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MARIA BEATRIZ MENDONÇA (BYABRAGA) MARIA LUCIA SOUZA DE BARROS PUPO MARIANA OLIVEIRA MONA MAGALHÃES NARA KEISERMAN NARCISO TELLES RENAN TAVARES RICARDO JAPIASSU SARA LOPES VALMOR NÍNI BELTRAME VILMA CAMPOS DOS SANTOS LEITE WALDER GERVASIO VIRGULINO DE SOUZA cj>-1•••• 8!!~ cian magenta are preto A reunião de vinte e nove textos pretende oferecer ao estudante de Teatro e ao leitor de uma maneira geral a utilização de um caleidoscópio para o qual confluem diferentes teorias e práticas que têm como foco de análise o teatro em suas nuances e matizes. [ ... ] Queremos evocar que as tensões e contradições colocadas pela questão teatral emergem no conjunto dos textos como um modo de situar o teatro como um campo de conhecimento perspectivado pelas lutas e disputas paradigmáticas. E no leitor o efeito deve ser o de exercitar a reflexividade e a criticidade, sem perder o entusiasmo e a paixão pelo teatro. Os organizadores Editol'lfil .... liiiil ISBN 978-85-1'078-1 110-1 l>Z Q.Q.J -·""' - n VI -· 0 VI ::::J o "T1~ o~ n> m ::::J VI -::::J o õ ""' lO - n m ::::1 Q Cl:l ... m = m UI II:L. c CD = UJ -· = a II:L. c ..... CD I» ... ... = Narciso Telles Adilson Florentino (org.) Cartografias do • ens1no do eatro AUTORES ADILSON FLORENTINO ANTONIA PEREIRA ARÃO PARANAGUÁ DE SANTANA BEATRIZ CABRAL (BIANGE) CARMELA SOARES ELEONORA FABIÃO ELZA DE ANDRADE FLAVIO DESGRANGES GILBERTO ICLE GILSON MOITA INGRID DORMIEN KOUDELA JOSÉ DA COSTA JOSÉ LUIZ RIBEIRO JOSÉ TONEZZI LUCIA HELENA DE FREITAS (Gyata) LUIZ HUMBERTO MARTINS ARANTES MARCIA POMPEO NOGUEIRA Cartografias do ensino do teatro CORPO TÉCNICO ADMINISTRATIVO Maria Amália Rocha COORDENAÇÃO EDITORIAL Maria Clara Tomaz Machado UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA Editora da Universidade Federal de Uberlândia Av. João Naves de Ávila, 2121 - Campus Santa Mônica - Bloco A - Sala 1A-01 Cep 38408-100 - Uberlândia - Minas Gerais Tel: (34) 3239-4293 www.edufu.ufu.br e-mail: livraria@ufu.br REITOR Alfredo Júlio Fernandes Neto VICE-REITOR Darizon Alves de Andrade DIREÇÃO EDUFU Humberto Guido Daurea Abadia de Souza Décio Gatti Júnior Ernesto Sérgio Bertoldo Gina Maira Barbosa de Oliveira João Carlos Gabrielli Biffi José Roberto Mineo Márcio Chaves-Tannús Rejane Maria Ghisolfi da Silva Roberto Rosa CONSELHO EDITORIAL Adilson Florentino Narciso Telles organizadores 2009 Cartografias do ensino do teatro Equipe de realização Revisão gramatical Aline Coelho Maria Cristina Gonçalves Revisão ABNT Maira Nani França Projeto gráfico e capa Ivan da Silva Lima Diagramação Alexandre Carvalho Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C328 Cartografias do ensino do teatro / Adilson Florentino, Narciso Telles (orgs.). - Uberlândia : EDUFU, 2009. 328 p. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7078-190-1 1. Teatro. I. Florentino, Adilson. II. Telles, Narciso. CDU: 792 Elaborados pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação Editora da Universidade Federal de Uberlândia Copyright © Edufu - Editora da Universidade Federal de Uberlândia/MG Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total sem permissão da editora. SUMÁRIO 7 APRESENTAÇÃO 9 A PROBLEMATICIDADE EPISTEMOLÓGICA DO SABER TEATRAL Adilson Florentino 17 TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS Antonia Pereira Bezerra 29 METODOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS DO ENSINO DO TEATRO – EM FOCO, A SALA DE AULA Arão Paranaguá de Santana 37 DOROTHY HEATHCOTE – MEDIAÇÃO E INTERVENÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA TEATRAL EM GRUPO Beatriz Cabral (Biange) 49 PEDAGOGIA DO JOGO TEATRAL: UMA POÉTICA DO EFÊMERO Carmela Soares 61 PERFORMANCE, TEATRO E ENSINO: POÉTICAS E POLÍTICAS DA INTERDISCIPLINARIDADE Eleonora Fabião 73 MECANISMOS DE COMICIDADE NO ENSINO DO TEATRO Elza de Andrade 85 A POSIÇÃO DO ESPECTADOR: PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS Flavio Desgranges 95 IMPROVISAÇÃO: DA ESPONTANEIDADE ROMÂNTICA AO “MOMENTO PRESENTE” Gilberto Icle 103 CENOGRAFIA E INDUMENTÁRIA NA ARTE-EDUCAÇÃO Gilson Motta 113 ARTS EDUCATION IN LATIN AMÉRICA AND THE CARIBBEAN MEETING OF EXPERTS Ingrid Dormien Koudela 117 TEATRO CONTEMPORÂNEO: O SENTIDO EM DEBATE José da Costa 133 O TEATRO NA TERCEIRA IDADE José Luiz Ribeiro 145 DA APROPRIAÇÃO ESTÉTICA DAS ANOMALIAS José Tonezzi 155 CRUZANDO ESPAÇOS: O TEATRO NO HOSPITAL Lucia Helena de Freitas (Gyata) 165 ELEMENTOS DO TRÁGICO NO ESTUDO DO TEXTO TEATRAL Luiz Humberto Martins Arantes 173 TEATRO E COMUNIDADE Marcia Pompeo Nogueira 185 FORMAR E FORMAR-SE EM TEATRO Maria Beatriz Mendonça (Bya Braga) 193 PESQUISA NA LICENCIATURA EM ARTES CÊNICAS Maria Lucia Souza de Barros Pupo 201 TEATRO, JOGO E BRINCADEIRA: UMA PROPOSTA DE REELABORAÇÃO DO CAVALO-MARINHO EM PROCEDIMENTOS PEDAGÓGICOS PARA O ATOR Mariana Oliveira 209 CARACTERIZAÇÃO TEATRAL: UMA ARTE A SER DESVENDADA Mona Magalhães 221 JOGOS CORPORAIS EM SALA DE AULA Nara Keiserman 233 AS OFICINAS DE TEATRO E A PRÁTICA DO ARTISTA-DOCENTE Narciso Telles 239 JOGO DRAMÁTICO SEGUNDO JEAN-PIERRE RYNGAERT Renan Tavares 249 GATO&RATOS: ATIVIDADE TEATRAL NA PRÉ-ESCOLA Ricardo Otoni Vaz Japiassu 271 SOBRE A VOZ EM SUA FUNÇÃO POÉTICA Sara Lopes 283 O ENSINO DO TEATRO DE ANIMAÇÃO Valmor Níni Beltrame 299 JOGO TEATRAL E CRIAÇÃO LITERÁRIA Vilma Campos dos Santos Leite 309 DOIS ECOS LONGÍNQUOS DE TAMBORES NA NOITE Walder Gervasio Virgulino de Souza 323 SOBRE OS AUTORES 7 APRESENTAÇÃO De tempos em tempos surge a necessidade de nos embrenharmos no espesso bosque das idéias e práticas teatrais a fim de clarificar o lugar onde estamos e de vislumbrar o lugar para onde vamos. Hoje, esse trânsito pelo bosque, essa espécie de passeio, constitui uma empreitada difícil em um labirinto cuja saída não é fácil de ser encontrada. Isto porque as espécies se misturam, os caminhos se entrecruzam e os pontos de referência se tornam obscuros. O mundo do teatro, das idéias e das práticas, torna-se cada vez mais complexo e as classificações em eixos temáticos são essencialmente controvertidas. Somos conscientes, portanto, dos riscos que uma leitura organizada, sob o domínio das classificações temáticas, poderia causar no enquadramento das ques- tões postas pelo teatro. Ao invés disso, optamos por um desfile de textos e temas que pode orientar o leitor na livre escolha de onde se inicia e termina este livro. O eixo norteador de nossa proposta para o leitor é contribuir com o debate sobre as múltiplas possibilidades de entendimento das teorias e práticas teatrais que se têm ampliado nos últimos tempos nos contextos nacional e internacional. Desafiamos o leitor para a seguinte provocação: exercitar a crítica e a reconceptualização das tendências e perspectivas que atravessam os textos e temas aqui reunidos. Os fios condutores que conectam o conjunto da obra têm como espaço de interseção a preocupaçãocom o ensino de teatro e, mais diretamente, com a formação do professor de teatro no Brasil. Portanto, diante da diversidade temática que a produção do conhecimento teatral está submetida, atualmente, cabe-nos como pesquisadores, professores e profissionais de teatro a tentativa de elaborar um mapeamento, pelo menos provisório, das principais linhas de pesquisa desenvolvidas pelos “atores acadêmicos” que atuam no espaço das uni- versidades, investigando o fenômeno teatral. Nessa perspectiva, a racionalidade construída na organização dos temas e tex- tos aqui problematizados é a do tipo estético-expressiva – no sentido weberiano – , fazendo emergir a dimensão polifônica, dialógica e plural no intercruzamento das vozes que remetem ao leitor. O princípio e o final desse itinerário assumem um sentido na medida em que desafiam, principalmente, o leitor em formação ao esta- belecimento de uma profícua interlocução. 8 A reunião de vinte e nove textos pretende oferecer ao estudante de Teatro e ao leitor de uma maneira geral a utilização de um caleidoscópio para o qual con- fluem diferentes teorias e práticas que têm como foco de análise o teatro em suas nuances e matizes. Todavia, a policromia que envolve a questão teatral não constitui a garantia de um brilho suave e harmonioso, mas a efusão de um brilho incandes- cente a deixar na margem a solidão das cores monocromáticas. Queremos evocar que as tensões e contradições colocadas pela questão teatral emergem no conjunto dos textos como um modo de situar o teatro como um campo de conhecimento perspectivado pelas lutas e disputas paradigmáticas. E no leitor o efeito deve ser o de exercitar a reflexividade e a criticidade, sem perder o entusiasmo e a paixão pelo teatro. Os organizadores 9 A PROBLEMATICIDADE EPISTEMOLÓGICA DO SABER TEATRAL Adilson Florentino As discussões analisadas neste artigo são frutos de alguns insights, de caráter reflexivo, produzidos no cerne da minha pesquisa de doutoramento cujo eixo in- vestigativo tenta problematizar as perspectivas paradigmáticas do ensino do teatro a partir das condições históricas de produção do Teatro como um campo de conhe- cimento, tencionado nas relações entre o saber científico e o saber escolar. Assim sendo, o Teatro como um campo de conhecimento representa um terreno episte- mologicamente conflitado, no qual diferentes teorias, tendências e práticas lutam pelo modo como a realidade teatral deve ser produzida, reproduzida, significada e, sobretudo, interpretada. O objetivo aqui elaborado é o de refletir sobre o problema do conhecimen- to teatral a partir do pressuposto de que o conhecimento do teatro não tem sido examinado sempre do mesmo modo, pois existem