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II Seminário Nacional de Teoria Marxista: O capitalismo e suas crises 
 www.seminariomarx.com.br 
1 
 
 
Mundo Administrado: Materialismo e Reificação em Theodor W. Adorno e Max 
Horkheimer 
 
Rafael Sellamano Silva Pereira
1
 
Victor Macedo Pessoa
2
 
 
RESUMO 
 
A partir do diagnóstico oferecido por Friedrich Pollock em 1941 sobre a emergência do 
Capitalismo Estatal, o presente trabalho explora a noção de Mundo Administrado, 
apresentada por Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento. Sob o ponto de 
vista destes dois pensadores, em um cenário sócio-histórico onde até as capacidades 
mentais dos indivíduos são dominadas pela lógica instrumentalizada do sistema, 
qualquer possibilidade de emancipação encontra-se bloqueada. 
 
PALAVRAS-CHAVE: Capitalismo Estatal; Mundo Administrado; Controvérsia sobre 
o Colapso; Industria Cultural; Teoria Crítica. 
 
 
Desde seu surgimento, em 1923, o Institut für Sozialforschung (Instituto de 
Pesquisa Social) teve como principal referencial teórico a obra de Karl Marx. Nos anos 
seguintes à sua fundação, sob a direção de Grünberg, os trabalhos desenvolvidos pelo 
Institut eram, predominante, “estudos históricos e empíricos, em geral baseados em um 
marxismo mecanicista e não dialético, na tradição de Engels-Kautsky” (JAY, 2008, 
 
1
 Rafael Sellamano Silva Pereira é bacharel em Filosofia e mestrando em Filosofia pela UFMG - Universidade 
Federal de Minas Gerais. 
2 Victor Macedo Pessoa é bacharel em Ciências Sociais pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais, 
Licenciado em Ciências Sociais pela UNB - Universidade de Brasília e especialista em Gestão Pública pela 
Faculdade Fortium. 
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p.47). A partir de 1931, sob a direção de Horkheimer, os trabalhos desenvolvidos no 
Institut voltam-se para questões de cunho mais teórico, onde a adoção de um 
materialismo marcadamente dialético, mais hegeliano, surge como uma nova alternativa 
para a renovação do pensamento marxiano. Porém, é somente a partir dos anos 40 que a 
posição teórica de Adorno e Horkheimer, e, consequentemente, do próprio Institut, 
ganha a radicalidade que encontramos, por exemplo, em Dialética do Esclarecimento 
(1947). Esta nova e mais radical posição teórica baseou-se, especialmente, no 
diagnóstico sobre o sistema capitalista apresentado por Friedrich Pollock no início dos 
anos 40. 
Publicado em 1941 na Zeitschrift für Sozialforechung (Revista de Pesquisa 
Social), revista oficial do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisa Social), 
então dirigido por Max Horkheimer, o artigo Capitalismo Estatal: Suas Possibilidades e 
Limitações, de Friedrich Pollock, forneceu um diagnóstico do sistema capitalista 
vigente a partir do fim da primeira grande guerra (1914 – 1918), onde, segundo o autor, 
o modelo econômico do Capitalismo Privado, isto é, o modelo baseado na 
autorregulação do mercado, no livre comércio, e na não intervenção estatal na economia 
entra em declínio. Pollock afirma que, principalmente a partir da crise de 1929, 
consolida-se um modelo baseado na planificação da economia, onde uma forte 
intervenção estatal visava regular tanto a produção, quanto os preços, a demanda, o 
sistema de crédito e o comércio exterior. O autor denominou Capitalismo Estatal este 
até então novo modelo de organização do sistema capitalista. 
A posição de Pollock neste artigo de 1941 aparece como um contraponto aos 
debates relativos à controvérsia sobre o colapso
3
 do sistema capitalista. Segundo 
Rugitsky, a controvérsia pode ser esquematicamente descrita a partir de duas teses 
opostas: 
 
