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HUBERTO ROHDEN A VOZ DO SILÊNCIO POEMAS DE AUTO-REALIZAÇÃO PARA INICIANDOS E INICIADOS UNIVERSALISMO ADVERTÊNCIA A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas. A VOZ DO SILÊNCIO O homem sempre será um ser incompleto. Sempre será um “menos” em busca de um “mais”. Uma potencialidade ansiando por atualizar-se. O inexorável imperativo da sua vida é clamar sempre por mais Vida e perfeição. É esta a sagrada tragicidade da condição humana. O ruído, inarticulado ou articulado, foi sempre o inseparável companheiro do homem incompleto, desde os gritos estridentes das hordas antigas até os gritos orquestrados das hordas modernas. O homem só começa a sentir menor angústia quando se distancia da análise mental e se aproxima da intuição espiritual – e no zênite da experiência íntima de seu ser ingressa no silêncio absoluto, fecundo, criador, o silêncio-plenitude. As mensagens que revolucionaram a humanidade sempre foram dadas por homens profundamente silenciosos. Este livro é uma plenitude de criação literária e vivência espiritual. Rohden alcança aqui a verdadeira altura dos gênios místico-filosóficos. Cada frase, cada metáfora, cada conceito está plenificado de uma incrível força cósmica e telúrica. A Voz do Silêncio é um poema de auto-realização para iniciados e iniciandos. É logoterapia para nossa alma angustiada e desorientada. Ousamos afirmar que este livro é quase uma autobiografia espiritual do autor. Rohden se autobiografa em cada poema, em cada mensagem de vida que escreve ao leitor. Ele diz: “As páginas deste livro tratam da Voz do Silêncio, aparente paradoxo, que é uma grande verdade. A palavra é um método – o silêncio é a meta. A palavra é uma jornada – o silêncio é uma chegada. Por isto, amigo leitor, depois de leres ou ouvires as palavras deste livro, abandona-as, assim como o viandante abandona as setas à beira da estrada e vai em demanda da meta por elas indicada. As setas só cumprem a sua missão orientadora quando abandonadas, depois de contempladas; elas são um bem relativo, ou um mal necessário.” Verdadeiramente, neste livro a Condição Humana foi magnificada. PRELÚDIO Quando os sentidos falam, a mente se cala. Quando a mente fala, a alma se cala. Somente em total silêncio verbal e mental pode a alma falar. E esse falar é profundo silêncio – como o nascer do sol, – como a luz das estrelas, – como o perfume das flores, – como o amor do espírito, – como os vastos desertos, – como o cume das montanhas. O colóquio da alma com Deus e o solilóquio da alma consigo mesma é a Voz do Silêncio. Esse silêncio é plenitude. Esse silêncio é presença. Esse silêncio é Verdade. A Verdade não pode ser pensada. A Verdade não pode ser falada. A Verdade só pode ser calada. Quando a Verdade invade o homem, torna-se ele silêncio dinâmico como a alma do Universo, cujo profundo Ser transborda em vasto Agir. E esse silencioso Ser, que parece ausência e vacuidade, é Infinita presença e transbordante plenitude. O homem que ouviu a Voz do Silêncio é tão feliz que nenhum ruído externo o pode tornar infeliz. Todas as circunstâncias são dominadas por sua substância. * * * Os poemas deste livro devem ser saboreados em profundo silêncio e solidão, de alma para alma. Não nasceram da mente, e não devem ser mentalizados. Quem os vive e vivencia entra em solilóquios místicos com sua alma e em colóquios cósmicos com Deus. Envolverá num halo de poesia a sua vida e permeará do elixir da imortalidade sua alma. O MEU VERBO SE FEZ CARNE Há milhares de milhões de anos, De séculos e milênios, Era eu puro espírito, Uma emanação individual Da Divindade Universal. Meu espírito era uma semente de Deus, Que não brotaria ainda em planta. E a semente do meu espírito ansiava Por encontrar um terreno propício, Onde brotar pudesse. E a semente do meu espírito caiu em terra, Caiu na terra deste planeta – E brotou... “Se a semente não cair em terra, ficará estéril.” Para não ficar estéril espírito Ela caiu no planeta Terra – E se tornou alma. Uma alma humana, animando um corpo O Verbo do meu espírito se fez carne. E há muitos decênios que meu Verbo encarnado Tenta espiritualizar seu invólucro corpóreo. É esta a razão-de-ser da minha encarnação terrestre. É este o por-quê e o para-quê Da minha existência terrestre. O meu Verbo, que se fez carne, Deve verbificar a minha carne, Para que o espírito possa evolver, Deve encontrar resistência na matéria, Resistência, dificuldade, luta, sofrimento... Ó bendito sofrimento! Ó inimigo querido! Que seria de minha alma Sem a tua bendita hostilidade? ............................................................................................................................... O Verbo do Cristo cósmico, Que estava na glória de Deus, Não se agarrou a essa divina igualdade, Mas esvaziou-se dos esplendores divinos E revestiu-se de invólucro humano, Tornou-se homem, Servo, Vítima, Crucificado... E dessa estranha anti-dromia, Rumo às profundezas, Subiu o Cristo cósmico encarnado em Jesus Às alturas do Jesus cristificado, Perante o qual se dobram todos os joelhos Dos celestes, Dos terrestres E dos infra-terrestres, E todos confessam que o Cristo é soberano Senhor. Nesta mesma contra-corrida às alturas, Através das profundezas, Está empenhado o Verbo do meu espírito, Feito alma humana. Todas as violências do meu ego humano Desafiam a potência do meu Eu divino, Para que o meu Cristo humanado Faça de mim um homem cristificado. QUE É DEUS? Perguntei às ondas do mar: Que é Deus? E elas me disseram: Deus é o mar, e nós somos filhas dele. Perguntei às sete cores do arco-íris: Que é Deus? E as cores me responderam: Deus é a luz incolor, e nós somos reflexos dela. Perguntei a todos os ruídos do Universo: Que é Deus? E eles clamaram: Deus é o grande Silêncio, que nos gerou. Perguntei a todos os seres vivos da terra, às plantas, aos insetos, às aves, aos peixes, aos animais: Que é Deus? E eles bradaram: Deus é a Vida, e nós somos os vivos que dela emanaram. Indaguei a todas as plenitudes do Cosmos: Que é Deus? E as plenitudes do Cosmos cantaram: Deus é a eterna Essência que nos deu Existência. Perguntei a todos os seres conscientes do mundo: Que é Deus? E todos concordaram: Deus é o Oniconsciente que nos deu consciência. * * * E depois que todas as creaturas responderam às minhas perguntas, exclamei estupefato: Como é que o Uno produz o Verso? E elas, em coro uníssono, replicaram: O UNO é a alma, e o VERSO é o corpo do Universo – nós somos a Família Univérsica. Ante essa mensagem do Universo, fiz calar todos os ruídos analíticos da mente e mergulhei no grande silêncio da intuição espiritual. E a Voz do Silêncio me falou – E eu compreendi a Voz do Silêncio... O DEUS PARADOXALQuem és tu, meu Deus? Todos falam de ti – E quase ninguém te conhece... Desde os tempos remotos de Atenas Até à Era Atômica, Continuas envolto no véu impenetrável Do “Deus Desconhecido”... Quem és tu, ó eterno Anônimo de mil nomes? És Uno – ou múltiplo? És Brahman – ou Maya? És Nirvana – ou Sansara? A eterna Essência – ou as efêmeras Existências? A Causa Transcendente a tudo? – Ou os Efeitos Imanentes em tudo? És tu a Divindade incolor, anônima, amorfa – Ou esses mundos multicores, de mil nomes e formas? És o grande Ser – ou esses pequenos Existires? Se és o eterno Ser da Verdade – por que nos iludes Com estas inverdades das aparências? Tu és o Nada do Vácuo – ou o Todo da Plenitude? * * * Anos e decênios dolorosos Tenho lutado com esses paradoxos... Hoje, porém, não és para mim Nem Brahman nem Maya, Nem Nirvana nem Sansara, Nem o transcendente a tudo Nem o imanente em tudo... Nem a Causa longínqua nem os Efeitos propínquos... Hoje, tu és para mim simplesmente O Universo, A Realidade Univérsica, O Uno em tua Essência E o Verso em tuas Existências, A Divindade causante e o mundo causado, A Síntese do Todo revelado nas Antíteses dos Algos – És a Grande Tese Cósmica, O Ser e o Existir, O Uno e o Múltiplo... O meu conhecer humano, é verdade, só te apreende Como o Existir, o Efeito, o Finito, Mas, em teu Ser divino, tu és A Essência, a Causa, o Infinito... Porque “o conhecido está no cognoscente Segundo a capacidade do cognoscente”... E, sendo finita a minha faculdade cognoscente, Concebo finitamente o Infinito... Para mim, a tua infinita Transcendência se revela Como finita Imanência em teus mundos... Não te conheço assim como tu és, Conheço-te apenas assim como eu sou... A pequenez do meu humano conhecer É a bitola da grandeza do teu divino Ser... A ordem lógica do conhecer é o algoz Da ordem ontológica do Ser... O meu humano conhecer é uma válvula de redução Do teu divino Ser... Conheço-te consoante a minha pequenez, E não segundo a tua grandeza... O teu Infinito está finitamente No meu finito, E em todos os finitos... O teu Monismo Único aparece como Pluralismo múltiplo Coado através do prisma do meu conhecimento... Tu, o Brahman Uno e Único, Me apareces como Maya plural e múltiplo... Tu, o UNO em tua Essência, te revelas Como o VERSO em tuas Existências, Porque tu és o UNI-VERSO, A Realidade Univérsica... PROFANO, MÍSTICO, CÓSMICO Quando rememoro os estágios da minha evolução, Quedo-me, horrorizado, em