diferentes padrões de análise que orientam o modo de compreensão dos estudos investigativos sobre o teatro. Defende-se o pressuposto de que o problema não se situa na diversidade de paradig- mas, mas na possibilidade de estabelecer critérios homogêneos de análise a respeito do conhecimento teatral. Falar do conhecimento do teatro é o mesmo que interrogar-se acerca do tea- tro como objeto de conhecimento, o que equivale a formular uma dupla indagação: a) O que é necessário conhecer para entender e dominar o campo do teatro ou quais são os componentes constituidores do fenômeno teatral que têm de ser dominados para entender este fenômeno? b) Como se dá o conhecimento desse campo ou que garantias de credibilidade se pode obter acerca do campo do teatro? O objetivo, quando se analisa o conhecimento do teatro, é o de estabelecer um eixo de interpretação que nos permita, com critério lógico, compreender a dis- tinta consideração que o conhecimento do teatro possui. Para isso, é preciso tentar descrever as propriedades que permitem caracterizar os diferentes momentos de constituição do teatro como objeto de conhecimento. O objetivo não é a produtivi- 10 ADILSON FLORENTINO dade existente em cada um desses momentos; o que preocupa não é a quantidade de investigações realizadas, mas, sobretudo, saber como é considerado o teatro como objeto de conhecimento em diferentes investigações. O interesse deve recair mais sobre as análises dos pressupostos que permi- tem entender, de certa perspectiva, o teatro como objeto de conhecimento. A fe- cundidade da hipótese que aqui está sendo colocada aponta para os conceitos e as precisões terminológicas que são, sucessivamente, estabelecidas. O que interessa, especificamente, é o entendimento da própria transformação do teatro como objeto de conhecimento e sua progressiva inserção no contexto estudado. Interessa saber, portanto, quais são as propriedades que definem, em diversos momentos, o teatro como objeto de conhecimento e como se dá a justificação de que determinada in- vestigação é a que se deve proceder para a análise do objeto em questão. Esse tipo de questão recebe a denominação, segundo Khun1 de paradigma de investigação. No trabalho de Khun acerca da estrutura das revoluções científicas, é possível detectar dezenas de usos diferenciados do termo paradigma. Os paradig- mas podem ser entendidos como marcos de interpretação ou modos de pensar acer- ca de algo; em si mesmos, eles não constituem teorias, uma vez que o pesquisador se compromete ou assume um único marco ou modo específico, o que pode conduzir ao desenvolvimento de teorias. A preocupação básica desta reflexão é a de estabelecer o marco de interpreta- ção que permita compreender a distinta condição de possibilidade do conhecimento teatral. Nesse sentido, o ponto de partida está centrado na convicção de que não tem existido a mesma consideração para a função teatral, porque o conhecimento do teatro não possui sempre a mesma significação, entendida como a capacidade que esse conhecimento possui de responder aos problemas das práticas teatrais. Assim sendo, os critérios estabelecidos para elaborar o marco de interpreta- ção permitem, segundo o tipo de respostas, configurar uma concepção específica de teatro e, portanto, um modo peculiar de relacionar a teoria e a prática. Em analogia com a historicidade de outros saberes, as práticas investigativas do teatro se distinguem em vários campos e tentam responder às seguintes questões: 1) a consideração do teatro como objeto de conhecimento; 2) o tipo de conhecimento a ser obtido pelo saber teatral; 3) o modo de resolver o ato de intervenção; 4) a possibilidade ou não do estudo “científico”, das ciências do espetáculo ou da teatrologia. Cada uma dessas questões cria um padrão de justificativa da ação teatral e estabelece os limites e as potencialidades de resolução da problemática do conheci- mento teatral. Cada uma dessas questões elabora um tipo de discurso em que a rela- ção teoria-prática se dá de um modo diferente. O discurso teatral, a função teatral e a prática teatral se relacionam de modos diferentes em cada uma das questões acima porque as respostas produzem distintas visões sobre o teatro, ou seja, produzem diferentes concepções de teatro. 1 KHUN, Thomas. La estructura de las revoluciones cientificas. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1995. 320 p. A PROBLEMATICIDADE EPISTEMOLÓGICA DO SABER TEATRAL 11 As concepções podem funcionar como paradigmas, isto é, como marcos in- terpretativos assumidos pelo pesquisador e podem produzir teorias sobre a função teatral, o discurso e a prática teatrais. Como pressupostos de investigação, as con- cepções funcionam como uma antecipação daquilo que se deseja conseguir e orienta a observação do fenômeno teatral na perspectiva daquilo que adquire um sentido no interior de uma específica perspectiva. Um ponto curioso dessa questão é que a perspectiva teatral, muitas vezes, não se encontra explicitada no exercício da investigação e, contraditoriamente, dela depende o sentidodo que é afirmado e negado sobre o teatro. Talvez, por isso, cada concepção redefine o campo de conhecimento do teatro, produz novos valores e reformula os já existentes. Cada concepção sobre o teatro deve exigir rigor lógico e significação. O rigor lógico se define como uma das características defendidas com exclusividade em uma dada concepção e, ao mesmo tempo, determina um modo distinto de entender o teatro como objeto de conhecimento. Por sua vez, a significação se define como a capacidade que tem a representação do conhecimento teatral, resultante de uma lógica, de organizar historicamente a produção desse conhecimento. A significação possibilita identificar a tendência do conhecimento teatral de uma determinada pes- quisa, de um livro sobre o teatro ou até mesmo de uma prática teatral concreta. O fato de serem incluídos em uma tendência pressupõe a defesa de uma determinada concepção de teatro como objeto de conhecimento. Cada tendência tem um marco referencial que permite uma resposta específica às questões de análise das investigações teatrais. Precisamente por isso, pode-se dizer que tudo o que afeta o tema de estudo (do teatro), desde que não contradiga àquelas respostas, cabe no território de uma dada tendência. Por esta razão, as tendências não se definem nem por um método nem por uma concepção de ciência, nem por uma filosofia de vida. Numa tendência, cabem todos esses elementos, desde que sejam compatíveis com o marco referencial estabelecido. O que há de variar em cada um dos elementos acima descritos são as finalidades que defendem sobre o teatro. O teatro é um campo amplo e profundo para investigar; sua riqueza de situa- ções, teorias, práticas e processos formam parte de um material que permite iniciar distintas investigações. Junto desse material encontramos a complexidade dos fe- nômenos teatrais que só podem ser captados mediante investigações realizadas em algumas perspectivas e, desse modo, o estudo heurístico do teatro possibilita uma ampla variedade de modos de investigação. Não existe acordo na classificação dos métodos e variações de cada modo de investigação no campo teatral. O método pode ser colocado a serviço de va- riados tipos de objetivos, nos mais diferentes ramos do saber e, no seu interior, com diversas perspectivas e características. As diferenças entre os métodos de investigação não radicam no fato de que podem ser concebidos como vias alter- nativas para alcançar o mesmo fim ou responder de maneira diferente a mesma pergunta ou questão. O que distingue radicalmente os métodos entre si não são os procedimentos que aplicam, mas sim, fundamentalmente, o tipo de questões que pretendem ou podem resolver, assim como pressupostos e postulados bási- cos que determinam e especificam os critérios de evidência e a interpretação das respostas obtidas. 12 ADILSON FLORENTINO A diversidade metodológica da investigação teatral responde à existência de vários paradigmas que, por sua vez, estão enraizados em algumas tradições discipli- nares, tais como a Semiologia. O espetáculo teatral está repleto de significação e se constitui numa constelação de signos complexos2. Na perspectiva da Semiótica, De Marinis assinala que esta área de estudos relaciona-se à dimensão central do objeto teórico do teatro que se revela tipicamente como sendo um fenômeno de significa- ção e de comunicação. No cerne desse debate, mas a partir de uma outra vertente, merece consideração a análise que Ubersfeld empreende em relação à problematiza- ção da questão do signo no teatro, argumentando que a relação texto-representação se organiza partindo da hipótese que afirma que o fato teatral se constitui como relação entre dois conjuntos de signos: verbais ou não verbais3. No entanto, é De Marinis que defende o que ele denomina de teatrologia ou ciências do teatro que se reveste de um caráter transdisciplinar, a fim de permitir es- tudar o complexo mundo do teatro. A complexidade dos fenômenos teatrais exige a operação de enfoques plurimetodológicos, conforme afirma Pavis, pois somente através de enfoques flexíveis pode ser possível captar e aprofundar a efetivação do objeto-espetáculo rumo ao objeto-teatro4. Assim sendo, há possibilidade de se pensar na investigação teatral entenden- do-a dentro do sistema aberto que as ciências do teatro formam. O teatro é um campo de estudos que contém fenômenos, problemas e processos que constituem em si mesmos o material para realizar investigações em diferentes perspectivas. Todavia, o teatro não é uma ciência no sentido daquelas ciências discutidas por Feyerabend, Khun, Lakatos e Popper. Para Ubersfeld, o teatro é uma arte do pa- radoxo, cujos fios paradoxais se entrelaçam na relação entre texto e representação, a primeira contradição inscrita na arte do teatro5. Nas considerações do debate em torno da arte, foi seguramente Adorno6 quem confrontou a análise da natureza dela como conhecimento, apontando o con- teúdo de verdade que caracteriza e fundamenta, em seu aspecto mais essencial, toda a obra de arte. A partir da perspectiva que a sua teoria estética propõe, a caracterís- tica da arte contemporânea não pode ser senão a impossibilidade de transparência. De fato, o caráter enigmático da obra de arte, sob o viés lingüístico, consiste naquilo que as obras dizem e não no que ocultam. A arte, como forma de ocultamento, atua através de seu aparente contrário: o jogo da hipervisibilidade, da hiperdemonstra- ção. Esse procedimento consiste, segundo o próprio Adorno, que aquilo que a obra de arte tenta ocultar se manifesta, porque ao se manifestar se oculta. Daí que em todos os seus momentos mais ambiciosos a atuação artística se situa mediante um paradoxo desvelamento das convenções e recursos utilizados. 