de que, nesse caso, o leque ideológico se abre para trás, para algo 
que a própria história das relações capitalistas já deixou na reta­
guarda. Trata-se, portanto, de uma inferiorização radical das for­
mas populares, que são vistas como resíduo anacrônico que se torna 
notável apenas e justamente devido a seu momentâneo desloca­
mento, enquanto aguarda a desaparição inexorável.
Seja como pressuposto, seja de maneira explícita, essa atitude 
que provisoriamente estamos chamando de recusa tem como traço 
comum o ver sempre nas manifestações culturais populares uma 
incapacidade de transcender minimamente sua determinação (vale 
dizer sua limitação) no interior de uma sociedade de classes. (Nessa 
perspectiva, qualquer atitude de adesão a essas manifestações é 
vista, de saída, como uma forma equivocadamente bem-intencio­
nada de assumir essa limitação e de, assim, preservá-la enquanto 
tal e limitar-se a si próprio.)
Nossa hipótese, e talvez a esta altura seja desnecessário dizê-lo, 
é a de que as “limitações” que fundamentam essa recusa são tanto 
mais visíveis quanto mais invisível é, para o intelectual, a limitação 
de sua própria perspectiva. Dito de outra forma, não serão justa­
mente essas interpretações, por incapacidade de superarem suas 
próprias condições de produção, por não atentarem para as deter­
minações socioculturais de seu próprio aparato teórico e analítico, 
que não conseguem reconhecer no popular uma alteridade válida?
No caso específico das chamadas artes do povo, acreditamos 
que sua “limitação” é anotada a partir de um aprisionamento do 
intelectual numa estética da representação e em seu domínio — o 
mundo das obras, o que por sua vez repousaria numa concepção 
idealista da linguagem. (A dificuldade de demonstrá-lo está sobre­
tudo em que a representação se dá como uma “natureza”, pois, 
sendo um recorte, uma visão, se dá como o visível. O discurso 
dessa demonstração é sempre suspeito de loucura — a do Quijote,
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO ESPÍRITO SANTO 63
por exemplo — e as voltas a que é obrigado, na melhor das hipó­
teses, são vistas como “digressão”, modo de nomear com urba­
nidade o que se acredita irracionalismo.)
De toda maneira, estas formulações que estamos fazendo exi­
gem, evidentemente, ao menos, um desenvolvimento um pouco 
maior; portanto pediriamos licença para encaminhá-lo através de 
duas proposições especialmente explícitas e incisivas — e até mesmo 
já um pouco célebres.
A primeira é um fragmento de um prefácio escrito por Alfredo 
Bosi, datado de 1977:
Quais as relações que os códigos “altos" entretêm com a vida 
e a mente do povo? Relações de libertação, de controle, ou, sim­
plesmente, de ausência e indiferença? Por enquanto, "cultura po­
pular" e “código culto, escrito" são conjuntos altamente diferencia­
dos cuja área de intersecção é reduzida. A análise textual parece 
ainda não ter instrumentos para responder à pergunta: lidando com 
um repertório feito de objetos que, por sua própria natureza, já 
ultrapassam o limiar que separa o pobre iletrado do homem de 
letras, a sua perspectiva não vai além da literatura. Esta vive a 
sua própria temporalidade na qual assumem caráter muito especí­
fico os contatos com as formas artísticas supranacionais. O mesmo, 
repito, não acontece com a cultura do povo, que não tem na escrita 
seu fulcro b
A segunda proposição, e que talvez sirva para complementai 
alguns aspectos da primeira, é um fragmento de um prefácio escrito 
por Otto Maria Carpeaux, datado do final de 1970:
Em toda parte do mundo — onde é livre a discussão de pro­
blemas importantes da civilização e do seu futuro — discute-se, hoje 
em dia, a utilidade ou inutilidade da literatura.
Só nos chega um eco remoto e vago dessas discussões, e não 
pode deixar de acontecer assim. Pois para nós, no Brasil, o pro­
blema já está resolvido: no Brasil a literatura é (relativamente) 
útil para os participantes do prestígio oficial de algumas institui­
ções e inútil para a imensa maioria da população, que nem chega 
a saber a existência dela * 1 2.
O texto conciso de Alfredo Bosi tem, no seu núcleo, a reflexão, 
lão fundamental quanto rara, sobre a limitação da “perspectiva”
1 Um testemunho do presente. In: Mota, Carlos Guilherme. Ideologia da 
lidiara brasileira. São Paulo, Ática, 1980. 4 ed. p. XVI.
