Buscar

Caros Amigos Especial Pós Humanos 2007 portaldocriador com b

Prévia do material em texto

Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
ONDE VAMOS PARAR?
“Nos próximos cinqüenta anos, a inteligência artificial, a nanotecnologia, a engenharia genética 
e outras tecnologias permitirão aos seres humanos transcender as limitações do corpo. O ciclo da 
vida ultrapassará um século. Nossos sentidos e cognição serão ampliados. Ganharemos maior 
controle sobre nossas emoções e memória. Nossos corpos e cérebros serão envolvidos e se 
fundirão com o poderio computacional. Usaremos essas tecnologias para redesenhar a nós e 
nossos olhos em diversas formas de pós-humanidade.”
Esse texto foi escrito em 1997 por Max More, um inglês nascido em 1964, PHD em filosofia, 
política e economia pela Universidade de Oxford e fundador, nos Estados Unidos, onde vive hoje, 
do Extropy Institute, uma entidade que defende “o uso da tecnologia para melhorar a saúde do 
homem, aumentar sua inteligência e aperfeiçoar os sistemas sociais”, acenando com um “trans-
humanismo” que prevê até a superação da inteligência humana pela artificial, dos computadores.
As especulações sobre o pós-humano, que vêm tomando projeção cada vez maior em 
determinado meio cultural desde o final do século 20, baseiam-se nos avanços e pesquisas da 
ciência e da tecnologia. Os seguidores das teorias de More e outros estudiosos, ou futurólogos, 
estão prevendo mutações chocantes para daqui a algumas poucas décadas, quando o corpo 
humano viria a ser, por exemplo, uma adequação de “silício e carne”. Mas, pensando que, hoje, já 
se pode substituir não só pernas, braços, dedos, artérias, mas órgãos mais complexos como o 
coração (e agora as células-tronco a partir da pele humana), e olhando como a tecnologia e a 
ciência estão alterando o modo de vida das pessoas, e como as crianças são tão diferentes das que 
fomos, não são de estranhar tanto as previsões sobre o pós-humano.
É disso que trata esta edição especial de Caros Amigos, contando com valiosas contribuições 
de estudiosos não apenas do campo científico, mas também da política, do social, da alma 
humana, dos sentimentos, da afetividade, que, aliás e assustadoramente, também fariam parte da 
constituição do homem-robô ou robô-homem.
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
◊ TECNOLOGIA E PENSAMENTO
Roberto Manera avalia o choque entre a ciência dura e o pensamento amortecido
◊ MUTAÇÕES
Adauto Novaes observa que vivemos não uma crise, mas uma mutação
◊ FÍSICA NUCLEAR
Maria Cristina Batoni Abdalla descreve a máquina que vai ensaiar o Big Bang
◊ TEMPO E FILOSOFIA
Olgária Matos aconselha a ciência a pensar a ciência e o homem a recuperar o tempo de que abriu mão
◊ BIOPODER
Newton Bignotto teme o totalitarismo tecnológico
◊ FILOSOFIA DA CIÊNCIA
Luiz Alberto Oliveira analisa as complexidades da Teoria do Caos
◊ CIÊNCIA E FICÇÃO
Jair Ferreira dos Santos e a poesia da substituição do humano pelo artificial
◊ FILOSOFIA DA LINGUAGEM
João Vergílío Galterani Cuter disseca a palavra “consciência”
◊ NEUROCIÊNCIAS
Lionel Naccache visualiza o “inconsciente” a partir da neurociência cognitiva
◊ LITERATURA E CINEMA
João Camillo Penna lê e vê o futuro nos livros e nos filmes
◊ ENGENHARIA GENÉTICA
O estado atual das pesquisas, na genética e na biônica
◊ SOCIOLOGIA DO FUTURO
Eugène Enriquez vislumbra o destino do amor, da amizade, das utopias - e não gosta do que vê
◊ E O NOSSO AMANHÃ?
Renato Pompeu discute a sobrevivência da espécie humana
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
ROBERTO MANERA
MÁQUINAS COMO NÓS?
Os primeiros computadores operacionais - na época, pomposamente chamados de cérebros 
eletrônicos - foram construídos nos anos 1940. Seu desenvolvimento, muito lento no princípio, 
foi-se acelerando e tomou escala exponencial. Em seu livro A Era das Máquinas Espirituais, 
publicado em 1999 nos Estados Unidos e este ano ( 2007 ) traduzido para o português, o escritor, 
empresário e engenheiro de som Raymond Kurzweil compara a trajetória e o ritmo crescente 
desse desenvolvimento à fórmula de pagamento proposta pelo criador do xadrez ao imperador da 
China, na conhecida fábula. Um grão de arroz na primeira casa do tabuleiro, dois grãos na 
segunda e, subseqüentemente, o dobro dos grãos da última na próxima, o que levou o imperador à 
dívida final de 18 milhões de trilhões de grãos e - segundo alguns dos leitores da fábula - à 
decapitação do cobrador. A comparação entre a fábula milenar e a transmutação do primitivo 
cérebro eletrônico, primeiro para a vertiginosa velocidade dos atuais computadores e brevemente, 
segundo os projetistas, para um verdadeiro cérebro, capaz de pensar e até criar um legítimo 
“espírito”, também serve para Kurzweil defender uma tese que é quase um lugar-comum entre os 
filósofos que analisam e pensam as atuais mutações sofridas pelo Homem e o meio em que ele 
vive; os neurocientistas que utilizam a tecnologia para aprimorá-lo e os físicos que pretendem 
recriá-lo à sua semelhança. Todos eles admitem que o tempo vem ganhando velocidade crescente, 
na mesma medida em que ganharam a evolução humana no estágio entre o macaco e o Homo 
sapiens, e as máquinas, nas últimas duas décadas. Esse fato dá a Kurzweil, até, a coragem de 
afirmar que por volta de 3042 o computador atingirá um estágio de desenvolvimento “mental” 
igual ao de seu criador - o que pressupõe um certo descrédito na capacidade evolutiva futura dos 
humanos. Só que as máquinas serão muitíssimo mais velozes, como hoje já o são nas tarefas mais 
simples de realizar cálculos, processar algoritmos e fazer projeções matemáticas. Ou seja, serão 
funcionalmente mais capazes que o próprio Homem, a ponto de torná-lo obsoleto.
O pós-humano
Correntes de pensamento dedicadas à filosofia, à ética e ao desenvolvimento social humano, 
acreditando ou não na verossimilhança das projeções da chamada “ciência dura” - a que se limita 
à corrida tecnológica como se ela fosse, simplesmente, inevitável, imune ao próprio desejo das 
criaturas naturais e despida de crenças religiosas, alinhamentos políticos e do que 
convencionamos chamar de “sentimentos” -, passaram a meditar e a trocar informações sobre um 
novo tema: o “pós-humano”. A simples cunhagem do título já parece assustadora, ao levar-nos a 
crer que mesmo os que duvidam do processo e do método que vêm sendo anunciados pelos 
cientistas “duros” para criar uma verdadeira inteligência artificial já aceitam o advento de nossa 
sucessão pela máquina.
Entre os meses de agosto e outubro passados, um grupo de reconhecidos pensadores brasileiros 
e estrangeiros, de diversas áreas, reunido pela empresa de produção cultural Artepensamento com 
o apoio do Ministério da Cultura, participou de um encontro que percorreu cinco capitais 
brasileiras discutindo, entre outros, o tema do pós-humano, mas cautelosamente classificando-o 
so o título “Mutações - novas configurações do mundo”. No encontro, coordenado pelo jornalista 
e professor universitário Adauto Novaes, como parte do ciclo “Cultura e Pensamento em Tempos 
de Incerteza”, cientistas, filósofos, sociólogos e psicanalistas analisaram o que percebem como 
uma grande mutação, muito diferente de algumas bruscas mudanças ocorridas no passado, 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
pontualmente provocadas por crises e conflitos ao longo da história humana, principalmente no 
mundo ocidental. Tal mutação, concordam os participantes, descende diretamente de dois 
fenômenos - a globalização e a verdadeira revolução tecnocientífica das últimas duas décadas.
Entre os participantes do encontro, muitos dos quais escreveram artigos ou deram entrevistas 
para esta edição, o filósofo Newton Bignotto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais 
e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, lembra que o 
surgimento da Internet (cuja idéia nasceu da interligação de computadores do CERN – Comitê 
Europeude Pesquisas Nucleares, para manter estreito contato entre seus diversos departamentos e 
pesquisadores - N. do A.) provocou uma verdadeira mutação na forma de viver a política e as 
vidas particulares, e que essa mudança foi fundamental para o desenvolvimento científico e 
tecnológico. Mas ressalta que esse desenvolvimento nem sempre foi benéfico, “muitas vezes 
levando os humanos a aproximarem-se das bestas”. Ele afirma também que o problema não está 
na tecnologia, mas sim em manter os valores em que acreditamos, num mundo em que os meios 
dominam os fins.
Sem controle
Para os cientistas duros, as restrições filosóficas não fazem qualquer sentido. Para eles, o 
desenvolvimento tecnológico é incontrolável, e enquanto o neurocientista francês Lionel 
Naccache diz que a criação de uma “inteligência consciente artificial” seria a proposta mais 
ambiciosa de sua especialidade, a neurociência cognitiva, mas o faz num tom algo descrente, com 
vagas alusões à cibernética e à robótica, Raymond Kurzweil cita no extenso glossário de seu livro 
o teste de Turing, um procedimento proposto no longínquo ano de 1950 para aferir a capacidade 
“mental” de um sistema (em geral, de um computador). O teste consiste na entrevista de um 
computador por um “juiz” humano, com uma ou mais “iscas” humanas digitando respostas em 
terminais ocultos. Quando o juiz não é capaz de distinguir o computador das iscas, a máquina é 
considerada tão inteligente como seu entrevistador. Kurzweil aponta várias deficiências no teste, 
mas afirma que por volta de 2029 os computadores começarão a passar por ele com uma placa 
nas costas, não importa a sofisticação mental do juiz ou das iscas.