2 GUINSBURG, Jaco; COELHO NETO, J. Teixeira; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do teatro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 380 p. 3 MARINIS, Marco. Comprender el teatro: el lineamientos de una nueva teatrología. Buenos Aires: Galerna, 1997. 287 p.; UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006. 202 p. 4 MARINIS, 1997; PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 323 p. 5 FEYERABEND, Paul. Contra o método. 2. ed. Lisboa: Relógio D’Água, 1997. 364 p.; KHUN, 1995; LAKATOS, Imre. Historia de las ciencias y sus reconstruciones racionales. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1987. 188 p.; POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1980. 256 p.; UBERSFELD, 2006. 6 ADORNO, Theodor. Teoria estética. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2006. 294 p. A PROBLEMATICIDADE EPISTEMOLÓGICA DO SABER TEATRAL 13 Desse ponto de vista, o conhecimento que é arte não é discursivo, pois sua verdade não é reflexa de um objeto. Impõe-se ao artista mais que a exposição de resultados ou conclusões ao expor o próprio caráter problemático do pensar e do conhecer. A verdade da obra de arte não pode ser outra coisa do que a comunicação do incomunicável, a manifestação explosiva da consciência oprimida. Para Adorno, as obras de arte são evidências do inevidente, a compreensão do incompreensível, pois em nenhum momento cabe à tarefa da filosofia da arte elucidar o incompreen- sível, senão tratar de entender a própria incompreensibilidade. A arte seria capaz, segundo Kant7 de servir de ponte de mediação entre dois eixos contrapostos: a natureza e a liberdade, entre as funções intelectuais e a ativi- dade moral, a fim de garantir uma unidade harmônica no ser humano. A esponta- neidade da razão é levada ao terreno da sensibilidade, cobrindo o imenso abismo existente entre ambas. Schiller8, o fundador da educação estética como disciplina, considerava-a como o fundamento principal da educação humana, como a essência da própria educação ao entendê-la como mediação entre racionalidade e sensibilidade. Para Schiller, a arteconstitui uma síntese de natureza e liberdade, realidade e identidade, entre matéria e forma. No entanto, Habermas9 propõe que a experiência estética não deve ser capaz de renovar as interpretações das necessidades à luz do que percebemos do mundo, pois deverá ser capaz, também, de intervir na articulação cognitiva das experiências normativas, transformando o modo como os discursos estético, prático-moral e factual se referem uns aos outros. Habermas optou em considerar a obra de arte como uma possível função de mediação, sustentando que as experiências estéticas, as interpretações cognitivas e as regulações normativas não são independentes entre si. Isso significa pressupor que os discursos estético, prático-moral e factual não es- tão separados entre si por um abismo, mas estão relacionados de múltiplas formas. Toda essa discussão de caráter filosófico está aqui apresentada para justificar a importância e o aprofundamento que a questão artística e, mais especificamente, a questão teatral evocam no que concerne à problemática do conhecimento. O que nos interessa neste trabalho é capturar os nexos existentes entre teatro e ciência, a fim de localizar uma possível epistemologia do saber teatral. O pressuposto fun- damental por nós defendido é que a metodologia de investigação teatral possui um vínculo referencial com o conhecimento científico. A teoria geral do teatro parte de uma teoria do texto dramático que desembo- ca na teoria do espaço cênico sob as perspectivas de diferentes propostas interdisci- plinares. É exatamente essa disciplina do conhecimento científico-artístico que De Marinis denomina teatrologia. É nesse caráter epistemológico que a vinculação da ciência com a arte tem seus laços mais estreitos. Assumir o estudo do teatro ou empreender uma investigação sobre o teatro é correr o risco de se deparar com a seguinte questão: como ciência, o estudo do teatro não é totalmente objetivo, pois o seu caráter é explicitamente subjetivo e tem 7 KANT, Immanuel. Observaciones acerca del sentimiento de lo bello y de lo sublime. 2. ed. Madrid: Alianza, 1990. 304 p. 8 SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990. 164 p. 9 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: M. Fontes, 2002. 540 p. 14 ADILSON FLORENTINO uma amplíssima vantagem de ser uma ciência do espírito humano, mesmo que tal afirmativa possa correr o risco de sua radicalidade na medida em que se tece a inda- gação de qual ciência não é humana. Para fundamentar esse desiderato, parto da premissa de que o teatro é uma manifestação cultural e artística, de caráter cênico e que possui especificidades pró- prias circunscritas nos planos sintático, semântico e pragmático. O estudo do teatro constitui um âmbito de realidade instalado numa esfera de conhecimento, contendo um objeto próprio e uma cientificidade específica que tentam definir um estatuto epistemológico para a construção de um discurso teórico e disciplinar que desen- volve o seu edifício acadêmico e institucional de modo a ser capaz de problematizar, formalizar e sistematizar aquilo que denominamos teatro. É neste momento que a vinculação com a ciência se torna mais evidente, pois a investigação cria um amplo espectro de possibilidades para o nosso objeto de es- tudo que, necessariamente, requer um procedimento analítico e interpretativo. Tal procedimento exige, por sua vez, como critério para a produção do conhecimento, o uso da heurística, da epistemologia e da hermenêutica. Sobretudo nas últimas décadas, o campo da investigação teatral tem crescido muito no Brasil. Houve diversificação das linhas de pesquisa em teatro, como tam- bém houve a ampliação dos paradigmas e da adoção de abordagens metodológicas que utilizam as técnicas de análise de dados, muito mais complexas e sofisticadas; para isso, recomendo a leitura do livro Metodologias de pesquisa em artes cênicas, organizado por Carreira e outros10. Nesse sentido, devemos aglutinar esforços em relação à produção do conhe- cimento em teatro apontando uma alternativa de ação urgente e necessária: a forma- ção de professores-pesquisadores de teatro. Entendemos que o professor-pesqui- sador de teatro deve estar atento ao contexto contemporâneo, observar os limites impostos pelas metodologias adotadas, produzir novas formas de aprofundar os conhecimentos sem sujeitar-se a esquemas preconcebidos; tudo isso com o objetivo de melhorar a teoria e a prática teatrais e de incidir na realidade histórico-social. Por fim, gostaríamos de enfatizar que a noção do saber-fazer artístico com- porta, em si, uma segunda premissa fundacional para este trabalho reflexivo: a rei- vindicação de uma epistemologia própria para a investigação levada a cabo por pes- quisadores, professores e artistas de teatro. Muito mais que propor um rótulo de designação historicista, interessa questionar ativamente o território do teatro como lugar privilegiado de experimentação e interrogação que se alarga para âmbitos não estritamente reservados à pesquisa estética. Trata-se, portanto, de uma proposta de abordagem de amplitude alargada, uma opção pela inter/transdisciplinaridade que, ao ser capaz de gerar esta espécie de epistemologia para o lugar da interrogação tea- tral, terá a capacidade de refletir — não por inclusão, mas por alargamento — outras disciplinas, com particular ênfase naquelas que questionam diretamente o envolvi- mento das realidades com que o teatro se contextualiza para existir. 10 CARREIRA, André et al. (Org.). Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. 159 p. A PROBLEMATICIDADE EPISTEMOLÓGICA DO SABER TEATRAL 15 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Teoria estética. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 2006. CARREIRA, André et al. Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. DE MARINIS, Marco. Comprender el teatro: el lineamientos de una nueva teatrología. Bue- nos Aires: Galerna, 1997. FEYERABEND, Paul. Contra o método. 2. ed. Lisboa: Relógio D’Água, 1997. GUINSBURG, Jaco; COELHO NETO, J. Teixeira; CARDOSO, Reni Chaves. Semiolo- gia do teatro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: M. Fontes, 2002. KANT, Immanuel. Observaciones acerca del sentimiento de lo bello y de lo sublime. 