1 In: Bosi, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular; Leituras operárias.
1’etrópolis, Vozes, 1977.
64 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
do intelectual, “que não vai além da literatura”. O que aí preenche, 
no entanto, este largo nome de literatura? — “Um repertorio feito 
de objetos que, por sua própria natureza, já ultrapassam o limiar 
que separa o pobre iletrado do homem de letras”. O que marca 
esse limiar é, aí, o traço da escrita e tudo o que ela representa. 
A “escrita”, pois, se configura nesses “objetos” — obras — que 
ela traz no seu bojo, e estes informam a perspectiva do analista. 
O texto de Bosi pode-nos levar, assim, a entrever a necessidade de 
vincular radicalmente a limitação da perspectiva à limitação a 
esses objetos. Não seria, nesse caso, a vinculaçãode origem do 
intelectual aos códigos “cultos”, de matriz escrita, tout court, o que 
determinaria inelutavelmente seu afastamento das manifestações 
culturais populares, mas sim o seu fechamento numa visão repre­
sentativa da atividade artística, determinado pela fetichização dos 
emblemas mais adequados do discurso representativo — o mundo 
das obras de arte.
A nossa hipótese é a de que essa postura de recusa exemplar 
das chamadas artes do povo surge não das origens na matriz escrita, 
tomada em si — de que a literatura aparece como a manifestação 
originária mais forte —, mas sim de uma determinada e específica 
concepção da literatura (e, por extensão, dos códigos “altos”), 
concepção essa que teria perdido de vista a própria feição que a 
literatura assume na modernidade.
Assim, sintetizando, não seria a vinculação aos códigos “altos” 
e mais particularmente a matrizes literárias, em si, o que desquali­
ficaria o observador para uma compreensão adequada do popular, 
mas sim um recorte que já é conservador em relação aos seus 
próprios códigos de origem e que determina um fechamento, uma 
clausura do observador numa estética da representação, quando 
esta mesma, no entanto, se apresenta já inteiramente estilhaçada. 
O esquema da representação “clássica” se constitui pelas mesmas 
características definicionais básicas da obra de arte (estas, por sua 
vez, uma hiperbolização das características da mercadoria, em tri­
buto ao lugar de nascimento da noção de obra, que é o advento 
do mercado de arte) 3. A essas características é que, acreditamos, 
opõem sua resistência as chamadas artes do povo. Essas mesmas 
características é que o recorte do intelectual seleciona no conjunto 
da produção artística de código “alto”.
3 Cf. Galard, Jean. Morl des beaux arls. Paris, Seuil, 1971. (Sobretudo 
p. 22 e seguintes.)
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO ESPIRITO SANTO 65
Desse conflito nasce a recusa das manifestações culturais 
populares. Por este mesmo movimento que absolutiza no “outro” 
sua “limitação”, o intelectual absolutiza também suas próprias 
concepções da linguagem e da atividade artística, que assim se 
colocam fora do alcance de uma crítica capaz de desenhar sua 
arbitrariedade e parcialidade, como aquele pintor chinês de que 
fala Walter Benjamín, “cuja lenda narra haver-se perdido dentro 
da paisagem que acabara de pintar” 4.
Deixar-se possuir pela representação, penetrar na obra como 
num mundo é, no limite, conceber-se como um universal sem som­
bra, sem fissura, ao qual nenhum outro faz face. De certa forma, 
nas entrelinhas, é para essa direção que aponta o texto de Bosi, 
como a designar o modo pobre e limitado de viver e dinamizar 
suas contradições assumido por uma literatura que “vive a sua 
própria temporalidade” e não sabe encontrar seu “outro” social 
definitivo, mantendo como “conjuntos altamente diferenciados” 
instâncias de uma contradição fundamental capaz de fazê-la avançar.
Como poderia uma literatura que se vê como uma superfície 
lisa, homogênea e sem brechas, essa representação sem crise, como 
poderia uma linguagem que, ao se pensar como um universal, não 
vê em si sua marca de classe e não se percebe como uma ideologia 
entre outras possíveis, como poderia uma representação que, numa 
só palavra, não “percebe” sua arbitrariedade atingir o nível de 
autoquestionamento que pede Otto Maria Carpeaux, no texto cita­
do, e perguntar-se de sua própria utilidade ou inutilidade?