 
3 É interessante notar aqui que a tese sobre colapso não pode ser diretamente atribuída a Marx. Como observam 
Sweezzy (SWEEZZY, 1982, p.218-242) e, baseado neste último, Rugitsky (RUGITSKY, 2008, p.55-56), a 
controvérsia sobre o colapso tem início com a publicação de dois artigos na revista Die Neue Zeit da social-
democracia alemã nos anos de 1896 e 1897. Os dois artigos, de autoria de Eduard Bernstein, “foram reunidos em 
livro em 1899 sob o título As Pressuposições do Socialismo e as Tarefas da Democracia Social” (SWEEZZY, 1982, 
p.221). Segundo Sweezy e Rugitsky, nestes artigos, Bernstein teria atribuído indevidamente a Marx a autoria da tese 
sobre colapso. Ainda segundo os autores, é a partir dos dois mencionados artigos de Bernstein que surge o 
revisionismo, isto é, o “movimento teórico-politico que defenderia a necessidade de revisão da obra de Marx.” 
(RUGITSKY, 2008, p.56-57). O debate iniciado por Bernstein repercutiu largamente entre os marxistas do final do 
sec. XIX e início do sec. XX. Porém, como observa Rugitsky, os “autores que participaram da controvérsia, mesmo 
discordando de Bernstein, não apontaram o equívoco de se atribuir a Marx tal teoria do colapso. A maioria deles, na 
realidade, afirmou a necessidade histórica do colapso, conferindo ao termo, no entanto, um sentido mais nuançado” 
(RUGITSKY, 2008, p.58). Entre estes autores que se envolveram no debate iniciado por Bernstein encontravam-se, 
por exemplo, Kautsky, Hilferding, Lenin, Luxemburgo e Grossmann. 
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3 
 
As principais conclusões a que se chegou com a controvérsia podem ser 
divididas, em uma simplificação grosseira (...), em duas teses antagônicas. De 
um lado, argumentava-se que as transformações pelas quais passara o 
capitalismo representavam uma racionalização neutra que terminaria por 
estabilizar a economia e transformar o seu caráter, tornando-a socialista. A 
política da social-democracia alemã ao longo de toda a década de 1920 pode ser 
em grande parte influenciada por essa avaliação. A outra tese consistia em 
afirmar, inversamente, que as transformações aprofundavam, ao invés de 
atenuar, as contradições do modo de produção, desestabilizando o capitalismo e 
aproximando o momento de sua crise definitiva. Tal catastrofismo foi típico dos 
partidos comunistas de toda a Europa Ocidental, que acabaram ficando à 
margem das importantes transformações político-institucionais pelas quais 
passaram todos esses países. (RUGITSKY, 2008, p.58). 
 
Nem “racionalização neutra” e nem “crise definitiva”. Uma das principais 
consequências da ascensão do Capitalismo Estatal, segundo Pollock, recairia na 
impossibilidade da efetivação das teses que previam, desde o final do sec. XIX, o 
colapso do sistema
4
. Já na década de 30, o autor chamava a atenção para o fato de que a 
livre concorrência típica do Capitalismo Privado de fins do Sec. XIX era 
persistentemente substituída pela ascensão de grandes trustes
5
, que sustentavam seu 
monopólio no mercado por meio das benesses oferecidas e/ou angariadas do meio 
político – o que permitia a estabilização dos preços praticados no mercado 
(RUGITSKY, 2008, p.63). Além disso, O Capitalismo Estatal possibilitou o 
estabelecimento de uma economia planificada, onde a determinação do mercado passa 
para a tutela do âmbito politico em detrimento do econômico. Pollock ressalta o fato de 
que esta planificação ocorreu sem que fosse necessário o abandono de um modelo 
econômico estritamente capitalista, desqualificando, portanto, a necessidade de se 
recorrer a um modelo socialista de planificação da economia, necessidade essa que 
adviria das próprias contradições do sistema capitalista. Monopólio, planificação da 
economia e predominância do politico sobre o econômico rechaçariam de vez a 
possibilidade de um colapso do sistema, porque, sob o ponto de vista de Pollock, neste 
cenário as contradições inerentes ao sistema capitalista ficam completamente 
apaziguadas: 
 