face dos abismos Em torno dos quais peregrinei... Quando eu era profano, Ou não te via de modo algum, Ou te via como múltiplo, Porque só enxergava o teu mundo. E como podia deixar de ser ateísta, Ou politeísta, Que não te via ou só te via em teus efeitos? Quando me tornei místico, Comecei a perceber-te como o Uno e Único, Longe do pluralismo dos teus mundos, Que me pareciam teu inimigo e negador. Também, que semelhança haveria entre a unidade E a pluralidade?... Mas... a minha profanidade de anteontem E a minha mística de ontem Culminaram na visão cósmica de hoje. E nessa epifania incolor e onicolor Da minha experiência cósmica Eu te contemplo como Brahman e Maya, Como Nirvana e Sansara, Como Causa e Efeito, Como o Transcendente e o Imanente, Como o Deus do mundo e o Mundo de Deus... Mas, o que hoje sei de ti, Ao fulgor da Luz Universal, Nunca o poderei dizer a ninguém. Verbalmente ou mentalmente... O que de ti sei, Em silenciosa experiência, Nunca o poderei dizer à minha mente, Nem a meus ouvidos, Nem à mente e aos ouvidos de outros... Só o sei no silencioso anonimato Da minha sagrada experiência... Pequeno e profano é tudo que é dizível E pensável – Grande e sagrado é somente o que é indizível E impensável... Os “ditos indizíveis” vividos No “terceiro céu” da experiência divina... Tu, meu Deus, és a Luz Impolar Em todas as luzes pluripolares, Tu és o fecundo Silêncio Em todos os ruídos estéreis, Nos sons articulados dos homens E nos sons inarticulados da natureza... ............................................................................................................................... Quando, por momentos, o meu humano conhecer Atinge o teu divino Ser, Roçando com levíssimas asas de andorinha As fímbrias do Infinito – Então eu vislumbro o que tu és, Ó anônima e silente Divindade! Mas este meu saber jaz amortalhado Em impenetrável mistério Para meu ego consciente e vígil. Porque esse saber da alma é o não-saber do Intelecto E dos sentidos... Somente o meu silente Eu sabe o que tu és. O meu ruidoso ego te ignora... Na imensa catedral do meu saber anônimo Eu celebro a minha liturgia cósmica, Adorando... Amando... Saboreando A vida Universal... AO SOPRO DAS AURAS DE DEUS Horas noturnas, sem conta, Tenho impelido a remo A barquinha da minha vida, Rumo aos mistérios do Além... Remando laboriosamente... Arduamente... Cansadamente... Pela vasta calmaria da noite estival, Arrostando correntes adversas... ............................................................................................................................... Até que, finalmente, percebi uma brisa, Vinda de regiões ignotas, Prenhe de mistérios, E de esperanças plena... “O sopro sopra onde quer” – Me segredou uma voz silente... Descansei os remos... Icei as velas da minha nau... E as místicas auras do Infinito Enfunaram o alvejante velame... Deixei-me levar pela suave veemência Dos sopros de Deus... Deslizei, silencioso e veloz, Pela infinda vastidão dos oceanos cósmicos... Empunhando, firme, o leme da nau Rumo ao grande Além-de-dentro... Era tão sonoro o silêncio que me cercava... Era tão luminosa a escuridão que me envolvia... Era tão transbordante a vida invisível que me animava... Era tão intensa a beatitude anônima Que cantava nas profundezas do meu ser... Transbordaram de pranto os meus olhos... Se de tristeza, se de alegria... Se de pesar, se de prazer... Se de arrependimento, se de amor – Nada disto sei... Nada disto quero saber... Era, certamente, por tudo isto, E por muito mais ainda... Porque estuavam em mim os vulcões da Eternidade, As crateras ígneas do Infinito... Corria a fluxo o meu pranto – Porque eu sabia, finalmente, O que era Deus... O que era Eu... Sabia que Deus estava em mim – E que Eu estava em Deus... E esse saber é terrificamente suave, Suavemente terrífico... É terremoto, tempestade, incêndio de Pentecostes... Acontecera em mim o mais estupendo prodígio – O meu encontro com Deus... As núpcias místicas entre a branca Vestal de minha alma E o divino Esposo... Encarnara em mim o eterno Logos – E eu vi a sua glória, Cheia de graça e de verdade... Acontecera em mim o Deus do Universo, O Universo de Deus... Por isto, transbordaram os meus olhos Da plenitude do meu coração... ............................................................................................................................... E a minha barquinha foi deslizando, Silenciosa e célebre, À suave veemência das auras de Deus... E minha alma murmurava, em estático enlevo, Ditos indizíveis... E desde essa noite mística, Em que as levíssimas auras de Deus sucederam Ao pesado esforço do meu ego, Tudo que me era difícil me é fácil... Tudo que era amargo me é suave... Tudo que era escuro me é luminoso... Tudo que era pesado me é leve... Tudo que era lacrimoso me é sorridente... Desde que te encontrei em mim, ó Deus! Desde que me encontrei em ti, ó Mestre! ............................................................................................................................... E minha vida deslizava, suavemente,Através de mares noturno, Ao sopro das auras de Deus... EU SOU A LUZ DO MUNDO “Eu sou a luz do mundo” – assim disseste de ti, ó Cristo! E eu compreendo a verdade das tuas palavras. Mas não compreendo porque disseste dos teus discípulos: “Vós sois a luz do mundo”... Então, a tua luz divina está em teus discípulos? Está em mim, está em todo o homem? Sim, “é ele a luz verdadeira Que ilumina a todo homem que vem a este mundo”. Potencialmente, todo homem é a luz divina Que tu, ó Cristo, és atualmente. Em mim, essa luz está ainda “sob o velador”, Em ti, já está no “alto do candelabro”. Em ti a luz divina nasceu plenamente – Em mim ainda é nascitura, Em demorada gestação... Porquanto “o reino dos céus está dentro de vós” “O reino dos céus é um tesouro oculto”... A mesma luz que em ti brilha, manifesta, Em mim bruxoleia, latente, fraquinha... Mas... sei que minha alma é luz, Luz, o único elemento incontaminável do mundo. A água se conserva pura enquanto longe das impurezas, Mas torna-se impura Quando entra em contato com objetos impuros. A luz, porém, é sempre pura, mesmo no meio das impurezas. E eu devo ser existencialmente tão puro Como sou puro por minha essência divina. Eu devo ser, externa e explicitamente, O que sou, interna e implicitamente. Devo ser tão crístico no meu visível agir Como sou crístico no meu invisível ser. “E toda alma humana é crística por sua própria natureza.” Cristifica-me, pois, ó luz pura do Cristo Para que eu me torne em todas as minhas existências O que sou na minha essência! Que a divina pureza da luz cósmica que sou Me conserve puro em todas as impurezas terrenas! Que a luz do amor me preserve de todas as trevas dos amores E dos desamores! Que a luz cósmica que sou eclipse todas as trevas que tenho... Vivifique todas as minhas mortalidades... Embeleze todas as minhas fealdades... Alegre todas as minhas tristezas... Suavize todas as minhas amarguras... Sane todas as minhas enfermidades... “Eu sou a luz do mundo”... “Vós sois a luz do mundo”... “A luz brilha nas trevas – E as trevas não a prenderam”... “É ele (o Cristo) a luz verdadeira Que ilumina a todo homem que vem a este mundo”... E os que recebem em si essa luz Recebem o poder de se tornarem filhos de Deus”... EU SOU Quanto mais o meu velho ego Se aproxima do nadir da sua vacuidade, Tanto mais veemente se torna o brado do meu novo Eu No zênite da sua plenitude... Enfastiado de tudo que tenho ou pareço ter, Sinto fome daquilo que realmente SOU... O abismo invoca as alturas... O Nada clama pelo Todo... O ínfimo Não preludia o supremo Sim... O Sansara falaz é eclipsado pelo Nirvana veraz... Os ruídos estéreis desmaiam, ante o Silêncio fecundo... EU SOU... Eu e o Pai somos um... E essa divina consciência EU SOU Me faz poderosamente vazio, Silenciosamente puro, Inefavelmente feliz... EU SOU... EU SOU... EU SOU... Todas as minhas impuras análises de ontem Expiraram na pura intuição de hoje... Nada mais sinto... Nada mais desejo... Nada mais penso... Nada mais quero, Simplesmente SOU... EU SOU a vida imensa de Deus... EU SOU a luz cósmica do Espírito... EU SOU o Amor Universal... EU SOU a beatitude infinita... E, algum dia, essa divina Essência Permeará todas as minhas humanas Existências... Agirei externamente de acordo Com o que sou internamente... O clamor da minha vacuidade De hoje Preludia o silêncio da minha plenitude De amanhã... CONSCIÊNCIA MÍSTICA – VIVÊNCIA ÉTICA Naquele tempo, conhecia eu apenas O meu efêmero ego, Tão sedento de existência. E, quanto mais me fugia de sob os pés Essa fugaz existência, Quanto mais me distanciava do nascer E me aproximava do morrer, Mais freneticamente me apagava ao viver, Ansioso por gozar esse lampejo de luz Do existir de hoje Intercalado entre as imensas trevas Do não-existir de ontem E do não-existir de amanhã. Hoje sei que o meu ego É apenas um invólucro do meu Eu, E que esse Eu se projeta para além Do nascer, do viver, E do morrer... Porque o meu Eu é a VIVÊNCIA ETERNA Inatingida pela fugacidade Do nascer e do morrer. Sei que a minha existência de hoje Não é um princípio, Nem é um fim, Mas apenas