Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Manent, Pierre M24h História intelectual do liberalismo: dez lições I Pierre Manent; tradução de Vera Ribeiro; revisão técnica de Francisco Inácio Pinkusfeld Bastos. - Rio de Janeiro: Imago Ed., 1990. (Coleção Tempo e Saber) Tradução de: Histoire intellectuelle du libéalisme: dix leçons. PIERRE MANENT HI T RIA INTELECTUAL DO LIBERALISMO (Coleção Tempo e Saber) Direção de LUIZ FELIPE BAÊTA NEVES 90-0072 ISBN 85-312-0096-2 1. Liberalismo - História. 1. Título. n. Série. CDD - 320.5109 CDU - 329.11(091) I IMAGO EDITORA - Rio de Janeiro - CAPÍTULO 7 oLIBERALISMO DEPOIS DA REVOLUÇÃO FRANCESA Tentei mostrar, nos capítulos anteriores, como o desenvolvimento e a consolidação do ponto de vista liberal tiveram sua origem no pro- blema teológico-político, ou, mais precisamente, na resposta a esse problema, cuja matriz foi fornecida por Hobbes. E acabo de indicar como Rousseau pôs termo a esse primeiro ciclo do liberalismo, le- vando até o ponto de ruptura as tensões que lhe tinham dado ím- peto e movimento. O segundo liberalismo, que se manifestou na primeira metade do século XIX, assemelhou-se muito pouco ao primeiro: distingue-se deste por intermédio de Rousseau e da Re- volução Francesa. Toda a tarefa do segundo liberalismo consistiu, de certa maneira, em "absorver o choque" produzido pelo comple- xo de acontecimentos, sentimentos e idéias condensados na expres- são: "Rousseau e a Revolução Francesa". O liberalismo do século XIX, convém começarmos por aí, aceitou e aprovou a Revolução Francesa: não apenas seus "resulta- dos", mas seu próprio ato, se me posso expressar dessa maneira, senão todos os seus atos. Esse ponto merece atenção. Burke, que também pode ser chamado de liberal, 1 não foi acompanhado, en- tretanto, por nenhum dos grandes liberais franceses em sua conde- nação da Revolução Francesa. Eles decerto estabeleceram distin- ções dentro da Revolução, certamente reprovaram sua fase terro- rista, mas, fundamentalmente, tanto intelectual quanto emocional- mente, ficaram a favor dos revolucionários contra o Antigo Regi- -123 - me. Sua atitude, para nós, é surpreendente: em nossa visão retros- pectiva, as "liberdades" foram muito mais garantidas de fato, se não em princípio, no Antigo Regime, pelo menos em seu último penodo, do que durante a Revolução ou o Império, como aliás eles próprios admitiram na ocasião. Como explicar seu entusiasmo revolucioná- rio, que não é partilhado, ao que parece, pelos liberais de hoje? A explicação mais evidente não deixa de ter peso. Afinal, o Antigo Regime ainda se baseava, ao menos oficialmente, justa- mente nos princípios contra os quais se voltou o liberalismo origi- nal: soberania absoluta do Rei e poder semipolítico da Igreja. Por outro lado, os revolucionários, os constituintes, atribuíram-se a ta- refa de cumprir o programa liberal, de construir um corpo político que, fundamentado na representação e na separação dos poderes, garantisse realmente a segurança, a igualdade dos direitos e a pro- priedade. Contudo, o que toma essa resposta insuficiente é que a experiência revolucionária veio justamente estabelecer que o prin- cípio representativo podia transformar-se em despotismo, que a so- berania do povo podia ser confiscada por um punhado de homens, em suma, que a concepção liberal da ordem política estava carrega- da de perigos mortais para as liberdades. Onde se desenrolou a Revolução Francesa, em que campo so- cial, em que contexto político, em que aspecto da associação hu- mana? Ela não se desenrolou no campo da sociedade civil, cuja vi- da foi suspensa e cujos órgãos foram destruídos, nem no contexto do Estado, mesmo de um Estado despótico, já que todas as leis da ação e da previsão políticas foram consideradas falhas. Os revolu- cionários