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O PT e a Revolução Burguesa no Brasil. Mauro Luis Iasi “Um torneiro mecânico com tendências socialistas se tornou presidente do Brasil para fazer o capitalismo funcionar” Luiz Inácio Lula da Silva O ciclo histórico em que nos encontramos caracteriza-se pela predominância da Estratégia Democrática Popular. Tal formulação encontra no Partido dos Trabalhadores (PT) sua forma de expressão organizativa e política e seu desenvolvimento corresponde ao percurso histórico deste partido desde sua formação em 1980 até a experiência de governo que completa em 2013 dez anos. Seria este último período, o do PT no governo, um abandono desta estratégia naquilo que lhe é essencial, ou, estaríamos diante de um momento de seu desenvolvimento no qual se manifesta em uma forma distinta daquela que a revestia quando de sua formulação original? Para nós, a resposta a esta questão não pode ser buscada no âmbito da pequena política, nos termos gramscianos, isto é, ao sabor do governismo ou da necessidade de justificativa de uma oposição fundadas ambas no quadro conjuntural de uma correlação de forças quase que exclusivamente presa à lógica eleitoral. As determinações mais profundas deste fenômeno político encontram-se, ao nosso ver, no desenvolvimento histórico de nossa formação social, da luta de classes e do Estado, referindo-se, necessariamente, a dimensão estratégica e não meramente tática. Colocada nesta perspectiva, a experiência política do PT no governo se insere no debate sobre a característica da Revolução Burguesa no Brasil que já foi vista como não realizada, incompleta, tardia, ou mesmo “superada” como tema. No pensamento pós-moderno que acabou por imperar, não se trata mais da diferença qualitativa entre a revolução burguesa e a revolução proletária, ou, se preferirem, entre a emancipação política e a emancipação humana, mas sim do suposto auto-aperfeiçoamento da ordem econômica, social e política existente por via da democratização da sociedade burguesa. As supostas ou reais diferenças entre os projetos em disputa acabam por aceitar a economia capitalista e a forma burguesa do Estado como pressupostos insuperáveis. Recusando esta aproximação, pensaremos a experiência do PT como expressão do ciclo da revolução burguesa. A via clássica e não clássica da revolução burguesa. Tratar o tema na perspectiva do desenvolvimento histórico da revolução burguesa no Brasil, significa entendê-la, nos termos de Florestan Fernandes (1976) como processo pelo qual se consolidou a ordem burguesa. Isso significa que podemos hoje iniciar nossa análise post festum partindo da constatação que a formação social brasileira se fundamenta em relações sociais de produção burguesas que tem por base uma economia capitalista consolidada e uma superestrutura política, jurídica e ideológica que expressam o domínio e a hegemonia burguesa.1 Um pais capitalista que resolveu seu desenvolvimento no quadro da acumulação de capital caracterizada pela alta centralização e concentração da produção levando aos monopólios inseridos de forma dependente e integrada ao sistema imperialista mundial. Uma formação social capitalista monopolista, com relações sociais de produção determinantemente burguesas exige como parte integrante e incontornável de seu sociometabolismo (Meszáros, 2002), um Estado Burguês e este, um sistema jurídico e político capaz de equacionar os problemas de domínio e hegemonia, de coerção e de consentimento, necessários a garantia e reprodução da ordem burguesa e da acumulação de capital. 1 Carlos Nelson Coutinho (2008) ao analisar o Estado no Brasil afirma que “malgrado todos os limites, a transição revelou, em seu ponto de chegada, um dado novo e extremamente significativo: o fato do Brasil, após vinte anos de ditadura, havia se tornado definitivamente uma sociedade ‘ocidental’ no sentido gramsciano do termo(...). O que caracteriza a condição ‘ocidental’ é que temos nela também uma sociedade civil forte e articulada, que equilibra e controla a ação do Estado stricto sensu” (Coutinho, 2008: 133- 134). Colocado nestes termos, ao nosso ver, consideramos que a ordem burguesa existente e consolidada indica que o ciclo do domínio burguês realizou-se e completou-se, remetendo nossa reflexão para a forma particular pela qual se deu este processo. Ao analisar o tema, Florestan Fernandes aborda desta maneira a questão: A questão estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse que a história do Brasil teria de ser uma repetição deformada e anacrônica da história daqueles povos (EUA e Europa). Mas não se trata disso. Trata-se, ao contrário, de determinar como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura. Sem a universalização do trabalho assalariado e a expansão da ordem social competitiva, como iríamos organizar uma economia de mercado de bases monetárias e capitalistas? (Fernandes, 1976: 20). Como sabemos o sociólogo brasileiro resolve este problema de maneira bastante original. Toda vez que buscamos compreender esta questão tendo por parâmetro a revolução burguesa clássica (Inglaterra, EUA, França, etc.), acabamos por deformar nossa análise. O caminho teórico proposto pelo autor é que o domínio burguês no Brasil teve que se dar no seio de um paradoxo, qual seja, uma formação social de origem colonial e que se insere no mercado mundial que do ponto de vista política se manifestava em uma ordem oligárquica e que, portanto, não produzia aqui as condições de formação de uma burguesia. Uma revolução burguesa que não podia partir do solo material da passagem das corporações de ofício para as manufaturas e daí para a grade industria moderna, nem do processo de cercamentos formando de um lado uma força de trabalho livre e de outro a arrendatário capitalista no campo (Marx, 2013: 785 e seguintes). Influenciado neste momento de sua análise pelos referenciais weberianos, Florestan irá propor que faz sentido falar em revolução burguesa no Brasil se entendermos que aqui ela não foi uma mera repetição do processo clássico, uma vez que não existiam na crise da sociedade oligárquica os elementos que podiam levar a formação de uma classe burguesa. Quem cumpriu este papel teria sido uma congiere social, literalmente uma amontoado de setores sociais que assumiram como seus os valores da ordem burguesa e constituíram uma ação social nesta direção. Um “tipo de atitude” voltada ao lucro e a acumulação de riqueza, ligada à inovação, talento empresarial, organização de grandes empreendimentos econômicos. Setores da oligarquia e outros segmentos (o autor cita a presença dos empresários imigrantes) ao assumir como seus o valores da ordem burguesa, pela proximidade e contato com a vida urbana moderna, o grande comércio, a necessidade de relação com os bancos, vai assumindo o padrão civilizatório burguês como seu e se torna o sujeito da revolução burguesa no Brasil. Tal aproximação implica que não se trata apenas de uma via não clássica, como aquela Lênin identificou como via prussiana, mas, diríamos nós, uma via não clássica da via não clássica. O resultado desta singularidade é que a ordem burguesa não precisou se impor contra a velha ordem, levando os protagonistas da ordem burguesa a necessidade de uma aliança com “os de baixo”, pelo contrário, nos termos do autor a crise do poder oligárquico não significou um colapso, mas uma transição “ainda sob a hegemonia da oligarquia” (idem: 203) e mais, “a oligarquia não perdeu a base de poder que lograra antes, enquanto aristocracia agrária e encontrou condições ideais para enfrentar a transição” (idem: 204) modernizando-se a adaptando-se a nova ordem que surgia. Desta maneira a revolução burguesa no Brasil se dá por uma aliança entre os setores que assumiram o “espírito burguês” e parte das velhas elites oligárquicase o que os une é a necessidade de frear a revolução vinda de baixo, dos trabalhadores urbanos e rurais e demais segmentos explorados pela ordem oligárquica. A forma particular desta economia colonial inserida no mercado mundial e, portanto, no desenvolvimento internacional do modo de produção capitalista, também leva à incorporação do imperialismo neste bloco de alianças que torna possível a consolidação da ordem burguesa entre nós. O resultado destas determinações é uma revolução “dentro da ordem”, “de cima”, contra a base da sociedade, portanto, uma revolução burguesa, nos termos de Florestan, que divorcia o conteúdo burguês de seu aspecto nacional e democrático, assumindo a forma de uma “contra-revolução preventiva”.2 Neste aspecto a análise se aproxima da critica de Caio Prado Jr sobre a pertinência de falarmos de uma burguesia nacional. Diz Prado Jr: 2 Em outro texto ao comentar a validade da obra aqui citada, Florestan Fernandes coloca da seguinte maneira o problema: “as burguesias associadas e dependentes são