Acredito que somente aquele cuja linguagem se deixa ferir 
internamente por uma alteridade radical e inconciliável é que pode, 
através desse próprio dilaceramento, entrever a imagem do “outro” 
que o condena à parcialidade e à arbitrariedade. Essa situação está, 
por assim dizer, perfeitamente dramatizada nesse texto de Carpeaux, 
que, iniciando por um questionamento radical da literatura, logo 
atinge a matriz dessa consciência de sua arbitrariedade, que não 
é outra senão o adensamento das massas populares, a quem essas 
formas de representação são estranhas e não dizem respeito. (O 
mais importante, acreditamos, a se extrair do fragmento do texto 
de Carpeaux é que só artificialmente, ou seja, só mediante um 
recalcamento da consciência de sua arbitrariedade, a literatura pode 
estar isenta de um questionamento radical.) Como não poderia
4 A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: — et alii. 
Textos escolhidos. São Paulo, Abril, 1975. p. 32. (Col. Os pensadores, v. 
XLVIII.)
66 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
deixar de ser, justamente as formas desse autoquestionamento radi­
cal — que ultrapassa de muito a literatura e atinge todas as formas 
de expressão artística de código “culto” — constituem a marca 
mais específica da modernidade na arte. Nesse autoquestionamento, 
às vezes narcísico e mesmo trágico, o que imediatamente é ferido 
é o caráter representacional do objeto estético, que passa a fazer 
de seus próprios cânones reguladores tradicionais e da sua desorga­
nização programática seu tema e seu método. Mais radicalmente, 
é a própria limitação da atividade artística a esse objeto que é 
rompida; é a naturalização dessa moldura que é quebrada.
Essa representação evidentemente não acabou, não terminou 
para dar lugar a algo que fosse radicalmente novo, é óbvio, uma 
vez que de uma superestrutura não nasce outra superestrutura que 
seja realmente diversa da que lhe deu origem etc., mas ela fechou-se 
sobre si mesma e em muitos casos votou-se à sua própria destruição.
A vocação da literatura hoje — e por extensão a das outras 
formas de expressão estética — é sair de si; é ela própria que, 
diante da contradição que lhe retira as bases de uma universalidade 
que supunha constituída, é ela mesma que dramatiza, no seu próprio 
interior, a destruição de suas categorias fundamentais e aponta 
para fora de si.
No caminho dessa crise, e isso é o que mais importa, são os 
tradicionais cânones reguladores da mimesis — o sujeito unitário 
(o eu lírico e o narrador), a homogeneidade (o gênero, o código), 
a distância estética, a comunicabilidade e a verossimilhança — que 
são desconstruídos e esfacelados.
É evidente que não precisamos, nem devemos, compactuar ou 
mergulhar de cabeça nessa tragédia da representação burguesa — 
sobretudo nós, os “bugres das baixas latitudes”, como diz Mário 
Pedrosa 5. Não precisamos nos identificar, com terror e piedade, a 
essa encenação da tragédia da representação burguesa. Nós podemos 
rir dessa tragédia em cena aberta, mas para isso precisamos nos 
situar no ponto de vista do “outro” — e não do ponto de vista 
da classe que promove o espetáculo. (Liquidar e teorizar — não 
eram essas as duas tarefas que Brecht propunha ao intelectual 
contemporâneo?) Não temos que chorar a decadência das “elites”, 
minadas por uma corrosão interna, mas perceber que cada membro 
desguarnecido estimula a expansão de outras formas de manifes­
tação c de vida.
’ |)l*i mimi ui» I upiniquins ou Nambás. Cópia xerográfica de original dati- 
loiltiifuilo c 1'orrÍRido pelo Autor.
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO ESPÍRITO SANTO 67
O pavor e a atitude ambígua de alguns intelectuais, que os 
fazem recuar diante desse panorama, por paradoxal que pareça têm 
como movimento correspondente o afastamento das manifestações 
culturais populares, a que nos referíamos.
Mergulhados no horror da decadência burguesa — que de 
resto é realmente horrível —, esses intelectuais praticam um movi­
mento espantoso: eles fazem recuar seus critérios de julgamento 
e seus modelos de excelência a padrões anteriores ao estilhaçamento 
progressivo da representação burguesa. Vão paralisar-se, horrori­
zados, em bons velhos tempos, na época áurea ou do triunfo da 
expressão burguesa, e é lá, no grande romance realista do século 
XIX, por exemplo, que vão definir seus modelos.