uma continuação, Um ligeiro parêntese de existir Na eternidade do Ser... E deste meu íntimo saber Me nasce uma segurança e serenidade, Uma paz e felicidade sem nome... E – coisa surpreendente! – À luz desta minha certeza, Se ilumina toda esse mundo em derredor... Essa minha VIVÊNCIA de dentro Tornou a minha vida de fora Não apenas tolerável, Mas até bela e querida. Despertou em mim uma vontade imensa De ser bom E de fazer o bem... A consciência Do meu Ser Transborda na vivência Do meu Agir. A mística divina Desabrochou Em ética humana. Aleluia! O MISTÉRIO DO ÂNGULO RETO Passei longos anos discutindo Os ignotos mistérios do além: Deus, o Cristo, a alma, a vida eterna. E, quanto mais discutia Mais me emaranhava Nesse caos inextrincável Dos conceitos analíticos da mente, Nesse círculo vicioso, Nesse jogo com zeros multiformes E multicores... Ergui a respeitável altura A minha torre de Babel, Na esperança de que, um dia, O seu vértice rompesse As fronteiras do Infinito... Mas, quanto mais se alteava A minha torre mental Mais se confundia a língua Dos seus arquitetos... Finalmente, desisti, desiludido Da obra luciférica... Convenci-me de que o mundo do espírito Não é a soma dos fragmentos do intelecto, Que todas as linhas horizontais da mente Continuam a rastejar na horizontalidade Deste mundo humano, Ignaro da divina verticalidade da alma... Não! O mundo espiritual não é a continuação De algo já existente – É um novo início, Uma alvorada inédita, Original e virgem, De algo inexistente, – É um novo Gênesis, Um estupendo fiat-lux Do Espírito Creador... Convenci-me de que o mundo do espírito Jaz numa outra dimensão, De que a mente nada sabe... Na zero-dimensão do Infinito, Do Todo, Do Absoluto, Do Eterno... * * * Descobri o mistério do ângulo reto, Da altíssima vertical Erguida sobre as vastas horizontais... Descobri que estas são necessárias – Mas que nenhuma delas é suficiente... Não! As análises do intelecto Não perfazem a intuição do espírito... Impus silêncio à mente, Evoquei as potências do espírito... Humilhei-me perante mim mesmo, Implorei o auxílio do Além... E das ignotas alturas desceu Sobre as minhas horizontais humanas A ignota vertical divina, Formando ângulo reto com elas, Retificando a minha vida... Compreendi com a alma o que jamais Entendera com a mente... Compreendi que Deus não é Algo, Nem Alguém, Que se possa conhecer, Inteligir, provar, demonstrar, Mas que é o UM e o TODO Que se pode viver, Sentir, Gozar, E sofrer deliciosamente... E assim, sofrido de mim mesmo, E sofrido de Deus, Nasceu em mim a grande segurança, A tranquila certeza, A profunda paz, A imperturbável serenidade Da Verdade Libertadora... Deus não está no fim de um silogismo Corretamente construído – Deus está no fim de uma vida Retamente vivida, No princípio, no meio e no fim... Deus é a grande VERTICAL Que corta todas as horizontais Da minha vida, Formando ângulo reto – Que tudo retifica... O CÂNTICO QUE NÃO CANTEI Quisera cantar-te um cântico, meu eterno Anônimo, Terrífico e suave como a noite estrelada – Um cântico que te revelasse Toda a plenitude do meu silêncio, Desse silêncio, sempreem gestação De algo que não nasce... Quisera cantar-te um hino que te dissesse Tudo que sei e tudo que sou, Tudo que sou em ti, Tudo que tu és em mim... Mas, quando iniciei o meu cântico, A ti, meu eterno Anônimo, Morreu-me nos lábios o primeiro hálito Da audaciosa aventura... Profanidade e profanação seria Toda palavra que eu te dissesse... Por isto, convidei o mais profundo abismo do meu Ser Para cantar-te a sacra liturgia do meu silêncio, Meu eterno Anônimo... Terrífico e suave como a noite estrelada... Assim, se não digo o que tu és, Não digo ao menos o que não és... Ouve, pois, a sacralidade do meu silêncio, Que nasceu no coração tropical do Saara E habita nos glaciares do Himalaia... Não, não quero falar de ti, Quero calar diante de ti... Falar é profano, Calar é sagrado. Falar é uma tentativa estéril de eu me aproximar de ti, Calar é uma realidade fecunda de tu te aproximares de mim... O meu falar te afugenta de mim, O meu calar te atrai a mim... Há tempo que fiz esta grande descoberta: Que a faminta vacuidade do meu silêncio Atrai a plenitude do teu Verbo... E o teu Verbo se faz carne em mim, Cheio de graça e de verdade... Na meia-noite do meu silêncio Nasce o teu Verbo em mim Assim como a luz incolor é a plenitude das cores, Assim é o meu silêncio a plenitude do teu Verbo. Quando o meu silêncio desce ao nadir da sua impotência, Então o teu Verbo ascende ao zênite da sua potência... E das trevas do meu abismo Contemplo os astros do teu céu... Meu eterno Anônimo, Terrífico e suave como a noite estrelada... Ouve o cântico que não te cantei, O cântico do meu silêncio, Em arroubos de amor E de adoração... DO CÍRCULO À ELIPSE Que coisa estranha me aconteceu! Girava minha vida numa órbita circular, Descrevendo sua trajetória em torno dum único centro. E esse centro era o mundo. Mais tarde, expulsei desse centro o mundo E o substituí por Deus. Converti o meu velho materialismo num novo espiritualismo. E, satisfeito comigo, comecei a girar em torno de Deus. Do Deus do mundo – sem o mundo de Deus! Detestava o mundo como coisa imunda. Só mais tarde, muito mais tarde, descobri Que no universo de Deus não há círculos – Que tudo é elipse, com dois centros. Desde os pequeninos átomos até aos grandes astros, Tudo se move em órbitas elípticas, Creando a estupenda harmonia do cosmos... E eis que compreendi a mais estranha das coisas estranhas! Compreendi que também eu era uma elipse bicêntrica, E não um círculo unicêntrico. Descobri em mim um centro positivo E um centro negativo Como nos átomos, Como nos astros, O centro positivo do Deus do mundo E o centro negativo do mundo de Deus – E os dois formam a graciosa elipse Da harmonia cósmica do meu universo. Descobri que o pólo negativo não é hostil ao positivo, Mas que esses pólos são forças complementares, Que se completam em maravilhosa consonância. Em mim estão o Infinito e o finito, O Espiritual e o material, O Eterno e o temporário, O Absoluto e o relativo, O Universal e o individual, Está o Todo Único que se revela em partes múltiplas, O invisível Uno que se manifesta no verso dos visíveis. * * * E, cheio de pasmo e grata surpresa, Contemplo o monótono círculo transformado em fascinante elipse. E eis que das profundezas do microcosmo dos átomos E das alturas do macrocosmo dos astros ecoam vozes!... Vozes em grande silêncio... Pus-me a escutar o silêncio dessas vozes... Era o cântico dos elétrons e dos planetas A girar em torno dos seus prótons e dos seus sóis... Percebi que o coro dos átomos e dos astros Eram hinos de fraternidade cósmica... As elipses dos pequenos átomos e dos grandes astros Saudavam a elipse da minha vida – irmã de duas vidas... Solidário, entoei o hino do ritmo bipolar Do Universo em festa... * * * Desde então, cantam o Deus do mundo E o mundo de Deus Na sinfonia cósmica da minha vida abundante. Cooperam, em dinâmico equilíbrio, O mundo do espírito e o mundo da matéria, A Verdade do Além e a Beleza do Aquém, O consórcio elíptico da Filosofia e da Poesia, Que fizeram da minha vida uma harmonia cósmica... Aleluia!... ORAÇÃO TRÁGICA Outrora, quando eu não sabia orar, Mas apenas rezar, Eram as minhas preces algo cheio de paz e suavidade. Eram uma linda poesia espiritual Tecida entre minha alma e Deus, Um idílio devocional e inofensivo... Eu era amigo de Deus – e Deus era meu amigo. Minhas preces eram como madrugadas primaveris, Eram como saudosos ocasos outonais. Hoje, tudo mudou... Hoje, as minhas orações são tempestades, Terremotos, Arrasadores incêndios... Orar é, hoje, para mim uma sangrenta operação, Uma violenta hemorragia interior, Da qual não sei se sairei convalescente – Ou agonizante... Sinto-me literalmente “contrito”, Triturado, como um grão de trigo entre duas mós... Sinto-me moído entre um par de moendas cruéis... Deus do céu! Como é terrível orar! Enfrentar a Luz integral da tua suprema Realidade! Esses relâmpagos e trovões da Eternidade! Como enfrentar a tua tremenda Realidade – Quando não se está devidamente realizado... Nunca sei, no fim dessa operação cirúrgica, Se saio da mesa da operação para a vida – Ou para morte... Se convalescente – Se agonizante... Deus parece ser, então, meu pior inimigo... Algures, nas profundezas da alma, é verdade, Adivinho a sua carinhosa crueldade. O seu crudelíssimo amor. Mas, a crueldade é manifesta E o carinho é latente... Após esses meus encontros com Deus, Não desejo ver ninguém, Falar com ninguém... Quero ficar a sós comigo, Com minha alma em chaga viva... Qualquer contato com o ambiente me é doloroso, O silêncio e a solidão me são benéficos... Quando estou assim, sofrido de Deus... E sofrido de mim mesmo... * * * Senhor, meu carinhoso inimigo, Faze com que esta agonia de hoje Seja a minha convalescença de amanhã... Que esta morte que sofro seja o início Da vida por que anseio... Que o sanguinolento ocaso do meu velho ego Seja a luminosa alvorada do meu nove Eu em ti... Redime-me, Senhor, de mim mesmo!... Purifica-me de todas as minhas impurezas... Retifica-me de todas as minhas tortuosidades... Simplifica-me de