2. ed. Madrid: Alianza, 1990. KHUN, Thomas. La estructura de las revoluciones cientificas. 2. ed. Madrid: Fondo de Cul- tura Económica, 1995. LAKATOS, Imre. Historia de las ciencias y sus reconstruciones racionales. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1987. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1980. SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990. UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006. 17 TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS Antonia Pereira Bezerra Em julho de 2004, no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Ini- ciação Científica, Pibic/CNPQ, ficou em cartaz na Sala 5 da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, UFBA, o espetáculo teatral Um dia na vida de uma enfermeira ou o porquê dos animais domésticos?, texto de Armand Gatti (França, 1970 – tradução nossa). Este espetáculo constituía o resultado prático do projeto de pesquisa intitulado O papel do espectador-ator, da pessoa e da personagem nas poéticas de Augusto Boal e Armand Gatti. A metodologia da encenação consistia na elaboração de um espetáculo de tea- tro-fórum, técnica emblemática do Teatro do Oprimido, ancorando-se, dramaturgi- camente, nas peças didáticas do Pequeno manual de guerrilha urbana1, projeto políti- co-pedagógico de Armand Gatti, o qual comporta, entre outras,a peça supracitada. Nosso interesse principal concentrou-se no exame da inserção/participação do espec- tador no fenômeno da representação teatral, interrogando o papel/desempenho desse espectador-ator, dessa pessoa-personagem no espetáculo. Essa pesquisa compreendeu, a priori, três etapas estruturadas em torno de uma problemática que considerou: • a relação ao engajamento político; • a relação pedagógica: “educação e liberação do espectador-pessoa”; • e, finalmente, os questionamentos sobre as preocupações estéticas: teatro de ação, improvisação e perfeição artística são compatíveis? Toda palavra somente porque autêntica e portadora de uma reivindicação legítima, merece ser encenada? Foi nesta perspectiva que escolhemos interrogar, no crivo da atualidade, uma técnica e um texto teatral oriundos de poéticas historicamente datadas: O Teatro- -Fórum e O pequeno manual de guerrilha urbana. Antes de expor detalhadamente as bases de nossa hermenêutica e nossa problemática, convém efetuarmos uma bre- ve apresentação dos autores e seus respectivos projetos. 1 Após os acontecimentos de maio de 1968, inspirando-se em Che Guevara, Gatti publica Le Petit manuel de guérilla urbaine. 18 ANTONIA PEREIRA BEZERRA Armand Gatti e Um dia na vida de uma enfermeira Para Armand Gatti2, diretor de teatro, o mais importante é a relação ao es- petáculo e não o espetáculo em si: a obra só passa a ter sentido na medida em que exerce uma ação. Gatti quer agitar o público, “levar aos espíritos um certo núme- ro de elementos susceptíveis de fomentar atitudes”3. Seguindo essa lógica, após os eventos de maio de 68 e a exemplo de Che Guevara, Gatti publica em 1969 o Peque- no manual de guerrilha urbana4 composto de uma série de mini-peças, as quais com- preendem um número reduzido de papéis (de um a sete), não necessitando nem do lugar teatral convencional nem de orçamento importante, sendo, por conseguinte, adaptáveis e transportáveis. Assim, em 1970, a peça intitulada La journée d’une Infirmière ou les Ani- maux Domestiques (A jornada de uma enfermeira ou o porquê dos animais do- mésticos), é representada em “foyers”, centros para jovens e em hospitais. Uma única atriz e uma equipe de apoio bastante reduzida são suficientes para a rea- lização desse espetáculo que conta com a participação dos militantes do meio hospitalar, disseminados na platéia, durante cada sessão. Gatti define e resume o objetivo e a essência do espetáculo e da protagonista nestes termos: “para que Louise junte-se ao combate de seus camaradas, é necessário que a estrutura da peça tenha um «defeito», um esboço sabiamente sedimentado, aberto às ima- gens a serem recebidas e aceitas, com o objetivo de exorcizar a vida (sua vida) profunda que ela castrou”. Augusto Boal Augusto Boal, artista, militante ativo, presidente dos Centros de Teatro do Oprimido – CTO do Rio de Janeiro e Paris, pode variar seu projeto em função dos lugares, das circunstâncias, das pessoas e suas necessidades, mas preserva in- tactos os objetivos essenciais de sua poética: transformar o espectador, ser passivo e depositário, em ator, em protagonista da ação dramática; nunca se contentar em refle- tir sobre o passado, mas em preparar o futuro5. Na origem e considerando o contex- to latino-americano, a Poética do oprimido investe no combate à dupla opressão (individual e coletiva) exercida no teatro e na sociedade: liberando o espectador da sua condição de espectador, ele poderá se libertar de outras opressões, acredita Boal. Desta premissa, nasce o conceito boaliano de espect-ator. A trajetória de Boal é desenhada pouco a pouco e obedece a uma lógica de criação teatral que se recusa a conceber a arte como isolada da vida. Numa atmosfera de experimentação e controvérsias, Boal cria gradativamente novas técnicas: Dramaturgia Simultânea, 2 Sobre a trajetória de Gatti e as peças do Pequeno Manual, remetemos o leitor ao artigo de nossa autoria, intitulado Armand Gatti: informando e formando espectadores-atores. BEZERRA, Antonia Pereira. Armand Gatti: informando e formando espectadores-atores. Sala Preta: Revis- ta do Departamento de Artes Cênicas, São Paulo, n. 2, p. 293-299, 2002. 3 GOZLAN, Gerard; PAYS, Jean-Louis. Gatti aujourd’hui. Paris: Seuil, 1970. p. 166. 4 O título foi voluntariamente escolhido em resposta à acusação do Comissário de polícia Sr. Grimaud que, no dia seguinte às manifestações do 10 de maio de 68, declarou: Nós tivemos que lidar com verdadeiros especialistas da guerrilha urbana (apud GONZLAN; PAYS, 1970, p. 252). 5 BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 25. TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS 19 Teatro Invisível e Teatro-Fórum6. Conhecida como a mais completa e espetacular das técnicas do arsenal, a fórmula/fórum, aliás, debate teatral, transformou-se no standarte do Teatro do oprimido7. O Teatro-Fórum Um espetáculo de Teatro-Fórum se decompõe em três partes: um aqueci- mento para favorecer o contato e aproximação de atores e espectadores presentes, seguido da representação da peça denominada antimodelo e, finalmente, do fórum propriamente dito. Preliminarmente à montagem do espetáculo, a troupe deve efe- tuar uma pesquisa de campo (caso a opressão seja exterior aos membros do grupo), ou então ela organiza um estágio de sensibilização com o grupo implicado na opres- são debatida. Após a representação do antimodelo, o Curinga8 expõe brevemente os mecanismos das ações/intervenções que se seguirão. Passando rapidamente da teoria à prática, ele convida os espectadores a “invadirem” a cena para se expressar com o corpo (assimilar algumas posturas, construir imagens a partir de outras), mas também para tomar consciência da sua profunda mecanização. Estes exercícios simples distendem a atmosfera e unem o público presente. A esse ritual segue-se a representação do Antimodelo, peça escrita sob um tema único, a opressão. Após a presentação, a troupe propõe-se a reapresentar a peça. Porém, desta vez, quando um espectador considerar que um dos personagens comete um erro, favorecendo a opressão, ele pode gritar Stop!, entrar em cena para substituir a personagem oprimida e os outros atores irão improvisar com ele a solução proposta. Mas, o jogo não é tão simples! Como na vida real, se a solução do espectador não é viável, ele perde e é devolvido à platéia pelo organizador do jogo, o Curinga. Nossa experiência Em nossa pesquisa, para viabilizar o jogo entre atores e espectadores, foi necessá- rio inverter um pouco a ordem dos fatos. Tendo em vista que a base do nosso antimode- lo era o texto Um dia na vida de uma enfermeira, primeiramente fizemos a presentação do espetáculo para, somente em seguida, aquecermos o público pelo viés da técnica do teatro-imagem. Em outras palavras, apenas no final da primeira presentação, construía- mos três imagens, que capturavam e retratavam os momentos mais cruciais da opressão debatida e exibíamos ao espectador. Essas imagens eram a única ponte entre a sala e a cena, o único viés entre a ficção e o jogo, o motor da entrada do espectador em cena. O espectador poderia, se quisesse e quando quisesse, assumir uma ou todas as imagens, usando da palavra ou apenas de gestos, e propor uma solução à opressão de Louise, a enfermeira protagonista9. 6 Para saber mais sobre o Teatro do Oprimido ver nosso livro Le Théâtre de l’Opprimé et la notion du spectateur-acteur (Genèse personne, personnage, personnalité). BEZERRA, Antonia Pe- reira. Le théâtre de l’opprimé et la notion du spectateur-acteur (Genèse personne, personnage, personnalité). Lille: ANRT, Presses Universitaires de Lille, 2002. 245 p. 7 O Teatro-Fórum nasce na periferia de Lima, Peru, em 1975, mas evolui na Europa. 8 Inspirado nas técnicas brechtianas, este personagem aparece em Arena contaTiradentes (Tea- tro Arena de São Paulo, 1968). Numa sessão de Teatro-Fórum, o Curinga desempenha o papel de mediador do jogo, exegeta e tem uma função maiêutica, pedagógica. 