E são esses modelosque vão aplicar na avaliação das mani­
festações culturais populares; é através desses modelos que acabam 
por julgá-las. Não é de admirar que se decepcionem.
Para concretizar essa atitude de afastamento, é possível veri­
ficar em traços gerais como ela se define, por exemplo, diante da 
literatura de folhetos do Nordeste — o cordel.
Pode-se dizer, de uma maneira geral, que ela dá um trata­
mento conteudístico ao folheto (e mesmo aos conjuntos de folhe­
tos), no sentido de considerar exclusivamente valores expressos ou 
representados, o que faz através do procedimento típico de levantar 
a caracterização de algumas personagens e verificar o tratamento 
que lhes dá a fábula, extraindo daí um julgamento moral imediato 
e muitas vezes mecanicista. Exagerando, mas não traindo a natu­
reza desse procedimento, se, no correr da estória, o sertanejo, por 
exemplo, se submete ao coronel ou se casa com a filha deste — o 
crime de reprodução da ideologia está perpetrado.
Esse tratamento — aparentemente tão simples e que, para 
sua validação, não pede do leitor mais do que um pouco de senso 
comum — na verdade implica todo um conjunto de pressupostos 
e de “esquecimentos” básicos que são tributários da vinculação do 
observador a uma estética da representação, a que aludíamos, e às 
características definidoras da noção de obra.
Tratado como uma série de conteúdos encadeados, o folheto 
está, na verdade, sendo julgado segundo os pressupostos da autoria, 
origens e originalidade, homogeneidade de materiais, unicidade/ 
/completude, acabamento e crítica de negatividade — sustentáculos 
tradicionais da noção de obra.
Acontece que, na chamada literatura de cordel, as ligações 
de folheto a folheto apenas superficialmente se dão ao nível de
68 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
alguns valores morais expressos, tramando-se, no entanto, forte­
mente — através dos tempos, pela recorrência de um grupo básico 
de modelos narrativos, em arranjos hierárquicos diversos — o que 
relativiza e torna difusos o valor ideológico e a significação dos 
folhetos individuais. Estes não são demarcados com o recorte rígido 
e nítido que tem a obra literária tradicional, mas emergem e rever- 
beram num grande trançado intertextual, feito de séries contínuas 
que se remetem explícita e reciprocamente umas às outras.
A alteração da perspectiva tradicional de avaliação do cordel 
só se torna possível porque, ao lado dos proliferantes libelos acusa­
torios de sua miséria ideológica, repontam aqui e ali estudos sérios 
e carregados de um novo vigor teórico, que têm sabido examinar 
seu objeto numa perspectiva que pouco ou nada deve à visão 
tradicional nos meios intelectuais.
Um deles é o sólido trabalho de mestrado de Ruth Brito Lémos 
Terra, que se centra justamente na verificação da recorrência e 
imbricação dos modelos narrativos, onde se pode ler:
Mas, nestes mesmos poemas de época, temos a interferência 
do modelo narrativo dos “ romances" [ . . . ] ou do imaginário e da 
tradição oral que levam o poeta a comparar o perverso feitor de 
engenho a um dragão, ou, ainda, os efeitos de um combatente aos 
de Roldão. Cangaceiros, militares ou qualquer valente que mereça 
respeito e admiração têm suas façanhas descritas à moda daquelas 
de Carlos Magno e seus pares, que são o grande paradigma dos 
poetas populares. A gesta carolíngia ultrapassou os romances nos 
quais foi descrita, povoa pelejas, estórias de valentes e canga­
ceiros «.
Do mesmo modo — acrescenta noutra parte a pesquisadora —, os 
“romances” tradicionais dos folhetos aparecem permeados por nar­
rativas de costumes e valores contemporâneos e mesmo das “quei­
xas” do Nordeste.
Guardadas as diferenças, é numa direção semelhante que se 
encaminham as pesquisas dê Jerusa Pires Ferreira * 7, que, seguindo 
pelo fio dos romances “de cavalaria” e sobretudo da matéria caro­
língia, constata a todo momento os inumeráveis intercursos e a 
forte unidade subjacente às diferenças de superfície dos folhetos.
# Memórias de lutas; primordios da literatura de folhetos do Nordeste — 
1893-1930. São Paulo, USP, 1979. nhmeo. Publicado posteriormente sob 
o título Memória de lutas; literatura de folhetos do Nordeste — 1893-1930. 