Os filósofos opõem, em geral, restrições éticas e - no duríssimo ambiente em que rola a 
polêmica - ligeiramente utópicas ao desenvolvimento tecnocientífico incontrolável. A filósofa 
Olgária Matos, doutora pela École des Hautes Études, de Paris, afirma que a ciência devia pensar 
a ciência como a filosofia pensa o pensamento. “O que é a ciência, para os gregos?”, pergunta, e 
imediatamente responde: primeira coisa é “isso que vou pesquisar é útil ou prejudicial? Visa os 
fins últimos do sumo bem ou não? Se não, não vou pesquisar isso”. Mas ela mesma admite que a 
ciência, hoje, não pensa a não ser em despertar, no futuro, um homem igualzinho ao que a 
desenvolve. A dúvida de todos é saber se isso representará, ou não, um novo princípio dos 
tempos.
Roberto Manera é jornalista.
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
ADAUTO NOVAES
O MUNDO EM NOVA CONFIGURAÇÃO
Durante dois meses, pensadores nacionais e estrangeiros de diversas áreas - cientistas, 
filósofos, sociólogos, críticos de arte, psicanalistas - percorreram cinco estados do país para 
discutir um tema pouco estudado: as mutações. Todos partiram de uma hipótese geral: o Ocidente 
vive hoje não propriamente uma crise das instituições políticas e culturais, das normas morais e 
éticas, da sensibilidade e das mentalidades, mas uma grande mutação, fruto de dois fenômenos 
incontornáveis, a globalização e a revolução tecnocientífica. Uma nova era, que dá nova 
configuração ao mundo, torna obsoletas as noções de saber, poder e história e, com isso, a própria 
idéia do homem e seus valores. Lemos, por exemplo, na epígrafe de Os Exilados do Diálogo, um 
dos últimos textos publicados pelo filósofo francês Jean Baudrillard: Marx sempre disse que os 
filósofos se contentaram em interpretar o mundo e de que agora se trata de transformá-lo, mas, 
“hoje, não basta transformar o mundo. Isso já acontece de alguma maneira. O que é preciso, 
urgentemente, é interpretar essa transformação - para que o mundo não se transforme sem nós, e 
para que não se torne finalmente um mundo sem nós”.
Esse acontecer “de alguma maneira” é o trabalho da tecnociência. Pela primeira vez na história, 
entramos em um mundo que, concebido pelo homem, certamente não é regido por ele, mas pela 
ciência-poder. O grande problema que se põe é que não sabemos propriamente onde estamos e 
para onde vamos porque o movimento vertiginoso da revolução técnica escapa ao entendimento. 
É essa a peculiaridade dessa mutação: se tomarmos o exemplo das mutações que nos precederam 
- o Renascimento e o Iluminismo -, veremos que elas foram acompanhadas não só de 
revolucionárias visões de mundo na política, nas artes, nas ciências, nas mentalidades e costumes, 
mas também deram origem a outras revoluções. O poeta Paul Valéry descreve assim a 
multiplicidade de tendências e pensamentos das mutações anteriores, ainda concebidas pelo 
homem: “Esse foi Leonardo (da Vinci). Ele inventou o homem voador, mas o homem voador não 
tem servido precisamente às intenções de seu inventor: sabemos que o homem voador, montado 
em seu grande cisne (il grande uccello sopra del dosso Del suo magnio cecero), tem, em nossos 
dias, outros empregos que não o de ir apanhar neve no cimo dos montes para jogá-la, nos dias de 
calor, sobre as calçadas das cidades... E esse outro crânio é o de Leibniz, que sonhou com a paz 
universal. E esse foi Kant, Kant qui genuit Hegel, qui genuit Marx, qui genuit...”.
O homem banalizado
Pode-se perguntar então: o que gerou a revolução tecnocientífica? E certo que a idéia de 
progresso foi determinante. O que acontece hoje não é “apesar” das invenções anteriores, mas 
graças a elas. Pode-se dizer também que o império da técnica não é um acidente da civilização 
ocidental, mas sua própria essência.
Mas o que nos interessou no ciclo de conferências “Mutações - Novas Configurações do 
Mundo”, projeto do Ministério da Cultura, e “Artepensamento”, com 
o patrocínio da Petrobras e apoios da Caixa Econômica Federal, do 
Sesc São Paulo e da Fiat, foi responder a outras questões: a perfeição 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
automática do aparelho técnico tende a desqualificar definitivamente o homem sem que se tenha 
consciência do que acontece? Estamos na presença da “inauguração de um mundo sem homem”, 
um mundo, como diz ainda Baudrillard, que não precisa mais de nós, que implica o 
desaparecimento de qualquer sujeito, seja do poder, do saber ou da história? Uma primeira 
resposta a essas questões pode ser lida neste número de Caros Amigos: com o surgimento da 
inteligência artificial e as idéias de trans-humano e pós-humano, com o descontrole do tempo 
histórico e a canalização da experiência humana e com as transformações nos sentidos do amor e 
da amizade, estaria o homem renunciando definitivamente ao seu destino?
Progresso x Moral
Em um ensaio publicado recentemente, o filósofo Jacques Bouveresse afirma que a crença 
romântica nas virtudes do progresso científico e técnico decorre do fato de as pessoas julgarem a 
situação atual “em função de conceitos que cessaram há muito tempo de se aplicarem e que falam 
dela em uma linguagem completamente ultrapassada, esquecendo-se de que um processo que se 
tornou completamente autônomo e cego e que quase se faz no essencial sem o homem e mesmo, 
em certos casos, contra ele, não deveria suscitar nenhuma exaltação romântica. O progresso de 
um lado e a moral convencional de outro parecem ter feito hoje uma aliança de ataque à natureza 
em geral e à natureza humana em particular”. Bouveresse cita ainda Karl Kraus: (O progresso) 
inventou a moral e a máquina para expulsar da natureza o homem e do homem a natureza. Um 
fragmento do livro Condição do Homem Moderno, de Hannah Arendt, impressiona pela 
proximidade do que escreveu Kraus e pela condição trágica do nosso tempo: “E possível que nós, 
criaturas terrestres que começamos a agir como habitantes do universo, não sejamos mais capazes 
de compreender, ou seja, de pensar e de exprimir as coisas que, no entanto, somos capazes de 
fazer. Nesse caso, tudo se passaria como se nosso cérebro, que constituia condição material, 
física de nossos pensamentos, não pudesse mais acompanhar o que fazemos, de modo que 
doravante teríamos realmente necessidade de máquinas para pensar e para falar em nosso lugar.”
Texto impressionante pela crueza da forma e pela precisão, que levou Gerard Lebrun a 
comentar que é agora que temos “realmente necessidade” de máquinas, “mas como muletas, a tal 
ponto que o uso desses aparentes gadgets que não tínhamos vocação de dominar nos aleijou. Pior 
ainda: habituados a serem superados pelas maravilhas crescentes da técnica, no sentido em que se 
é 'superado pelos acontecimentos', os humanos quase perderam a idéia de que valeria a pena 
dominar esse progresso...”.
Espírito em perigo
Mas a mutação mais aterradora é a do espírito. Entendemos por espírito a “potência de 
transformação” do mundo. Ora, o trabalho puramente funcional e técnico que lhe é atribuído pela 
tecnociência tende a suprimi-lo. Diante daquilo que o próprio espírito produziu de mais racional 
ao
longo da história, não só no campo dos objetos, mas também no do pensamento, o que esperar? 
A resposta de Valéry, “angustiante e angustiada”, parece evidente: o espírito tornou-se impossível 
- impossível porque supérfluo. Lemos em muitos de seus ensaios a advertência: O espirito sofre 
perigo mortal. A conclusão a que se pode chegar com Valéry é que, enquanto a precisão científica 
entrou, pouco a pouco, no comércio do homem com a natureza, “as relações do homem com o 
homem permaneceram dominadas por um empirismo detestável”.
Com o espírito, toda a nossa civilização está em jogo. Seja pelo excesso de precisão ou pelo 
excesso de potência, seja pelo rigor inumano ou pela bruta precipitação de tudo, escreve Édouard 
Gaède, um dos comentadores de Valéry, a civilização está prestes a se destruir por seus próprios 
meios. A ordem absoluta que o espírito quis imprimir ao mundo volta-se, pois, à sua perda. A 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
imagem que reflete a impotência do espírito hoje é de Valéry: “Estamos na situação de um 
jogador que percebe com espanto que a mão do seu parceiro lhe dá cartas jamais vistas e que as 
regras do jogo são modificadas a cada lance. Nenhum cálculo de probabilidade é mais possível e 
ele nem pode mais lançar as cartas contra seu adversário. Por quê? Porque, quanto mais ele o 
encara, mais se reconhece nele!... O mundo moderno forma-se à imagem do espírito do homem”.
Adauto Novaes é jornalista e professor,
 foi diretor durante 20 anos do Centro de Estudos e Pesquisas da
 Fundação Nacional de Arte/Ministério da Cultura.
NOSSA MULHER NO FUTURO
Quando se formou em Física pela Universidade de São Paulo, em 1976, Maria Cristina Batoni 
Abdalla Ribeiro já estava longe à frente de seus colegas de classe. Ela se apaixonara pela ciência 
ainda na puberdade, por influência de um primo que depois de formado no mesmo curso voltara 
para a pequena cidade de Amparo, na divisa com Minas Gerais, e a iniciara na matéria. 0 primo 
devia ser um grande professor, porque aos 13 anos, recém-entrada no segundo ciclo, Cristina já 
dava aulas de Física num curso de madureza (o antigo supletivo) de Amparo. Depois de 17 anos 
de mestrados, doutorados e pós-doutora-dos no Brasil, na Alemanha e na Dinamarca, tornou-se a 
primeira, e até agora uma das poucas brasileiras a estagiar no CERN (Centro Europeu para a 
Pesquisa Nuclear) onde uma multidão de cientistas - principalmente físicos - se empenha em 
instalar o LHC - Large Hadron Collider, ou Grande Colisor de Hádrons - o acelerador de 
partículas que a Comunidade Européia está construindo em Genebra, na Suíça, cujo tubo, 
construído com materiais especiais, como o nióbio, percorre um túnel circular com 27 
quilômetros de circunferência a 100 metros da superfície. O LHC é um acelerador de partículas 
subatômicas e custou a 20 países europeus e várias outras nações colaboradoras 10 bilhões de 
francos suíços - algo em torno de 15 bilhões de reais. É tido como o mais ambicioso - e caro - 
instrumento científico já construído pela Humanidade.