todas as minhas complicações... Ilumina-me em todas as minhas escuridões... Lava-me nas lágrimas dos meus olhos E no sangue do meu coração... Não te peço que me poupe sofrimentos, Rogo-te apenas que as dores não sejam prelúdio de morte, Mas prenúncio de vida e saúde... Que a minha oração, Entre o Getsêmane e o Gólgota, Seja para mim o caminho da redenção... Amém... FAZER GRANDEMENTE AS COISAS PEQUENAS Desde que de mim me recordo, Nos remotos horizontes da vida, Tive imenso desejo de fazer algo de grande, Algo que saísse da rotina geral Da cômoda mediocridade, Algo que lançasse uma esteira de luz Através das noites da humanidade, Algo que valorizasse a minha passagem pela terra E desse uma razão-de-ser à minha vida. Só Deus sabe quanto hei suspirado Por essa grande alvorada, Em que eu pudesse fazer algo de grande. Mas a minha vida era feita toda de coisas pequenas, Pequeninas como ordinários seixinhos, Brancos, cinzentos e pretos, Na poeirenta estrada do meu monótono viver, Por onde transitava o tropel das banalidades anônimas... E eu fazia com pequenez Essas coisas pequenas Da minha rotina cotidiana, Fastidiosa e incolor... E continuava a suspirar pelo grande acontecimento Que valorizasse com sua grandeza A pequenez da minha vida, Mesquinhamente vivida... Um dia, aconteceu algo de grande, Algo como uma celeste epifania, Como uma epopéiaDivina, Cruzou os caminhos cinzentos da minha vida – Mas eu nada vi dessa grandeza, Porque estava envolto na minha pequenez... Ninguém pode ver coisas maiores Do que ele mesmo é... E continuei a esperar, a esperar Pelo grande acontecimento da minha vida Que me redimisse da irredenção Das minhas mesquinharias... E esse acontecimento não vinha, E minha vida cinzenta e monótona continuava No meio de coisas pequenas, Pequeninas... Pequeníssimas... Só mais tarde, muito mais tarde, Depois de passar o deserto fastidioso, E as águas sanguíneas do Mar Vermelho, Depois de ouvir o clangor terrífico Das trombetas do Sinai, E ver os relâmpagos de Deus sobre mim E dentro de mim – Só então é que entrei na terra de Canaan Das coisas grandes da minha vida... Embora essas coisas continuavam a ser todas pequenas, Medíocres, corriqueiras, triviais, Como os seixinhos na poeirenta estrada, Brancos, cinzentos e pretos, Como punhados de areia anônima Com que as crianças se divertem... Eu, porém, aprendera a fazer grandemente As coisas pequenas... A revestir de amor e benevolência Os pequenos nadas de cada dia, A cingir de um halo de suave sorridência As nulidades da vivência comum, A colher um punhado de florzinhas humildes E colocá-Ias à cabeceira de um doente, A dizer umas palavras amigas A um aniversariante esquecido... Projetei a leveza e luminosidade Do meu Ser divino Para dentro de todas as coisas humanas. E eis que as coisas tristes falavam de alegria! E as coisas amargas sabiam a doçura, E as coisas incolores resplandeciam multicores... Convalesci, finalmente, da velha doença crônica De querer receber e ser servido. Convalesci para a nova e vigorosa sanidade De querer dar e servir Dar do que tinha, E dar o que era, Dar do meu, E dar o próprio Eu... Desde esse dia, nunca mais vi coisa pequena Ao redor de mim, Porque não havia mais coisa pequena Dentro de mim. Desisti de me fazer à imagem e semelhança Dos objetos mundanos, E fiz todos os objetos à imagem e semelhança Do meu Eu Divino. E tudo era grande, Divinamente grande... MÍSTICA TRANSBORDANTE EM ÉTICA Mestres do espírito, bem intencionados, Disseram-me que eu devia procurar a Verdade, Incessantemente. E eu me lancei à busca da Verdade, Anos sem conta, Por todas as latitudes e longitudes Do Universo de dentro e de fora... E, quanto mais perseguia a Verdade, Tanto mais a Verdade fugia de mim, Qual borboleta fugaz, A voejar de flor em flor, Sempre distante e evasiva... Porque a Verdade é tão delicada e etérea, Tão pura e virginal, Que teme o mais ligeiro contato Com as irreverentes profanidades Do Intelecto sagaz... Nessas irreverentes caçadas da Inteligência Cacei muitas verdades, Multiformes e multicores, Mas não vi a Verdade, Sem forma nem cor, Sem nome nem aspecto definível. Também, como poderia o Sol da Verdade Refletir-se tranquilamente No lago irrequieto e turvo Do meu agitado ego mental? Como poderiam o azul do céu E a quietude das estrelas noturnas Sorrir beatificamente Na minha babilônia mental, Cheia de ruídos e abominações?... * * * Até que, finalmente, me convenci De que não devo procurar a Verdade – Mas que a Verdade me procurará, Se eu desistir do meu ruidoso Agir E repousar no meu silencioso Ser, Esse grande Ser, eterno, divino, Que é bom e puro, Sereno e plácido, Como os céus e os desertos, Como as montanhas e os lagos... Outrora, receava eu que esse singelo Ser Matasse o meu complicado Agir E me reduzisse a uma inerte E monótona passividade... Hoje sei que nada existe mais dinâmico Do que esse límpido Ser... Sei que a plenitude do Ser Transborda irresistivelmente Na amplitude do Agir. Sei que ser-bom é o único modo seguro Para fazer-bem. Sei que o fazer-bem em si mesmo É ruidosa vacuidade, Deslumbrante esterilidade... Sei que ser-bom é silenciosa plenitude, Inexaurível fecundidade... Que gera numerosa prole de atividade benéfica, No vasto cenário do Agir. Sei que tudo pode o mundo esperar Dum homem que nada espera do mundo... Sei que ninguém pode ser solidário com os homens, Sem se perder, Se não for solitário em Deus No seu íntimo Ser... Sei que os frutos humanos de fazer-bem Nascem do tronco divino de ser-bom... Sei que toda a consciência mística Transborda em vivência ética, Sei que da paternidade única de Deus Nasce a fraternidade universal dos homens. MINHA FILOSOFIA CRUCIFICADA Meu Deus! Como é difícil viver aquilo que se pensa!... Outrora, toda a minha filosofia estava na cabeça, Em forma de grandes idéias, Mais tarde, a minha filosofia desceu ao coração, Em forma de belos ideais. E eu, na minha erudita ignorância, Me tinha em conta de um filósofo... E, em frases grandíloquas de altissonante eloquência, Proclamava aos quatro ventos a minha sapiência filosófica... Quando, porém, tentei passar a minha filosofia Da cabeça e do coração para as mãos, Para a crueza da vida prática, Para o rude prosaísmo da vivência cotidiana – Quase que desanimei... Verifiquei que subia ao Gólgota E ia ser crucificado... Da cabeça e do coração para as mãos – Não é isto uma cruz? Minha pobre filosofia, Ontem tão segura e autocomplacente, Hoje, sangrando entre os braços da cruz!... * * * Desde então, nunca mais falei em filosofia Grandiloquamente, Como se a possuísse, com segura abundância, Como se fosse milionário do saber... Desde então, tentei realizar, Em humildade e silêncio, Uma pequenina parcela Das minhas grandes teorias, E por feliz me dava quando conseguia viver um por cento Das minhas idéias e dos meus ideais... Enveredei pelo “caminho estreito” Passei pela “porta apertada”, Deixei para cá da fronteira Toda a minha orgulhosa bagagem filosófica De ontem e anteontem... Bem pouco da minha filosofia de antanho Passou pelo “fundo da agulha” da vida real... Abandonei aquém da fronteira fatídica Toda aquela luxúria mental e verbal, Como ilegal contrabando... Mas, o pouco que passou para além É sólido, seguro e legítimo, É puro como ouro acrisolado Em fornalha carinhosamente cruel... E é este cerne da minha filosofia Que me sustenta nas lutas da vida E lança misteriosa ponte Para a vida eterna... Minha filosofia crucificada, Morta e sepultada – Ressuscitou – Em plena Páscoa! Aleluia!... RENÚNCIA POR PLENITUDE Outrora, me era pavorosa a idéia de renúncia a que me convidavas, Mestre, porque renúncia me parecia sinônimo de pobreza e fraqueza. E eu detestava ser pobre e fraco... Hoje, renunciar é para mim a mais poderosa afirmação de força e riqueza. Só pode renunciar jubilosamente o homem que transborda de riqueza e plenitude interior. Quem necessita de algo é um necessitado, um pobre indigente. Quem de nada necessita, porque tudo possui, é milionário... Ser forçado a renunciar é, certamente, escravização – mas renunciar espontaneamente é uma proclamação de suprema liberdade e independência. Renunciar não é desertar, fugir, abandonar, separar-se externamente de pessoas e coisas. Quem foge dá prova de fraqueza e medo, cônscio da prepotência daquilo que abandona. A verdadeira renúncia, porém, é uma libertação interior, um espontâneo desapego de algo a que se está apegado, quer possuído, quer desejado. É a libertação interior do apego à posse e do apego ao desejo da posse. É uma gloriosa proclamação da soberania da substância divina no homem sobre todas as tiranias das circunstâncias humanas. Há homens interessadamenteinteressados. Há homens desinteressadamente desinteressados. E há homens desinteressadamente interessados. Os da primeira classe são pobres escravos. Os da segunda são tímidos desertores. Os da terceira classe são homens corajosos e livres – tão completamente libertos da escravidão e do medo das coisas que podem possuir tudo sem serem possuídos de nada. A sua renúncia não os faz tristonhos, ásperos, desabridos, orgulhosos – mas cria neles e em torno deles uma atmosfera de simpatia e serenidade, um envolvente