4 No que se refere à controvérsia sobre o colapso,o debate de Pollock ocorre principalmente com Henryk Grossman, 
outro membro do Institut, que “publicou em 1929 um livro com o título A lei da acumulação e do colapso do sistema 
capitalista: Uma teoria da crise, que pode ser considerado uma das últimas contribuições relevantes à mencionada 
controvérsia sobre o colapso, mesmo que um tanto extemporânea” (RUGITSKY, 2008, p.60). 
5 Segundo Rugitsky, em um artigo de 1932 “Pollock afirma que causa mais importante da agudeza da crise [de 1929] 
são as transformações estruturais que colocaram em xeque o automatismo de mercado. A primeira delas é o 
deslocamento do maior peso econômico para as grandes fábricas e para as empresas gigantes, o que, segundo ele, já 
havia sido previsto por Marx na formulação da lei de concentração e centralização do capital” (RUGITSKY, 2008, 
P.63). 
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4 
 
 
Podemos até mesmo dizer que, sob o capitalismo de estado, a economia política 
perdeu seu objeto. Não existem mais problemas econômicos no velho sentido, 
se a equiparação de todas as atividades econômicas não é mais alcançada por 
meio das leis naturais de mercado, mas através de planejamento consciente. 
Onde antes o economista quebrava a cabeça com o enigma do processo de troca, 
ele só encontra sob o capitalismo de estado problemas administrativos. 
(POLLOCK, 1982, p.87) 
6
. 
 
Marcos Nobre observa que a posição pollockiana entra diretamente em conflito 
com o conceito mesmo de capitalismo tal qual o podemos apreender a partir de Marx, 
na medida em que as transformações ocorridas no sistema capitalista a partir do advento 
do Capitalismo Estatal alteram o estatuto mesmo das “leis naturais” do mercado: 
 
A realidade do “capitalismo de estado” agrava sensivelmente o diagnóstico 
proposto por Pollock em seus dois artigos do início da década de 30, publicados 
na Zeitschrifit Für Sozialforschung: não apenas há um primado da política sem 
que haja a superação do modo de produção capitalista (...), como um “plano 
geral dá a direção para a produção, consumo, poupança e investimento” (...) 
 Ora, isto é justamente o que não pode ser de modo algum conciliado com a letra 
do texto de Marx, pois significa alterar o próprio conceito de capitalismo sobre 
o qual repousa a teoria. (NOBRE, 1998, p.24). 
 
 Porém, um pouco mais a frente em seu texto, Nobre faz a seguinte observação: 
 
(...) no entanto, é evidente que a referência fundamental de Pollock segue sendo 
Marx. Esta é a razão pela qual os resultados são apresentados de maneira 
essencialmente negativa: a economia política perdeu seu objeto, problemas 
econômicos “no velho sentido” não existem mais, o equilíbrio não é mais 
alcançado através das “leis naturais de mercado”. Por outras palavras, é preciso 
explicar por que a alternativa marxista “socialismo ou barbárie” não se 
confirmou, ou, quem sabe, mudou de caráter. O socialismo real – cujo processo 
econômico foi meticulosamente estudado por Pollock num trabalho de 1927 – 
não é socialismo, nem a “barbárie” é pura e simplesmente a de uma humanidade 
que se perde em guerras e ditaduras sem fim. (NOBRE, 1998, p.28-29). 
 