A partir de maio de 2008, quando o formidável artefato entra em efetiva operação, Maria 
Cristina e outros físicos teóricos de todo o mundo começarão a ver comprovadas ou negadas suas 
teorias sobre o acontecimento que quase todos eles têm como certo: o Big Bang - uma explosão 
cósmica ocorrida a 13,7 bilhões de anos, que teria dado origem a todo o universo que 
conhecemos.
“Isso significa que os cientistas do CERN poderão provocar, em escala reduzida e sob controle, 
o mesmíssimo acidente que gerou o universo” - explica a cientista, que desde 1990 é professora 
livre-docente do Instituto de Física Teórica da Unesp, e atualmente membro eleito do conselho 
deliberativo do Instituto.
Maria Cristina já publicou seis livros, três deles no exterior. No Brasil, é autora de uma obra 
sobre a vida do dinamarquês Niels Bohr, autor de uma revolucionária teoria sobre a estrutura do 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
átomo, no início do século passado; de um instigante livro sobre a estrutura do microcosmo - “O 
discreto charme das partículas elementares” -; e, junto com o também físico Thyrso Villela Neto, 
de uma espécie de guia de introdução ao conhecimento astronômico - “Novas janelas para o 
universo”. Na apresentação deste último livro, fica bem clara a naturalidade com que a ciência de 
hoje encara fatos e coisas que até uns poucos anos atrás eram tratadas como ficção: lá, Maria 
Cristina começa dizendo que “descobrir o universo em que vivemos sempre foi uma das 
atividades mais importantes e divertidas das nossas vidas”.
E com esse mesmo espírito que, na qualidade de quem melhor conhece o projeto e as metas do 
gigantesco LHC entre os cientistas brasileiros, ela encara a tarefa de traduzir em miúdos - mas, 
atenção: a segunda parte de seu artigo exige constantes consultas a, pelo menos, um bom 
glossário técnico - como foi construída e quais serão as tarefas programadas para a imensa 
instalação franco-suíça com a qual se espera, um tanto candidamente aos olhos dos não-iniciados, 
recriar o universo.
Roberto Manera é jornalista.
MARIA CRISTINA BATONI ABDALLA
DE VOLTA AO INÍCIO
O MAIOR ACELERADOR DE PARTÍCULAS JÁ CONSTRUÍDO ENSAIA O BIG BANG
A física que pesquisa os fenômenos da natureza a altíssimas energias está prestes a entrar em 
uma nova era. Os instrumentos científicos que foram construídos para essa aventura superam, em 
várias ordens de grandeza, tudo o que já foi feito até hoje, seja em termos da tecnologia 
empregada, seja no que tange à construção civil ou ainda em termos de verba orçamentaria: seu 
custo chegou perto dos 10 bilhões de francos suíços (cerca de 15 bilhões de reais). Em maio de 
2008, o LHC {Large Hadron Collider - Grande Colisor de Hádrons) entra em operação!
O LHC é um acelerador de partículas subatômicas - O maior, o mais rápido e o mais 
sofisticado instrumento científico jamais concebido -, certamente o experimento que reuniu o 
maior esforço humano desde os primórdios de sua civilização. Congrega 6.500 cientistas de 
quinhentas universidades de mais de oitenta nações. Imagine um enorme túnel subterrâneo (a 100 
metros abaixo do solo), de 37 quilômetros de circunferência, por onde dois feixes de partículas, 
viajando em sentidos opostos, com velocidades próximas à da luz, se chocam em pontos 
escolhidos onde detetores imensos e ultra-sensíveis observam com olhos eletrônicos as colisões 
dessas partículas pequeninas. O resultado é a formação de um spray de novas partículas 
reproduzindo, no laboratório, a energia liberada instantes após o Big Bang. A análise cuidadosa 
desse spray nos revela detalhes da estrutura da matéria. No LHC, as partículas aceleradas são 
prótons e a energia das colisões é de 14 Tera elétron-Volts (TeV =10¹² eV). Essa é a idéia do 
Grande Colisor de Hádrons, pois prótons são hádrons (partículas que sofrem a chamada força 
forte, um dos tipos de força na física nuclear). A circunferência do túnel é um limitante para a 
energia que o feixe pode adquirir. Outro parâmetro importante é a intensidade do feixe. Quanto 
maior a intensidade, maior o número de colisões.
Construído no laboratório franco-suíço CERN (Centro Europeu para a Pesquisa Nuclear), nas 
proximidades de Genebra, Suíça, uma vez em operação, a tarefa do LHC será sondar 
profundamente a constituição íntima da matéria e explicar alguns dos mistérios que ainda rondam 
as teorias mais modernas da física. Do micro ao macro, perguntas ainda sem resposta, tais como: 
vamos de fato descobrir o Higgs, essa misteriosa desconhecida que seria responsável pela geração 
de toda a massa do universo? Quais seriam as razões pelas quais nosso universo preferiu a 
matéria à antimatéria? O que é o plasma cósmico primordial gerado pelo Big Bang? Qual seria a 
natureza da energia escura que permeia o vácuo acelerando a expansão do universo? Nosso 
espaço-tempo teria dimensões extras, como preconiza a teoria de cordas? Todas essas questões 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
não são respondidas pelo atual Modelo Padrão, pois, apesar de este ter sido o modelo mais 
testado de todos os tempos, é ainda incompleto. O LHC permitirá buscar pistas para tais 
respostas.
A concepção do LHC surgiu na década de 70, antes mesmo do seu precursor LEP - Large 
Electron Positron - ter sido construído. O LEP, instalado na década de 80 no mesmo túnel de 37 
km, acelerava em direções opostas elétrons e pósitrons (a antipartícula do elétron). Produziu 
resultados importantes de grande precisão que foram agregados ao Modelo Padrão. Produzia 
feixes com energias de Giga eV (GeV = 10^9 eV). Obsoleto, o LEP foi desmontado. Hoje, o túnel 
abriga o LHC, responsável pelo sistema de aceleração dos feixes de prótons e quatro novos 
detetores: ATLAS, CMS, ALICE e LHC-b, responsáveis pela observação e pelo registro das 
colisões. Cada detetor exibe características distintas e sofisticadas bem peculiares. Foram 
construídos em imensas cavernas (a do CMS é a maior do mundo), constituindo uma magnífica e 
complexa obra de engenharia civil. O armazenamento e a análise computacional dessas colisões 
são um problema gigantesco. Os dados chegarão à casa dos exabytes (10^18 bytes) por ano. 
Concebida especialmente para esse fim, a EDG - European DataGrid - conecta centenas de 
milhares de computadores espalhados pelo mundo. Hoje, a transferência de dados entre o CERN 
e a Califórnia é de 10 Gigabytes por segundo. Iniciar-se-á uma nova era de trânsito mundial de 
dados, com bandas excepcionalmente largas. Lembre que foi no CERN que a WWW nasceu, 
dando origem à Internet com um protocolo livre.
Manter os feixes de prótons estáveis circulando no túnel a velocidades próximas da velocidade 
da luz não é uma tarefa fácil. Para isso se usa uma tecnologia altamente sofisticada, baseada na 
supercondutividade. Para criar campos magnéticos intensos que pudessem domar os feixes, 
mantendo-os numa trajetória curva ao longo dos 27 km, foi preciso usar ligas supercondutoras de 
nióbio e titânio que conduzem a eletricidade sem resistência. Coloque tudo isso imerso num 
banho de gás de hélio (96 toneladas) que se torna um superfluido a -271,3ºC (1,9 K) e temos a 
temperatura na qual o LHC vai funcionar, ou seja, próximo ao zero absoluto! Como a temperatura 
do universo é -270,5ºC (3,7 K). o LHC será o local mais frio do universo.
O CERN mantém uma política de transferência de tecnologia à sociedade, pois as descobertas 
são incorporadas na medicina (terapia de câncer, tecnologia de imagens, instrumentos de medida, 
radioterapia, tomografias com emissão de pósitrons (PET), produção de radiofármacos, 
hadronterapia, anti-hadronterapia), na informação, na climatologia, na computação, na eletrônica, 
na produção de materiais resistentes etc. Além de produzir uma quantidade imensa de tecnologia 
nova, o LHC certamente mudará nosso entendimento sobre o universo, um conhecimento que não 
tem preço.
Maria Cristina Batoni Abdalla é física teórica
 e professora livre-docente do Instituto
 de Física Teórica da UNESP
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
THIAGO DOMENICI
É PRECISO RECONQUISTAR O TEMPO
Olgária Matos, filósofa renomada, doutora pela École des Hautes Études, de Paris, e professora 
aposentada da USP, ganhadora do prêmio Jabuti de 1990 com o livro Os arcanos do inteiramente 
outro - a Escola de Frankfurt, a melancolia, a revolução (ed. Brasiliense). Nessa entrevista 
concedida em sua casa, na zona sul de São Paulo, ela fala do “conceito de tempo e suas mutações 
no inundo contemporâneo”. Por exemplo, sua resposta à idéia geral de que hoje as pessoas não 
têm tempo é, resumida, a seguinte: “a forma mais perversa (...) é a alienação do tempo, você não 
ser senhor do seu tempo, você é determinado pelo tempo das coisas e não escolhe mais sua vida.” 
Sobre a hiperatividade dos dias atuais, ela diz que é fazer muitas coisas com nenhum sentido. E 
que as pessoas querem matar o tempo porque não sabem o que fazer com o tempo livre. Uma 
visão instigante sobre os dias de hoje.