9 Para se ter uma idéia mais concreta e global dos dispositivos dramatúrgicos e técnicas de jogo 20 ANTONIA PEREIRA BEZERRA No tocante à dramaturgia, em face das características eminentemente épi- cas do texto de Gatti, tivemos que efetuar uma série de modificações para torná- -lo mais dramático e adaptável à técnica do Teatro-Fórum. La Journée d’une In- firmière, por exemplo, era um monólogo que comportava apenas a protagonista, Louise, e no qual acrescentamos mais dois antagonistas, conferindo à trama mais suspense e ação. Em outras palavras, fomos além de uma simples adapta- ção e reescrevemos a peça, pois para conferir uma dimensão mais dialética ao conflito de Louise, centrado na narração objetiva e crítica, inserimos na trama de Gatti, momentos de intensa subjetivação e objetivação, alternando a solidão de Louise com a invasão dos antagonistas, seus opressores que irrompiam no seu espaço, nas figuras da chefe do hospital (Sra. Kopalewski) e da colega do sindicato (Noune). Quanto ao resultado final, é evidente que em um mês, e mais algumas apresentações, não encontramos respostas para todas as questões levantadas e que muitas das hipóteses avançadas necessitam, ainda, de um contato mais longo e intenso com o público. Não obstante, no que concerne à participação do espectador, algo nos interpelou profundamente: o espetáculo montado den- tro de uma estética realista-naturalista (no que diz respeito à interpretação das atrizes), com uma abordagem épica para a narrativa, os cenários e demais aces- sórios, intimidava os espectadores. Acentuando deliberadamente o símbolo, a força da convenção teatral, evidenciando as fronteiras que separam o palco da platéia e sem prepararmos previamente o espectador para sua intervenção tea- tral, nos preocupávamos, essencialmente, em suscitar as intervenções sem abrir mão de uma técnica teatral elaborada, aliada a uma consciência política clara, a fim de evitar a manipulação e o sacrifício do rigor estético em detrimento da mi- litância e do imediatismo que toda e qualquer encenação sobre opressão impõe. Esse foi um grande desafio, uma dimensão pensada ao longo de toda a pesquisa e em todas as apresentações. Teoricamente, constatamos que o Teatro do Oprimido – a técnica do Teatro- -Fórum em particular – aliado à dramaturgia de Gatti, precisamente às peças do Pequeno manual, amplia a problemática do espectador e sua implicação no jogo teatral. Ambos os projetos discutem a dificuldade de ser, ao mesmo tempo, pessoa e personagem, de ocupar, simultaneamente, um espaço de vida e ficção interrogan- do as poéticas teatrais, a natureza e os fins do jogo teatral. Entretanto, noite após noite, na prática, durante a construção das imagens e diante de um longo e pontual silêncio, como se ninguém pudesse ou quisesse intervir, até que uma mão timida- mente se elevasse e uma silhueta saísse da penumbra da platéia e irrompesse o palco iluminado; diante da avalanche de intervenções que se sucediam, vencendo este pri- meiro momento de pudor, não mais nos colocávamos questões de ordem estética ou política, não mais pensávamos em oprimidos nem opressores strictu sensu. Por alguns instantes, impactados, diante do eterno encanto do teatro, perguntávamo- -nos, apenas, como e onde, ao longo da história, já estariam prefiguradas poéticas nas quais o “ator social” desnuda o “ator teatral” e aponta o problema de seus des- tinos comuns. Remontando o fio da história, em quantos outros gêneros e formas aplicadas ao espetáculo, ver nosso vídeo sobre ele que está disponível no acervo videográfico da Escola de Teatro/PPGAC da UFBA. TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS 21 teatrais os personagens já simularam algumas crises, abandonando a cena e invadin- do a vida? Em outras palavras, para além dos objetivos políticos, terapêuticos, onde e como, no túnel do tempo, o Teatro-Fórum e sua ancestral e imanente pedagogia da intervenção já se prefiguravam? Outros diálogos possíveis ou a gênese do Teatro-Fórum Quando de sua chegada à Europa, perguntaram a Boal se era possível aplicar ali as técnicas concebidas e realizadas em resposta – estética e política – à intolerável repressão que se exercia na América Latina. Perplexo, ele hesitou em dizer sim. Atu- almente, essa questão não se coloca mais. A prática reafirma que essas técnicas não foram inventadas por alguém, nem para um continente específico, como sempre proclamou o seu autor: o Teatro do Oprimido sempre existiu. Inúmeras são as trupes e encenadores modernos que, no ocidente, tentaram re- encontrar e reafirmar os vestígios das origens, resgatando a pedagogia da intervenção e do lúdico na representação. Se adotarmos o ponto de vista do historiador, nesse so- brevôo desprovido de rigor cronológico, poderíamos dizer que o Teatro-Fórum e sua pedagogia da intervenção já se prefiguravam a partir do momento em que o homem primitivo começou a “representar” seu medo, suas angústias e suas obsessões a fim de exorcizá-los. Quando evocamos o fenômeno da representação e sua “origem”, o que nos vem ao espírito é, indubitavelmente, a imagem do homem pré-histórico acre- ditando poder controlar, domar os animais recriando-os, representando-os, com sua mão pensante10. Remetemo-nos, igualmente, às danças xamânicas, aos jeux da Idade Média – os mistérios e milagres, os laudus - com suas incidências políticas e sociológi- cas consideráveis. Certamente, tal viagem no tempo ultrapassa o alcance deste traba- lho, mas não nos impede de sobrevoar até a metade do século XVI11, até à Commedia dell’arte, por exemplo. A Commedia dell’arte Esse gênero teatral fecundou dois séculos de civilização européia e modelou as formas teatrais mais reconhecidas como o teatro de Shakespeare ou de Molière. Seus traços principais – a improvisação, os personagens fixos, a espontaneidade – privilegiam o ator e o texto e não a personagem. Assim, pela utilização que se faz, neste gênero, da espontaneidade a partir de cannovaccios preestabelecidos, ousamos aproximar o Teatro- -Fórum da Commedia dell’arte. Com efeito, esta como aquele levantam e, de certa maneira, simplificam o paradoxo do comediante. Mas, ao contrário do Teatro-Fórum, se a Commedia dell’arte permite a ab-reação12, paralelamente ela não conduz o especta- dor ao distanciamento; se ela oferece ao público um espelho, não o autoriza, todavia, a 10 Claude Lévi-Strauss, Michel Leiris, Roger Bastide e Sigmund Freud, entre outros, contribuí- ram para o esclarecimento desta questão. 11 Mesmo se ousamos infringir a cronologia da “história do fenômeno da representação, em geral, e da representação teatral, em particular”. 12 Psicanálise: descarga emocional mais ou menos intensa, em que o indivíduo revive um aconte- cimento traumático que o libera da repressão à qual estava submetido e que pode ser espontânea ou manifestar-se no curso de certos processos psicoterápicos, por ação deles. PSICANÁLISE. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 13. 22 ANTONIA PEREIRA BEZERRA tornar-se o outro – o personagem ativo (o ator), mas apenas ele mesmo, a pessoa passiva (o espectador). A Commedia dell’arte se contenta em oferecer um rico e “belo arsenal” de máscaras, de espelhos e disfarces. Se quatro séculos mais tarde a representação se pre- tende o duplo da vida, como desejou Artaud em seu projeto visionário, atualmente, no Teatro do Oprimido, ela pretende desfazer-se de todo um revestimento anacrônico para tornar-se a própria vida. Boal sustenta, com efeito, que o Teatro-Fórum, em particular, é um meio “muito mais rico que umaassembléia” onde acontece, freqüentemente, que se digam coisas como se diriam muitas outras. O teatro shakespeariano: Hamlet (v. 1600) As representações do Antimodelo e seus aspectos pedagógicos compor- tam, igualmente, algumas analogias com o teatro shakespeariano. Em Hamlet, por exemplo, é feita uma magistral utilização da ab-reacção, pelos jogos de re- flexos e de espelhos. O desejo de “desalienar-se” desencadeia não somente uma busca pela verdade, mas também por alternativas de comportamento face à situ- ação conflituosa que se representa. Sem querer reforçar o clima “freudiano”, que muitos críticos acreditam discernir nas grandes tragédias shakespearianas, pen- samos que Hamlet é mais que “teatro no teatro”. A exemplo de Sonho de uma noite de verão (v. 1595), essa peça recria uma atmosfera atravessada pela agulha das paixões humanas, portadora de todas as possibilidades de interpretação, de esclarecimento e, até mesmo, de (re)utilizações. Não é por acaso se cada época soube encontrar em Hamlet referências a sua própria história. A peça dentro da peça poderia ser lida como um Teatro-Fórum onde o “Curinga Hamlet” vigia e dirige o jogo, sob os traços de um espectador dissimulado na sala, inquirindo, “jogando verde para colher maduro”. O personagem de Hamlet aborda a questão da primazia do papel, onde a catarse do espectador religa-se a do ator. Mas, notemos que a catarse que se opera aqui, a da “grande peça”, distancia-se da noção boaliana do termo para aproximar-se, a priori, da concepção aristotélica, pois, embora nesta peça uma metalinguagem tenha lugar, além de Claudius, da rainha Gertrude e de Ham- let, os outros espectadores, ignorantes da “situação”, permanecem passivos: eco desconcertante com o Teatro-Invisível que Boal, atualmente, hesita em praticar. Além disso, o papel de Hamlet é um papel imposto. Hamlet aceita a situação mesmo revoltando-se contra ela. Tal qual os oprimidos, é constrangido e forçado que desempenha o seu papel. Hamlet busca liberar-se da opressão porque ele é outro além da personagem, ele a ultrapassa. O Teatro-Fórum não reivindica esse desenvolvimento do indivíduo pelo viés do personagem que se realiza na direção que lhe é própria? Reavaliar-se no Teatro-Fórum significa tornar-se a si mesmo, confrontar-se à sua identidade humana profunda pela mediação do drama, da opressão vivida