É tendo em vista justamente o diagnostico de Pollock que Adorno e Horkheimer, 
em Dialética do Esclarecimento (1947), lançam mão do conceito de Mundo 
Administrado, tentando abarcar as novas formas de dominação do sistema capitalista 
que acabariam por bloquear de vez qualquer possibilidade de emancipação, seja no 
plano individual, seja no plano social. E aqui, para entendermos em que medida Adorno 
e Horkheimer partem do diagnóstico pollockiano, mas, ao mesmo tempo, se distanciam 
 
6 Utilizamos, para este trecho, a tradução realizada por Marcos Nobre. (NOBRE, 1998, p.28). 
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dele, temos que retomar uma distinção traçada pelo próprio Pollock em seu artigo de 
1941: a distinção entre o Capitalismo Estatal do tipo Totalitário e do tipo Democrático. 
Em sua forma totalitária, o Capitalismo Estatal manifestava-se, por exemplo, na 
Alemanha nacional-socialista, enquanto que, em sua forma democrática, encontraríamos 
o caso mais emblemático no Welfare State Norte Americano. Segundo Pollock: 
 
Se tal coisa como o capitalismo de estado existe ou pode existir está aberto a 
sérias dúvidas. Trata-se aqui de um modelo que pode ser construído com 
elementos visíveis há muito tempo na Europa e, em certa medida, mesmo na 
América. Desenvolvimentos econômicos e sociais ocorridos na Europa desde o 
fim da primeira guerra mundial são interpretados como processos de transição 
entre o capitalismo privado e o capitalismo de Estado. A maior aproximação à 
forma totalitarista deste último foi feita na Alemanha Nacional-socialista. 
Teoricamente, a forma totalitária do capitalismo estatal não é o único resultado 
possível do atual processo de transformação. Entretanto, é mais fácil construir 
um modelo para ele do que para a forma democrática do capitalismo estatal para 
qual nossa experiência nos dá poucas pistas. (POLLOCK, 1982, p.71-72) 
7
. 
 
Para Pollock, como podemos notar na passagem acima, o Capitalismo Estatal do 
tipo totalitário manifesta-se em sua forma plena no regime Nazi-fascista Alemão, 
enquanto que o Capitalismo Estatal do tipo democrático não encontrava-se ainda muito 
bem delineado historicamente. Entretanto, Pollock afirma que a forma democrática do 
Capitalismo Estatal, diferentemente de sua forma totalitária, apontaria para a 
possibilidade de um estado controlado pelo povo, e, nesse sentido, apontaria também 
para a possibilidade da construção de certa equidade social dentro de um modelo estatal 
capitalista: 
 
Sob a forma democrática do capitalismo estatal o estado tem as mesmas 
funções de controle, mas é por sua vez controlado pelo povo. Ele baseia-se em 
instituições que impedem a burocracia de transformar a sua posição 
administrativa em instrumento de poder (...). (POLLOCK, 1982, p.73) 
8
. 
 
Os principais obstáculos à forma democrática do capitalismo de estado 
são de natureza política e só podem ser superados politicamente. Se nossa tese 
se mostrar correta, então a sociedade em seu nível atual pode superar as 
barreiras do sistema de mercado através do planejamento econômico. Alguns 
dos melhores pensadores estudam a questão de como tal planejamento é 
democraticamente possível, mas muito trabalho teórico ainda terá de ser 
 
7 Até “processos de transição entre capitalismo privado e capitalismo de Estado” a tradução é de Rugitsky 
(RUGITSKY, 2008, p.65). O restante da tradução é de nossa responsabilidade. 
8 A tradução é de nossa responsabilidade. 
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6 
 
realizado até que a questão encontre sua resposta. (POLLOCK, 1982, p. 93 e 
94) 
9
. 
 
Apresentando um diagnóstico bem mais pessimista que o de Pollock, Adorno e 
Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, chamam a atenção para o fato de que o 
Capitalismo Estatal em sua forma democrática, ao contrário do que acreditava Pollock, 
exercia, de forma latente, uma violência sobre os indivíduos que era tão perversa quanto 
aquela exercida diretamente nos regimes totalitários. Recorrendo a noções como 
Indústria Cultural, Fetichismo, semicultura e Reificação, os autores tentam demonstrar 
que em um “Mundo Administrado”, o próprio aparato mental dos indivíduos é cooptado 
pela lógica do sistema, que impõe uma racionalidade de tipo instrumental em 
detrimento de uma racionalidade crítica. É como se, num “Mundo Administrado”, todas 
as instâncias da vida fossem invadidas pela lógica capitalista. Neste cenário, qualquer 
possibilidade de emancipação fica bloqueada. Como observa Marcos Nobre(NOBRE, 
1998, p.29), não é por acaso que, no início do prefácio à Dialética do Esclarecimento, 
Adorno e Horkheimer ressaltam a emergência de uma nova espécie de barbárie: 
 