fascínio, uma leve e luminosa benevolência que atrai todas as almas sensíveis... Quem é severo consigo mesmo é bondoso com os outros. Quem é indulgente consigo é, geralmente, áspero com os outros. Quem estabeleceu dentro de si mesmo o grande Tratado de Paz e traz a alma repleta de riqueza e felicidade não necessita de correr freneticamente atrás dos pequeninos grãozinhos de ouro e migalhas de prazer que formam o cobiçado alvo da lufa-lufa dos profanos. Não necessita de tomar parte nessa desenfreada caça aos bens terrenos, estender os braços, crispar os dedos e cerrar os punhos para se apoderar de algum farrapo, maior ou menor, daquilo que os inexperientes chamam prazer ou felicidade. Quem possui em si a Causa eterna de todas as coisas sabe que os efeitos efêmeros não lhe faltarão, porque estes são produtos daquela. Sabe por experiência pessoal que “procurar primeiro o reino de Deus e sua justiça” é “receber de acréscimo todas as outras coisas” compatíveis com a posse do reino de Deus. É por isto, meu Mestre, que eu renuncio e aceito disciplina em todas as coisas da vida – porque sei que este é o único caminho para criar em mim vida abundante... Sei que ninguém pode viver gloriosamente sem que tenha morrido espontaneamente... Há homens escravizadamente escravos, Há homens livremente livres, E há homens livremente escravos. Homens que renunciaram à sua liberdade – por amor... Quem puder compreendê-lo, compreenda-o! VIVO EM TODOS OS SERES Desde que te encontrei em mim, Senhor, Desde que me encontrei em ti, Encontro-me em todas as creaturas, Que em ti estão E nas quais estás... Encontro-me em pedras e metais, Em plantas e insetos, Em animais e aves. Encontro-me no fulgor do relâmpago E nas fosforescências do pirilampo. Encontro-me no bramir da procela, E no silêncio das noites estreladas. Encontro-me em alvejantes berços sorridentes de vida, E em negros ataúdes marejados de lágrimas... Desde esse dia ditoso Do meu encontro em ti, Do teu encontro em mim, Eu sinto em mim o latejar da vida universal, Que palpita em todas as creaturas... E é por isto que eu gozo com todos os gozadores, E sofro com todos os sofredores... Gozo e sofro em mim A alma de todos os seres. Outrora, quando eu conhecia apenas O meu pequeno ego separado, Gozava e sofria apenas as alegrias e dores Do meu ego personal. Mas, desde que descobri o meu grande Eu indiviso, Expandiu-se o meu ser, Até aos confins do universo, Alargou-se a minha consciência Por todas as latitudes e longitudes, Por todas as altitudes e profundidades Do teu cosmos... Transbordou a minha vida, Em exuberante plenitude, E entrou em contato com todas as vidas Do mundo de Deus, Centelhas do Deus do mundo... É tão estranha essa solidariedade cósmica, Que eu sinto em mim, Essa vivência universal, Que vive em mim, Essa profunda imanência de todos os objetos, Dentro do meu sujeito, Que eu pareço ser os objetos, E os objetos parecem ser eu. E, ao latejar dessa afinidade universal, Trava-se entre nós, Entre o sujeito e os objetos, Silencioso diálogo De íntima compreensão. O parentesco da grande família de Deus, O pulsar do mesmo sangue divino Através de todas as artérias da creação... E, de mãos dadas E almas sintonizadas, Cantamos a nosso Deus O aleluia da nossa alegria, O hosana da nossa felicidade... DEUS EM TUDO – E TUDO EM DEUS Disseram-me, um dia, Senhor, que tu eras o creador de todas as coisas – E eu me abrasei no desejo de encontrar-te... Pois, se tão belas eram as creaturas que eu conhecia – quão formoso devia ser o Creador que eu desconhecia! Se tão suaves eram as doçuras do Aquém – quão inebriantes deviam ser as delícias do Além! Se tão luminosas eram as luzes que meus olhos contemplavam – quão extasiantes deviam ser os fulgores que minha alma adivinhava! * * * Encetei a minha grande peregrinação, Em busca do Creador das creaturas... Em busca do misterioso Númeno Para além de todos os fenômenos... Em busca da ignota Nascente Donde brotavam as águas do mundo... Devassei todas as escuridões, E todas as penumbras, Para encontrar a Luz... Perlustrei todos os desertos do mundo Para encontrar o suspirado Oásis... Levantei todas as pedras da terra Para ver-te surgir debaixo delas, Senhor... Interroguei florestas e mares, Átomos e astros, O silêncio das noites sagradas E o ruído dos dias profanos – Em demanda de ti, misteriosa Deidade... E não te encontrei, Em parte alguma, Para além ou por detrás, Por cima ou por baixo Das tuas creaturas... E meus inimigos zombavam de mim, E meus amigos tinham pena de mim... Ninguém compreendia a fome do meu espírito... Todos estavam satisfeitos consigo – Só eu estava insatisfeito comigo, Enfastiado de mim, Porque faminto de ti, Senhor... Quase que sucumbi ao desânimo, No meio dessa busca infrutífera... Eu, o desertar dos finitos, Eu, o bandeirante do Infinito... Eu, tão chagado de mim mesmo E tão sofrido de ti, Meu Amor longínquo. Meu Deus anônimo... * * * Desabou então sobre mim atroz sofrimento – O sofrimento metafísico da minha insuficiência... Do meu potente querer – e do meu impotente poder... Convulsionou-me a agonia da parturição espiritual... Fui batizado num batismo de sangue... Reduzido a cinzas num incêndio redentor... Submergi num dilúvio de lágrimas... Abismei-me numa noite sem estrelas... Afoguei-me num pélago de inominável amargura... ............................................................................................................................... E emergi da tétrica escuridão Dotado de estranha clarividência, Da ultravidência do “terceiro céu”... E foi então que fiz a mais estupenda descoberta: Verifiquei, Senhor, que tu não estás para além das creaturas, Mas habitas em todos os seres... Não! Não habitas nos seres do teu mundo! Tu és a íntima Essência de todas as Existências. Tu és a única Realidade Em todas as Facticidades... O que lá fora parece haver São apenas efeitos realizados Da tua única Causa Real... São reflexos multicores Da tua Luz incolor... São esvaídos ecos Da tua Voz única e universal... Tu és o único SER, o grande EU SOU – Os mundos são apenas fugaz existir, Ondas que sobem e descem em teu vasto Oceano... Os teus mundos existem porque tu ÉS – Se tu não fosses, nada existiria... Tu és o que és em ti mesmo, Em tua eterna Deidade – E tu és também o que existe por ti, Por tua potência creadora. Transcendente em teu infinito SER, Imanente em teus finitos existires Tu és o eterno SER Presente em todos os efêmeros existires... Infinito e eterno em tua Transcendência, Finito e temporário em tuas Imanências... Em todos os existires visíveis Contemplo o teu SER invisível... Todas as coisas que existem são como pensamentos imanentes em ti. Ó grande Pensador Transcendente! Tu és a grande Voz Infinita E teus mundos são tênues ecos finitos... * * * Desde que fiz essa grande descoberta, Tive sossego diante de mim mesmo. Dentro de mim mesmo... Deixei de procurar-tefora de mim. E fora das coisas – Desde que te descobri em mim E em todas as creaturas... O Universo é tua imensa catedral E cada creatura é teu altar... Descobri que todas as tuas creaturas são belas e amáveis, Porque são vislumbres da tua luz, da tua vida, do teu amor... E a experiência mística da tua única Paternidade Despertou em mim a vivência ética da universal Fraternidade... Desde que te encontrei em todos os seres, Encontrei-me em todas as creaturas, Humanas e infra-humanas... Eu estou em todas elas, Todas elas estão em mim, Porque tu estás em mim, E eu estou em ti, meu Deus!... Vejo meus irmãos menores no mundo mineral, vegetal, animal... Vejo meus irmãos iguais no mundo dos homens... Depois que fiz as pazes contigo, Senhor, Fiz as pazes com todos os teus filhos, meus irmãos... Demo-nos as mãos uns aos outros, Numa confraternização universal... E convidamos nosso grande irmão, Francisco de Assis, Para assistir ao nosso noivado cósmico... E houve grande solenidade Na imensa catedral do Universo... Celebramos as nossas núpcias místicas No coração de cada creatura – Ó Deus transcendente a tudo! Ó Deus imanente em tudo!... ESTOU SOFRIDO EM TI, SENHOR Ouve, Senhor, o meu clamor! Estou enfastiado de mim... Estou faminto de ti... Não me tolero mais... Tira-me dos meus olhos, Senhor! Não me quero ver mais!... Só quero ver-te a ti, invisível Mistério... Estou sofrido de ti... Todo o meu ser é uma chaga viva a sangrar por ti... Agonizante de inefável tortura... Expirou a noite da minha gozosa infelicidade de outrora... Amanheceu a alvorada da minha dolorosa felicidade... Quando culminará o sol da minha exultante beatitude?... Estou sofrido e chagado por ti, Minha luminosa Escuridão... Minha Esfinge anônima... Minha doce Amargura... Meu delicioso Tormento... Clamo por ti, em todas as veredas da minha existência, Porque te entrevejo dolorosamente e não te possuo ainda jubilosamente... Todas as tuas obras te revelam – e todas as tuas obras te velam... Entre o finito que eu sou e o Infinito que tu és medeia uma distância infinita. E essa distância é a bitola do meu delicioso sofrimento por ti... É o meu céu infernal... É o meu inferno celestial... Quanto mais te sofro mais te amo... Quanto mais te amo mais te sofro... Não quero amar-te sem sofrer-te... O