São Paulo, Global/Secretaria de Estado da Cultura, 1983.
7 Cavalaria em cordel, o passo das águas mortas. São Paulo, Hucitec, 1979.
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO 1 SIIHIICI >ANIn »«
A tal ponto se trama essa unidade dos materiais componentes, 
os quais religam em profundidade folheto a folheto, que a primenu 
pesquisadora avança a hipótese — muito provável — de que 6 
praticamente possível (diriamos talvez necessário) considerá-los 
como um “texto único”. Sem jogo de palavras, o grande “texto 
único” recusa a categoria fetichista de “unicidade” do texto, vigente 
na estética tradicional. Diante do vasto tecido do texto único, essa 
atitude conteudística do intelectual é semelhante à de uma pessoa 
que, estando dentro da máquina astuciosa que é uma sala de teatro 
tradicional, observasse apenas o que se fala no recorte do palco à 
italiana, quando a ação já se desenrola em todo o edifício, na rua 
e em toda a cidade.
Para outro dado importante aponta ainda a concretização desse 
vasto intertexto: é cega a crítica que procura nele — e decepcio­
nada não encontra — a expressão marcada de uma originalidade, 
modo de encará-lo pelo prisma da autoria, de sondar em sua face 
a imagem de um autor. Sua prática não se define pelo agencia- 
mento altamente improvável de materiais difusos, mas é, até certo 
ponto, desoriginante, uma vez que remete a práticas coletivas pro­
fundamente enraizadas na consciência geral de uma comunidade. 
(Ouve-se, com freqüência, nos meios “cultos”, mas de boa vontade, 
a exclamação emocional de que o cordel é chato. Acredito que 
aí é mais proveitoso tomar essa palavra num sentido rigorosamente 
espacial: para esse observador ele é mesmo chato — tem apenas 
uma superfície pobre, pois o seu modo de ser profundo não se 
abisma em nenhuma metafísica. É, por assim dizer, uma dimensão 
de profundidade da superfície; seu enraizamento se dá numa prática 
produtiva e material coletiva que é justamente invisível para esse 
observador.) É nesse sentido, ainda, que não tem muito a fazer 
com ele uma crítica que tem seu forte na pesquisa das fontes e 
influências (busca de origens) ou outra que se especializa na busca 
aguda da inovação individual mais inesperada. Não se move o 
cordel por uma “estética da surpresa”, mas pela prática da variação 
e reequacionamento astuciosos de um conjunto de formas radical­
mente coletivas, lugar de onde nascem seu humor, sua firmeza e 
resistente prudência, só perceptíveis para quem está realmente fora 
como platitude e imobilismo.
Esse seu modo peculiar de equacionar tradição e contempo- 
raneidade leva muitas vezes o intelectual a tomar gato por lebre, 
lendo o que é resistência como anacronismo. Isso fica patente, 
nessa crítica conteudística, ao se recusar no folheto a emergência
70 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
ICO
de qualquer marca das lógicas de dominação, quando se cobra dele 
algo que ele jamais se propôs a oferecer e que não participa de 
seu modo de ser: pede-se-lhe que tenda a um máximo de homo­
geneidade ideológica. O desejo é responder com uma formulação 
famosa de Walter Benjamín:
[A] historia é o objeto de uma construção cujo lugar não é o 
tempo homogêneo e vazio, [e a rearticulação da memoria é] o salto 
do tigre no passado. Esse salto não pode-se efetuar senão numa 
arena onde comanda a classe dirigente. Efetuado ao ar livre, o 
mesmo salto é o salto dialético, a revolução tal como a concebeu 
Marx 8.
Cobra-se, exatamente, das chamadas artes do povo, que não sejam 
ambíguas e não carreguem um inevitável lastro de confirmação da 
situação de dominação; que tenham, de uma vez e por milagre 
(sópode ser), uma autonomia que não podem ter numa sociedade 
de classes.
Por esse mesmo movimento é que o analista cobra ainda do 
folheto que seja crítico, no sentido de encaminhar um discurso de 
negação da dominação, que se dê enquanto conteúdos expressos e 
claramente configurados em enunciados prontos e acabados. Ora, 
embora a atividade crítica assim concebida ocorra com certa fre- 
qüência nessa produção cultural, o procedimento básico do folheto 
para fazer frente à dominação não é o de negar reiteradamente ao 
nível de conteúdos expressos em enunciados prontos (e assim pren­
der-se à lógica da dominação pela negação), mas é um procedi­
mento afirmativo: o de instaurar, pela sua prática, ou seja, afirmar 
pela prática de uma produção, um modo de atuar que é outro em 
relação às formas impostas e ao aparato cultural que organiza a 
situação de dominação.