e representada. Essa peça dentro da peça poderia ser um fórum onde Hamlet, o Curinga, vigiaria as verdadeiras ações de seu tio, o rei fratricida, incapaz de suportar a representação de seu crime. Um fórum onde, graças ao teatro, procura-se a ver- dade e a liberação. Se Hamlet está dividido entre ser e não ser, os protagonistas do Antimodelo, esses “personagens” com “personalidades” diferentes, podem TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS 23 – uma vez que a representação e diante das alternativas a suas questões – de- cidir fugir, acomodar-se ou lutar. Não é depois da representação, pela voz do real e não pela voz, talvez enganadora, de um fantasma, que Hamlet sabe onde se encontra a verdade? Por outro lado, é preciso admitir que ele cai numa nova armadilha; a partir daí, ele se impõe um outro papel: o do justiceiro, para quem é tarde demais para renunciar. Mas, toda pedagogia da intervenção não pressupõe uma implicação? Luigi Pirandello (1867 - 1936) Sempre nesse espírito de busca por uma “prefiguração” do Teatro-Fórum e sua pedagogia da intervenção, como não pensar em Luigi Pirandello, em seu teatro de más- caras e reflexos? Como não pensar nessa exploração das profundezas de identidades te- lescopicamente examinadas e nesse questionamento não somente da noção de barreira entre o palco e a platéia, mas também das noções de realidade e ficção? Seis personagens a procura de um autor nos parece mostrar que o teatro é que é verdade e o travestimento, nudez; que a máscara, no sentido etimológico do termo, é que é real. Pirandello nos mostra que os verdadeiros vivos de sua peça são personagens aparentemente irreais, que questionam a identidade e a presença carnal dos chamados vivos. Entretanto, ao exami- nar mais de perto, esses personagens recusam o monopólio dos atores de carne e sangue que representam a peça de um certo Pirandello, num certo teatro, diante de um certo público. Eles reivindicam, assim, o direito à existência. Isso nos remete, de certa manei- ra, às disputas (estéticas e políticas) entre oprimidos-artistas e atores profissionais. Moderamos, pois, a comparação, uma vez que o teatro de Pirandello, se não aborda a questão da “loucura” diretamente, no mínimo, alude com freqüência aos jogos de espelhos da loucura. É provável que o drama familiar de Pirandello, a “doença” de sua mulher Antonietta esteja na origem do lugar atribuído à loucura em suas obras. O jogo constante entre o real e a aparência impregna suas peças de uma dialética cortante e patética do ser e do parecer. Isso é, particularmente, impactante em Henrique IV (representada pela primeira vez em 1925). Ressalte- -se, também, que a maior parte das peças de Pirandello foi concebida para ser representada de maneira convencional, mesmo se, às vezes, os atores invadem a sala e convidam os espectadores a subir no palco, a exemplo de Assim (Assado), representada pela primeira vez em 192613. Enfim, sua trajetória de homem não testemunha de nenhuma rejeição à instituição teatral. Em Seis personagens a procura de um autor, quando o Pai reage contra a into- lerância do Diretor, o qual se recusa a acreditar que está, realmente, diante de per- sonagens, cujos dramas da vida imaginária permanecem inacabados, confissões em aparência patéticas, mas, na verdade profundas, jorram: 13 Nessa peça, uma trupe representa o drama verdadeiro de uma atriz decadente (La Mareno, a qual se encontra na sala). Indignada, ela ameaça entrar em cena, mas seu marido a contém. No entreato, ela decide ir às coxias invectivar a trupe e, particularmente, a atriz que representa seu papel. Isso lembra um Fórum relatado por Boal, em Jogos para atores e não atores, ocorrido em 1980, em Grodano (povoado da Sicília), onde o prefeito, tomado de cólera diante do ator que representa seu papel (é um opressor, se é preciso esclarecer) e, não se contendo, mais grita Stop!, entra em cena e representa ele próprio. 24 ANTONIA PEREIRA BEZERRA [...] o senhor diz que não tem tempo a perder com loucos e, no entanto, ninguém melhor que o senhor pode saber que a natureza se serve da imaginação humana para continuar num plano mais elevado seu trabalho de criação14. Apesar da sinceridade desses propósitos, o Diretor e a trupe dos “verdadeiros atores” não consegue escapar de julgar a situação absurda e inverossímil. Numero- sas são as sessões do Teatro-Fórum em que, quando o Curinga (duplo de Boal) grita Stop é mágico!, os espec(atores), indignados, recusam-se a deixar a cena, persuadidos de que suas proposições, julgadas “ilusórias” pelo diretor do jogo, são perfeitamen- te realistas e aplicáveis. Também os cannovaccios do Antimodelo, qualificados de inferiores em rela- ção à “dramaturgia clássica e dominante”, remetem à cena em que o Diretor pergun- ta aos seis personagens onde está o manuscrito de suas vidas. O Pai (duplo de Pi- randello), vítima das zombarias dos “verdadeiros atores”, replica: “Ele está em nós, senhor Diretor. O drama está em nós; nós somos o drama e estamos impacientes para representá-lo, como nos impele a paixão que ferve em nós!”. Assim, eles rei- vindicam que seus papéis sejam representados por eles e não pela trupe profissional que se “recusa” a deixar o palco. Não poderíamos encontrar eco mais justo para (re) evocar os desacertos dos espect(atores), em suas improvisações na cena “sagrada” do teatro. E, mais particularmente, no que concerne à intensidade emotiva que revira toda sessão do Teatro do Oprimido.Como Pirandello com seus “personagens”, Boal não cessa de clamar às “pessoas”: “Deixemos os oprimidos se exprimir, porque somente eles podem nos mostrar onde está a opressão”15. Esse descomprometido sobrevôo nos leva a uma outra interrogação importante. A representação e o sagrado: outra vez o lúdico, outra vez a pedagógica da intervenção Há uma idéia muito difundida de que a noção de sagrado, na representação em geral, está estritamente ligada à história do homem, posto que ela aparece nas danças xamânicas (ou ainda nas danças rituais dos Orixás no Brasil), mas também nas pinturas rupestres16. Do mesmo modo, a reencontramos na teatrali- dade dos cultos de possessão ou da representação – o que é dado em espetáculo, o que reatualiza o mito permitindo o exorcismo e sucessivo estabelecimento e quebra da magia. Quer consideremos as danças xamânicas, o vodu haitiano, as danças de possessão dos Sonrhais do Niger e mesmo os Mestres loucos, do filme etnográfico de Jean Rouch17 – do qual Jean Genet tiraria sua obra prima Les Nègres, em 1958 – o tempo parece ter sofrido uma espécie de curto-circuito; ou, talvez, seja a prova da unicidade do homem, idêntico a si mesmo para além dos milênios. Tanto no homem da pré-história, quanto em nossos contemporâneos, 14 PIRANDELLO, Luigi. Six personnages en quête d’auteur (suivi de Chacun sa vérité, Henri IV, Comme ci (ou comme ça). Paris: Gallimard, 1950. p. 17. 15 BOAL, Augusto. Stop! C´est magique. Paris: L’Échappée Belle/Hachette Littérature, 1980. p. 22. 16 Sobre o tema, consultar MARINGE, Jean. L’homme préhistorique et es Dieux. Paris: Ar- thaud, 1958. 17 Filmado em 1955 no subúrbio de Accra, em Gana (que se chamava, então, Gold Coast), esse filme recebeu o primeiro prêmio entre os filmes etnográficos, geográficos, turísticos e folcló- ricos, no “Festival Internacional de Veneza”, em 1957. Falaremos mais tarde de sua temática. TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS 25 submetidos à aceleração aparente da história, reencontramos as mesmas preocu- pações essenciais, a mesma tentativa de dominar as situações pela representação, seja com relação a Deus – pelo viés do sagrado –, seja com relação à condição de dependência aos fatos. E em quaisquer das situações, o lúdico e a pedagogia da intervenção se con- figuram como uma via privilegiada para se atingir os fins, de sorte que, também nesse domínio, a busca por “controle”, que passa pela representação, poderia ser vista como uma sorte de eco longínquo da Poética do Oprimido, do Teatro-Fó- rum, notadamente em seu drama/debate que, pretendendo liberar o homem de uma opressão vivida, incita a pessoa a “transgredir” os limites de sua personalidade, pela metamorfose do espectador em personagem. Não obstante, precisamos relativizar a noção de rito e levar em consideração o conteúdo diferencial, ainda que o mimetis- mo identificado nos “rituais de possessão” como uma constante – “posto que posso me tornar você, eu te domino” – é, de certa maneira, uma das buscas do teatro. Um dos postulados fundamentais da Poética do Oprimido não é a “ficção antes da realidade”, ou seja: “posto que posso representar minha libertação, posso realizá-la em seguida na vida?” Os mestres loucos Para aprofundar essa questão, evocaremos Os mestres loucos, filme que nos mostra uma cerimônia sacrificial entre os africanos do subúrbio de Accra (capital de Gana). Habitantes do vilarejo da etnia Haouka transformam-se em possuídos: um cão é degolado (nesse momento, os iniciados bebem seu sangue), depois esquarteja- do e comido. Além da dança e do transe, podemos interrogar-nos como o cineasta, por que comer um cão? Posto que se trata de uma carne totalmente proibida, os Ha- oukas pensam que ao ingeri-la serão mais poderosos que todos os outros homens, negros ou brancos. O filme de Jean Rouch remete não somente aos rituais do sacrifício grego do bode, mas também à refeição totêmica freudiana, o mito dos irmãos cassados que matam e comem o pai, o ancestral do grupo, o espírito protetor. Transgredindo a ordem das coisas, do sagrado consagrado, eles se tornam tabus. Ora “ [...] o tabu é um ato proibido, em cuja direção o inconsciente inclina-se com uma tendência muito forte”18. Essa questão concerne não somente o teatro, mas também todo um ramo médico e político. Em Magia e religião, Claude Lévi-Strauss parte do princí- pio que “eficácia simbólica, cura xamânica e cura psicanalítica são reorganizações estruturais entre corpo e psiquismo”. A esse respeito basta escutar a voz em off de J. Rouch para se convencer: [...] quando o sacrifício é cometido, o inconsciente é liberado; os mitos podem entrar em ação. E desses OPRIMIDOS, livres dos limites, a chaga do medo jorra à luz dia: o mais constrangedor de seus mitos, a imagem de seus OPRESSORES, eles encarnam a imagem incoerente, incompreensível, que se fazem dos branco, poderosos e dife- rentes até parecerem desumanos. 