Quando começamos o trabalho, cujas primeiras provas dedicamos a 
Friedrich Pollock, tínhamos a esperança de poder apresentar o todo concluído 
por ocasião de seu quinquagésimo aniversário. Mas quanto mais nos 
aprofundamos em nossa tarefa, mais claramente percebíamos a desproporção 
entre ela e nossas forças. O que nos propusemos era, de fato, nada menos do que 
descobrir porque a humanidade, em vez de entrar em um estado 
verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie. 
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.11). 
 
 Essa nova espécie de barbárie, de acordo com os autores, se manifesta na 
instrumentalização do aparato mental dos sujeitos através do bombardeio ideológico 
promovido em todos os âmbitos da vida dos indivíduos. Aquilo que, no final do séc. 
XVIII surge como uma promessa de emancipação a partir da emergência do 
iluminismo, se converte, desde daquela época, mas, sobretudo, na primeira metade do 
sec. XX, em um desenfreado exercício de violência que vai, desde a experiência do 
Nazismo e do anti-semitismo na Alemanha, até a completa expropriação das 
capacidades criticas e reflexivas dos indivíduos nos regimes capitalistas democráticos. 
É, especialmente, este segundo tipo de violência que nos interessa nesta breve 
comunicação. Ela se liga intrinsecamente tanto ao fenômeno da reificação do 
 
9 Utilizamos, para este trecho, a tradução realizada por Marcos Nobre. (Nobre, 1998, p. 33). 
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pensamento nas sociedades regidas pelo capitalismo administrado quanto ao que 
Adorno e Horkheimer definiram como indústria cultural. Comecemos, porém, com 
aquilo que os autores afirmaram na nota “Sobre a nova edição alemã” de 1969 quando 
da reedição
10
 de Dialética do Esclarecimento já em solo alemão: 
 
 Não nos agarramos sem modificação a tudo que está dito no livro. Isso 
seria incompatível com uma teoria que atribui à verdade um núcleo 
temporal, em vez de opô-la ao movimento histórico como algo de 
imutável. O livro foi redigido em um momento em que já se podia 
enxergar o fim do terror nacional-socialista. Mas não são poucas as 
passagens em que a formulação não é mais adequada à realidade atual. E, 
no entanto, não se pode dizer que, mesmo naquela época, tenhamos 
avaliado de maneira excessivamente inócua o processo de transição para 
o mundo administrado. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.9). 
 
Dois pontos especialmente nos interessam na passagem acima. O primeiro diz 
respeito ao “núcleo temporal de verdade” que nos remete ao cerne da posição 
materialista assumida pelos autores já por volta dos de 1930 e 1940, mas que será 
plenamente desenvolvida nos trabalhos realizados por Adorno nas décadas de 1950 e de 
1960
11
. A segunda diz respeito ao fim da experiência nazi-fascista e a emergência do 
“Mundo Administrado”. Partiremos aqui do segundo ponto. Segundo Marcos Nobre, 
entre a edição de 1947 e a de 1969 “temos justamente a concretização do que Pollock 
denominou forma democrática do capitalismo de estado, ou, como se convencionou 
chamar o grande arranjo social do pós-guerra nos países centrais, o Welfare State” 
(NOBRE, 1998, p.29). Um pouco mais a frente, Nobre completa: 
 
 Por outras palavras, se a vitória dos Aliados já se desenhava quando o livro foi 
escrito, nem por isso Horkheimer e Adorno viam com clareza a forma 
democrática do capitalismo de estado como possibilidade concreta. Para os 
autores, a “nova barbárie”, o mundo totalmente administrado, aparecia como 
realidade muito mais palpável, especialmente em vista do que eles 
denominaram “indústria cultural”. (NOBRE, 1998, p.30). 
 