Tudo na literatura de folhetos aponta para essa prática mate­
rial — para essa produção (atividade de produção) — como seu 
fundamento e principal forma de resistência. Onde esse dado se 
expressa e configura de maneira mais radical (de raiz) é justa­
mente nas características do “texto único”. O conjunto de seus 
intercursos cria uma constância de referências a si mesmo, mas 
não no sentido de uma metalinguagem de significados, pois a inter- 
-relação, dando-se permanentemente ao nível de modos de formar
8 Thèses sur la philosophie de l’histoire. v. XIV. In: Benjamín, Walter. 
Poésie et révolution. Paris, Denoél, 1971.
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO ESPÍRITO SANTO 71
e produzir texto, aponta sem possibilidade de dúvida para sua pro­
dução, para a atividade histórica (situada historicamente) de sua 
enunciação, e não para cristalizações finais de enunciados. A visão 
que privilegia — porque nasce daí — o belo produto acabado, as 
cristalizações de enunciados, não faz mais do que julgá-lo enquanto 
obra, quando é na prática material e concreta de sua produção que 
ele transcende fortemente sua determinação no interior de uma 
sociedade de classes. A crítica que julga a literatura de folhetos 
mediante os pressupostos de autoria, originalidade, homogeneidade 
ideológica, unicidade e unidade está, na verdade, pedindo que ela 
se dê como uma série de conteúdos totalizadores e unificados que 
se representam para uma consciência individual, Na medida em que 
não oferece essas características, mas responde com uma produção 
material crítica que é “invisível”, ela aparece como pura limitação. 
Para essa postura, o que não se dá como significados aparentes 
deduzidos de enunciados prontos não é visível. A prática material 
de produção de significantes para ela não existe. A nossa tentação, 
aqui, é a de parodiar uma frase famosa, dizendo que pouco mate­
rialismo afasta das manifestações culturais populares; bastante mate­
rialismo a elas reconduz.
Metaforicamente, poder-se-ia dizer que as manifestações cultu­
rais populares traem a expectativa desse intelectual, de que estive­
mos falando, basicamente porque elas não ficam na moldura. E 
esse intelectual tem a paixão da moldura. A sua visão é a do palco 
à italiana; o que está fora do recorte canônico da visualidade sim­
plesmente não é visível. Reiterando, a moldura é, com efeito, um 
emblema bem adequado da visão representativa: ela delimita o 
lugar de aparição e define o que é visível. A manifestação cultural 
popular cai fora da moldura quando questiona a visão represen­
tativa; quando considera a linguagem como produção-, quando sua 
significação social ultrapassa o texto individual e põe em causa a 
noção de obra; quando é heterogênea e múltipla internamente; 
quando, ao se vincular ao cotidiano concreto, perde a “distância 
estética”; quando, pela relativização da autoria, questiona a indi- 
vidualização de um sujeito; quando não é crítica, no sentido tradi­
cional, mas instauradora e afirmativa. Metaforicamente, quando se 
derrama da moldura e cai fora do triângulo canônico da visualidade.
Para examinar essa questão da moldura e talvez indicar a 
concepção do tempo e da memória consubstanciada nas manifes­
tações culturais populares, acrescentaríamos apenas, como consi­
derações finais, uma pequena fala sobre a festa popular — se nos
72 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
perdoam a pena de um fragmento quase de narrativa da experiência 
(especialmente penoso diante dessa coisa esquiva que é a festa, 
que se recusa a deter-se enquanto objeto e escapa às constrições 
do discurso).
Diz Jean Galard que
para que o produto da atividade artística seja comercializável, é 
preciso que ele seja isolével, transportável pelo seu comprador ou, 
quando isto não é possível, que ele seja pelo menos seqüestrável, 
que ele possa ser colocado ao abrigo dos olhares que não tenham 
pago para vê-lo9.