18 FREUD, Sigmund. Totem et Tabou. Paris: Payot, 1965. p. 57. 26 ANTONIA PEREIRA BEZERRA Não se trata aqui de procurar saber se os “possuídos” fingem ou, ainda, de diagnosticar a possessão. Se é verdade que o possuído alcança um estado que põe em jogo a totalidade de seu ser, poderíamos, então, perguntar-nos se o teatro, como a possessão, não seria uma busca por “remédios” para “curar a vida”? Ora, na manhã seguinte ao ritual, Jean Rouch vai reencontrar os Haoukas – com sua câmera – não mais na floresta, mas na cidade, cada um em seu papel, sua função social habitual. Diante de seus rostos sorridentes e seus comportamentos “pacíficos”, o autor se pergunta “se esses homens da África não conhecem certos remédios que lhes per- mitem, por uma via incomum, integrarem-se perfeitamente a seu meio [...] Remé- dios que nós os ocidentais não conhecemos ainda”. Antonin Artaud Em busca de remédios para curar a vida, a exemplo de Freud, mas ao contrário de Brecht que concebia o poder ideológico apenas como uma potência “exteriora”, Artaud, em sua inquietante trajetória, também sabia que o nosso “ser profundo” é infectado por monstros, por todo um conjunto de pulsões destruidoras acumula- das em nós desde a infância. Porém, Artaud jamais pôde praticar seu teatro. Suas aplicações teóricas conheceram o fracasso, suas peças não tiveram repercussão nem na França nem alhures19. Les Cenci foi “um desastre financeiro” (somente dezessete representações), ainda que, para ele, tenha sido “um sucesso no absoluto”20. A breve aventura do teatro Alfred Jarry (1926 – 1930) faz nascer no plano teórico – e com furor – aquela do teatro e seu duplo: poesia, loucura, filosofia e profecias dialogam de maneira extraordinária. Em 1935, o autor parte para o México, país dos Tarahu- maras, em busca do mana. Mas, as montanhas mexicanas, gravadas com corpos de homens esculpidos como sinais na rocha, já rondavam o imaginário de Artaud des- de 1933, ano em que inicia suas pesquisas sobre Héliogabale ou o anarquista coroado. Em 1934, ele publica um primeiro ensaio, El Gabal – encarnação do mito hermafro- dita adorador do sol e da pedra negra ELAGABALE: “Esse Deus ELAGABALUS, ou saído da montanha, cume brilhante, vem de muito longe”21. Considerações conclusivas: o fim do começo Se as noções de jogo, de opressão e de intervenção concernem tanto o tea- tro, a psicologia, quanto a política e a educação, a necessidade de diálogos como estes que estabelecemos ao longo deste ensaio torna-se imprescindível, sobretudo pelo fato da técnica aqui analisada trabalhar, dialeticamente, com todas essas no- ções. Ora o Teatro-Fórum é uma pedagogia da e pela intervenção teatral. Assim, interrogamo-nos, ainda, enquanto professora e pesquisadora: o que ensejamos pre- cisamente? Fazer dos estudantes melhores espectadores, amadores esclarecidos e mais exigentes ou transformá-los igualmente em «atores»?Será necessário então iniciá-los numa arte concebida como separada da vida? Teremos que engajá-los em montagens de espetáculos, levando-os a preservar, paralelamente, a ruptura entre 19 Notadamente Ventre brulé ou la mére folle (1926), Les Cenci (1930) adaptada de Shelley, di- rigida e representada pelo próprio Artaud. 20 ARTAUD, Antonin. Le théâtre et son double. Paris: Payot, 1960. p. 10. 21 ARTAUD, Antonin. Héliogabale ou l’anarchiste couronné. Paris: Gallimard, 1979. p. 17. TEATRO-FÓRUM: UMA PEDAGOGIA DA INTERVENÇÃO E OUTROS DIÁLOGOS POSSÍVEIS 27 mimesis e criação nos seus comportamentos sociais? Ou será questão de ensinar- -lhes, de uma só vez, que o teatro é uma dimensão substancial do ser humano, o Solar e o Lunar, Apolo e Dionísio, a clareza de espírito e as profundezas noturnas do ser? Não se trata, aqui, de estabelecer um equilíbrio estático entre Apolo e Dio- nisio ou, para retomar as oposições binárias, de colocar um pouco de «papel» e um pouco de “personalidade”, um pouco de Brecht, um pouco de Artaud, sob pena de confundir dois enfoques absolutamente distintos: o da arte e o da vida cotidiana. Seguir quem acredita que “o homem-espectador” pode ser o criador e mestre do destino do “homem-personagem”, quem clama como Boal “Não digam! Venham em cena e mostrem-nos suas visões do mundo”22, ou quem prefere, como Gatti, ir ao encontro dos “atores da realidade” e reapropriar-se com eles do “poder da lin- guagem teatral” para se tornarem “criadores” seria uma opção eficaz? A dimensão prática desse projeto respondeu a muitas dessas importantes questões. 22 BOAL, 1980, p. 50. 28 ANTONIA PEREIRA BEZERRA REFERÊNCIAS ARTAUD, Antonin. Héliogabale ou l’anarchiste couronné. Paris: Gallimard, 1979. ARTAUD, Antonin. Le théâtre et son double. Paris: Payot, 1960. BEZERRA, Antonia Pereira. Armand Gatti: informando e formando espectadores-atores. Sala Preta: Revista do Departamento de Artes Cênicas, São Paulo, n. 2, p. 293-299, 2002. BEZERRA, Antonia Pereira. Le théâtre de l’opprimé et la notion du spectateur-acteur (Genèse personne, personnage, personnalité). Lille: ANRT, Presses Universitaires de Lille, 2002. BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. BOAL, Augusto. Stop! C´est magique. Paris: L’Échappée Belle/Hachette Littérature, 1980. BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. FREUD, Sigmund. Totem et Tabou. Paris: Payot, 1965. GATTI, Armand. Théâtre complet. Paris: Verdier Lagrasse, 1970. 3 t. GOZLAN, Gerard; PAYS, Jean-Louis. Gatti aujourd’hui. Paris: Seuil, 1970. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Paris: Plon, 1958. MARINGE, Jean. L’homme préhistorique et es Dieux. Paris: Arthaud, 1958. MANNONI, Octave. Les clefs pour l’imaginaire. Paris: Seuil, 1980. PIRANDELLO, Luigi. Six personnages en quête d’auteur (suivi de Chacun sa vérité, Henri IV, Comme ci (ou comme ça). Paris: Gallimard, 1950. PSICANÁLISE. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. ROUCH, Jean. Lês maîtres fous. Paris: Cinémathèque, 1953. 29 METODOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS DO ENSINO DE TEATRO: EM FOCO A SALA DE AULA Arão N. Paranaguá de Santana Na virada do milênio, as concepções culturais emergentes germinaram no campo da educação valores como respeito ao receptor, intertextualidade, fragmentação de um discurso anteriormente linear, pluralismo, utilização de meios tecnológicos inovado- res, dentre outros fenômenos que vislumbram, a um só tempo, ruptura e crise, face ao convívio com procedimentos desgastados, embora recorrentes – didáticas autoritárias, práticas repetitivas, o novo que se acha belo porque desconhece memória e tradição. Perplexidades como essas têm motivado o debate em encontros de especialistas, pesquisas e publicações, fazendo-se presente, sobretudo no trabalho cotidiano dos do- centes. Nesse esteio surgem estudos consubstanciados na nova sociologia da educação, na psicopedagogia, na teoria crítica, na pedagogia dos conteúdos, no multiculturalismo e noutras vertentes que compõem o imenso arquipélago da teoria social da atualidade. Esses trabalhos têm contribuído para o avanço de propostas teóricas e meto- dológicas relativas ao ensino e ao aprendizado, possibilitando aos educadores certo distanciamento para que possam relativizar as diferenças entre os estágios de desen- volvimento material e cultural dos alunos, concedendo-lhes, também, as estratégias para compreensão dos percursos de entrada e saída numa modernidade alcançada apenas por pequena parcela da população mundial1. Em face desses fenômenos estampados no tecido social e suas implicações na escolarização, creio que o ensino de Arte, ou pelo menos uma parcela significativa de seus praticantes, tem procurado fundamentar-se em obras e conceitos revelados na arte contemporânea, no fazer dos artistas, no pensar dos críticos, nas práticas culturais co- munitárias, nas propostas de museus e instituições culturais, sem ignorar, contudo, a realidade da sala de aula. Creio, também, que essa jornada ruma para a superação do fa- zer que caracterizou o sentido da formação em arte predominante durante séculos, bem como do sentir enquanto esfera da liberdade expressiva de fundo psicológico que alude à imanência estética, mas que, na verdade, não penetra na essência da arte, retomando a questão da reflexão como estatuto de um pensar que existe para tecer conexões entre esses três componentes da ação artística e pedagógica – fazer, sentir, pensar. 1 CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1998. p. 17-30. 