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JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 1 Aula 1: Justiça Penal e Teorias da Sanção Penal............................................................. 6 Introdução ............................................................................................................................. 6 Conteúdo ................................................................................................................................ 7 Contextualizando ............................................................................................................... 7 As possíveis intervenções sobre os conflitos ............................................................... 7 Intervenção sobre um conflito ....................................................................................... 9 Nascimento do Estado e do Direito ............................................................................. 10 Teorias justificacionistas da pena ................................................................................. 11 Crítica à teoria justificacionista da pena ..................................................................... 12 Teoria da Prevenção ....................................................................................................... 14 Teoria Unitária ou Mista ................................................................................................. 15 Garantismo Penal ............................................................................................................ 15 Criminalização primária e secundária ......................................................................... 17 Críticas sobre criminalização primária ........................................................................ 18 Aprenda Mais ....................................................................................................................... 20 Referências........................................................................................................................... 20 Exercícios de fixação ......................................................................................................... 21 Chaves de resposta ................................................................................................................ 23 Aula 2: As transformações Históricas no Brasil ............................................................. 25 Introdução ........................................................................................................................... 25 Conteúdo .............................................................................................................................. 26 A população carcerária: contextualização.................................................................. 26 A primeira manifestação de um sistema penitenciário ........................................... 28 Movimento de expropriação do conflito interindividual ......................................... 29 Pensamento jurídico canônico no sistema punitivo medieval .............................. 30 Regime penitenciário canônico .................................................................................... 31 Organização religiosa ..................................................................................................... 31 A crise do século XIV ....................................................................................................... 32 Legislação contra os fenômenos da vagabundagem e da mendicância ............. 33 Ocupação útil às multidões de desocupados ............................................................ 33 O castelo de Bridewell .................................................................................................... 34 “Impotent poor” ............................................................................................................... 35 A recusa ao trabalho ....................................................................................................... 36 JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 2 O novo estabelecimento ................................................................................................ 37 Os modelos de sistemas penitenciários do século XIX ............................................ 38 Modelos penitenciários norte-americanos: o modelo Filadélfia ............................ 39 Modelos penitenciários norte-americanos: o modelo Auburn .............................. 40 Os modelos penitenciários europeus: o modelo irlandês ....................................... 40 O contexto latino-americano da formação dos Estados Nacionais ...................... 41 Elites políticas e sociais latino-americanas ................................................................. 45 Funcionamento das penitenciárias .............................................................................. 47 Modernidade de punição ............................................................................................... 48 O papel das prisões ......................................................................................................... 49 Atividade proposta ........................................................................................................ 49 Aprenda Mais ....................................................................................................................... 50 Referências........................................................................................................................... 51 Exercícios de fixação ......................................................................................................... 51 Chaves de resposta ................................................................................................................ 55 Aula 3: Controle da Política Criminal ............................................................................... 57 Introdução ........................................................................................................................... 57 Conteúdo .............................................................................................................................. 58 Criminalidade X impunidade ......................................................................................... 58 Controle social ................................................................................................................. 58 Controle formal e informal ............................................................................................ 59 Capacidade intimidativa e preventiva ......................................................................... 61 Escola Sociológica de Chicago ..................................................................................... 61 A mobilidade social ......................................................................................................... 62 O controle formal ............................................................................................................ 63 Medidas de Política Criminal de Prevenção Penal .................................................... 64 Distinção entre prevenção primária, secundária e terciária .................................... 64 Abolicionismo e garantismo penal .............................................................................. 66 Objetivo do Direito Penal ............................................................................................... 66 Políticas criminais ............................................................................................................ 67 Bens jurídicos ...................................................................................................................68 Garantismo penal de Ferrajoli ....................................................................................... 69 Garantismo penal de Ferrajoli ....................................................................................... 69 Atividade proposta ........................................................................................................ 73 Aprenda Mais ....................................................................................................................... 74 Referências........................................................................................................................... 74 JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 3 Exercícios de fixação ......................................................................................................... 75 Notas .......................................................................................................................................... 79 Chaves de resposta ................................................................................................................ 82 Aula 4: A Pena Criminal ........................................................................................................ 84 Introdução ........................................................................................................................... 84 Conteúdo .............................................................................................................................. 