É na festa justamente que produção e produto se recobrem e 
se confundem inteiramente, não sendo possível isolar um belo pro­
duto final, o único que se submete ao crivo desta crítica. A festa 
não tolera a moldura: isolada, administrada ou emoldurada, ela 
se transforma em outra coisa qualquer — festividade, comemoração, 
menos festa. Nesse sentido, ela marca o limite da apropriação, 
porque é impossível transformá-la em mercadoria sem perdê-la. 
Enquanto existir, ela é inalienável. Apesar de acusada de alienada, 
ela é, inclusive para o participante, uma experiência do inalienável, 
daquilo que não pode ser apropriado.
Pensamos numa Festa do Divino que vimos acompanhando há 
vários anos, numa pequena cidade do interior do Estado de São 
Paulo, chamada Anhembi, bem à margem do Tietê, numa região 
onde ele é ainda um largo rio bastante limpo e verde-azul (1979). 
Fazendo abstração, neste momento, das procissões triunfais e da 
reorganização do espaço da cidade, mais do que na experiência 
espantosa que é o dom da comida que é farta, que é de todos e 
foi feita por todos, mais do que em tudo isso pensamos no aconte­
cimento talvez principal dessa festa — o seu núcleo mesmo.
Por vários anos vimos toda a gente da cidade e das roças 
adjacentes que num dia determinado, com suas melhores roupas e 
enfeites, carregando andores e bandeiras, descia para a margem 
do rio. Postavam-se todos, em multidão, na margem direita, e 
esperavam. Longamente e quase silenciosos esperavam, e não sabe­
riamos dizer se estavam simplesmente apáticos ou silenciosos. Então 
algo parecia ocorrer: de direções opostas, vinham dois grandes 
barcos lotados por mais de 150 remadores e remadoras vestidos 
de vermelho e branco, dando, a intervalos, grandes tiros de trabuco
9 Op. cit., p. 34.
J. A. Pasta Jr./CORDEL, INTELECTUAIS E O DIVINO ESPIRITO SANTO 73
e entoando um canto que era antes o ritmo dos remos na água; os 
dois grandes barcos navegavam um de encontro ao outro. A multi­
dão apenas olha silenciosa, até só o momento em que os dois 
barcos se cruzam e por um rápido instante se superpõem, tornando- 
-se, ao nosso olho, um só. Nesse exato instante, como que. sem 
mais, a multidão, até um segundo atrás silenciosa, literalmente ex­
plode em grito, riso, agitação e até choro, juntamente com o estron­
do inteiramente desmedido de centenas de foguetes. Em seguida 
volta ao quase-silêncio.
Ano após ano nos perguntávamos o que se consagrava naquele 
instante. O Divino Espírito Santo? — Mas já se sabia que, ali, 
tinha-se uma noção vaga e esquecida dos insondáveis mistérios 
da Santíssima Trindade, e que a Festa tem a oposição tradicional 
da Igreja. (Aliás, a Festa faz muito gosto nessa oposição.)
Consagrava-se a memória da colonização, da fundação da 
cidade, visível ainda no trabuco, nos barretes e nos batelões? — A 
pesquisa sabia ser essa memória, no entanto, muitíssimo rara e 
difusa entre o povo.
Ano após ano nos perguntávamos o que, enfim, se consagrava, 
ali, naquele instante? Até que, ao quarto ano, não precisávamos 
perguntar mais nada a esserespeito e já estávamos de certa forma 
comemorando também. E já sabíamos que não se comemorava 
nenhuma dessas coisas especialmente, mas todas ao mesmo tempo, 
porque o que se consagrava era o próprio instante: o preciso 
instante que voltava todos os anos através de um ritual de expec­
tativa e precisão. Exatamente o rigor dessa expectativa cumprida 
e satisfeita e essa precisão garantiríam, para a memória de cada 
um, a experiência de um “instante que está a salvo de toda crise” 10. 
Esse instante como que se coloca fora do tempo administrado e 
meramente quantitativo e marca a sua superação. Fazendo confluir 
para um instante — como para um cristal de muitos fogos — inúme­
ros marcos importantes da memória — que se fazem todos conjun­
tamente presentes e ativos —, a Festa cria uma experiência do 
tempo que é um presente contínuo, imóvel no limiar da história, 
como se fosse a véspera permanente de um acontecimento muito 
esperado.
Sob esse aspecto, ela se assemelha à concepção do tempo e 
do relacionamento com a tradição subjacente ao “texto único” dos
10 Benjamín, Walter, Sobre alguns temas em Baudelaire. In: — et alii.
Textos escolhidos, p. 54.