30 ARÃO N. PARANAGUÁ DE SANTANA Com o objetivo de contextualizar essa argumentação perante às indagações deste VI Seminário de Linguagens Artísticas, sou levado a guiar-me a partir de al- guns pontos: i) em que bases metodológicas constituiu-se a área de Teatro-Educa- ção? ii) como adaptar as proposições mais interessantes à realidade da sala de aula? iii) qual o perfil e o que pensam os professores, já que são eles os responsáveis diretos pela produção de conhecimentos e práticas escolares? Considerando o quadro complexo que se apresenta para a compreensão de questões tão abertas, tentarei verificar, a partir de uma perspectiva histórica, se no caso das didáticas do Teatro é possível – ou não – assumir um discurso vanguardista, como nas Artes Visuais, por exemplo, campo onde florescem metodologias pós- -modernas. Significados do teatro na escolarização Desde Aristóteles, tem-se pensado muito sobre o potencial reflexivo que per- meia o fazer e o fruir, o pensar e o sentir contidos na arte dramática. A palavra drama vem de dromenon, referindo-se à ação, ao passo que teatro, vocábulo que também veio do grego, significa lugar donde se vê. Essa capacidade de ver-se em ação, criticando e apreciando os próprios gestos e atitudes, constituiu-se num re- curso vital para o processo de humanização da natureza e, sendo inerente à atividade artística, tem implicações ontológicas no campo da educação. Os nexos epistemológicos originários do Teatro-Educação remontam a um passado longínquo, embora sua vertente no ensino formal tenha sido consolidada somente nesse século, em resposta às necessidades do teatro moderno e aos recla- mes da sociedade em prol de uma consciência cidadã plenamente democrática. Assim, no âmago de sua própria historicidade, criou-se uma cultura com- preendendo os fins do Teatro na escolarização, suas metas pedagógicas e estéticas, conteúdos, atividades facilitadoras do aprendizado e procedimentos de avaliação. Ao longo desse processo de tornar-se disciplina foram sendo configurados métodos e teorias, visando-se superar osobstáculos suscitados através da ação. Não consigo pensar em desenvolvimento curricular sem visualizar a imagem dos sujeitos que, na prática, são os deflagradores do processo de ensino e, como motivadores do aprendizado, escolhem os caminhos da ação pedagógica. Para Gisèle Barret, o especialista em Teatro-Educação é um personagem estra- nho entre-deux, considerando-se a ambigüidade de sua atuação no limiar do teatro e da educação. A autora entende que essa área carece de definições no âmbito dos fundamentos, apesar de sua história importante no cenário acadêmico e escolar, propondo as seguintes reflexões: Somos generalistas, especialistas, generalistas-especialistas ou especialistas-generalistas? Nós jogamos ou criamos arte? Fazemos teatro, teatro na educação, teatro improvisacio- nal ou educação através do teatro? Usamos arte, ensinamos arte ou fazemos arte?2 2 BARRET, G. Le spécialiste en théâtre éducation: une personnage étrange entre-deux. IDEA Journal: Polyphonic voices, rainbow worlds: one destiny, v. 1, n. 1, p. 6, 1997. Tradução livre do autor em parceria com Ulisses Ferraz de Oliveira. METODOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS DO ENSINO DE TEATRO: EM FOCO A SALA DE AULA 31 Acirrando esse debate, Charles Combs observa que para realizar bem sua fun- ção o especialista em ensino de Teatro estabelece metas, objetivos e procedimentos, atribuindo, porém, propósitos bem mais específicos para sua conduta: Nós queremos que o estudante aprenda, transforme-se e busque desenvolver-se; nós ensinamos, agimos, encenamos, criamos performances cotidianamente e interferi- mos mediando ações dentro das escolas, em contextos formais ou informais; usamos métodos de ensino, formas artísticas e valores culturais no nosso trabalho; trabalha- mos como artistas, professores e mediadores — nós desejamos que o estudante ou pessoa continue a aprender e a desenvolver-se através da vida sem a nossa interven- ção3. Citei os pontos de vista desses dois especialistas internacionais com a in- tenção de atualizar o debate sobre os alicerces do Teatro-Educação e, assim, compreender melhor o perfil atribuído aos docentes, alimentando a reflexão acerca de um dilema sempre recorrente – estar entre dois. Para a superação des- se entrave, Combs estabelece conexões entre quem e onde são produzidas as teorias e as propostas didáticas, assegurando que há uma fusão entre o que as lideranças intelectuais realizam e a ação das instituições; como corolário dessa argumentação, cita exemplos de parcerias que se revestiram de sucesso acadê- mico em seu país4. No caso brasileiro, pode ser comprovada uma situação semelhante, consideran- do-se a atuação decisiva de algumas universidades na pós-graduação, de seus professo- res na pesquisa e publicação de livros, além dos personagens pioneiros e outros mestres do presente que, com sua ação, vêm dando notoriedade ao ensino de Teatro5. Breve historiografia da didática do teatro na realidade escolar brasileira Até aqui busquei situar a disciplina Teatro frente ao estado atual da cultura, como pano de fundo para entender sua prática escolar numa época “de tecnologia avançada, iluminismo científico e iluminação estética6”, ao tempo em que propus uma reflexão sobre algumas questões pontuais. Tentarei agora discutir a insurgência dos métodos a partir de contribuições historicamente situadas, dando ênfase às in- fluências absorvidas pela educação brasileira. 3 COMBS, C. E. The drama/theatre/artist/teacher/educator/scholar matrix. IDEA Journal: Poly- phonic voices, rainbow worlds: one destiny, v. 1, n. 1, p. 10, 1997. Tradução livre do autor em parceria com Geraldo Salvador de Araújo. 4 Combs registra a seguinte relação de personagens e instituições: Winifred Ward / Northwest- ern University; Kenneth Graham / The University of Minnesota; Geraldine Silks / The Univer- sity of Washington; Jed Davis / The University of Kansas (COMBS, 1997, p. 11). 5 Mesmo correndo o risco de esquecer nomes importantíssimos para a história do Teatro-Educa- ção nacional, cito os seguintes: Aladir Santos Lopes, Amicy Santos, Antonio Januzelli, Augusto Boal, Beatriz Ângela Vaz, B. de Paiva, Clóvis Garcia, Dilza Délia Dutra, Fanny Abramovitch, Flávio Império, Helena Barcelos, Hilton Carlos de Araújo, Ilo Krugli, Ingrid Dormien Koudela, Joana Lopes, Laís Aderne, Lúcia Benedetti, Luiza Barreto Leite, Luiz Paulo de Freitas, Maria Ali- ce Vergueiro, Maria Clara Machado, Maria Lúcia Pupo, Paschoal Carlos Magno, Olga Reverbel, Santa Rosa, Yan Michalski, Yara Silveira e muitos outros (a relação foi elaborada, originalmente, por Marcos Bulhões). 6 NUNES, B. Educação artística e filosofia da arte. Rio de Janeiro: MEC: FUNARTE, 1986. p. 3. 32 ARÃO N. PARANAGUÁ DE SANTANA O aprendizado cênico secularizou-se através do fazer e, sobretudo, funda- mentado na instrução do mestre, procedimento que assegurou a existência de troupes e famílias de artistas, inclusive nos momentos em que o teatro era uma atividade proibida pelo poder instituído. Na perspectiva da educação, Rousseau, Pestalozzi e Froebel observaram que o jogo proporcionado pelo teatro era um poderoso estímulo para o desenvolvimento da criança, sugerindo pistas para a investigação de pensadores como Dewey, Piaget e Wygotsky. Esse legado conceitual possibilitou aos educadores do presente século a formulação de idéias e métodos de ensino, calcados no movimento conhecido mun- dialmente por escola nova. Foram muitas as tendências teatrais representativas desse momento da pedagogia ocidental, destacando-se o play way, de Caldwell Cook; jogo dramático infantil, de Peter Slade; creative dramatics, de Winifred Ward e Brian Way; dança moderna educacional, de Rudolf Laban, Alan Garrard e Lise Ullman; linguagem criativa, de Marjorie Hourd; psicodrama, de Jacob Moreno. Apesar dos avanços teóricos e metodológicos que vieram à tona com esses movimentos, predominou na escola uma visão espontaneísta que velava a essência da arte dando ênfase à livre-expressão, ao invés de instaurar experimentos geradores de saberes, práticas e fruição de obras. Educadores e artistas desfraldaram bandeiras alardeando a importância do processo educativo em detrimento do produto estético, seja nas escolas ou nos movimentos políticos de conscientização popular7. Era esse o pensamento praticado na escola brasileira quando a Educação Artística foi implantada, salvo raríssimas experiências isoladas. Nas aulas de Artes Cênicas, os professores limitavam-se a propor temas e distribuir material, deixando os alunos livres para improvisar à vontade. Somente aqueles mais tradicionais incorporavam o texto dra- mático, sendo muito comum a montagem de pecinhas em datas comemorativas. Nesse cenário, desenvolveu-se uma pseudoteoria que separava o que era arte do que poderia ser educação, mapeando em categorias estanques o teatro formal e o teatro educativo. Durante anos de 1980, o quadro da Educação Artística polivalente – e, portan- to, das Artes Cênicas – transfigurou-se aos poucos. Foram implantados cursos supe- riores em proporção geométrica, os professores tomaram as rédeas de sua própria his- tória, ao tempo em que surgiram pesquisas sobre o Teatro na educação fundamental, dando início a uma profusão de idéias e práticas que hoje em dia vêm sendo avaliadas. Além das experiências que se avolumaram no interior de escolas e instituições culturais, outros fatores contribuíram para esse salto qualitativo do Teatro-Educa- ção, ressaltando-se os seguintes: i) o intercâmbio com o estrangeiro, seja através da divulgação de livros ou da vinda de especialistas renomados para ministrar cursos, participar de seminários e dar consultoria; ii) a larga difusão de obras como Impro- visação para o teatro, de Viola Spolin, indicativa de caminhos para o ensino da lin- guagem cênica para crianças, adolescentes e adultos; iii) o surgimento tímido, mas
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