85 Os princípios reguladores e limitadores da aplicação das penas........................... 85 A meta formal e informal da pena privativa de liberdade ....................................... 87 Avaliação do sucesso ou do fracasso da pena .......................................................... 88 Sistema carcerário: a falência da pena de prisão ...................................................... 89 Ressocialização por meio da pena privativa de liberdade ....................................... 89 O porquê da não ressocialização por meio da pena privativa de liberdade ........ 89 Medida de segurança ...................................................................................................... 91 O problema da reincidência .......................................................................................... 92 Principal consequência da reincidência...................................................................... 92 Responsabilidade da falha da reincidência ................................................................. 93 Atividade proposta ........................................................................................................ 93 Aprenda Mais ....................................................................................................................... 94 Referências........................................................................................................................... 94 Exercícios de fixação ......................................................................................................... 95 Notas ........................................................................................................................................ 100 Chaves de resposta .............................................................................................................. 102 Aula 5: Teorias da Ação Penal .......................................................................................... 104 Introdução ......................................................................................................................... 104 Conteúdo ............................................................................................................................ 104 Pretensão acusatória e justa causa penal constitucional e as principais teorias sobre a natureza jurídica da ação processual penal ............................................... 104 Titularidade para propositura da ação penal e condições para a procedibilidade da ação penal ................................................................................................................. 106 Case: roubo da bicicleta ............................................................................................... 107 Comentários do case: roubo da bicicleta ................................................................. 107 Ação processual penal nos crimes contra a dignidade sexual ............................. 108 Ação processual penal nos crimes contra a honra ................................................. 108 Ação processual penal nos crimes de violência doméstica contra a mulher ... 109 Causas de extinção da punibilidade na ação processual penal ........................... 110 Case: agressão verbal .................................................................................................... 111 JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 4 Comentários do case: agressão verbal ...................................................................... 111 Atividade proposta ...................................................................................................... 112 Referências......................................................................................................................... 113 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 113 Notas ........................................................................................................................................ 118 Chaves de resposta .............................................................................................................. 120 Aula 6: Justiça Penal x Justiça Penal Tradicional ....................................................... 123 Introdução ......................................................................................................................... 123 Conteúdo ............................................................................................................................ 124 Contextualizando ........................................................................................................... 124 Acesso à justiça .............................................................................................................. 124 As três ondas de acesso à justiça ............................................................................... 125 Conciliação, mediação e arbitragem ......................................................................... 126 Um pouco mais sobre o tema: acesso à justiça ...................................................... 127 A terceira onda de acesso à justiça ............................................................................ 128 Justiça para pequenas causas ..................................................................................... 128 Ope legis .......................................................................................................................... 129 Incentivo aos meios alternativos de solução de conflitos ..................................... 130 Conflitos puros ............................................................................................................... 130 Conflitos híbridos ........................................................................................................... 131 Nova postura do Estado-Juiz ...................................................................................... 132 Atividade proposta ...................................................................................................... 133 Aprenda Mais .....................................................................................................................134 Referências......................................................................................................................... 135 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 135 Chaves de resposta .............................................................................................................. 141 Aula 7: Justiça Restaurativa e Mediação Penal ............................................................ 144 Introdução ......................................................................................................................... 144 Conteúdo ............................................................................................................................ 145 Conceito de Justiça Penal Restaurativa .................................................................... 145 Incidência da Justiça Restaurativa ............................................................................. 146 Adoção da Justiça Restaurativa .................................................................................. 147 Aspectos dogmáticos e criminológicos da Justiça Penal Restaurativa .............. 148 A mediação penal .......................................................................................................... 151 Justiça Restaurativa X Juizado Especial Criminal .................................................... 153 Conceito de infração penal ......................................................................................... 153 JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 5 Medidas despenalizadoras ........................................................................................... 154 Composição civil dos danos (Artigo 74): .................................................................. 155 Transação penal (Artigo 76) ......................................................................................... 156 Suspensão condicional do processo (Artigo 89) ..................................................... 157 Princípios norteadores .................................................................................................. 158 Atividade proposta ...................................................................................................... 159 Referências......................................................................................................................... 161 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 161 Notas ........................................................................................................................................ 167 Chaves de resposta .............................................................................................................. 167 Aula 8: Causas Extintivas de Punibilidade .................................................................... 168 Introdução ......................................................................................................................... 