Gostaria que a senhora falasse o que é o tempo e o que são as mutações do tempo?
Santo Agostinho diz: “quando não me perguntam o que é o tempo eu sei, quando me 
perguntam eu já não sei mais”. Porque o tempo pode ser acelerado em anos, pode ser 
extremamente longo em segundos, são experiências muito diferentes as que a gente pode falar 
sobre o tempo. No mundo contemporâneo, a impressão que dá é que existe um “não tempo”, uma 
experiência do tempo que não passa, porque ele não se faz mais com experiências. Na verdade, 
experiência supõe uma relação de conhecimento com valores e acontecimentos do passado que 
são transmitidos das formas mais diversas. Os antigos tinham muito essa idéia - até recentemente 
tínhamos, até pelo menos o século 19 - de que era preciso resistir aos embates do infortúnio, quer 
dizer, reagir aos acontecimentos inesperados e catastróficos para continuar vivo. As parábolas e 
fábulas tinham esse sentido de ensinamento. Hoje não temos mais tempo para essa tessitura 
coletiva das experiências dos sonhos, das expectativas.
E por que a gente não tem mais tempo?
Tanto no mundo grego quanto na Idade Média até o Renascimento você tem a idéia do mundo 
perfeito. Que é o cosmos grego? É um todo, fechado, onde cada coisa ocupa o lugar que lhe é 
próprio na ordem da criação. o otimismo grego achando que o homem nasceu para a felicidade, 
sua destinação é a felicidade, ele pode escolher os meios para chegar à felicidade. Agora, os fins 
últimos ele não escolhe. Então é muito tranqüilizador esse universo, não é habitado por nenhum 
desejo de autoridade, ele já está no perfeito, já está na verdade, e a possibilidade de conhecimento 
é sempre no sentido de um aprimoramento de si, de um cuidado de si. Na Idade Média você tem a 
criação divina, ali já é a emanação da beleza invisível transcendente. Quando chega o século 16, 
17 se acaba a idéia de universo finito e entra em cena o universo infinito. A idéia de limite, que é 
uma idéia grega, passa a ser entendida como barreira, como privação, e essa idéia de infinito e de 
deslimite está na base dos esportes radicais, das performances até a morte, da obesidade mórbida, 
do uso imoderado de drogas, enfim, todas as formas do excesso, do deslimite. Além do que a 
modernidade, a partir dos séculos 17 e 18, começa a elogiar a paixão - a paixão é o excesso, e a 
nossa cultura valoriza o excesso.
É aí que entra a história do tempo qualitativo e do quantitativo?
Vamos supor: como era a sobrevivência na Idade Média? Era, sobretudo, no campo, então você 
tinha que seguir as estaçõesdo ano, as colheitas, a plantação, o tempo de trabalho não se sabe 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
exatamente, mas a média devia ser umas quatro horas por dia, no máximo. Era um tempo 
qualitativo, porque você seguia aquilo que era da natureza das coisas. Por exemplo. trabalhar 
antes do nascer do sol ou depois do pôr-do-sol era considerado imoral, era pecado, porque você 
desafiava a ordem da criação. Com o advento da luz elétrica, no século 19, o dia passou a ter 24 
horas, o trabalho noturno entrou com uma voracidade de consumir todas as forças do homem, até 
o fim - isso foi o capitalismo do século 19, e está voltando. Antes tinha um tempo na Grécia, em 
Roma, na Idade Média e nas religiões que era um tempo livre, mas o que era o tempo livre? Era 
um tempo totalmente autônomo com relação às necessidades materiais da sobrevivência, um 
tempo que você dedicava à contemplação, por mais indefinida que pra nós seja essa palavra 
contemplação. Você não se entretinha com nada que dissesse respeito à materialidade da vida, era 
a liberdade absoluta. Hoje não temos mais essa idéia de tempo livre, já é preenchido de coisas, 
então você tem um tempo inteiramente espacializado, não é mais qualitativo, ele não diz respeito 
a propriedades representativas de um acontecimento, de uma pessoa ou de um desejo. Essa idéia 
de que você não tem tempo é a forma mais perversa da alienação. Marx já dizia isso, a forma 
mais perversa não é a alienação do trabalhador com relação ao produto do seu trabalho e ao 
sentido do trabalho, é a alienação do tempo, você não ser senhor do seu tempo, você é 
determinado pelo tempo das coisas e não escolhe mais a sua vida. É o que está acontecendo hoje. 
Você vê, por exemplo, que um empresário trabalha 24 horas e não pára um segundo - esse 
empresário na visão de um homem da Idade Média vivo pior do que um servo da gleba. São 
mutações na experiência do tempo e na maneira de vivenciá-lo. Independentemente da 
modalidade do acúmulo do capital e da distribuição da riqueza, esse capitalismo acelerado, que é 
o das nanotecnologias e tal, é uma coisa extremamente nova no seguinte sentido: se você pensa 
no capitalismo até a década de 30, ou até pelo menos até a Primeira Guerra Mundial, havia uma 
autonomia da política com relação à economia, tanto que a economia tinha que pressionar a 
política para que a política revisasse seus interesses de acumulação. Quando isso não acontecia, 
tinha guerra, tinha ditadura, para forçar a política a realizar os desígnios da economia. Hoje não, 
há uma total fusão entre a economia de mercado e a sociedade de mercado, não há mais espaço 
de autonomia, porque a política nada mais é do que a realização do status quo econômico. Você 
não tem esse espaço mínimo que se chamava espaço público. E não pode ter liberdade política se 
está raciocinando em função do que a economia permite e do que ela não permite. Então, essa 
liberdade está tendendo a desaparecer, porque o realismo político está tomando o lugar da 
inteligência social.
A senhora aborda em suas palestras a questão do tédio, da monotonia e do desejo de 
“matar o tempo”. A gente não tem tempo e ao mesmo passo quer matar o tempo...
Recentemente foi feita uma pesquisa na França para ver as experiências do tempo nas 
metrópoles, nas classes A, B, C e D. As pessoas que não tinham tempo nenhum mesmo, para 
nada, eram os desempregados. Eles sentiam a sensação de que não tinham tempo. Provavelmente 
assim: um dia faz o currículo, no outro dá um telefonema, outro dia espera uma resposta e assim 
vai. Então é um tempo totalmente vazio, sem sentido e também tem o seguinte: como há uma 
sensação, vamos dizer, transversal na sociedade, de que ninguém tem tempo, esse “não tempo” 
acaba afetando a todos, não diz respeito só àqueles que não têm tempo. Quem tem tempo acaba 
sentindo que não tem, é uma coisa estranha que acontece. A hegemonia do tempo dominante é 
assimilada por todos, não vai para uma classe só, racionalmente localizada, porque ela trabalha 
24 horas, não, é algo que se espalha por toda a sociedade. Então, esse sentimento de não ter 
tempo é a manifestação de algo estrutural na sociedade, que é o trabalho. O trabalho é totalmente 
esvaziado de sentido, no mundo capitalista, com a automação do movimento do gesto do 
trabalhador. Quem captou muito bem a modernidade do tempo completamente sem sentido do 
trabalho alienado foi Kafka. No livro O Processo, por exemplo, quando o personagem chega para 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
tentar descobrir qual é a condenação e nunca vai saber qual é a sua culpa e nem qual é a 
condenação, O que ele vê? Vê um funcionário espancando um sentinela e pergunta: “Por que 
você está espancando?” O funcionário não pára de espancar e fala: “fui contratado pra espancar, 
então espanco”. É o trabalho alienado. Marx diz assim: “Quando o homem está no lugar de 
trabalho, ele se sente fora de si, só se sente junto a si quando está fora do trabalho”. O trabalho 
continua sendo o trabalho alienado que esmaga fisicamente ou espiritualmente, porque não tem 
sentido nenhum. Agora, a monotonia contemporânea é o tempo da longa duração, e no 
capitalismo essa longa duração é insuportável, por isso as pessoas querem matar o tempo, porque 
não sabem o que fazer com o tempo livre.
Tem a questão da tecnologia no nosso tempo, parece que quanto mais tecnologia temos 
menos tempo, não?
As tecnologias fazem parte desse desejo de novidade, mas não são o novo. Porque o novo é 
muito raro acontecer, a última grande invenção da ciência deve ter sido no século 19, comecinho 
do século 20. Agora estão desenvolvendo o que já foi descoberto até a Primeira Guerra Mundial 
ou por volta disso. Mas você tem uma pulsão da novidade. Porque, como o que domina todo o 
imaginário, todo o ritmo da vida biológica e todo o ritmo da vida cotidiana é a produção e o 
consumo de mercadorias, a consciência disso está pautada pela sucessão e substituição rápida do 
mesmo. Quer dizer, imagine no século 19 o que deve ter sido a primeira experiência da produção 
em série, quando se vê o objeto único aos milhares. Essa experiência de vertigem, de alucinação, 
que é o mesmo que estar em algum lugar e ter um outro igualzinho a mim, milhares de pessoas 
todas do mesmo jeito, parecendo o mesmo, produz uma monotonia terrível. O mesmo objeto 
milhões de vezes é totalmente insuportável; como você vai consumir, se tudo é a eterna volta do 
mesmo? A não ser produzindo pequenas diferenças de objeto para objeto que não querem dizer 
absolutamente nada, mas criam a ilusão da individualidade. Você perguntou da tecnologia. O que 
o Marx dizia? Você tinha a infra-estrutura da sociedade, que é o modo de produção e o modo de 
apropriação, e tinha uma superestrutura, que eram as produções culturais da sociedade - arte, 
religião, filosofia, ideologia, ciência e tecnologia. A ciência e a técnica faziam parte das 
produções culturais, espirituais, da sociedade. Hoje a ciência e a técnica são força produtiva. 