pretendiam construir um Estado que enfun representasse a sociedade de maneira adequada, mas, nesse papel, eles não se inse- riam nem no Estado nem na sociedade, estavam aquém ou além de ambos: inventaram um novo papel para o homem. Pois bem, esse papel era pressuposto, sem ser reconhecido, pela própria distinção entre a sociedade civil e o Estado, na qual o liberalismo vinha trabalhando havia um século e meio: esse ho- mem capaz de se desdobrar em proprietário e cidadão não podia ser, nessas condições, nem uma coisa nem outra: era implicitamente um terceiro homem, diferente do proprietário e do cidadão. O ato revolucionário, ao longo de sua duração, tomou incontestavelmente visíveis uma situação e um papel humanos que o liberalismo supu- nha mas não explicitava. -124- Não se trata de sugerir que a Revolução Francesa tenha sido liberal como tal, ou que o desenvolvimento do liberalismo levasse necessariamente à Revolução. É de outra coisa que se trata, de algo diferente, algo que a observação do sentimento público do penodo pós-revolucionário permite apreender melhor. Depois da Revolução, os homens do século XIX não mais vi- veram simplesmente na sociedade civil ou no Estado, mas sim num terceiro elemento que recebeu nomes diversos - essencialmente, a "sociedade" e a "história" -, mas que, com um ou outro nome, detinha de qualquer modo a autoridade máxima. Essa "sociedade" era algo a mais e algo diferente da "sociedade civil": esta era constituída pelo conjunto das relações que estabeleciam esponta- neamente os homens movidos pelo desejo de preservação, enquanto aquela não tinha fundamento natural explícito e sua autoridade não residia na natureza, mas na "história", no movimento histórico. É verdade que, já no século XVII e sobretudo no século XVIII, os europeus haviam considerado que, independentemente dos acontecimentos políticos, estava-se desenvolvendo, graças ao pro- gresso das ciências, das artes e do comércio, um processo que mo- dificava o estado do homem social. Mas esse processo era percebi- do como um aperfeiçoamento técnico da natureza social: o homem não deixava de viver na natureza, a das coisas e a dele próprio; simplesmente, graças a esse aperfeiçoamento, vivia melhor, cada vez melhor. Em verdade era de uma coisa totalmente diversa que se tratava, como o revela a mais superficial comparação dos escritos de Montesquieu com os de Benjamin Constant, os mais próximos, por seus princípios, dentre os autores liberais separados pela Re- volução. Não há autor pré-revolucionário que tenha atribuído mais autoridade à história, como desenvolvimento dos "conhecimentos" e do "comércio", do que Montesquieu, e não há autor pré-revolu- cionário que tenha afirmado tanto quanto ele a importância decisiva de um certo desdobramento histórico para a segurança e a liberdade humanas;2 no entanto, ele não teve, como Constant, o sentimento de estar vivendo no elemento da história, sob a autoridade da histó- ria. 3 Essa diferença é tão importante que muitas vezes cegou Constant para o que Montesquieu queria dizer, impediu-o de ver- a ele, que era tão inteligente quanto se pode sensatamente desejar- que Montesquieu estava dizendo a mesma coisa que ele. Ora, é justamente da Revolução que data esse sentimento; mais -125- precisamente, ele decorre da impossibilidade com que se debateu a Revolução na elaboração de instituições políticas adequadas. Ela não pôde mais, por conseguinte, ser assimilada à fundação de um novo corpo político, e menos ainda a uma simples mudança de re- gime, que eram as duas únicas definições até então disponíveis de "revolução" política. Ofereceu o espetáculo inédito de uma mu- dança política de amplitude inaudita, mas sem efeitos políticos es- táveis, de uma reviravolta política impossível de fixar, de um