 
10 O livro Dialética do esclarecimento foi concluído em 1944 e publicado em 1947 quando Adorno e Horkheimer se 
encontravam exilados no EUA em função da ascensão do nazi-fascismo na Alemanha e da emergência da segunda 
grande guerra. A nova edição alemã do livro, de 1969, ocorreu quando os autores já haviam retornado do exílio. 
11 Conforme adverte Marcos Nobre (NOBRE, 1998, p.30-33), não há uma continuidade unívoca entre o que é exposto 
por Adorno em Dialética do Esclarecimento e aquilo que será desenvolvido pelo filósofo nas décadas precedentes. 
Nobre destaca que, diferentemente do que é exposto na obra madura de Adorno, a dialética entre indivíduo e sistema 
social aparece em varias passagens de Dialética do Esclarecimento mais como uma relação de subsunção do que 
como uma relação propriamente dialética. Segundo Nobre “toda e qualquer referência à Dialética do Esclarecimento 
para explicar a obra posterior de Adorno (ou de Horkheimer) tem de ser tomada cum grano salis (...)”. (NOBRE, 
1998, p.32-33). 
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 O tema da Indústria Cultural é desenvolvido por Adorno e Horkheimer no 
segundo ensaio da Dialética do Esclarecimento, denominado A Indústria Cultural: O 
Esclarecimento como Mistificação das Massas. Conforme observa Rodrigo Duarte, para 
Adorno e Horkheimer, a cultura de massa, difundida através do radio, da TV, do 
cinema, e das “revistas ilustradas”, não é “cultura feita pela massa para o seu consumo”, 
mas, ao contrário, trata-se de “um ramo de atividade econômica, industrialmente 
organizado nos padrões dos grandes conglomerados típicos da fase monopolista do 
capitalismo, embora (...) ele flerte com procedimentos ainda característicos do 
capitalismo liberal” (DUARTE, 2003a, p.50). Neste ensaio, entre outras coisas, Adorno 
e Horkheimer apontam para o fato de que os produtos da indústria cultural atuam sob os 
sujeitos de forma a expropriar a sua capacidade de julgar espontaneamente. A temática 
remete-se explicitamente ao sujeito autônomo kantiano, e expõe a problemática em 
termos da expropriação da capacidade de esquematizar: 
 
A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir 
de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais é tomada ao 
sujeito pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao 
cliente. Na alma devia atuar um mecanismo secreto destinado a preparar os 
dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o 
segredo está hoje decifrado. Muito embora o planejamento do mecanismo pelos 
organizadores dos dados, isto é, pela indústria cultural, seja imposto a esta pelo 
peso da sociedade que permanece irracional apesar de toda racionalização, esta 
tendência fatal é transformada em sua passagem pelas agências do capital do 
modo a aparecer como o sábio desígnio dessas agências. Para o consumidor, 
não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo 
da produção. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.103) 
 