74 CULTURA BRASILEIRA — TEMAS E SITUAÇÕES
■folhetos, indicado pela pesquisadora do IEB/USP. Para conferir, 
basta verificar como o “texto único” opera com os seus compo­
nentes oriundos de tradições e tempos diversos: ao mesmo tempo 
que cada um desses componentes que se entretecem na criação do 
“texto único” — romances, Carlos Magno, cangaço, queixas, atua­
lidades — carrega a memória de sua temporalidade específica, 
todos estão presentificados e ativos, porque fazem parte de um 
mesmo conjunto significacional que os re-atualiza. Nesse sentido é 
que, na festa popular ou nos folhetos, o tempo é vivido como uma 
espécie de presente contínuo, imóvel no limiar da história e cobran­
do sua superação. O que nos folhetos é anotado como anacronismo 
e, portanto, como marca de uma ruptura entre o real vivido e o 
imaginário é, na verdade, o modo, produzido pelo grande intertexto, 
de possibilitar uma experiência do mundo e de si próprio que se 
coloca acima do tempo administrado e é sua crítica. Sob a aparente 
“intemporalidade” dos enunciados se esconde o modo astucioso 
de passar a resistência: a enunciação. A afirmação de Claude Roy 
de que os “poemas não são populares por origem ou acento mas 
pelo destino que têm” n , acreditamos que deve ser valorizada prin­
cipalmente pela virtude que tem de arrancar o estudo dos folhetos 
às perspectivas das origens ou dos conteúdos e encaminhá-lo em 
direção à observação de uma prática de produção de significações.
Falando das démarches arcaizantes presentes na literatura po­
pular do Nordeste brasileiro, escreve Jerusa Pires Ferreira:
. . .acontece que ela avança e se vanguardiza, no sentido em que
procede constantemente a um processo de crítica a esta sociedade,
mesmo sem o pretender, conscientemente * 12 13 *.
Exatamente, não se trata aí de consciência ou inconsciência, mas 
de uma prática produtiva, material, concreta que exerce sua crítica 
alterando a feição desta realidade material, objetiva e concreta que 
é a linguagem.
Ao contrário do que pensam a “filosofia idealista e a visão 
psicologista da cultura, que situam a ideologia na consciência”, o 
signo, enquanto “realidade do mundo exterior”, “se torna a arena 
onde se desenvolve a luta de classes” 1S.
n Apud Pires Ferreira, Jerusa. Op. cit., p. 12.
12 Ibid., p. 13.
13 Bakhtin, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hu­
chee, 1979. p. 32.
5
Desafio e repentismo 
do caipira de São Paulo*
Correspondentes nordestinos. Modalidades paulistas que 
apresentam desafios. Tendências de mutação. Conclusões. 
Cururu, o desafio por excelência. Bibliografia.
J o seph M . L uy ten **
Há, pelo menos, sete modalidades de folguedo popular em 
São Paulo que apresentam, em seu decorrer, desafios e poesia repen­
tista. Até agora, os pesquisadores da área, quando se referiam a 
essas duas modalidades da literatura popular oral do Brasil, davam 
grande destaque à vultosa produção nordestina e, em proporções 
menores, ao folclore gaúcho. Somente os persistentes pesquisadores 
da área paulista, notadamente a de cultura caipira, vinham afir­
mando, desde o século passado, a existência de expressões popu­
lares de São Paulo em que ocorriam o desafio e o repente. ,
Por decorrências de ordem histórica, São Paulo, sobretudo 
no século XX, passou a ser considerado centro industrial e agrícola 
do País, sempre acompanhado da conotação “moderno”. O aspecto 
cultural mais difundido de São Paulo tem sido, sistematicamente, o 
erudito na sua mais lata expressão. Embora grandes estudiosos como 
Amadeu Amaral, Mário de Andrade, Rossini Tavares de Lima, 
Alceu Maynard de Araújo e muitos outros tenham, persistente­
mente, chamado a atenção dos pesquisadores para uma das regiões 
culturais tradicionais mais ricas do Brasil, seus clamores não tiveram 
a repercussão devida. Como causa disso, apontamos o fato de se
* Publicado originalmente no D.O. — Leitura, São Paulo, Imprensa Oficial 
do Estado, .3(35) :6-7, abr. 1985 e .3(36): 14-6, maio 1985. Traduzido para 
o japonês pelo professor Akiro Kono.
** Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São 
Paulo.

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