Estão diretamente vinculadas ao aumento do capital, não têm mais autonomia nenhuma. O 
acúmulo do capital depende da tecnologia, que depende do desenvolvimento econômico. Então, 
como virou infra-estrutura, a ciência também está comprometida no não-pensamento. Porque, do 
ponto de vista do conhecimento, você não tem mais a ciência, porque ela é predominantemente 
pragmática-operatória, cada vez operando mais com as agências de financiamento privadas ou 
com as agências de Estado. Por exemplo, a NASA, a ciência dos Estados Unidos é diretamente 
ligada ao departamento da guerra, direto! Na França há um pouco mais de autonomia, na 
Alemanha também, na Inglaterra não sei, deve haver, e no Brasil não existe. Então você tem a 
substituição da lei - que é o conhecimento das sutilezas da ciência e das suas mutações - parao 
funcionamento automático do pensamento. O que é a Fuvest senão o pensamento do computador? 
É o estudante mais rápido, que pega a pegadinha mais rápido. É o vazio do pensamento com 
funcionamento automático, então não tem pensamento. Tudo isso vem da predominância de uma 
racionalidade da ciência que é do tipo matemático-algébrico-analítico, portanto, abstrato, 
esvaziado de sentido, e você tem o mecanismo do pensamento, todo um arsenal de dispositivos 
lógicos, vazio. Esse não-pensamento resulta, na hora do consumo, em não saber consumir. Quer 
dizer, você já não sabe produzir, não sabe fazer, porque aplica a fórmula. Você não tem mais um 
saber, tem um know-how, e na hora do consumo não tem um “saber viver”. Antes você tinha a 
filosofia, a ciência, a arte, a religião, tudo que ao longo do tempo era te prover de um saber fazer, 
era um saber viver. Hoje você está em descompasso entre o que precisa e o que consome. Aí 
consome o que não precisa e precisa daquilo que não consome. Esse mal-estar da temporalidade 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
veio da não-coincidência do que você tem e o que você deseja, mas você não deseja o que tem e 
aí, obviamente, como o desejo é infinito, veja só, o capitalismo veio para ficar, porque - como 
toda tradição filosófica e religiosa fala - somos seres carentes, seres desejantes, então a tendência 
é preencher o vazio da carência com objetos de satisfação. Ora, o capitalismo produz a carência, 
ele não quer preencher uma necessidade, quer criar necessidades ao infinito. Então, com essa 
diferença minimal de um objeto a um objeto para você continuar consumidor, é o tempo do 
consumo que determina o tempo interno. E o tempo da subjetividade você não tem mais. Como 
você percebe isso hoje? Todas as experiências humanas que necessitam de tempo, da longa 
duração, ficam comprometidas: amizade, relação pais e filhos, amor.
E o que esperar do futuro?
Veja só, a promessa exige longo prazo. Quando você promete alguma coisa, está incluída a 
idéia da dúvida, você não sabe se vai conseguir cumprir ou não. Então precisa do tempo longo 
para saber se cumpriu a promessa. A idéia do juramento era assim. Não havia possibilidade de 
romper um juramento a não ser sendo perjúrio. Hoje é ridículo alguém jurar ou prometer alguma 
coisa, porque sabe que não vai cumprir, e se cumpriu foi por acaso. Então todo esse tempo de 
expectativa e, portanto, de futuro, está totalmente desaparecido. Hoje só se fala do futuro para 
justificar o que é o presente, não existe mais a idéia do tempo longo e o que vai acontecer. E o 
mal-estar vem muito dessa dissolução da idéia de futuro. E como a gente fala de futuro? Fala em 
mercados futuros, o futuro virou mais um valor de troca. Então quando se fala: “os jovens não 
têm expectativa de futuro” - não têm um monte de coisa porque não têm expectativa de futuro e 
não sabem o que fazer com o tempo. Porque esse capitalismo produz uma cultura e uma educação 
cuja atividade cerebral é próxima a zero. É pulsional, eu quero, vou lá e pego. Aí quer que a 
juventude faça o quê? Vira delinqüente ou vira entediado. Porque o tempo que lhe é imposto 
como a forma por excelência da vida é o consumo de bens materiais. Sem nenhum ideal de 
espírito. E a técnica e a ciência se desenvolvem não sabendo para onde vão.
A ciência não pensa no ser humano?
A ciência não pensa. Ela faz. O mundo contemporâneo não pode ter filosofia, porque a filosofia 
pensa o pensamento. A ciência deveria pensar a ciência. O que é a ciência para os gregos? 
Primeira coisa é: “Isso que vou pesquisar é útil ou prejudicial? Visa os fins últimos do sumo bem 
ou não? Se não, não vou pesquisar isso”. A energia nuclear é uma tecnologia não-poluente. Meu 
Deus! Leva milhões de anos para acabar a toxicidade e não é poluente? Por que? Porque não 
pensa. Porque se você dissesse: “Não, isso nós não vamos fazer porque o risco é morrerem 
tantos”. O fato de haver risco levaria a pesquisar outras coisas. Mas esse capitalismo é inimigo do 
pensamento autônomo, é inimigo da liberdade, é inimigo da vida feliz e da vida justa. E não é um 
capitalista, é o capitalismo! É uma estrutura alienada que abrange também o burguês, que 
também está vitimado por essa compulsão ao consumo, a compulsão à produção sem sentido 
nenhum.
Cientistas falam que daqui a quarenta anos a inteligência artificial será algo palpável, 
estão até discutindo a ética dos robôs. Qual poderá ser a função deles no futuro?
Não dá muito para antecipar, mas há um tempo atrás houve uma discussão no Parlamento de 
Tóquio se devia ou não estender os direitos humanos aos robôs inteligentes. Isso é um fenômeno 
que o Marx estudou e é a pessoa que foi mais longe, falando da inversão do inanimado em 
animado. O inanimado toma o lugar do homem. E é claro que você pode falar em direitos 
humanos para robôs, porque eles não são praticados para as pessoas. Talvez sejam para as coisas, 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
porque a alienação é um fenômeno em que as coisas ocupam o lugar do que é vivo. Então é bem 
possível. Você vê o jeito como as pessoas cuidam do carro no domingo de manhã, eles lavam com 
um cuidado que certamente não têm com os filhos. Agora, esse é o final da coisificação. A ciência 
moderna confunde liberdade de pesquisa com onipotência, só que não tem idéia de limite. Quer 
dizer, atividade zero de pensamento. A sociedade do narcisismo e o narcisismo é uma coisa de 
não saída de si, não é o ideal de ego, é o ego ideal, fica imerso em si mesmo, não chega ao outro. 
A tendência disso são as sociedades da incivilidade, porque o outro não existe. Há pesquisas com 
crianças que ficam na frente de computador, o que, do ponto de vista de amadurecimento 
psicológico e, portanto, da progressão do narcisismo e da onipotência é muito ruim. Você dá o 
comando e ele responde e isso aí aumenta muito a onipotência. A ciência é onipotente, e as 
pessoas também querem que aconteça na hora. Você vê a própria educação. A educação é um 
negócio chato. Por que? Porque a criança vai para a escola e tem que ficar sentada, e ela gosta de 
ficar correndo, de quebrar coisas, de subir na parede. Tem aqueles mais quietos, mas, então, o que 
é? “Ah, agora você tem que aprender a escrever.” Ah, então tem que fazer esse movimento, aí 
você tem que ficar sentado. Então, o que é a educação contemporânea no Brasil? Porque a 
educação está em crise? Por que a evasão escolar? Porque a escola não está adaptada à realidade 
da criança. A escola é para tirar a criança da sua realidade e criar outros hábitos. Agora, o que 
você faz? A criança não está adaptada, então vamos adaptar, vamos fazer massinha, vamos não 
sei o quê. É um tédio fora do comum. E o que acontece? A criança quebra a escola. O adolescente 
quebra a escola, porque ele vai fazer dentro da escola o que ele já faz melhor fora. Já faz capoeira 
fora. “Ah, vai fazer capoeira”. Porque “para pobre o pouco está bom”. Então, dá um pouquinho 
de capoeira que ele já faz, porque essa é a realidade dele. Por que não dá um Mozart, uma aula de 
violino para ele? “Ah, não. Para pobre, o pouco está bom”. Tudo é assim, essa idéia de tudo 
rápido, tudo um pouquinho, emprega na educação. Leitura? Não tem nada mais que exija tempo 
do que leitura. Como é que você ensina o português? A tendência é essa hoje no mundo inteiro. O 
novo presidente francês Sarkozy quer tirar a literatura do currículo francês. Uma barbárie. Então, 
tudo o que exige tempo, quer dizer, a educação, quando ela começa a imitar esse tempo 
acelerado, não fala mais nada. A educação não é para te dar um pouquinho de instrumento para 
você se dar bem na vida e ficar rico ou ter ascensão social. Não é isso. A educação é para te 
ensinar a ter paciência, as grandes obras de literatura são as obras que elaboram o teu rumo 
interno. Você tem que entender aquilo e ao entender, você se entende melhor, entãoé todo um 
mundo que desaparece. Tem que ensinar a estimular o pensamento...
O português, por exemplo, nos parâmetros curriculares nacionais consta assim: “O ensino da 
Língua Portuguesa visa criar cidadãos responsáveis.” Pronto. Quer dizer, não tem literatura. Aí a 
criança é analfabeta secundária por quê? Porque não aprendeu a ler através da literatura. Então na 
hora que você pega um texto mais complexo, não dá para entender. Essa idéia de que a educação 
tem que atender a sociedade é a incivilidade absoluta. Você dá um pouquinho rápido e só. Você 
não tem todo o tempo da educação, que é o tempo de aprender a lidar com o tédio. Agora, essa 
escola é o tédio, ela não ensina a lidar com o tédio. Porque o tempo não existe, você tem que 
passar rápido para outra coisa.
Thiago Domenici é jornalista.