168 Conteúdo ............................................................................................................................ 169 Conceito analítico de crime ........................................................................................ 169 Condição objetiva de punibilidade ............................................................................ 170 Direito do Estado ........................................................................................................... 171 Causas extintivas de punibilidade............................................................................... 172 Atividade proposta ...................................................................................................... 177 Aprenda Mais ..................................................................................................................... 177 Referências......................................................................................................................... 177 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 178 Chaves de resposta .............................................................................................................. 184 Conteudista ........................................................................................................................... 186 JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 6 Introdução Nesta aula serão analisadas as teorias da sanção penal consoante sua missão garantista através dos institutos da criminalização primária e secundária. Será objeto de estudo a finalidade, fundamento e limites das sanções penais para fins de legitimação do controle social no Estado Democrático de Direito. Objetivo: 1. Apontar as várias teorias que tentam justificar a pena; 2. Discutir o conceito e a função da pena privativa de liberdade. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 7 Conteúdo Contextualizando Enforcamentos, açoites, câmaras de gás, marcas, estigmas, grilhões, grades, encarceramento, multas, confisco. Durante séculos o Estado vem buscando meios para castigar, punir, recuperar aqueles que infringem suas leis, afrontam o monarca e agridem o próximo. Uma vez praticado o crime, ou melhor, aquilo que é considerado crime, nasce a necessidade de uma resposta na forma da chamada pena. Porém, depois de todas as experiências vividas resta a dúvida: Ela é a solução? A que, na verdade, ela se destina? Existem outros meios mais eficazes? É isso que tentaremos desenvolver ao longo da aula e desta disciplina. As possíveis intervenções sobre os conflitos Desde o início da vida humana em grupos, através da formação de família e comunidade, sabe-se que invariavelmente, em determinados momentos, iriam se iniciar conflitos de interesses entre os membros deste coletivo. Isso é interessante, pois a criação dos grupos (e o primeiro foi a família) se deu exatamente para trazer conforto e, principalmente, segurança para o homem. Porém, ao não estar mais sozinho, o sujeito deve conviver com hábitos, desejos e perspectivas de outras pessoas, gerando um incessante mal-estar em razão de sua natureza que clama pela perigosa liberdade. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 8 Esse conflito, segundo Freud, seria o responsável por tornar a felicidade algo quase que inalcançável para o homem, o qual deve se submeter às regras, limites e os espaços preenchidos pelo outro se quiser continuar usufruindo dos regalos da vida em sociedade (FREUD, 2011). Mas, o problema surge quando este conflito interno se intensifica e, não abrindo mão da vida em comunidade, prefere colocar seus interesses acima dos demais, gerando, assim a necessidade da criação de mecanismos de controle, a fim de se manter a ordem nesta coletividade. Ocorre, que diversamente dos demais fatos históricos, os mecanismos de respostas utilizados pelas várias sociedades que surgiram e desapareceram ao longo dos anos não se deu de forma evolutiva, mas na verdade, de forma cambiável. Existem duas formas de se intervir sobre um conflito: de forma horizontal, entre as partes, ou verticalizada. Existe ainda outra forma que possui alguma dose de poder que irá decidir e aplicar a medida, como um conselho tribal ou o próprio Estado. Podemos visualizar isso analisando os casos de vingança pública e privada nas sociedadesprimitivas. Alguns autores mais simplistas defendem que primeiro surgiu a vingança privada, pelas partes, para depois surgir a pública, pela tribo. Sem dúvida, como podemos ver, estas posições são constantemente cambiáveis, mas no momento que é formada a tribo, definindo-se, com isto, uma identidade coletiva, todas as ações visam a preservação do grupo sendo, assim, inversa a ordem de surgimento destas modalidades, conforme defende Von Liszt (LISZT, 2003). JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 9 Intervenção sobre um conflito Quando um membro da tribo agredia ou lesionava algum bem, na verdade, estava atingindo um bem da tribo, nascendo um interesse coletivo de resposta, podendo gerar, inclusive, a expulsão desse membro, o que era equiparado a uma pena de morte, simbólica, uma vez que não possui identidade fora do grupo e fática mesmo, por ficar vulnerável às intempéries, à vida selvagem e às tribos inimigas, sendo assim a “vingança” a retribuição pública. A ideia de privado não existia, o que surgiria muito tempo depois. Digamos que num determinado momento os alimentos começam a ficar escassos nas regiões próximas à tribo, fazendo com que um grupo de caçadores fosse escolhido para buscar alimentos em outros lugares, ou mesmo desbravando novas regiões, encontrar um novo local para que a tribo se estabelecesse. Durante a viagem esse grupo começa a desenvolver hábitos e a viver experiências únicas que vão tornando-os diferentes daqueles que ficaram na tribo. Conhecem frutas novas, domesticam animais e encontram flores jamais vistas, fazendo adornos para si. Quando voltam, já não são mais os mesmos, pois desenvolveram uma certa autonomia, uma nova consciência de si. O colar feito na viagem não é da tribo, mas sim de quem o fez e “ai de quem botar a mão”. Nasce a ideia de propriedade e de indivíduo. Com isso, se esse sujeito decide pescar sozinho numa parte do rio pouco explorada e pega um peixe para dar a sua amada e outro membro da tribo invejoso decide subtrair o peixe, haverá interesse da tribo de fazer algo para resolver esse problema? JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 10 Não, pois o peixe não é da tribo e aí é que haverá a intervenção horizontal sobre o conflito, pois o “dono” do peixe é que deverá buscar meios para proteger seu peixe sozinho, com uma pedrada, por exemplo. Novamente não há interesse por parte da tribo e só restará ao seu antigo dono dois caminhos: a resignação ou a vingança privada. Todavia, a opção pela vingança privada, embora, inicialmente, satisfaça o interessado e à tribo, pois não se exigirá esforços e nem recursos para o problema, com o tempo surge outro conflito ainda maior. Considerando que essa retribuição advinda da vingança privada decorre de paixões humanas, ela sempre tenderá a ser desproporcional. Nascimento do Estado e do Direito Quando o sujeito sofre uma lesão, geralmente decidido a retribuir essa lesão a fará numa intensidade superior àquela recebida. Se o sujeito sofreu um soco, dará dois; uma facada, ele puxará uma arma de fogo; se sofreu um tiro ele arrumará uma arma maior e assim por diante, tal como em um desenho animado. Tal situação, com o tempo, vai se tornando um caos, surgindo, então, a necessidade de se regulamentar as condutas e definir as possíveis sanções, as quais devem ser de responsabilidade de uma ou mais pessoas previamente escolhidas. Em meio a esses acontecimentos é que nasce o Estado e, com ele, o Direito. Tanto é que uma das primeiras legislações foi o Código de Hamurabi, conhecido pelo brocardo “olho por olho, dente por dente”, o qual tinha JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 11 como fim exatamente estabelecer uma razoabilidade, uma certa proporcionalidade entre a lesão sofrida e a resposta a ser dada. Só muito tempo depois, com o crescimento do Império Romano e o desenvolvimento de seu corpo normativo, criou-se o instituto da poena, que significa composição, fazendo com que não mais se retribuísse simplesmente o mal causado (ainda que na mesma intensidade), mas aproveitasse a oportunidade para ressarcir esse mal pelo seu agente, levando-o a reparação do dano gerado. Com a queda do Império Romano e toda sua cultura “civilizatória” e jurídica pelos povos “bárbaros” retorna-se ao estado das sociedades primitivas que, na maioria dos casos, deixa para as partes solucionar seus conflitos de forma horizontal. Sendo essa disciplina uma forma de vislumbrarmos novas tendências conciliatórias no Direito Penal, divergindo, assim, de sua natureza punitiva, já podemos perceber que em sua origem a própria pena tinha esse conteúdo reparador, o que ficou perdido por muitos séculos, servindo como pista da possibilidade dialogal entre ambos os institutos. O Código de Hamurabi foi criado por Hamurabi, rei do Primeiro Império Babilônico. Teorias justificacionistas da pena Em qualquer caso, uma vez edificado e fortalecido o Estado e o Direito e, com isso, a intervenção vertical sobre o conflito através de uma pena, nasce a necessidade, assim como para qualquer ato do Estado, de conferir-lhe um fim, para que lhe possa orientar a aplicação, inclusive por sempre vir acompanhada de uma fator aflitivo que lesiona algum direito do apenado. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 12 No Estado Absolutista a pena era um castigo pelo qual o delinquente sofria o mal (pecado) praticado buscando a redenção de sua alma. Com o nascimento do Estado Burguês a pena passa a ser concebida como um modelo indenizatório face o inadimplemento do contrato, sendo expropriados os únicos objetos de valor e idôneos capazes de serem quantificáveis, a capacidade de trabalho e a liberdade, fazendo da privação da liberdade, que sempre fora medida de custódia, a principal sanção penal na modernidade. Segundo a Teoria Retributivista ou Absoluta a pena visa, tão somente, fazer “justiça”, retribuindo a perturbação da ordem pública, devendo sofrer um mal aquele que um mal tiver praticado. Essas teorias tiveram como principais colaboradores Hegel e Kant, sendo que este último defendia uma retribuição moral, rememorando o princípio taliônico, onde a pena, segundo ele “deve sempre ser contra o culpado pela simples razão de ter delinquido...”, não admitindo qualquer fim utilitário. Essas teorias tiveram como principais colaboradores Hegel e Kant, sendo que este último defendia uma retribuição moral, rememorando o princípio taliônico, onde a pena, segundo ele “deve sempre ser contra o culpado pela simples razão de ter delinquido...”, não admitindo qualquer fim utilitário. Crítica à teoria justificacionista da pena A crítica feita à teoria justificacionista da pena é no sentido de que a mesma trata a pena como um ato de fé, uma vez que não é compreensível se apagar um mal cometido com a aplicação de um segundo mal, o sofrimento da pena, além de violar a própria ideia de dignidade da pessoa humana, exige que o Estado intervenha sobre o homem sempre para satisfazer alguma necessidade sua. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 13 Com o Iluminismo surge na Europa um pensamento humanista justificando a pena como uma forma preventiva de um fato delituoso, são as Teorias Relativas. A Teoria da Prevenção Geral, através de um modelo intimidatório, visa, por intermédio da ameaça da pena e sua efetiva aplicação, inibir uma possível conduta delituosa. Seu principal expositor foi o Marquêsde Beccaria que, criando suas teses sustentadas pelo contratualismo, justificou o jus puniendi como a reunião de todas as parcelas de liberdade cedidas na feitura do pacto social, deslegitimando qualquer intervenção estatal que contrarie o pactuado, desrespeitando suas cláusulas em prejuízo do cidadão. Beccaria ataca o retributivismo, como se observa em uma de suas passagens: “Poderão os gritos de um desgraçado nas torturas tirar do seio do passado, que não volta mais, uma ação já praticada? Não. “Os castigos têm por finalidade única obstar o culpado de tornar-se futuramente prejudicial à sociedade e afastar os seus concidadãos do caminho do crime” (BECARIA, 2000, p. 29). Feuerbach, com sua teoria da coação psicológica, também concebeu a pena como uma ameaça da lei aos cidadãos para que se abstenham de cometer delitos. Com isso, existe uma teoria da prevenção geral negativa que visa dissuadir a prática de futuros delitos intimidando os membros da sociedade através da pena aplicada ao culpado e a prevenção geral positiva visa reforçar simbolicamente os valores presentes na norma, confirmando sua vigência, se aproximando dos paradigmas adotados pelo funcionalismo sistêmico na Alemanha. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 14 Essa teoria, contudo, torna-se frágil quando deparada com certos tipos de infrações que ocorrem independentes da coação da norma, principalmente quando não ocorre qualquer intenção de provocá-lo por parte do agente, como nos crimes culposos. Em seara psicanalítica também é possível concluir que dificilmente o sujeito motivado a praticar um injusto penal não tome todas as precauções necessárias para evitar qualquer infortúnio, ainda que ilusórias, o levando a falsa compreensão de que jamais será detido, pouco lhe importando qualquer pena cominada abstratamente à sua conduta. Com o desenvolvimento das ciências naturais, inevitáveis influências da medicina e da psiquiatria, tais como as obras de Lombroso e Ferri, incidiram no direito penal, que passa a ter como principal objeto de estudo o delinquente. Teoria da Prevenção Surge então a Teoria da Prevenção que trabalha a pena como fórmula de tratamento do delinquente, objetivando que este não volte a delinquir. Como expõe Foucault (2000), “a duração da pena só tem sentido em relação a uma possível correção e a uma utilização econômica dos criminosos corrigidos”, tendo por fim a transformação da alma e do comportamento do condenado. Para a prevenção especial negativa a pena visa intimidar o condenado para que este não volte a delinquir ou, simplesmente, conter o incorrigível, enquanto que a prevenção especial positiva busca ressocializar o criminoso, entender as causas que o levaram a delinquir e tratá-lo, buscando, através de métodos educacionais e laborativos, torná-lo mais condizente com as normas de convivência em sociedade. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 15 No entanto, tal teoria peca pelo fato de que nem todos os delinquentes precisam ser ressocializados, notadamente quando tratar-se de condutas isoladas, decorrentes de momentos esporádicos, imprevisíveis e que, provavelmente, não tornarão a ocorrer, tais como o aborto, uma lesão corporal movida pelas circunstâncias e outras mais. Questiona-se também a viabilidade de “tratamento” do condenado em um ambiente carcerário, onde as regras hierarquizadas impõe um comportamento autômato e mecanizado distinto do exigido na sociedade extramuros, como alguém que se prepara para uma maratona ficando deitado em uma cama por semanas. Teoria Unitária ou Mista Então surge a Teoria Unitária ou Mista, representada por Merkel, procurando combinar as teorias absolutas e relativas, entendendo a pena como retribuição, mas devendo também perseguir a intimidação dos demais membros da sociedade enquanto ressocializar o apenado, a qual é adotada pelo nosso Direito Penal, pois, enquanto o Artigo 1º da Lei de Execução Penal (LEP) afirma que a pena deve buscar a ressocialização, o Artigo 59 do Código Penal ainda afirma que a pena deve ser “suficiente para a reprovação e prevenção do crime”. Porém, verifica-se a incoerência dessa teoria ao perceber que tais finalidades são incompatíveis entre si! Como ressocializar um indivíduo que nem sequer foi socializado, e através de castigos que visam ao seu sofrimento e seu uso como “bode expiatório” de crimes futuros? Garantismo Penal Não há como tornar uma pessoa melhor através de mecanismos que visam exatamente injuriá-lo, afligi-lo. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 16 Muitos comparam com o castigo dado pelos pais, mas esquecem que nesse caso existe relação direta com sustento, amparo, carinho, o que inexiste na relação entre o indivíduo e o Estado. Atualmente, a teoria que mais se coaduna com os fins de um Estado Democrático de Direito é o Garantismo Penal, cujo principal articulador, Luigi Ferrajoli, defende a necessidade da pena como esta sendo uma alternativa à vingança privada, ou seja, uma reação do Estado para se inibir a reação desproporcionada da vítima lesada pela prática do delito, enquanto limita o poder punitivo do Estado. Apesar de esta teoria ser a que melhor delimita o campo de intervenção penal do Estado, merece crítica a missão que incumbe à pena, uma vez que se verificaria infundada a sua aplicação nas hipóteses em que a prática do delito não ensejaria qualquer reação por parte de particulares, uma vez que, como é cediço, nem todos os delitos produzem uma lesão ao bem jurídico de pessoa determinada, como os crimes formais, de mera conduta, ou os que atingem bens espiritualizados, como o meio ambiente. Assim, o crime de porte ilegal de armas, por exemplo, não enseja o desejo de quem quer que seja de retribuir o “mal” praticado, o que tornaria absolutamente desnecessária a aplicação de qualquer pena. Face todo o exposto, é fácil observar a crise que as atuais teorias justificacionistas se encontram por não conseguirem definir, com precisão, uma finalidade legítima para a aplicação de uma pena aquele que, por ventura, venha a praticar um injusto penal, pois, o que se verifica é uma utilização cruel e ilegítima da pena com uma função de controle e exclusão social, estigmatizando classes e condutas tidas como indesejadas por aqueles que possuem poder de definição. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 17 Por tanto, Zaffaroni, resgatando Tobias Barreto, conclui que, de fato, não há qualquer teoria capaz de justificar a pena, por tratar-se esta de mero fato político e, por isto, injustificável, o que ele chama de teoria agnóstica da pena. Para os autores, “justificar a pena é como tentar justificar a guerra”, ela simplesmente existe originada de decisões políticas orientadas para a satisfação de determinados interesses, os quais não se justificam tendo em vista os meios utilizados. Todavia, sem dúvida, é um mal necessário, pois sua supressão nos levaria novamente à vingança privada, e, com isso, à necessidade de se buscar meios menos repressivos, menos lesivos para responder aos conflitos. Criminalização primária e secundária Diante de tudo isso e já sabendo então que o Estado e o Direito, formas verticalizadas de solução de conflitos, foram criados segundo uma visão iluminista e garantista, para substituir a vingança privada, ou melhor, os excessos advindos das tentativas de as partes buscarem sozinhas a solução dos conflitos entre si, surge a necessidade de um regramento pelo Estadoda utilização dessa força, a qual deverá ser aplicada de forma mais limitada e menos intensa do que a que poderia ser utilizada pelas partes, gerando, com isso, menos danos. Criminalização Primária A primeira consiste em atos do legislativo, que através de um conjunto de decisões políticas cria uma lei federal que passa a definir uma determinada conduta como proibida, sancionando-a com uma pena, caso venha a ser praticada. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 18 Criminalização Secundária É realizada pelas agências responsáveis pela apuração, administração e execução dessas normas sobre determinado caso concreto, ou seja, enquanto que a criminalização primária decide o que deve ser crime, a secundária, formada por policiais, promotores, juízes e o sistema penitenciário, incide sobre pessoas determinadas para aplicar o que está previsto na norma. Críticas sobre criminalização primária Na Criminalização Primária, uma das primeiras críticas sobre os critérios utilizados foi de uma teoria criminológica chamada teoria do conflito, segundo a qual o crime é um fato político, uma vez que a maioria do parlamento, dos legisladores que se encontram no Congresso, é oriunda da classe dominante e, por isso, no momento de criminalizar uma conduta irá valorá-la segundo seus valores, seus interesses. O crime não é um fato natural, mas sim decorre de um processo de definição por aqueles que têm o poder. Assim, a lei penal seria só mais um instrumento de controle e submissão utilizado pela classe dominante contra os já marginalizados. Por que a Lei nº 11.343/2006 definiu uma pena restritiva de direitos para o usuário e uma pena mínima de reclusão para o traficante? Segundo a teoria do conflito, fica claro que o usuário, quando membro da classe dominante, a qual pertence o legislador, jamais será submetido à prisão e será tratado como doente, enquanto que o traficante, geralmente definido como pobre e favelado, será tratado como criminoso e sofrerá a exclusão gerada pelo sistema penal. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 19 Na Criminalização Secundária a seletividade é ainda maior. Sabendo ser inviável a plena satisfação do “dever ser” imposto pela norma e que seria impossível julgar e sancionar todos os crimes realizados, o sistema penal deve funcionar de forma seletiva, ou seja, nem todos os crimes passarão pelas estatísticas penais, gerando a denominada cifra negra da criminalidade, a qual se refere o total da imensa maioria de crimes que são praticados diariamente e o agente não será preso, investigado, processado, julgado e, muito menos, sancionado. Isto é normal em qualquer lugar do mundo. Nenhuma agência é ingênua o bastante para afirmar que seria possível acabar com o crime, uma vez que este é um fenômeno normal na sociedade, além de ser impossível para os agentes do Estado tomar conhecimento e se apropriar das verdades relacionadas a todas as condutas humanas praticadas em uma sociedade. Em razão disso o sistema penal deve selecionar quais dessas condutas delitivas devem aparecer nas estatísticas criminais e, infelizmente, como já seria de se esperar, o critério não é pautado pela gravidade do crime, mas sim pela posição do indivíduo na pirâmide social. Quanto mais pobre, mais fácil ser selecionado e rotulado pelo sistema, demonstrando que o mesmo não é imparcial, pelo contrário, temos uma máquina que funciona apenas para alguns desafortunados, encobrindo crimes graves, mas exercendo um controle geralmente eficaz sobre as camadas mais pobres e, por isso, perigosas, tal como uma rede de pescas às avessas que segura os peixes pequenos, mas permite que os grandes fujam. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 20 Aprenda Mais Material complementar Para saber mais sobre apena criminal – fundamentos e validade no Estado Democrático de Direito, acesse o vídeo e leia o artigo, disponíveis em nossa biblioteca virtual. Referências AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Sociologia e justiça penal. Teoria e prática da pesquisa sociocriminológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. BITENCOURT, Cézar Roberto (Org.). Direito penal no terceiro milênio. Estudos em homenagem ao Prof. Francisco Muñoz Conde. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio Garcia-Pablos. Criminologia. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 21 Exercícios de fixação Questão 1 Pode-se dizer que a finalidade do Código de Hamurabi foi estabelecer uma proporcionalidade entre a lesão sofrida e a resposta a ser dada. a) Verdadeiro b) Falso Questão 2 FCC – AL – Procurador – 2013 - A Lei nº 7.210/84 dispõe que a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da condenação criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado (Artigo 1º ). Como nítido no item 13 da respectiva Exposição de Motivos, tem-se aí, por inteiro, tributo à teoria da pena denominada: a) Retribuição moderna b) Retribuição taliônica c) Prevenção geral d) Prevenção especial e) Mista ou eclética Questão 3 Existem duas formas de se intervir sobre um conflito: de forma horizontal, entre as partes, ou verticalizada, hipótese em que existirá uma terceira pessoa, dotada de poder e que decidirá e aplicará a medida. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 22 a) Verdadeiro b) Falso Questão 4 Segundo o vídeo com a entrevista com o prof. Zaffaroni e o conteúdo das aulas, podemos afirmar que a teoria agnóstica da pena defende que a sanção penal: a) Deve apenas retribuir o mal causado. b) Não possui qualquer fundamento legítimo, por ser um mero ato político. c) Visa sempre ressocializar o condenado. d) Tem como fim intimidar a sociedade. e) Tem como fim intimidar o condenado para que este não volte a delinquir. Questão 5 José, ex-empregado do Sr. Lisboa, encontra-se preso, acusado de ter subtraído um relógio de seu patrão, o que foi encontrado junto a seus pertences. Entretanto, Sr. Lisboa encontra-se viajando pela Europa, usufruindo dos ganhos de várias falcatruas, como fraudes no INSS, corrupção ativa etc. Comparando essas duas realidades, marque a opção que melhor explica tal situação, segundo nossa aula sobre criminalização secundária. a) Isso ocorreu porque o crime praticado por José é mais grave. b) Isto se deu face ao princípio do in dubio pro reo, uma vez que não há provas contra o Sr. Lisboa. c) A seletividade do sistema faz com que incida sobre aqueles que atendam ao estereótipo de criminoso e que estejam mais vulneráveis, pela sua situação na pirâmide social. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 23 d) Ocorre que José demonstra uma maior periculosidade. e) Certamente haverá um pedido de extradição para o Sr. Lisboa, uma vez que todos os crimes são apurados no Brasil. Questão 6 Segundo os estudos da presente aula sobre as possibilidades de solução de conflitos, marque a opção correta: a) Sempre foram adotadas intervenções horizontais. b) Sempre foram adotadas intervenções verticais. c) Tendo em vista a cifra negra é possível afirmar que ainda hoje vários conflitos tiveram que ser resolvidos pelas partes. d) A criminalização primária atende a um critério de delito natural,pois só criminaliza condutas já definidas como crime em todos os países. e) A pena é a única possibilidade de solução de conflito. Aula 1 Exercícios de fixação Questão 1 - A Justificativa: Surgiu a necessidade de se regulamentar as condutas e definir as possíveis sanções, as quais devem ser de responsabilidade de uma ou mais pessoas previamente escolhidas, sendo o Código de Hamurabi uma das primeiras legislações que estabeleceu certa razoabilidade. Questão 2 - E JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 24 Justificativa: Trata-se da teoria adotada no Brasil, prevista expressamente no Artigo 59 do CP, que traz como finalidade da pena a retribuição, a prevenção e a ressocialização. Questão 3 - A Justificativa: No processo penal brasileiro adota-se a forma verticalizada, haja vista que a autotutela, salvo raríssimas situações, é vedada no ordenamento jurídico brasileiro. Questão 4 - B Justificativa: Segundo essa teoria, que possui fundamento nos modelos ideais de estado de polícia e de estado de direito, a pena estaria cumprindo apenas o papel degenerador da neutralização, já que comprovada de forma empírica a impossibilidade de ressocialização do apenado, ou seja, a finalidade de reintegração do condenado ao convívio social deve ser revista e estruturada de uma maneira diferente. Questão 5 - C Justificativa: Sabe-se que é inviável a plena satisfação do “dever ser” imposto pela norma, sendo impossível julgar e sancionar todos os crimes realizados. Para tanto, o sistema penal deve funcionar de forma seletiva, ou seja, nem todos os crimes passarão pelas estatísticas penais, gerando a denominada cifra negra da criminalidade. Questão 6 - C Justificativa: A cifra negra da criminalidade se refere ao total da maioria de crimes que são praticados diariamente e o agente não será preso, investigado, processado, julgado e, muito menos, sancionado. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 25 Introdução Nesta aula, serão analisadas as transformações históricas na justiça criminal brasileira. Para tanto, seu estudo perpassará pelos seguintes temas: • Os primeiros tempos da moderna instituição carcerária na Europa; • O surgimento da instituição carcerária na Europa Continental e na Inglaterra entre a segunda metade do século XVI e as primeiras décadas do século XIX; • As primeiras experiências na Inglaterra (bridewells e workhouses) e na Holanda (rasp-ruis); • Os primórdios e o desenvolvimento da instituição carcerária em outras regiões da Europa; • Os desdobramentos da experiência inglesa; • A configuração da prática carcerária moderna no período compreendido entre o final do século XVIII e os primeiros decênios do século XIX; • A experiência penitenciária norte-americana na primeira metade do século XIX; • A prisão no contexto judicial-punitivo do Antigo Regime português. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 26 Objetivo: 1. Estabelecer, no contexto histórico das sociedades ocidentais na Idade Moderna, as origens da instituição carcerária; 2. Reconhecer os modelos de sistemas penitenciários do século XIX. Conteúdo A população carcerária: contextualização De um modo geral, podemos dizer que vivemos em sociedades marcadas pela prática generalizada do encarceramento – explicando melhor, vivemos em sociedades em que a agressão a bens jurídicos considerados importantes (a vida, a propriedade) é punida, via de regra (mas não exclusivamente), com a pena do encarceramento, a qual é cumprida, normalmente, em sistemas penitenciários. No Brasil, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária aumentou, entre janeiro de 1992 e junho de 2013, em 403,5 %, ao passo que a população aumentou apenas 36 %. A população carcerária brasileira que, há pouco tempo, era a quarta maior do mundo, atrás dos EUA, da China e da Rússia, ultrapassou a Rússia, e, hoje, passou a ser a terceira maior do mundo, ficando atrás da China e dos EUA. Além disso, ela é 68 % superior ao número de vagas existentes no sistema penitenciário brasileiro (o déficit é de 210.736 vagas). Nas Américas, a sociedade brasileira só perde no “quesito encarceramento” para os EUA. Atualmente, segundo dados divulgados pelo CNJ, o Brasil possui uma população carcerária de 715.655 presos. Comparemos esse número com a população carcerária norte-americana, que, por exemplo, em 2005, correspondia 7.000.000 de pessoas sob algum tipo de controle por parte do sistema penitenciário daquela região, ou, ainda, com a União Europeia, (tomando 30 países como base), cuja população carcerária é superior à brasileira, sendo que os países que apresentavam as maiores JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 27 populações carcerárias em 2009/2010 (incluindo-se os detidos em prisão preventiva) foram: Inglaterra/País de Gales (85.206 presos), Polônia (82.794 presos), Espanha (73.520 presos), Alemanha (69.385 presos), Itália (68.795 presos) e França (59.655 presos). A generalização do encarceramento pode nos levar à avaliação equivocada de que esse tipo de sanção penal sempre esteve presente em todas as sociedades humanas, assim como os sistemas penitenciários. A adoção do encarceramento como uma modalidade de punição penal em si (e não como uma antessala para outras modalidades de punição, como, por exemplo, o banimento, o castigo físico e a execução) começou a se configurar a partir de um conjunto de transformações de natureza social, política, econômica, ideológica e jurídica, que se consubstanciaram na chamada crise do antigo regime europeu e que proporcionaram a emergência de regimes políticos de perfil liberal marcados por processos de constitucionalização do ambiente jurídico-político das sociedades ocidentais e pela crescente consolidação de economias de mercado de perfil capitalista. Ao espetáculo de corpos torturados e/ou mutilados (elementos pertinentes a procedimentos de apuração, julgamento e condenação presentes no âmbito penal das sociedades ocidentais desde a implantação da Inquisição católica no início do século XIII e que se estenderam pela Idade Moderna europeia), sucedeu-se uma economia do castigo, com uma arrumação de sofrimentos mais sutis e mais eficientes que o suplício presente nas execuções espetaculares que se fizeram presentes especialmente durante o período de formação e consolidação das monarquias europeias da Idade Moderna (que se estendeu dos séculos XIV/XV ao final do século XVIII/primeiras décadas do século XIX). JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 28 A primeira manifestação de um sistema penitenciário Tomemos como ponto de partida de nossas reflexões a questão da punição penal nas sociedades do feudalismo europeu – as disputas que surgiam entre os indivíduos, quando causadoras de dano, não estavam sujeitas a uma reação pública diante do dano, cabendo ao ofendido indicar o suposto responsável pela agressão, ao mesmo tempo em que o grupo respondia ao dano e à denúncia do dano através da perda da paz do ofensor (expulsão da comunidade, exposição à reação da vítima e/ou da família da vítima), podendo, todavia, na maioria dos casos, ocorrer a solução da ofensa mediante uma compensação econômica à parte afetada. Quando a contraprestação econômica não funcionava, a solução do conflito e a resposta ao dano causado se produziriam através da luta judicial ou pela configuração de prova judicial por meio da ordália ou “juízo de deus” – segundo Gabriel Anitua (2008). Nesses casos, nãose verificava a intervenção do representante da autoridade, importando, tão somente, a resolução pública da luta ou da prova e cabendo ao público velar pelo cumprimento das regras previamente estabelecidas (por um consenso comunitário) e dar seu parecer sobre o “juízo de deus”. De acordo com Dario Melossi e Massimo Pavarini (2006), em sistemas de produção “pré-capitalistas”, o cárcere, como pena, não faz sentido e, portanto, não existe. Isso não significa dizer que as sociedades feudais europeias desconhecessem o cárcere como instituição, mas, sim, a pena do internamento como privação de liberdade. O cárcere preventivo e o cárcere por dívidas faziam parte da realidade das sociedades feudais; todavia, a simples privação da liberdade fixada durante um determinado período de tempo, sem qualquer outro tipo de sofrimento e prevista como pena autônoma e ordinária, não fazia parte da realidades destas sociedades. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 29 Movimento de expropriação do conflito interindividual No curso da suspensão, podem ocorrer situações fáticas que conduzam à revogação da suspensão condicional. De acordo com o disposto nos §§ 3º e 4º, Artigo 89, da Lei nº 9.099/95, as causas de revogação podem se dividir em dois grupos: O movimento de expropriação do conflito interindividual, que resultou do processo de “racionalização” (profissionalização e burocratização dos órgãos encarregados da administração do poder penal – fenômenos que se firmaram tanto na Igreja Católica, em um primeiro momento, como nas nascentes monarquias europeias, a partir dos séculos XIV/XV) e se alicerçou no direito romano imperial revivido nas universidades a partir do século XII, não incorporou o encarceramento como pena autônoma. Ainda que o encarceramento não tenha sido adotado como pena autônoma pelo movimento de racionalização do poder penal da Igreja Católica e das nascentes monarquias europeias dos séculos XIV/XV, é possível afirmar que existiu uma experiência “penitenciária”, a qual pode ser considerada como uma “variante” do sistema punitivo feudal. Essa variante estava localizada no âmbito do direito penal canônico; tal sistema, segundo Melossi e Pavarini, experimentou configurações originais e autônomas que não existiam em nenhum sistema laico. Tais configurações originais e autônomas presentes no âmbito do direito penal canônico marcaram certos setores específicos em períodos determinados, que são, contudo, de difícil individualização, tal o elevado grau de participação do poder eclesiástico na organização política medieval. Assim, a importância do pensamento jurídico canônico no sistema punitivo medieval variou consideravelmente em função do nível de concorrência existente entre o poder eclesiástico e o poder laico. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 30 Pensamento jurídico canônico no sistema punitivo medieval O começo de tudo... A Igreja Católica promoveu a implementação das primeiras e incipientes formas de sanção em relação a clérigos que incidissem em alguma falta; na verdade, muitas das faltas cometidas por membros da Igreja não podiam ser consideradas como delitos, constituindo-se, provavelmente, em infrações religiosas, mas que, de alguma forma provocavam algum reflexo direto ou indireto sobre as autoridades eclesiásticas ou certo alarme social na comunidade religiosa. A reação do poder eclesiástico a infrações cometidas pelos clérigos, como não poderia deixar de ser, foi de natureza religiosa-sacramental inspirada no rito da confissão e da penitência; surgia, assim, a sanção de cumprimento da penitência em uma cela até que o culpado se arrependesse (usque ad correctionem). Com o tempo, essa pena eclesiástica adquiriu uma natureza pública, tornando- se sua execução acessível a todos (deixando, portanto, de ser uma questão de foro interno), ao mesmo tempo em que se revestiu de um caráter de punição exemplar com o intuito de intimidar e prevenir. Assim, aquilo que, originalmente, era uma penitência (o recolhimento do clérigo faltoso a uma cela até que se arrependesse), transformou-se em uma sanção penal propriamente dita; tal sanção seria cumprida pela reclusão do clérigo considerado culpado em um mosteiro por um tempo determinado. Entretanto, apesar da transformação da penitência em sanção penal, manteve- se algo da finalidade correcional inicial, ou seja, o isolamento em relação ao mundo externo, o contato mais estreito com o culto, e a vida religiosa deveria levar o condenado, através da meditação, à expiação da própria culpa. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 31 Regime penitenciário canônico Segundo Melossi e Pavarini, o regime penitenciário canônico conheceu formas diversas de execução da pena. Seu cumprimento poderia se dar por meio de simples recolhimento ao mosteiro, mas, também, com reclusão na cela ou na prisão episcopal, ao mesmo tempo em que a privação da liberdade poderia ser acrescida de sofrimentos de ordem física, de isolamento celular e de obrigação do silêncio. Organização religiosa A organização religiosa do tipo conventual exerceu influência significativa sobre as práticas carcerárias canônicas. A projeção no plano público institucional de um rito sacramental fundamentado na penitência se deu sob a égide de práticas religiosas-monacais de tipo oriental, práticas estas de natureza contemplativa e ascética. O regime penitenciário canônico desconsiderou completamente a adoção do trabalho carcerário como forma possível de execução da pena. O que poderia explicar a não adoção do trabalho carcerário na execução da pena no regime penitenciário canônico? Tal explicação pode ser encontrada no significado que a organização eclesiástica passou a atribuir à privação de liberdade por um determinado tempo. A pena do cárcere, tal como se deu na experiência canônica, tinha como objetivo atribuir ao período de privação da liberdade um quantum de tempo necessário à purificação de acordo com os critérios próprios do sacramento da penitência. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 32 Assim, a pena não era tanto a privação da liberdade em si, mas a oportunidade para que o condenado, em seu isolamento da vida social, pudesse alcançar aquele que era o objetivo a ser alcançado com a aplicação da pena: o arrependimento. Assim, poder-se-ia entender tal finalidade como correção ou como possibilidade de correção aos olhos de Deus. A pena fundamentava-se na gravidade do delito, sendo, portanto, de caráter meramente retributivo. A crise do século XIV A segunda metade do século XV constituiu-se na etapa de recuperação da Europa do longo período de crise que se estendera pelo século XIV e pela primeira metade do século XV. A crise do século XIV, como ficou conhecida, representou uma etapa de retrocesso demográfico na Europa, motivado por guerras, carestias, escassez de alimentos, condições climáticas adversas e epidemias. Essa crise do século XIV representou, na verdade, a crise definitiva do sistema feudal como modo de organização socioprodutiva dominante na Europa Ocidental. A partir do século XV, a organização política de diversas regiões da Europa, especialmente da Europa Ocidental, seria marcada pela ascensão de estados monárquicos cujas formações socioprodutivas, ainda que marcadas pela permanência de determinadas práticas feudais, se tornaram progressivamente mercantis. Para alguns historiadores, economistas e sociólogos, a Idade Moderna europeiaseria a etapa do chamado capitalismo comercial. As transformações que se processaram nas diversas regiões da Europa, por força da crescente mercantilização das relações sociais e produtivas, mostraram-se bastante desfavoráveis para as populações mais pobres, especialmente para parcelas significativas do campesinato, que se tornaram as principais vítimas do avanço inexorável das práticas capitalistas. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 33 Os acontecimentos que marcaram a Idade Moderna europeia refletiram no longo processo de dissolução econômica, política, ideológica e social do mundo feudal, que se confundiu com o regime de acumulação primitiva de capital e com a formação do proletariado. Na Inglaterra, por força da dissolução dos mosteiros, dos cercamentos das terras para criação de ovelhas, das mudanças nos métodos de cultivo e dos licenciamentos das manumissões feudais, verificou-se um grande movimento de opressão/expulsão dos camponeses das terras que encontravam na fuga para as cidades ou na vagabundagem nos campos formas de se livrarem de condições de vida extremamente duras. Legislação contra os fenômenos da vagabundagem e da mendicância Já desde o século XIV, porém, com mais intensidade nos séculos XV e XVI, desenvolveu-se uma legislação extremamente dura, especialmente contra os fenômenos da vagabundagem e da mendicância e, secundariamente, contra a criminalidade. Com o aumento do número de excluídos (condição esta que foi reforçada pela secularização dos bens eclesiásticos levada a cabo pela Reforma Protestante), as estruturas tradicionais medievais baseadas na caridade privada e eclesiástica mostraram-se impotentes para dar conta do incremento no número de desvalidos. Ocupação útil às multidões de desocupados No começo do século XVI, Thomas Morus, diante do incremento do número de pessoas desocupadas, oriundas das áreas rurais, que buscavam oportunidades JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 34 nas cidades, propôs que se desse uma ocupação útil às multidões de desocupados. Medidas começaram a ser tomadas pelas autoridades inglesas no sentido do “enfrentamento” dos problemas gerados pelas turbas de desocupados/desalojados que vagavam pelo país. Um estatuto originado em 1530 estabelecia que os vagabundos deveriam ser registrados para que se estabelecesse a seguinte diferença: os que se mostrassem incapacitados para o trabalho (impotent) eram autorizados a mendigar. E os demais, que não estavam autorizados a receber qualquer tipo de caridade, seriam açoitados até o sangramento. Até a metade do século XVI, o açoite, o desterro e a pena de morte se constituíram em instrumentos da “política social inglesa”. O castelo de Bridewell Diante do aumento descontrolado da mendicância em Londres, por sugestão de algumas das figuras mais importantes do clero inglês, a Coroa Inglesa autorizou a utilização do castelo de Bridewell para o “acolhimento” de vagabundos, ociosos, ladrões e perpetradores de delitos de pouca importância (na linguagem atual, autores de delitos de pequeno ofensivo). O objetivo da instituição criada a partir da cessão do castelo de Bridewell para o acolhimento dos que pertenciam às “classes perigosas” era promover a reforma dos internos por meio do trabalho obrigatório e da disciplina. Dirigida de forma extremamente severa, essa instituição deveria, além de promover a reforma “moral” daqueles que estavam à margem da sociedade, JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 35 desencorajar outras pessoas a seguirem o caminho da vagabundagem e do ócio, garantindo, por meio do trabalho, seu autossustento. O trabalho que se desenvolvia nessa instituição era relacionado ao ramo têxtil. Essa experiência, a princípio, deve ter sido bem-sucedida, já que, em um curto espaço de tempo, houses of correction (ou bridewells, como ficaram conhecidas) foram abertas em várias partes da Inglaterra. Contudo, foi somente a partir dos dispositivos contidos na Poor Law do reinado de Elizabeth I (e que permaneceu praticamente inalterada até 1834) que se elaborou uma orientação com razoável grau de univocidade e de generalidade visando ao enfrentamento da questão das “classes perigosas”. “Impotent poor” Em 1572, foi promulgada uma lei que organizou um sistema geral de subsídios (relief) com base paroquial, através do qual, por meio do pagamento de um imposto para os pobres, seus habitantes deveriam manter os “impotent poor” que viviam na localidade. Por outro lado, aos “rogues” e “vagabonds”, seriam oferecidos trabalhos. Como para esses grupos cabia tão somente o que sobrava do que era usado para a manutenção dos “impotent poor”, os desempregados em condições de trabalhar continuaram como objetos da repressão. Visando ao enfrentamento dos problemas dos desempregados em condições de trabalhar, foram criadas, a partir de 1576, as casas de correção, que deveriam fornecer trabalho aos desempregados ou obrigar os que não quisessem trabalhar a fazê-lo. Tais instituições se baseavam no modelo da primeira bridewell, atendendo a uma população bastante heterogênea: desempregados, filhos de pobres (que deveriam ser “educados” para o trabalho), vagabundos, “petty ofenders”, prostitutas e pobres rebeldes que não queriam trabalhar. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 36 A recusa ao trabalho A recusa ao trabalho se constituía em ato ao qual se atribuía uma verdadeira intenção criminosa; por exemplo, por uma lei de 1601 que complementou a legislação anterior (a Poor Law elizabetana), era facultado ao juiz enviar para a prisão comum (common gaol) os ociosos capazes de trabalhar e que se recusassem a fazê-lo. Necessário se faz que expliquemos o verdadeiro significado da chamada “recusa ao trabalho” no século XVI. Vários estatutos foram elaborados entre os séculos XIV e XVI; com isso, estipulou-se um teto para os salários, que, além do qual, não se permitia pagar (sob pena de aplicação de sanção penal ao empregador). Sendo assim, não havia autorização para qualquer contratação coletiva, o que obrigava o trabalhador a aceitar a primeira oferta de trabalho nas condições oferecidas pelo empregador. Assim, não se dava ao trabalhador a possibilidade de buscar um trabalho melhor remunerado, e as casas de correção, através do trabalho forçado, buscavam quebrar qualquer resistência que pudesse ser oferecida pela mão de obra. Existe uma certa concordância por parte de historiadores que afirmam que o século XVII foi um século holandês. Pode-se dizer que a liderança do processo de acumulação primitiva de capital foi exercida pela economia mercantil e manufatureira e pelo sistema financeiro das Províncias Unidas, especialmente da Holanda, uma das províncias constitutivas do país. Foi também na Holanda, na primeira metade deste século, que a nova instituição da casa de trabalho atingiu sua forma mais desenvolvida. A criação dessa nova instituição e de sua original modalidade de segregação punitiva encontrava-se referenciada às origens do desenvolvimento do modelo capitalista de organização socioprodutiva, e tudo indica que não houve qualquer JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 37 influência direta da experiência inglesa das bridewells sobre as casas de trabalho (tuchthuis) holandesas. A escassez de mão de obra e um desenvolvimento mercantil muito vigoroso fizeram com que as elites dirigentes holandesas revisassem seus procedimentos punitivos de forma a desperdiçaro mínimo possível de mão de obra, controlá-la e regular sua utilização de acordo com o movimento de valorização do capital. Reformadores holandeses passaram a promover um movimento de caráter tipicamente burguês, que defendia a ideia de que aqueles que cometessem delitos deveriam ser forçados ao trabalho. Em julho de 1589, os magistrados de Amsterdã propuseram a instituição de uma casa para acolhimento daqueles que pertencessem às classes perigosas e que deveriam, como punição, estar presos e ocupados em trabalho pelo tempo que os magistrados considerassem adequado. O novo estabelecimento O novo estabelecimento foi inaugurado em 1596, e a instituição deveria se sustentar com o trabalho dos internos, não havendo lucro nem para os diretores, que seriam nomeados honorificamente, nem para os guardas, que receberiam um salário. A composição da “clientela” dessa nova instituição holandesa assemelhava-se muito àquela encontrada nas workhouses inglesas, e sua admissão a ela se dava por meio de mandado judicial ou administrativo. Geralmente, as sentenças eram breves e fixadas por um determinado período de tempo, que poderia ser modificado de acordo com o comportamento do interno. Essa instituição funcionava a partir de uma base celular, onde vários detentos conviviam em uma mesma cela, podendo o trabalho ser desenvolvido na JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 38 própria cela ou no pátio central, dependendo da estação do ano. Tal instituição vinculava-se ao modelo produtivo dominante, ou seja, à manufatura. A casa de trabalho holandesa era conhecida como rasp-huis, porque, nelas, a atividade que se desenvolveu prioritariamente era a raspagem de madeiras tintoriais, raspas estas que eram transformadas em pó, de onde os tintureiros retiravam os pigmentos para o tingimento dos fios. Esse trabalho de raspagem era considerado particularmente adequado para ociosos e preguiçosos. Esse era um dos motivos pelos quais adotava-se esse modelo de trabalho mais cansativo. Em um mundo marcado pelas práticas mercantilistas, assegurou-se à casa de Amsterdã o monopólio desse tipo de trabalho, tendo ocorrido, em diversas oportunidades, embates legais entre a municipalidade de Amsterdã e outras municipalidades que tentavam a implantação de um sistema de trabalho mais moderno. Mais do que tabelar o preço dos salários, o objetivo da casa de trabalho era o controle da força de trabalho, de sua educação e de sua domesticação. Os modelos de sistemas penitenciários do século XIX Por ocasião do final do século XVIII e do início do século XIX, os sistemas penitenciários nos EUA e na Europa começaram a se constituir a partir da fixação da pena de prisão (em suas várias modalidades que viriam a ser desenvolvidas) como um procedimento punitivo em si, deixando para trás a prática da prisão como mero procedimento processual. Os sistemas penitenciários foram configurados no bojo das transformações ocorridas nas sociedades norte-americana e europeias. Essas mudanças encontravam-se referenciadas ao desenvolvimento de um modelo de organização socioprodutiva capitalista de perfil claramente industrial. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 39 Nesse contexto, começaram a ser discutidas formas de reclusão daqueles qualificados como “criminosos”. Tais discussões proporcionaram o desenvolvimento da teorização de modelos penitenciários e de suas aplicações práticas, como, por exemplo, o modelo de Filadélfia e o modelo de Auburn, em Nova York. Nesses modelos correcionais, as penas cominadas passaram a ser quantificadas em termos de tempo. A reclusão da vida social imposta ao infrator se daria assim por um período considerado suficiente para que o mal feito à sociedade fosse reparado. Tais inovações nos processos correcionais daqueles que infringiam a lei devem ser consideradas também na lógica dos processos disciplinares, que, a partir dos séculos XVII e XVIII, se tornam fórmulas gerais de dominação, que construiriam corpos submissos e exercitados; em suma, “corpos dóceis”, que se produziram, segundo Michel Foucault, a partir de uma política de coerções e restrições, que manipulam e configuram os elementos, gestualidades e comportamentos desses corpos. Modelos penitenciários norte-americanos: o modelo Filadélfia O modelo Filadélfia foi implantado no presídio da cidade de Filadélfia, em 1790, por William Penn, e se baseava nos princípios dos Quaker, segundo os quais a religião seria a única base confiável de educação. Assim, a reclusão e a leitura da Bíblia poderiam levar o preso à reflexão e ao arrependimento de seus pecados. O trabalho, nesse modelo, não era permitido, pois poderia provocar a dispersão do indivíduo em relação à sua reflexão. Dessa forma, no regime prisional adotado na Filadélfia, a correção do indivíduo se daria somente pela sua consciência e pela arquitetura que o mantinha isolado. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 40 A característica principal desse modelo era o cumprimento da pena de forma isolada de todas as pessoas durante o período da condenação. Modelos penitenciários norte-americanos: o modelo Auburn Esse modelo foi implantado no presídio de Auburn, em 1821, na cidade de Nova York. Segundo esse padrão, a preparação do indivíduo preso para seu reingresso na sociedade se daria pela “convivência social” com os outros presos, pelo respeito à hierarquia e às regras, e pela vigilância constante. A característica principal desse modelo foi a adoção do trabalho como elemento regenerador do preso, o que o diferenciava do modelo adotado na Filadélfia. Um silêncio absoluto e constante era imposto aos internos que trabalhavam durante o dia nas oficinas e, à noite, ficavam recolhidos em celas individuais. O silêncio era imposto à base do chicote. Os modelos penitenciários europeus: o modelo irlandês Os sistemas penitenciários europeus, a partir do “sucesso” dos modelos prisionais norte-americanos, acabaram por adotar o modelo da Filadélfia depois de um longo debate que se desenvolveu no Primeiro Congresso Internacional das Prisões, realizado em 1856, na cidade de Frankfurt. Alemanha, França, Holanda e Bélgica adotaram pioneiramente esse modelo em suas prisões. Todavia, na Irlanda, desenvolveu-se um modelo que pode ser considerado, em parte, como uma combinação e um aperfeiçoamento dos dois modelos norte- americanos. O chamado “modelo irlandês” foi idealizado por Walter Crofton, em 1853, e constava de quatro fases a serem percorridas pelo condenado desde sua entrada no presídio até a liberdade total. Tais fases se constituiriam de conquistas de parcelas cada vez mais amplas de liberdade. JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL, RESTAURATIVA E MEDIAÇÃO 41 Modelo penitenciário irlandês: as quatro etapas Primeira etapa: é uma cópia do modelo da Filadélfia, em que o interno fica recluso em uma cela durante oito ou nove meses para que pudesse refletir sobre seus delitos. Segunda etapa: segue-se aqui a proposta do modelo de Auborn, em que o preso passa a trabalhar durante o dia, em ambiente coletivo, em completo silêncio e sob rigoroso controle e vigilância, recolhendo-se à noite em cela individual. Terceira etapa: dar-se-ia a transferência do detento para uma prisão intermediária, de vigilância mais branda, podendo conversar, caminhar até uma certa distância e realizar atividades laborais no campo. Quarta etapa: antes do retorno definitivo ao convívio social, permitia-se ao preso viver em uma comunidade
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