meu amor não seria plenamente meu Se não fosse sofrido por ti... Continua, pois, divina Esfinge, a ser o meu amor doloroso... A minha luminosa Escuridão... O meu deserto sonoro... Minha Alvorada de luz... Meu Ocaso de trevas... Meu querido Inimigo... Meu Amigo adverso... Minha Luz... Minha Vida... Minha Beatitude... Meu Tudo... Amém... VEM ESQUECIMENTO QUERIDO! Quando estou num lugar onde ninguém me conhece, E onde não conheço ninguém, Sinto-me feliz... Parece que nasci, nesse momento, Que saí das mãos de Deus como um raio solar, Puro, bom, imaculado... Não conheço ninguém, e ninguém me conhece, Nesse delicioso deserto... Ninguém me chama pelo nome... Nenhum jornal me profana em letra de forma... Nenhuma tribuna vocifera de mim louvores nem vitupérios... Ninguém me ama, ninguém me odeia... Ninguém me conhece... Que fascinante alvorada do meu ser! Que madrugada virgem do meu existir! Aljofrada ainda do orvalho do Gênesis... Tudo ao redor de mim é solidão e silêncio... Benéfico anonimato... Inebriante esquecimento universal... Nirvana amorfo e incolor... Ninguém me louva, ninguém me censura, Todos me ignoram, Eu ignoro a todos... Todos os sansaras de Maya Se afogaram no nirvana de Brahman... Desnasci de todos os meus nascimentos, Renasci para o ouro de lei do novo Eu... Aleluia!... Hosana!... Aum!... MINHA PEQUENINA FLOR EMPOEIRADA Como estás empoeirada, Pequenina flor à beira da estrada! Quase nada mais se vê do delicado azul Das tuas pétalas, pequenina miosótis. E, no entanto, continuas a florescer, Tranquila, serena, Como se nada acontecera... E, dia a dia, desatas novos botõezinhos – Para serem novamente empoeirados Pela profana brutalidade dos veículos humanos... * * * E a florzinha me olhava com seus olhos azuis, E seu silêncio me falava Com delicada reticência... Compreendi a sabedoria do seu olhar. Saboreei a filosofia do seu silêncio. “Eu não floresço para ser vista por alguém, Nem sou bela para ser aplaudida pelos transeuntes. Floresço e sou bela porque esta é a minha missão, O meu divino privilégio, A minha inefável beatitude. Não me movem motivos de fora, Só me impele a natureza de dentro. Entre aplausos ou entre apupos, Com vivas ou com vaias – Eu sou sempre a feliz miosótis! Azul como uma nesga do céu Arauta da Beleza infinita, Representante do Deus do mundo No mundo de Deus! Aleluia!”... APÓS O EGOCÍDIO Meu era o dinheiro. Meu era o corpo. Meu era o intelecto. Meu era isto. Meu era aquilo. Tudo era meu. Só meu – e de mais ninguém. E, para constar que tudo aquilo era meu, Eu fazia seguros de vida e de bens, Assinava, sobre estampilhas oficiais, Com firma reconhecida, Solenemente carimbado, Que isto e aquilo era meu, Meu somente... Tamanha era a insensatez Da minha sensatez! Tão inseguro era eu, Que de tantos seguros necessitava! Eu era senhor de tantos “meus”? Porque ainda ignorava o meu verdadeiro Eu, Que não necessita de “meus” nem de “seguros”. Identificava-me com o meu pseudo-eu, Com o meu ego personal. Que necessita de “meus” e de “seguros”, Porque é um pseudo-eu muito inseguro... Quem de tudo isto necessita É um necessitado, um pobre indigente. Agora, porém, que ultrapassei o meu pseudo-eu, Aboli quase todos os “meus”. Também, para que ainda defender os fortins de “meus”, Depois que se rendeu a fortaleza do pseudo-eu? Aqueles “meus” só tinham uma razão-de-ser: Garantir a existência do falso eu. Mas agora que o falso eu morreu, Agora que cometi o arrojado egocídio do ego – Para que ainda manter esses velhos fortins, Que o ego erguera em sua defesa? Para que fortificar ainda o cadáver do ego? Naquele tempo, toda a segurança me vinha de fora, Da parte desses “meus”. Hoje, toda a minha segurança me vem de dentro, Da alma do meu divino Eu. E, sob a égide do grande Eu, Se sente seguro até o pequeno ego. Ressuscitou para uma vida nova. Integrou-se, finalmente, no Eu divino. Morreu o ego para o ego E reviveu no Eu. Se o ego não morresse, Ficaria estéril; Mas agora que morreu para si, E ressurgiu no Eu – Produz muito fruto... GÊNESE DO EU CRÍSTICO Há tempo, Senhor, que, abandonei o tépido Éden dos sentidos, A ingênua modorra dos meus sentimentos corpóreos. Deixei o Éden sonambulesco da inconsciência primitiva e entrei no campo da consciência do ego... Campo eriçado de espinhos e abrolhos... E pelo solo áspero rastejava a serpente do meu intelecto, Comendo o pó da terra, da natureza material... É chegado o tempo, Senhor, em que essa serpente rastejante Do intelecto seja erguida às alturas da razão espiritual... É necessário que o Lúcifer do meu intelecto deixe de rojar Pelas baixadas da ego-consciência e se alteie às excelsitudes Da cristo-consciência do divino Logos. Por demais tenho andado nesse longínquo separatismo creado pelo ego luciférico... Anseio por integrar-me no Grande Todo, Que o meu Eu crístico me faz adivinhar... Bem sei que entre esse Eu crístico e aquele ego luciférico Medeiam altas montanhas eprofundos abismos, As montanhas do orgulho e os abismos da cupidez, O deslumbrante zênite e o negrejante nadir Do meu ego personal a arvorar-se em suprema divindade... Promete dar-me “todos os reinos do mundo e sua glória”, se Eu, o grande Eu crístico, me prostrar aos pés dele, do pequeno Ego luciférico, e o adorar como seu senhor e soberano... Mas o meu Eu crístico se mantém em pé, irredutível... E trava-se ingente luta no campo de batalha do meu interior. Arjuna, o ego irredento, não quer escutar a voz de Krishna, o Eu redento e redentor. E os campos de Kurukshetra se tingem do sangue do meu Coração e se juntam dos cadáveres dos meus queridos ídolos... Todo o meu Eu parece esvair-se em sangue, ao fragor da luta cruel... O meu velho ego não quer desapegar-se dos seus fetiches de outrora... Que seria da sua vida sem eles?... Quer estabelecer o seu reinado nas cômodas baixadas, e não nas árduas alturas... Conhecidas são as baixadas do meu ego personal, Desconhecidas são as alturas do meu Eu crístico... O meu Cristo interno dorme no fundo da barquinha da minha vida. Em plena tempestade... E eu, prestes a afogar-me ao furor da procela... Ergue-te, Senhor! Impera aos ventos e às vagas! Acalma a tempestade! Restabelece a bonança! Separa-me de mim! Une-me a ti! Faze descer sobre mim o ocaso do velho ego! Faze despontar em mim a alvorada do novo Eu! Eu sou esse Eu divino... Eu sou esse Eu crístico... Se o ego prevalecer, o Eu perecerá... Se o Eu vencer, viverá o ego integrado no Eu... Eu divino, triunfa em mim! Para que o ego humano possa viver em ti, Por ti, Para ti... * * * E amanheceu, dentro de mim, A luminosa alvorada crística, Cheia de beleza, Bonança E paz... TERRIFICAMENTE AMÁVEL Como és terrífico, meu longínquo Senhor! Como és amável, meu propínquo Amigo! Enche-me de assombro e terror a tua transcendente majestade... Permeia-me de suavidade e amor a tua imanente amizade... Mantém distância! brada-me a luz-vermelha da tua terrífica transcendência, Senhor e Soberano do Universo. Aproxima-te de mim! convida-me a luz-verde da tua benéfica imanência, Amigo e Confidente de minha alma. E eu sinto em mim o equilíbrio dinâmico de uma polaridade feita de repulsão e atração. Da força centrífuga da tua divina majestade – e da força centrípeta da tua humana amizade. A tua terrífica transcendência e a tua benéfica imanência fizeram de mim um cosmos de fascinante harmonia. Um sistema solar de luz incolor e onicolor, Onde a “identidade dos opostos” é uma verdade feita de dinâmicos paradoxos. Ai de mim, se tu fosses apenas a terrífica majestade! Ai de mim, se tu fosses apenas a benéfica amizade! Acabaria em caos ou em monotonia toda essa harmonia do meu ser. Pereceria minha alma ou nos glaciares dos teus gélidos Himalaias – ou nos incêndios dos teus ardentes Saaras, Dilacerada pela frialdade mortífera da tua longinquidade – Ou então esterilizada pela trivialidade monótona da tua propinquidade... Entretanto, eu te sinto assaz distante para te temer, admirar e adorar, com reverência e assombro, E assaz presente para te amar, sentir e gozar, com intimidade e carinho, E essa terrífica suavidade da tua longínqua propinquidade mantém em minha alma um clima de vigorosa vitalidade, De exuberante sanidade, De indefectível juventude, De uma beleza sempre antiga e sempre nova... E é por isto que meus lúgubres ocasos amanhecem sempre em luminosas alvoradas, É por isto que todos os meus ataúdes mortuários renascem em alvejantes berços de vida nova. É por isto que sobre os dilúvios das minhas dores brilha sempre a sorridência dos teus arco-íris... É por isto que no fundo dos meus oceanos rasgados de procelas canta imperturbável serenidade de uma paz imensa... Porque tu, meu Deus, és terrificamente amável, E amavelmente terrífico... NÃO SOU MESTRE DE NINGUÉM Não sou mestre de ninguém. Ninguém é discípulo meu. Sou como a flecha na encruzilhada, Cuja missão é apontar o caminho certo – E depois ser abandonada... Se o viandante não ultrapassar a seta, Não cumpre o desejo da mesma. Ai de mim se eu não for abandonado! Se o viandante parar diante de mim, Contemplando a minha forma e cores, Se, em vez de demandar A invisível longinquidade Se enamorar da minha visível propinquidade, Não compreender a minha