ANA LUIZA MOULATLET
A TECNOLOGIA PODE NOS APROXIMAR DAS BESTAS
Em seu texto “As Mutações do Poder e os Limites do Humano”, o filósofo Newton Bignotto 
analisa as formas de dominação e as configurações políticas criadas pelo homem ao longo da 
história, levando-nos a refletir sobre a intolerância, o autoritarismo e o abuso de poder. Afirma 
que as experiências relatadas pelas vítimas dos regimes extremos nos fazem pensar sobre os 
limites de uma natureza submetida ao quase aniquila-mento. E diz que “essa nova fronteira da dor 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
abre a possibilidade de explorar uma dimensão de nossa humanidade”, enquanto acompanhamos 
essa “descida aos infernos”, provocada pelos regimes totalitários.
À luz do conceito de biopoder, de Foucault, Bignotto analisa esses regimes totalitários, que nos 
mostraram a intolerância. O que torna única a intolerância hoje é a sua associação ao discurso das 
ciências. Em entrevista à Caros Amigos, Bignotto diz que, “mesmo quando as associações são 
falsas, como no caso do uso da genética para a justificação de uma suposta superioridade racial, o 
recurso aos termos científicos cria uma aura de legitimidade, que pode se transformar em uma 
ferramenta eficaz para garantir o domínio do Estado por grupos políticos, que defendem idéias 
extremas e não admitem contestação”.
Por isso, as descobertas científicas e o avanço da ciência têm que ser vistos com muita 
precaução, como, por exemplo, o surgimento da Internet: “O aparecimento da Internet é um dado 
fundamental de nossa época. Ela provocou uma verdadeira mutação em nossa forma de viver a 
política e nossa vida particular”. Entretanto, a contínua mudança da condição humana em função 
das descobertas científicas e do desenvolvimento de novas tecnologias “nos levou muitas vezes a 
nos servirmos dos produtos da invenção humana para nos aproximarmos das bestas”. Bignotto 
acredita que o problema não é a tecnologia; não precisamos fugir dela. “O problema é como 
manter valores, nos quais acreditamos, num mundo em que os meios dominam os fins.”
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador do Conselho Nacional de 
Desenvolvimento Científico e Tecnológico e membro do Conselho Curador da Fundação 
Municipal de Cultura de Belo Horizonte, Newton Bignotto também é doutor pela École des 
Hautes Études en Sciences Sociales, e tem pós-doutorado pela Université de Paris VII - 
Université Denis Diderot e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Escreveu sete 
livros; o último deles, Republicanismo e Realismo - um Perfil de Francesco Guicciardini, foi 
lançado pela editora UFMG em 2006.
O senhor cita o biopoder, conceito de Michel Foucault. Os jornais noticiam com 
freqüência que a ciência descobre vários genes que explicariam certos comportamentos 
humanos, por exemplo, que foi encontrado o gene do homicídio. Sabemos que seres 
humanos são sistemas abertos, como a meteorologia e como a economia, portanto 
imprevisíveis. O senhor acha que o biopoder pode se converter numa nova eugenia?
O conceito de biopoder, tal como apresentado por Foucault e Giorgio Agamben, diz respeito ao 
fato de que a vida natural dos homens passou a estar no centro dos mecanismos de poder. O 
biopoder foi plenamente desenvolvido nos Estados totalitários, em particular com o recurso aos 
campos de concentração. O aparecimento dessa forma de mando, e sua consolidação como uma 
das possibilidades da vida em comum dos homens, é que deve servir de alerta. Não há como dizer 
simplesmente que, com o final da Segunda Guerra Mundial e a derrocada do bloco soviético, as 
democracias venceram e a barbárie não retornará. Ao contrário, o que a idéia de biopoder nos 
ajuda a compreender é que, ao transformar o corpo biológico em alvo de suas ações, ao tornar 
supérflua a existência de laços entre os homens derivados de sua história e de sua inserção na 
comunidade à qual pertencem, os Estados totalitários passaram a fazer parte dos horizontes da 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
política e se transformaram em uma ameaça, que não pode ser desprezada, se quisermos pensar 
nas mudanças ocorridas na cena pública do último século.
Foucault diz que o homem é um projeto recente e que “tende a desaparecer da história 
como um rosto desenhado na areia do mar”. A seu ver as tecnologias que nós mesmos 
criamos e que hoje imperam na nossa vida podem contribuir para isso? As condições que 
nós criamos para o mundo em que vivemos acabarão nos dominando?
Desde o início da modernidade, a idéia de que o homem é um ser que cria sua própria condição 
fez parte do arsenal teórico da filosofia política. Pico delia Mirándola, em sua célebre Oração da 
Dignidade dos Homens, afirmou que podemos tanto nos comparar aos seres superiores quanto 
nos degenerar em bestas. Ora, o que assistimos ao longo dos últimos séculos foi a contínua 
mudança da condição humana em função das descobertas científicas e do desenvolvimento de 
novas tecnologias, o que nos levou muitas vezes a nos servirmos dos produtos da invenção 
humana para nos aproximarmos das bestas. A constatação dos riscos que passamos a correr com o 
crescente domínio da técnica não pode, no entanto, nos conduzir a buscar soluções impossíveis de 
serem alcançadas. Não há um ponto ao qual poderíamos retornar para nos livrarmos dos estorvos 
criados pela tecnociência, pois em seu desenvolvimento ela criou as novas fronteiras de nossa 
condição. A questão, portanto, não é a de fugir da tecnologia, refugiando-se em lugares que 
supostamente estão a seu abrigo. O problema é como manter valores que acreditamos num 
mundo em que os meios dominam os fins, que por vezes nem mesmo sabemos identificar quais 
sejam.
Einstein, numa frase clássica, diz: “Conheci de perto o homem: ele é inconsistente”. 
Quais elementos o senhor vê no cotidiano, hoje, que reforçam essa inconsistência? Ela 
poderia explicar a capacidade de alguns seres humanos de cometerem atos bárbaros, e de 
alguns outros serem coniventes e permitirem que o mal seja feito?
Não estou certo de compreender o significado do termo “inconsistente”, quando aplicado ao 
homem. Talvez seja algo fora do humano. Prefiro, por isso, falar em ser aberto, para me referir à 
condição humana. Isso implica dar um lugar de destaque as noções de responsabilidade e de 
liberdade, quando se trata de compreender nossa humanidade, no lugar daquela de consistência, 
que parece servir mais para as esferas da lógica e da matemática.
Com a quantidade de opções oferecidas pela Internet, qualquer cidadão pode, digamos, montar 
seu deus, montar seu partido, montar sua religião, montar sua causa. 
O senhor acha que com essa primazia do eu, com esse individualismo, as chamadas 
grandes causas, que permitem, por exemplo, que o homem ajude seu semelhante, estão 
sendo enterradas para todo o sempre?
O aparecimento da Internet é um dado fundamental de nossa época. Ele provocou uma 
verdadeira mutação em nossa forma de viver a política e nossa vida particular.Mas a chamada 
“vida virtual” não pode ocupar os espaços nos quais nos vinculamos a nossos semelhantes. Ela 
pode alterar nossa maneira de nos relacionarmos com o poder, garantindo, por exemplo, canais de 
informação alternativos com relação aos grandes meios de comunicação, que muitas vezes estão 
profundamente implicados nas disputas políticas. Ela transforma as distâncias, que antes nos 
separavam de pessoas e coisas, situadas no outro extremo do globo. Ela nos abre as portas para 
conhecimentos antes fechados em arquivos e bibliotecas que eram de muito difícil acesso. Mas 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
ela permanece sendo um meio. Criar um deus particular, ou um partido, pode ser uma maneira de 
nos perdermos em uma vida solitária, que nos aparta do convívio com os outros e nos impede de 
vivermos num verdadeiro espaço público. Não podemos nos esquecer que a solidão é a marca 
principal dos regimes totalitários e não das democracias. Um partido ou uma religião particular é 
uma experiência que não responde às demandas que nos levaram a buscar deuses ou grupamentos 
políticos ao longo da história, e não serve como barreira para experiências como as que 
destruíram o espaço público em vários momentos do século 20.
José Celso Martinez Correa chama a atenção para a falta de “messianismo prometéico” 
na cultura atual. Herbert Marcuse, por sua vez, via na fantasia e no sonho os únicos 
caminhos que levavam a Libertação. Stendhal ficou famoso pela frase “premesse du 
bonheur”. O senhor acha que o fim do sonho e o fim das utopias colaboram decisivamente 
para o fim do homem enquanto projeto?
A política necessita da imaginação e do sonho, para ser algo mais do que a repetição dos 
caminhos seguidos pela tradição e que muitas vezes não respondem mais às nossas expectativas. 
Por isso, precisamos de utopia. Ela representa uma forma da liberdade, uma imaginação do futuro 
como algo que nos aproxima de nossos desejos por um mundo melhor, Mas é preciso observar 
que a simples existência de utopias não garante nada. A realização de algumas delas nos últimos 
dois séculos terminou cm catástrofe, como no caso da antiga União Soviética. As experiências 
messiânicas também nem sempre foram sinônimos de felicidade e de tolerância. A grande 
dificuldade da vida em comum reside no fato de que não basta desejarmos viver melhor para isso 
se realizar e, ao mesmo tempo, não podemos deixar de sonhar, para não ficarmos prisioneiros das 
amarras de nosso próprio tempo.
O senhor acha que a intolerância é um dos sintomas de uma suposta decadência do atual 
projeto de homem?