 A doutrina do esquematismo desenvolvida por Kant em sua Crítica da Razão 
Pura tinha por pressuposto a espontaneidade do sujeito transcendental. Este sujeito 
transcendental surge na doutrina epistemológica kantiana como um arquétipo das 
funções mentais que poderíamos encontrar na atividade cognitiva dos sujeitos reais e 
empíricos. Sob este ponto de vista, Kant concebia a atividade cognitiva a partir de dois 
pólos heterogêneos, a saber, a sensibilidade e o entendimento. A sensibilidade se 
caracterizava pela sua passividade e se referia à incontornável necessidade do sujeito de 
enquadrar as suas percepções sensíveis no tempo e no espaço. Já o entendimento, 
aparece como uma faculdade ativa, que se refere aos dados sensíveis a partir de 
conceitos puros, isto é, conceitos lógico-discursivos que tem sua origem na atividade 
espontânea de auto-consciência do próprio sujeito(Kant denominou categorias estes 
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conceitos puros do entendimento). Kant acreditava que a objetividade era determinada 
pela ação espontânea do sujeito transcendental, que fornecia aos objetos dados na 
sensibilidade a necessidade e a universalidade que encontravam-se nos conceitos puros 
do faculdade do entendimento. Na medida em que, para Kant, tempo e espaço nada 
mais são do que formas da intuição dos sujeitos em geral, o ato de organizar as nossas 
percepções no tempo e no espaço de acordo com as categorias discursivas do 
entendimento requeria a ação de um terceiro elemento, capaz de traduzir para o âmbito 
sensível aquilo que era, em sua origem, meramente discursivo. Daí surge a doutrina do 
esquematismo. Segundo Kant: 
 
É evidente, pois, que tem de haver um terceiro elemento que seja 
homogêneo com as categorias, de um lado, e com os fenômenos, de outro, e que 
torne possível a aplicação das primeiras aos últimos. Esta representação 
mediadora tem de ser pura (sem nenhum elemento empírico) e, ao mesmo 
tempo, por um lado intelectual, por outro sensível. Tal representação é o 
esquema transcendental. (KANT, 2012, p.175) 
12
. 
 
 Do ponto de vista da epistemologia kantiana, a capacidade de esquematizar é 
crucial para que os sujeitos possam formular juízos sobre a experiência perceptiva. Isto 
porque, para Kant, os esquemas permitiriam a formatação os dados sensíveis conforme 
as categorias do entendimento, tornando-os passíveis de serem subsumidos em juízos 
lógico-discursivos. Como vimos, Adorno e Horkheimer afirmam claramente que a 
indústria cultural usurpa dos sujeitos a sua capacidade de esquematizar, expropriando-
os, em ultima instância, da sua capacidade de julgar espontaneamente, isto é, da sua 
capacidade de julgar a partir de suas próprias forças. Rodrigo Duarte resume bem a 
questão: 
 
(...) no texto específico sobre a “indústria cultural”, observa-se que é a partir da 
“relação a objetos”, mencionada por Kant, que Horkheimer e Adorno se 
apropriam do conceito de esquematismo, no sentido de mostrar em que medida 
uma instância exterior ao sujeito, industrialmente organizada no sentido de 
proporcionar rentabilidade ao capital investido e de garantir ideologicamente a 
manutenção do status quo, usurpa dele a capacidade de interpretar os dados 
fornecidos pelos sentidos segundo padrões que originariamente lhe eram 
internos (...). Com isso, os autores apontam para uma espécie de previsibilidade 
quase total nos produtos da indústria cultural (no limite, isso se estenderia a toda 
forma de vida do capitalismo tardio), a qual é forjada pela típica expropriação 
do “esquematismo”. (DUARTE, 2003b, p.96). 
 