mensagem, Que aponta para além de mim, Rumo ao Infinito... Ai de mim, se eu for espelho, Perante o qual os homens parem Para se contemplarem a si mesmos, Em mortífero narcisismo! Feliz de mim, se eu for janela aberta, Que permita visão de horizontes longínquos, Passagem franca para o Infinito! Não sou mestre de ninguém, Ninguém é discípulo meu! Indico a todos o Mestre invisível, Que habita na alma de cada um E para além de todos os mundos. Sinto-me feliz, quando o viajor, Orientado pela legenda da minha seta, Me abandona e vai em demanda Da indigitada meta Em espontânea liberdade, Rumo à longínqua felicidade... QUANDO EU SABIA DEMAIS... Quando eu nada ou pouco sabia do mundo do espírito, Trabalhava intensamente. Minha vida era uma vida militante, Dinamicamente realizadora, Graças à minha feliz ignorância. Depois, quando cheguei a saber da verdade, Quando soube que todas as coisas do mundo são apenas Miragens no deserto, Espelhos e enigmas, Sonhos e sombras, Ecos e reflexos irreais Da ignota Realidade – Desisti das minhas atividades, Cruzei os braços, E fiz-me passivo espectador Do teu grandioso drama cósmico, Senhor do Universo... Sentia-me qual pequenina formiga No teu gigantesco Himalaia... Que diferença havia entre agir e não-agir? Entre atividade e passividade? Poderia, acaso, esta vil formiguinha Modificar os teus imensos Himalaias?... Para que trabalhar e lutar, Se tudo corre segundo os teus eternos decretos? Se leis imutáveis regem os teus mundos?... Desde então, preferi ser passageiro inerte Da tua máquina cósmica Em vez de ser motorista ativo dessa máquina. Desde então, desisti da minha velha mania De querer converter alguém... Converter, por que e para quê? Se, no fim, todo homem tem de seguir o caminho que segue? Desisti também de querer aliviar os sofrimentos Dos sofredores. Aliviar, por que e para quê? Se cada devedor tem de saldar o débito do seu karma? Que insensatez seria se eu impedisse o devedor De solver o seu débito! Não será melhor que cada um pague, de vez, à eterna Justiça, o que deve? Que fique quite com a Constituição Cósmica, Do que protelar essa quitação Para tempos vindouros? Deveras! Eu sabia demais... E esse “saber demais” me impedia de agir. Só age quem sabe pouco, Quem sabe muito deixa de agir... Agir é sinal de ignorância E estreita ingenuidade... Assim pensava eu... Assim vivia eu... * * * Só mais tarde, muito mais tarde, Descobri – que sabia de menos... E por isto o meu saber me impedia de agir. Numa estranha incubação espiritual, De muitos dias e de muitas noites, Finalmente, amadureceu em mim a suprema Verdade. Isolei-me, diuturnamente, Do ambiente físico E do ambiente mental... Desterrei de mim pessoas e coisas, Bani do meu cérebro profanado Pensamentos, memórias, fantasias, Converti em silencioso santuário do Infinito A ruidosa praça pública do meu cérebro, E dentro deste grande silêncio da matéria e da mente Focalizei intensamente o meu divino Eu... Tão grande foi o calor dessa focalização Que se derreteram em mim todas as matérias-primas... E, quando tudo estava liquefeito– O meu barulhento agir E o meu tácito pensar, O meu ativo dinamismo ocidental E o meu passivo misticismo oriental – Então, todos os elementos, Em liquefeita ignição, Se fundiram numa nova unidade, Que não era do Aquém nem do Além Não era mera justaposição, Mas era algo novo, Inédito e inaudito, Uma unidade orgânica, Virgem, como a alvorada cósmica de um novo mundo, Ainda aljofrado do orvalho noturno De um divino “fiat” creador... E dessa fusão do meu velho materialismo dinâmico E do meu novo espiritualismo místico, Nasceu a estupenda maravilha Do homem integral, Da nova creatura em Cristo... Da fusão da minha horizontal ativa E da minha vertical passiva, Surgiu o emblema da universalidade, O símbolo da redenção... E eu me senti remido Do meu esfalfante dinamismo, E do meu inoperante misticismo. Entrei na atmosfera de um mundo ignoto, Na zona do dinamismo passivo, Da passividade dinâmica... A minha nova mística sacralizou a minha velha dinâmica, E a minha dinâmica vigorizou a minha nova mística... Hoje sou mais dinâmico do que nunca, Mas o meu agir é diferente daquele, Não é ruidoso como o martelar de um fábrica Dominada por fumegantes chaminés – Mas é silencioso como a luz solar, Como o agir do gigantesco astro, Assaz, poderoso para lançar pelo espaço Estupendos sistemas planetários, E assaz carinhoso para beijar as pétalas duma flor Sem as lesar... O meu agir é misticamente dinâmico, E dinamicamente místico. Um agir pelo não-agir Um Agir pelo Ser Brota duma dimensão ignota – Da zero-dimensão do Infinito – Anteontem, a ignorância me fizera ativo, Ontem, a mística me fizera passivo – Hoje, a experiência cósmica me faz Ativamente passivo, E passivamente ativo... A VITÓRIA DO MEU SER SOBRE OS MEUS TERES No tempo em que eu gostava de ter algo não consegui ser alguém. Escravizava-me o que tinha ou desejava ter. As quantidades de fora impediam a realização da minha qualidade de dentro. O meu violento Ter eclipsava o meu suave Ser. Despossuí-me, então, de todas as minhas posses – e encontrei paz diante de mim mesmo. Encontrei o meu puro e desnudo Ser, O meu Eu divino em toda a sua alvura e castidade, Longe de todas as profanidades dos meus Teres... Entretanto, como cidadão desta terra, tenho de viver no meio das coisas terrestres. Tenho de lidar com objetos materiais... Como matéria morta em forma de dinheiro, casas, terrenos, ferro, cimento, pedra, cal, e outras materialidades... Surpreendi-me novamente proprietário de coisas materiais – e recuei, horrorizado... Que triste apostasia a minha! Por que esse regresso ao cárcere de antanho?... Depois de ter gozado as iguarias do reino de Deus tornei ao bagaço imundo dos animais da terra?... Assim pensava eu. Até que verifiquei, com exultante júbilo, que hoje não possuo nada daquilo que em minhas mãos está. Hoje, já não sou possuidor de coisas minhas – sou apenas administrador das coisas de Deus, em prol dos filhos de Deus, meus irmãos. Hoje, não existe mais entre o Eu e o meu um vínculo real que prenda o meu sujeito àqueles objetos. Cortei os liames entre o Ser e o Ter. Nada mais possuo desde que sou possuído pelo Cristo. Sou simples administrador daquilo de que me julgava possuidor. Não me escraviza o que tenho nem o que desejo ter – porque nada tenho nem nada desejo ter... Administrando o que é de Deus, sem nada possuir que seja meu... Oh! gloriosa liberdade dos filhos de Deus! Gerindo negócios materiais, já não sou por eles derrotado... Possuidor não possuído – que estupenda conquista! Ser apenas administrador do patrimônio de Deus – como isto é leve e luminoso!... É roçar de leve as coisas materiais, com asas etéreas de andorinha, como imperceptíveis adejos de borboleta... É pousar de mansinho sobre as pétalas duma flor, sem as lesar, sem a elas se prender... É deixar todas as coisas tão puras e virgens como elas saíram das mãos de Deus – em vez de profaná-las e prostituí-Ias com a violência brutal da cupidez egoísta... Outrora, possuindo, profanava eu tudo quanto possuía ou desejava possuir – hoje, tudo que me foi entregue vem aureolado da sacralidade de intata virgindade... Naquele tempo, cometia eu o sacrilégio de considerar meus certos bens de Deus – hoje sou redimido da irredenção dessa sacrílega usurpação... Hoje considero todas as coisas como propriedade única e exclusiva de Deus em prol da humanidade... SOU VIDA DA TUA VIDA, MESTRE Outrora, o que mais me horrorizava era a perspectiva da morte... Por mais intensamente que eu vivesse, ou tentasse viver, não ignorava que cada novo ano, cada mês, cada dia, cada hora me aproximavam mais um passo do fim da minha vida querida... E essa lúgubre certeza caía como gota de fel em todas as taças dos meus prazeres – das minhas míseras felicidades... Procurava narcotizar-me por algumas horas, por uma noite, e fechar os olhos para o horroroso espectro da morte inevitável – mas, em horas de silêncio e solidão, tornava ele a emergir das profundezas e amargurar todas as suavidades da minha vida. Morrer! – Que coisa horrível!... Não ser mais!... ser deixado a sós num cemitério... debaixo da terra fria, dia e noite, esquecido de todos enquanto o resto da humanidade continuava a rir e folgar despreocupadamente, como se eu nunca tivesse existido... Assim era eu no tempo da minha profanidade... Hoje, graças a ti, divino Mestre, tudo é diferente... Aboli a morte – não por meio de algum artifício pueril e inócuo de otimismo barato ou ridículo escapismo da realidade; nem por meio de alguma violenta auto-hipnotização – mas pelo descobrimento da verdade integral sobre mim mesmo. “Conhecereis a verdade – dizias tu – e a verdade vos libertará”... Sim, a verdade me libertou da pior das escravidões que um homem pode sofrer: a ignorância, o erro sobre si mesmo... Hoje sei que, com ou sem este corpo físico, eu existo e vivo consciente e plenamente. Sei que sou eterno – porque sou luz da tua luz – e essa luz jamais se extinguirá... Esta certeza me veio, não em virtude de tais ou quais argumentos engendrados pela inteligência analítica – veio-me como uma revelação nascida das divinas profundezas do meu ser... Tenho