A intolerância é parte da história humana e se manifestou em todos os tempos. Não seria 
razoável supor que vivemos hoje uma era de intolerância, que se contrapõe a um passado de 
tolerância. Ao contrário, a idéia de tolerância, seja no campo dos costumes, seja no terreno da 
religião e da política, é uma criação recente da modernidade. O que ocorre é que essas conquistas 
estão ameaçadas pela destruição dos espaços públicos, que garantiram, no Ocidente, em séculos 
passados, a implementação dos princípios que estão na raiz das experiências de liberdade e de 
igualdade próprias do universo democrático e republicano. A intolerância, por seu lado, também 
possuí figurações históricas precisas, que necessitam ser investigadas, para não cairmos nas 
armadilhas montadas pelos discursos pseudo-científicos, que querem nos convencer de que 
supostos dados naturais incondicionados nos obrigam a aceitar certas políticas extremas. Um 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
exemplo são os diversos discursos racistas, que desde o século 19 tentaram recorrer a teorias 
científicas para se legitimar. A novidade com relação a outras épocas é a associação da 
intolerância ao discurso das ciências. Mesmo quando as associações são falsas, como no caso do 
uso da genética para a justificação de uma suposta superioridade racial, o recurso aos termos 
científicos cria uma aura de legitimidade, que pode se transformar em uma ferramenta eficaz para 
garantir o domínio do Estado por grupos políticos, que defendem idéias extremas e não admitem 
contestação. Esse foi o caso do nazismo, que recorria a várias teorias raciais não apenas para 
destruir o Estado de direito, mas para justificar o extermínio de milhões de pessoas, como se isso 
fosse uma necessidade para a sobrevivência do próprio povo alemão.
Ana Luiza Moulatlet é jornalista.
THIAGO DOMENICI
O TEMPO É DE CAOS
FÍSICO ESPECULA SE, AO FIM DE TUDO, O CAPITAL CONTINUARÁ DOMINANDO
Luiz Alberto Oliveira é físico, doutor em cosmologia, pesquisador do Centro Brasileiro de 
Pesquisas Físicas (CBPP/MCT) e professor de história e filosofia da ciência. Nesta entrevista, ele 
divulga o que os físicos já sabem; que o tempo é um caos.
Qual sua opinião sobre termos ou não lugar no futuro?
Segundo a teoria dos sistemas complexos, a vida é uma matéria organizada que, aprendendo a 
modificar sua própria estrutura para responder a alterações do meio, passou a conectar os tempos 
infinitesimais das reações moleculares aos milhares de anos das transformações ambientais, aos 
milhões de anos das transformações geológicas, às centenas de milhões das transformações 
astrofísicas. A aceleração tecno-produtiva vigente na contemporaneidade superpôs um novo 
modo temporal a essa conexão entre os ritmos materiais e biológicos: o prestissimo característico 
das produções culturais. O aspecto crítico aqui é a condensação dos ritmos naturais em ritmos 
tecnológicos, transformação que corresponde à instalação de um novo patamar de ordenação do 
sistema complexo “Terra” e que justamente por esse motivo instaura uma imprevisibilidade 
radical: doravante, o passado não nos servirá como guia, pois a história - quer da natureza, quer 
da cultura - não pode mais ser rebatida sobre o futuro como expectativa de continuidade. Não 
crise do que somos, mas mutação para o que viremos a ser. Pois o que se engendra em nossa pós-
modernidade impelida pela aceleração tecnológica é a artificialização generalizada, que, ao diluir 
as fronteiras tradicionais entre natureza e cultura, sujeito e objeto, interioridade e exterioridade, 
começa a nos converter em híbridos de humano e inumano. De fato, as três grandes promessas de 
inovação tecnológica para o século 21, a saber, a robótica (a produção de sistemas capazes de 
comportamento autônomo), a biotecnologia (a manipulação dos componentes dos seres vivos, 
inclusive seu código genético) e a nanotecnologia (a fabricação de dispositivos moleculares) 
compartilham tanto um fundamento comum - a crescente capacidade de manipular objetos 
microscópicos - quanto a abertura de uma dupla possibilidade: a de engendrar novos tipos de 
“vida”, quer dizer, de sistemas capazes de replicar-se e evoluir, e a de incluir, como matéria-prima 
para a inovação técnica, nossos próprios corpos e mentes. Estamos a caminho de poder 
redesenhar a forma humana e as formas da vida. Essa virtualidade, desnecessário dizer, é 
inteiramente singular na história da cultura. Por exemplo, de um ponto de vista estritamente 
microfísico, não há diferença entre moléculas biológicas e inorgânicas, naturais ou artificiais. A 
medida que aumenta o poder de manipular objetos em escala molecular, a tendência seria ocorrer 
uma integração crescente entre componentes orgânicos, gerados biologicamente, e componentes 
eletrônicos, fabricados artificialmente. Sínteses de carbono e de silício: essa fusão se daria por 
uma real mescla de formas, pela interpenetração entre terminais nervosos orgânicos e 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
semicondutores; a perspectiva então é a de que nosso dever, nosso futuro, seja nos tornarmos 
borgues, híbridos de células e chips. Essas conexões estão ainda em estágiomuito rudimentar, 
neurônios inteiros postos em contato com condutores metálicos, mas brevemente será possível 
penetrar em um nível subneuronal, associando subestruturas dos neurônios a componentes 
eletrônicos. Nesse momento, que não está longe, veremos o nascimento de autênticos híbridos 
biotrônicos, veremos o nascimento de centauros cognitivos, e logo esses centauros seremos nós.
E a partir disso se poderia imaginar uma inteligência artificial (criada) com a 
possibilidade de ela criar suas próprias representações? Isso se justifica de alguma 
maneira?
Nossa espécie sempre foi hábil em produzir próteses de movimento, extensões das capacidades 
físicas não muito notáveis de nosso corpo que ampliaram em muito seu alcance de ação - tacapes, 
rodas, foguetes. A seguir, produzimos um extraordinário conjunto de próteses sensórias - como os 
instrumentos de medida - que estenderam nossos sentidos até a atual onipresença telemática. Mas 
ainda mais recentes - e espantosas - são as próteses de cognição, os recursos para controlar 
informação que principiamos a infundir em um sem-número de objetos. Com efeito, a capacidade 
de antecipar os desenvolvimentos futuros dos acontecimentos e de escolher diretrizes de ação 
com base nessas antecipações seria a característica principal da faculdade que denominamos 
inteligência. Durante muito tempo, pensou-se que a posse do domínio simbólico necessário para 
exercer essa faculdade era exclusiva dos seres humanos (ou, pelo menos, que neles se 
manifestava de modo qualitativamente diferente dos demais animais superiores). Hoje, 
reconhecemos que o fator essencial das operações inteligentes é a habilidade de processar 
grandes quantidades de informação, e principiamos a elaborar dispositivos que incorporam 
funções de processamento altamente sofisticadas. Estima-se que, em 25 anos, os chips de 
computadores serão milhões de vezes mais poderosos que os atuais, tornando-se comparáveis em 
eficiência a setores do córtex humano. Assim, delineia-se no horizonte próximo a produção de 
artefatos dotados de autêntica inteligência artificial, a I.A., fato que está confrontando os 
pesquisadores atuais com uma série de indagações sumamente intrigantes - acerca da natureza do 
pensamento, do grau de inteligência de outros seres vivos, e de nossas próprias capacidades 
cognitivas. A pergunta decisiva é: o que é essa matéria (esse corpo biológico, esse dispositivo 
artificial) pensante? Uma especulação servirá para dar o tom dos problemas que teremos pela 
frente: com o desenvolvimento da I. A., a robótica mudaria de enfoque, da automação para a 
autonomia. A simples automatização mecânica derivaria rumo à elaboração de sistemas 
industriais cada vez mais independentes e auto-suficientes, com capacidades abrangendo desde a 
aquisição de insumos até a distribuição dos produtos acabados. Robofábricas desse tipo poderão 
se revelar indispensáveis, por exemplo, no desbravamento de outros planetas. É difícil imaginar o 
grau de eficiência que uma tal entidade - auto-provedora, auto-reparadora e mesmo auto-
reprodutora - poderia alcançar, mas parece certo que nenhuma indústria calcada nos “velhos” 
moldes poderia competir com um sistema assim. No limite, o próprio trabalho humano se tornaria 
dispensável (ou inconveniente). Enfim, realizar-se-ia o sonho utópico da libertação do fardo do 
trabalho, mas com uma peculiaridade: a transferência da espécie portadora da força produtiva, 
dos organismos humanos para os robos-sistemas. O impacto desse asteróide econômico nos 
converteria em dinossauros mamíferos, irremediavelmente obsoletos, aguardando a extinção 
autoproduzida. Seria esse o triunfo supremo do capital?
Qual a relação entre caos, acaso e tempo no mundo contemporâneo?
Desde seu início, o século 20 testemunhou a realização de uma série de experimentos decisivos 
e teorizações audaciosas que acabaram por demonstrar a inadequação da abordagem newtoniana 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
ou clássica com respeito a fenômenos que ocorrem em escalas (de comprimentos, durações ou 
velocidades) inumanas, estranhas à nossa percepção habitual dos acontecimentos - como o 
comportamento dos componentes microscópicos da matéria (moléculas, átomos, partículas) ou a 
estrutura do universo astronômico (galáxias, grupos, aglomerados). Bilionésimos de segundo, 
quintilhões de quilômetros: o acesso a esses novos domínios de investigação terá uma implicação 
deveras notável - a natureza deixa de ser monótona. A Revolução Científica contemporânea - para 
usar a bem conhecida denominação de Thomas Kuhn - veio assim motivar toda uma nova 
compreensão acerca da realidade física básica. Como resultado, a cosmologia relativística nos 
revela um universo dinâmico, histórico e ativo; a microfísica quântica delineia uma matéria 
dessubstancializada, elusiva, eivada de indeterminação, configurando-se uma realidade “não-
objetiva”, fundamentalmente incerta, em relação à qual o observador se torna um participador; e 
ainda, o estudo dos sistemas dinâmicos, longe do equilíbrio, conduz à concepção de estados 
caóticos marcados pela imprevisibilidade, mas aptos a engendrar hierarquias sofisticadas de 
organização, bem como comportamentos ricos em potenciais de evolução. A noção quântica de 
metaestabilidade, por exemplo, permitirá conceber a proliferação de assimetrias temporais como 
propriedades coletivas de sistemas, desdobrando-se a partir de operações transdutivas, 
integrações díspares que têm por motor um acaso estruturante. Essa casualidade produtiva conduz 
a uma inteligibilidade paradoxal - todavia, apta a traduzir o engendramento de novas 
composições formais a partir de um “caosmos”, correspondente em última análise ao próprio 
reino da complexidade. Múltiplas temporal idades, Acaso inventor, caos cosmógeno: eis os 
elementos de um materialismo renovado. O mundo natural configura uma hierarquia complexa, 
uma pirâmide da complexidade (segundo a bela metáfora de Hubert Reeves): das partículas 
elementares passamos aos núcleons, aos núcleos, aos átomos, às moléculas, às substâncias, às 
estrelas, às galáxias, aos aglomerados, ao cosmos... A imagem de uma natureza inacabada: eis o 
novo âmbito no qual se poderá refletir sobre a constituição da matéria, o comportamento dos 
seres vivos, as formações psíquicas pessoais e coletivas, e a elaboração de uma ética da - ou 
melhor, para a - complexidade.