 
12
 KANT, I. kritik der reinen Vernunft, B177. 
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10 
 
 E aqui já podemos entrever como o materialismo dialético se manifesta nos 
escritos de Adorno e Horkheimer. Diferentemente de Kant, que via na atividade 
categorizante da faculdade do entendimento uma ação determinante do sujeito sobre a 
objetividade, os autores apontam para fato de que a sociedade, tomada como um 
totalidade objetiva, determina, por seu turno, o sujeito em suas instâncias mais 
constitutivas, isto é, determina o modo mesmo com que suas faculdades mentais agem 
sobre os dados empíricos. Se para Kant o sujeito é um transcendental para o objeto, para 
Adorno e Horkheimer a sociedade, o trabalho e a cultura são um transcendental para o 
sujeito. Somente por esta perspectiva é possível entender como para Adorno e 
Horkheimer uma instância exterior ao sujeito é capaz de usurpar sua suposta capacidade 
espontânea de determinar os dados sensíveis no tempo e no espaço. Porém, em que pese 
a preponderância destas instancias externas na determinação dos sujeitos, Adorno e 
Hokheimer se distanciam de uma perspectiva materialista puramente mecanicista. Ora, a 
totalidade social que determina o sujeito é produzida pela atividade individual de cada 
individuo particular que compõem a própria sociedade e, nesta perspectiva, o sujeito, 
por seu turno, acaba também modificando a totalidade social. 
 O problema se instaura justamente no momento em que a cultura massificada e o 
pensamento reificado assumem tal preponderância sobre as atividades mentais dos 
sujeitos que acabam por extirpar qualquer possibilidade de atividade espontânea e 
emancipadora por parte destes mesmos sujeitos. A reificação do pensamento reduz a 
atividade mental a uma mera maquina de calcular, que se limita a estipular os melhores 
meios para se atingir determinados fins – fins estes que, por sua vez, já foram 
inculcados nos sujeitos por meio do bombardeio ideológico promovido, por exemplo, 
pela indústria cultural. Neste sentido, em um mundo completamente administrado torna-
se extremamente difícil o exercício livre do pensar e do querer. 
 De qualquer maneira, retornamos aqui à questão relativa ao “núcleo temporal de 
verdade”, na medida em que seria incompatível com a perspectiva materialista que 
apresentamos considerar, simplesmente, que uma mudança nas condições atuais de 
dominação nunca será possível. Ao contrário, para ser consequente com este tipo de 
materialismo, é preciso admitir que a dialética entre sujeito e objeto, ou, a dialética entre 
individuo e a totalidade social, ocasionará mudanças tanto num polo quanto no outro 
desta relação. Nesta perspectiva, a possibilidade de emancipação se configura como 
uma espécie de utopia, que pode vingar em tempos vindouros conforme a estrutura 
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social se torne favorável à emancipação. No arranjo social vigente na primeira metade 
do sec. XX, segundo os autores, as possibilidades de emancipação encontravam-se 
bloqueadas. Infelizmente, em nossa opinião, este bloqueio permanece vigente até os 
dias de hoje. Embora a ascensão do neo-liberalismo tenha, em certa medida, afrouxado 
bastante o controle estatal sobre a infraestrutura do sistema, apontando, portanto, para a 
superação do modelo apresentado por Pollock em 1941, o processo de expropriação das 
capacidades mentais “autônomas” dos indivíduos continua a pleno vapor. Isto pode ser 
claramente constatado, por exemplo, nos recentes acontecimentos no atual cenário 
politico e midiático brasileiro. E, embora as atuais ferramentas midiáticas que atuam na 
disseminação do pensamento reificado apontem também para uma capacidade 
equivalente (ou, quem sabe, até superior) de mobilização de focos de resistência, a 
experiência histórica latino-americana já nos adverte que, quando o aparato ideológico 
falha na dominação da capacidade judicativa e reflexiva dos sujeitos, as mentes “não 
adaptadas” são coercitivamente colocadas em seu devido lugar. 
 
REFERÊNCIAS: 
 
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Trad. de Guido A. Almeida, Rio de Janeiro, Zahar 2006. 
 
 
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Sociais 1923-1950. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 
 
 
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n. 1, 2003b, págs. 85-103. 
 
 
NOBRE, M. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno: A Ontologia do Falso. São Paulo: 
Iluminuras, 1998. 
 
 
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GEBHARDT, E. (orgs.). The essential Frankfurt School reader. Nova York: Continuum, 1982, 
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RUGITSKY, F. Friderich Pollock: Limites e Possibilidades - IN: NOBRE, M (ORG). CursoLivre de Teoria Crítica. Campinas, SP: Papirus, 2008 - Págs. 53-72. 
 
II Seminário Nacional de Teoria Marxista: O capitalismo e suas crises 
 www.seminariomarx.com.br 
12 
 
 
SWEEZY, P. Teoria do desenvolvimento capitalista. Princípios da economia politica marxista. 
Trad. Waltnesir Dutra. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986.

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