esta certeza em virtude duma experiência íntima e infalível que não comporta nem necessita de provas científicas... Pode alguém descrer amanhã o que hoje crê – mas ninguém pode ignorar amanhã o que hoje sabe por experiência vital... E eu sei vitalmente que sou eterno, imortal – e isto eu sou hoje, amanhã e para todo o sempre... Tenho da minha vida eterna a mesma evidência imediata que tenho da realidade da minha vida de hoje. Não posso provar que existo, porque qualquer tentativa de prova já supõe essa mesma existência – mas tenho pleníssima certeza da minha existência real em virtude duma experiência íntima e imediata, que não carece de provas nem pode ser provada. Destarte, sei também da minha vida eterna: por uma consciência íntima e direta, que não admite resquício de incerteza. E na luz serena dessa certeza do meu futuro sem fim posso encarar calma e alegremente também o meu presente efêmero. Perguntam-me, por vezes, se creio numa vida futura – não, não creio numa vida futura: sei de uma vida única, esta mesma que vivo agora e viverei por toda a eternidade... Pobre de mim se eu apenas cresse nessa vida! Se tateasse nas penumbras incertas de uma crença vaga e oscilante... Eu não creio apenas nessa vida – eu sei dessa vida, porque eu sou essa vida, embrionária hoje, plenamente desabrochada amanhã e para sempre... Aleluia!... PELA GRAÇA DE DEUS... As mais belas flores que em minha alma desabrocham são obra da tuagraça, meu Deus. São de graça – e por isto são cheias de graça. Só tem graça o que é de graça – da tua graça, Senhor. Os mais deliciosos frutos que minha alma sazona são dons da tua graça. Tudo que em mim é grande, belo, leve e luminoso, é teu. Só as coisas pequenas, fracas e feias são obra minha. As coisas grandes e belas vem todas de fora de mim – as coisas pequenas e feias vêm de dentro de mim – assim pensava eu, outrora, e assim pensam muitos ainda hoje em dia. Nesse tempo, não sabia eu que esse “de fora” era o profundo e sublime “além- de-dentro”, que para a ignorância do meu ego físico-mental parece o mais longínquo “além-de-fora”. Por demais propínquo me é esse misterioso “além-de-dentro” – e por isto me parece tão longínquo, tão infinitamente distante. Se tão distante da minha pequena consciência humana não fosse esse grande EU da minha consciência divina, já o teria descoberto o meu ego humano. Naquele tempo perguntava eu a mim mesmo: Por que, Senhor, me fizeste um ser tão negativo e fraco que nada de positivo e forte possa eu fazer de mim mesmo? Por que sou eu essa tenebrosa vacuidade de impotência total? Por que devo receber tudo de fora de mim? Por que me negaste tudo que é real e me deste apenas o que é irreal? Por que plasmaste o meu ser desse lacrimoso “não” e me negaste o glorioso “sim”? Para fugir a esse cruciante enigma, dizem alguns que, no princípio, não era assim; que o homem, inicialmente positivo e bom, se tornou, posteriormente, negativo e mau. O homem de hoje, dizem, é totalmente pecador, a quintessência de negativa impotência. E assim pensava também eu, naquele tempo, quando ignorava o meu divino EU e só conhecia o meu humano ego. Identificava-me com o meu pequeno ego personal e nada sabia do meu grande EU universal. Realmente, nada de grande podia vir desse pequeno ego, porque ninguém dá o que tem. Se eu tivesse perdido o meu divino EU central, teria perdido a mim mesmo, já não existiria o meu verdadeiro EU – só existiria o meu pseudo-eu, o meu pequeno ego periférico. Mas... EU SOU! Eu sou o meu divino, eterno, absoluto EU SOU... Eu sou o meu grande EU – que tem esse pequeno ego. Por isto, tudo que é grande e belo vem do meu divino “EU SOU” – só o que é pequeno e feio é que vem do meu humano “eu tenho”. Esse divino “EU SOU” é o meu Cristo interno, o meu Emanuel, o “Deus-em- mim”. Hoje sei que há em mim um misterioso universo de luz. Uma luz intensa, profunda e vasta como os oceanos da Divindade. Hoje sei que há em mim uma fonte inexaurível de beleza, Uma beleza imensa, fascinante e eterna, como os paraísos de Deus. Hoje sei que há em mim um abismo de vida, Uma vida exuberante, gloriosa e feliz como aleluias e hosanas de Páscoa. E das ignotas regiões dessa luz, dessa beleza e dessa vida é que fluem todas as coisas grandes da minha existência. Todas as graças de Deus. Dádivas dadas de graça, porque não merecidas por meu pequeno ego. Também, como poderia o pequeno causar o grande? Como poderiam tão vastos efeitos ser filhos de tão estreita causa? Tão soberanamente belas são essas dádivas da graça divina que me extasio diante delas, e, transido de gratidão e beatitude, me prostro em amor e adoração... Ai de mim se não houvesse esse mistério na minha vida! Se não houvesse em mim essa zona ignota, esse abismo sem fundo, essa altura inescalável, esse deserto anônimo, esse tenebroso silêncio do incognoscível... Ai de mim se me faltasse essa intacta e virginal sacralidade das inexploradas profundezas do meu ser, dos intangíveis Himalaias de minha alma amortalhadas em neves eternas!... Ai de mim se todo o meu ser se resumisse na profana planície daquilo que meus sentidos percebem e minha mente concebe! Se não houvesse em mim as fascinantes surpresas da graça, As dádivas gratuitas do meu divino “EU SOU”, Como suportaria eu a mim mesmo? Se eu fosse apenas esse insípido ego sem mistérios? Não, não me interessa esse pequeno ego que conheço – fascina-me o grande EU que ignoro... O meu humano ego “tem” essas coisas triviais do devassado plano horizontal – mas o meu divino EU “é” uma realidade sublime na zona da ignota vertical... É aquilo que o meu ego físico-mental não pode produzir nem receber... Todas as coisas pequenas vem das velhas profanidades que eu “tenho” – todas as coisas grandes brotam da inédita e inaudita sacralidade que eu “sou”... As belezas da graça vêm do meu eterno “EU SOU”... Que me interessa o “ter”, se eu atingir a plenitude do “ser”?... No zênite do meu eterno “ser” baixa ao nadir o desejo efêmero do “ter”... A graça do meu divino “ser” me redimiu de todas as desgraças do humano “ter”... Pela graça de Deus sou o que sou... PRECE DO ESTAGIÁRIO TELÚRICO Enviaste-me, Senhor, a este planeta material, deste-me um corpo físico, dotaste-me de sentidos orgânicos e da faculdade mental para que minha alma pudesse entrar em contato com este plano ínfimo da tua creação; para que ela se enriquecesse com os tesouros ocultos no seio da Natureza terrestre. Através dos cinco magníficos portais externos – vista, ouvidos, olfato, gosto e tato – entra minha alma em contato com as maravilhas do teu mundo material. Através das três esplêndidas avenidas internas – intelecto, memória, imaginação – comunica-se minha alma com as realidades mais sutis, imateriais, da Natureza: as invisíveis leis que regem o vasto império dos fenômenos visíveis, Aqui estou, divino Mestre, discípulo na escola elementar do teu mundo perceptível e concebível, soletrando os grandes caracteres do teu livro telúrico. Quero sair bem aproveitado desse estágio primário, externos de percepção sensorial que me deste; quero aguçar progressivamente as faculdades internas da concepção mental de que me dotaste. Como é esplêndido o teu mundo terrestre, Senhor! Que inefável magia nas tuas alvoradas orvalhadas de milhões de pérolas a cintilar em todas as cores! Que estranho fascínio nos teus arrebóis vespertinos tecidos de ouro e púrpura e debruados de lilás e anil! Quem ensinou a teus trovões a sinistra veemência dos seus terríficos ribombos? Quem deu ordem a teus relâmpagos para povoarem de serpentes ígneas a escuridão das nuvens? Por que pintam as tuas flores deslumbrantes painéis policrômicos na verdejante vastidão das campinas? Por que enchem as tuas aves e os teus insetos de música polifônica a viridente ramagem e a luminosa amplidão do espaço? Por que povoaste as terras e os mares de tão estupenda variedade de seres vivos, em todos os graus de perfeição? Quando foi que acendeste nas suas excelsas atalaias essas miríades de faróis estelares em plena noite? Ah! já sei, divino Mestre... Era necessário que teu embaixador, o homem, encontrasse abundantes possibilidades para enriquecer a sua alma com esses tesouros da creação material, para que, através do esplêndido artefato adivinhasse o grande Artífice e rompesse o seu caminho das trevas à luz, da ignorância à sapiência, da vacuidade à plenitude. Longe de mim, Senhor, ignorar, ou até maldizer, o teu mundo material! Longe de mim, igualmente, tomar a obra pelo Obreiro, confundir o artefato com o Artífice, adorar os pequenos efeitos em vez da grande Causa! Longe de mim enamorar-me do mundo de Deus e esquecer-me do Deus do mundo! Quero servir-me do teu mundo, Senhor, e de todas as maravilhas que nele espargiste, como de outros tantos degraus para subir por essa vasta escada em demanda de ti. Quero investigar a primeira origem dos teus arroios, dos teus rios e das tuas torrentes e seguir-lhes o curso até ao ponto em que eles se afundam no oceano, donde partiram e para onde sempre voltarão – pois tu, Senhor, és o imenso Pélago no qual estão, do qual vêm e para onde vão todas as coisas, no seu incessante fluxo e
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