O tempo, especificamente, do ponto de vista físico, também terá seu lugar no futuro? E 
mais: o homem já tem uma grande dificuldade de se relacionar com o “tempo disponível”, o 
que poderá vir a acontecer nessa relação homem versus tempo?
O elemento da atual imagem de mundo que está sofrendo o deslocamento mais drástico, o 
abalo mais profundo, em função das inovações científicas do último século, é nada menos que a 
noção de tempo tal como cotidianamente - e, em geral, inconscientemente - a empregamos. 
Acreditamos, fundados em nosso senso comum, conhecer os atributos essenciais do tempo: fluxo 
irrefreável que transporta os seres do mundo do passado para o futuro, deslizante base única em 
que o real habita, linha infinita de instantes. Há, sem dúvida, uma imagem do tempo bem definida 
no Ocidente, vinculada à difusão de um extraordinário objeto técnico, o relógio mecânico. 
Contudo, a ciência contemporânea exibe diversas noções ou operadores denotados pelo mesmo 
termo “tempo” - indicando, paradoxalmente, uma incompletude em nossa apreensão costumeira 
desse(s) conceito(s) tão básico(s). Na verdade, para a ciência atual, essa imagem que praticamos 
com tanta sem-cerimônia, ainda que funcional, não é “objetiva” dizer, não corresponde a nenhum 
atributo fundamental da realidade natural. A célebre afirmaçãode Einstein resume a posição de 
muitos cientistas: “Para os físicos, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma 
ilusão, ainda que persistente”. Não encontramos o tempo: nós o projetamos sobre o mundo! Surge 
assim um curioso campo de problemas: como se constituiu a imagem do tempo predominante na 
atualidade? Quais outras imagens de temporalidade são concebidas e empregadas pelas ciências 
contemporâneas? Como o conhecimento sobre a natureza e, paralelamente, o estatuto do sujeito 
humano se transformam ante essas novas figuras do pensamento? Essa revolução de perspectivas 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
no âmbito de uma filosofia natural da temporalidade aponta para uma série de questões de grande 
alcance que permanecem tentadoramente em aberto.
Você escreveu e palestrou sob o enfoque “sobre o caos e novos paradigmas”, daria pra 
explicar o que é isso e dar exemplos do nosso dia-a-dia?
Um dos avanços mais significativos das matemáticas no século 20 se deu com o 
estabelecimento das chamadas Teorias do Caos: resumidamente, a realização de que diferenças 
minúsculas na configuração inicial escolhida para a evolução de um sistema dinâmico podem 
conduzir a estados finais vastamente distintos, o que implica que, a longo prazo, o 
comportamento do sistema se torna rigorosamente impredizível - ou “caótico”. Tal 
incomensurabilidade entre passado e futuro é especialmente importante no caso de sistemas 
complexos, ou seja, compostos por muitos elementos capazes de fazer muitas ligações entre si, e 
que podem exibir diversos níveis de organização, hierarquicamente estruturados - como os 
organismos vivos e os agentes econômicos. Com efeito, sistemas complexos são caracterizados 
por uma mediação - realizada pela hierarquia de modos de organização - entre o todo (o sistema) 
e a parte (os elementos); assim, ademais das ações que exercem e sofrem sobre e desde o meio 
externo, esses sistemas podem auto-afetar-se, ou seja, seu comportamento pode alterar sua 
própria estrutura e remodelar sua própria evolução. Por exemplo: se uma espécie inteligente 
adquire a capacidade de manipular as cadeias moleculares que constituem os genomas dos 
organismos, surge a possibilidade - ou tendência - de se substituir a seleção natural como o 
operador da evolução biológica das espécies; uma neofinalidade tecnicamente administrada 
almeja deslocar a casualidade darwiniana. Se, por outro lado, o conjunto das atividades 
produtivas dessa espécie alcança uma escala planetária, a economia passa a ter por horizonte a 
ecologia, a produção torna-se contexto para a própria produção; o mercado tem como limite a 
continuidade dele mesmo. Duplo dobramento, dupla indeterminação: a microinerência da técnica 
visando assegurar a realização da finalidade, a macroabrangência do capital visando assegurar a 
conversão do horizonte em ambiente. Em ambos os casos, por ambas as vias, apresentam-se as 
condições para um desenvolvimento caótico. Como reza a antiga maldição chinesa, viveremos 
tempos interessantes...
Thiago Domenici é jornalista.
LÉO ARCOVEROE
NÃO SABEMOS MAIS PARA ONDE VAMOS
O PÓS-HUMANO É APENAS UM NOME PARA NOSSA IGNORÂNCIA
Jair Ferreira dos Santos é ficcionista, poeta e ensaísta. Autor do livro Cybersenzala (contos) e 
dos ensaios Breve, o Pós-humano e O que É Pós-moderno?, ele afirma que vivemos hoje uma 
revolução artificial em que as tecnologias de informação estão redefinindo a natureza humana. 
“Acabou a revolução natural do homem. A interação maior do ser humano não é mais com a 
natureza, e sim com as máquinas inteligentes.”
Pelo fato de a estrutura de funcionamento tanto do homem quanto da máquina ser de natureza 
informacional, comenta o ficcionista, a tendência é que os órgãos humanos sejam substituídos 
progressivamente por órgãos artificiais. Estaremos na era das chamadas “próteses 
informacionais”, uma conseqüência do processo que identificamos atualmente como interação 
homem-máquina, que fará emergir o cybernefic organism (cy-borg), símbolo do pós-humano.
Embora cite teóricos que acenam positivamente para essa hipótese, ele é mais cauteloso. Diz 
não acreditar em um fenômeno de tal ordem, não obstante, reafirma que o processo de 
redefinição pelo qual passamos incluirá sobretudo a adoção de uma nova forma de linguagem: a 
Portal do Criador
http://www.portaldocriador.com.br/
interação a partir de códigos.
Qual é a sua concepção acerca do pós-humano? Será nosso futuro pós-biológico?
Como o nome sugere, é algo depois do humano. Encerrou-se o período do homem e há a 
necessidade de redefini-lo, sob vários aspectos, sua natureza, seus objetivos, seus valores. De 
acordo com vários teóricos, a revolução natural do homem acabou. O que vivemos agora é a 
revolução artificial do homem, que deriva do impacto das tecnologias de informação sobre a 
natureza humana. Se observarmos, qualquer criança de 5 anos entende isso hoje, a interação 
maior do homem não é com a natureza ou o social, mas com as máquinas inteligentes, dotadas de 
princípios como a racionalidade. Essa interação homem-máquina tornou-se possível porque tanto 
o homem quanto a máquina têm um denominador comum que é a informação. A concepção geral 
do que seja homem é de que ele é um animal informacional. É essa identificação que escalou a 
interação do homem com as máquinas e, em função disso, conseguimos identificar três blocos 
científicos que estão se entrecruzando no homem, que são a hipercomputação, a biotecnologia e a 
neurociência. Em todos eles, o seu objeto é informacional. A concepção que a biotecnologia, por 
exemplo, tem do funcionamento dos organismos vivos é baseada em mensagens. Essas máquinas 
estão, de certa maneira, parecidas com o homem por isso. Os homens estão sendo afetados na sua 
natureza, notadamente nos seus reflexos e no seu sistema neuronal, por essas máquinas. O nosso 
tempo hoje é um tempo publicitário. Não agüentamos um tempo de concentração maior do que 
um comercial de televisão. Em função de a estrutura de funcionamento de ambos ser 
informacional, o homem está adotando uma porção de próteses também de natureza 
informacional.
O que seriam essas próteses informacionais?
O próprio corpo humano está sendo afetado por essa interação homem-máquina, e a tendência 
é que possamos substituir órgãos humanos por órgãos artificiais. Hoje temos notícias de que uma 
máquina pode ler pensamento. Há pesquisas, por exemplo, que mostram um sujeito que ficou 
paraplégico, só movimenta os olhos, mas, com a implantação de eletrodos na área da fala e da 
audição dele, os pesquisadores conseguiam ver o som e a palavra correspondente ao seu 
pensamento. Em função do mapeamento cerebral pode-se definir determinados padrões que 
correspondem a palavras que vão permitir a esse cara, no futuro - já se conseguiu identificar 
alguns monossílabos -, falar com uma voz sintética. Estamos num mundo de próteses 
informacionais que, progressivamente, vão se misturar com os órgãos humanos. O exemplo que 
coloquei no livro Breve, o Pós-Humano foi que um americano estava fazendo uma cirurgia em 
uma mulher, tocou numa determinada região, houve uma descarga elétrica, e a mulher teve um 
orgasmo. Então, desenvolveram um chip que excita a mulher através da vontade dela. Como 
classificamos essa mulher? Ela está além da humanidade. Uma coisa tão subjetiva e pessoal como 
o orgasmo pode ser provocada por uma micromáquina. Nos Estados Unidos, o percentual de 
pessoas com próteses de qualquer ordem é muito grande. Óculos, pernas e braços mecânicos e 
marca-passo são alguns exemplos. Se procurarmos no passado um outro inteligente, como os 
titãs, os deuses, veremos que o homem sempre foi um pouco assaltado por esse outro inteligente 
que poderia dominá-lo. Com isso, fazemos emergir aquilo que se

Continue navegando

Outros materiais