acontecimento· interminável e indeterminado. Que os homens tiveram então o sentimento de estar vivendo num terceiro elemento, numa espécie de elemento "metapolítico" revelado pela Revolução, é algo cuja confirmação encontramos no fato de que essa "sociedade" ou essa "história" logo seriam inter- pretadas em termos religiosos. O século XVIII foi sumamente hostil à religião, e a Revolução levoua uma descristianização violenta, mesmo ou principalmente depois do termidor. Já o começo do sé- culo XIX foi extraordinariamente "religioso". Não quero dizer com isso que os franceses tenham reintegrado docilmente a Igreja, o que não aconteceu, mas que eles interpretaram os acontecimentos polí- ticos e sociais em termos religiosos, que suas considerações políti- cas foram indissoluvelmente considerações religiosas. Essa obser- vação se aplica a todos ou quase todos, tanto aos liberais quanto aos saínt-simonianos, tanto a Chateaubriand quanto a Quinet, tanto a Tocqueville quanto a Michelet. Só estou considerando aqui os autores liberais: esse terceiro elemento a que me refiro, essa meta- política que determinou a política foi, no final das contas, o cristia- nismo em processo de se "efetivar". E, de fato, se os homens se sentiam vivendo num terceiro ele- mento, que não era nem a natureza social nem a arte política, como poderiam concebê-lo como real senão recorrendo ao único terceiro termo concebível, ao que era essencialmente diferente da natureza e da arte, e que estava acima deles: o religioso? Ao mesmo tempo, como o que estava em causa nesse recurso ao religioso não era a salvação da alma, mas a compreensão da sociedade, esses autores dobraram imediatamente a religião ao século e fizeram do cristia- nismo uma "religião secular": tanto para Chateaubriand como para Tocqueville, a nova igualdade dos direitos civis e políticos era a última conquista do Evangelho, sua realização tão longa e misterio- samente adiada. -126- Agora que, abrandados por um hábito prolongado, movemo- nos nesse terceiro elemento da "sociedade" ou da "história" como peixes dentro d'água, e que até consideramos a noção de "cultura" como uma "evidênCia incontornável", corremos igualmente o risco, tanto ateus quanto cristãos, de ficar cegos para a necessidade inter- na dessa religião do século XIX, que, religiosa demais no que tinha de político e política demais no que tinha de religioso, manifestou a extrema precariedade do "terceiro homem" em que nos transfor- mamos. Ao mesmo tempo, e esse é o segundo aspecto da relação do li- beralismo com a Revolução, os liberais se esforçaram, mesmo aceitando a autoridade do evento revolucionário e aderindo inclusi- ve à religião revolucionária, por distinguir a política da Revolução de sua religião, por elaborar teórica e praticamente as instituições políticas engendradas pela Revolução, e tornadas impraticáveis por sua religião: o que definiu a intenção liberal depois da Revolução foi o movimento de secularizar a religião secular a que aderia; o que caracterizou o liberal após a Revolução foi que ele se fez ateu sob o domínio do Deus verdadeiro, do Deus em que acreditava. Os liberais, portanto, também foram críticos, e às vezes críticos muito agudos, da Revolução. Em termos da política prática, isso significa que foram adeptos da Revolução contra os "reacionários", contra os que pretendiam "voltar ao Antigo Regime", e que foram críticos da Revolução contra os que a invocavam para "continuá-la" ou "aprofundá-la", o que tornaria impossível a estabilização das ins- tituições liberais engendradas por seus princípios. NOTAS 1. Ver meu artigo sobre Burke in Les Libéraux, Hachette-Pluriel, 1986, voI. lI, pp. 9 ss. 2. Ver supra, capo 6, pp. 107-108. 3. Montesquieu queria estabelecer a autoridade da história; não a sen- tia. -127 -
Compartilhar