incapazes de fomentar e dirigir as três grandes revoluções (a nacional, a industrial e a democrática) que definiram o significado construtivo do chamado ‘capitalismo clássico’ na história das civilizações e da humanidade” (Fernandes, [1979], 2011: 100). Em suma, embora a burguesia brasileira, ou antes, alguns de seus representantes possam individualmente entrar em conflito com a poderosa concorrência de empreendimentos estrangeiros, e esse conflito se traduza eventualmente em ressentimentos contra o capital estrangeiro, não se verificam na situação brasileira circunstâncias capazes de darem a tais conflitos um conteúdo de oposição radical e bem caracterizada, e muito menos de natureza política. A “burguesia nacional”, tal como é ordinariamente conceituada, isto é, como força essencialmente antiimperialista e por isso progressista, não tem realidade no Brasil, e não passa de mais um destes mitos criados para justificar teorias preconcebidas; quando não pior, ou seja, para trazer, com fins políticos imediatistas, a um correlato e igualmente mítico “capitalismo progressista”, o apoio das forças políticas populares e de esquerda (Prado Jr., 1978: 121). Evidente que nem Fernandes, nem Prado Jr. estão analisando este processo com preocupações meramente historiográficas, esta leitura é parte do esforço teórico de ambos para pensar os rumos da revolução brasileira e, portanto, dos fundamentos de uma estratégia da revolução socialista. Por caminhos distintos, ambos chegam à critica dos fundamentos da estratégia que predominou no primeiro período de nossa história republicana até o golpe militar e empresarial de 1964 e que teve no PCB sua forma política mais expressiva: a estratégia democrática e nacional. Os fundamentos mais essenciais à essa formulação estão na compreensão de que a contradição principal de nossa formação social se encontrava nos elementos que obstaculizavam o desenvolvimento do modo de produção capitalista no Brasil, notadamente a permanência da estrutura agrária tradicional e o imperialismo. O incipiente desenvolvimento de uma economia capitalista no Brasil, a formação de um mercado interno, uma política de substituição de importações que gera o início da formação de uma indústria moderna, teria criado uma burguesia industrial moderna que se chocava com os interesses das elites agrárias e do imperialismo. Esta contradição se expressaria politicamente na luta da burguesia contra estes setores e a necessidade de aliança com as massas assalariadas urbanas e rurais constituindo as bases de uma revolução democrática e nacional. Esta formulação estratégica coincide com a orientação da Internacional Comunista, como ressalta Caio Prado Jr citando as resoluções do VI Congresso da IC ao avaliar os caminhos da revolução nos chamados países coloniais ou semi-coloniais: A passagem à ditadura do proletariado não é possível nesses países, em regra geral, senão através de uma série de etapas preparatórias, por todo um período de desenvolvimento da revolução democrático-burguesa em revolução socialista (VI Congresso da IC, 1928, apud, Prado Jr.: 65). A estratégia democrática e nacional predominante não significa, em hipótese alguma, que neste período ela tenha assumido uma forma de expressão homogênea, pelo contrário, manifestou-se em diferentes definições sobre a via de sua realização, seu programa e em diferentes políticas de aliança. Como exemplo desta diversidade podemos apenas indicar a profunda diferença entre a restrita política de alianças de caráter obreirista que orientou o Bloco Operário e Camponês nos anos vinte e início dos anos trinta, e a ampla política de alianças que impulsionava a formação da ANL nos anos trinta e, significativamente, no primeiro caso optando-se por uma via eleitoral e no segundo por uma via insurrecional e armada; ou ainda a linha estabelecida no V Congresso do PCB em setembro de 1960, que definiu a pressão pacífica de massas, a centralidade da luta sindical e a aliança com a burguesia nacional no campo eleitoral materializada na aliança com o PTB, em contraste com os termos do Manifesto de agosto de 1950 que pregava a formação de um exército de libertação nacional e o armamento do povo. Estas alterações de forma devem ser compreendidas pelas profundas alterações conjunturais que marcaram o período, basta lembrar que entre 1922, ano de fundação do PCB, e 1964, passamos desde a crise geral do capitalismo de 1929, a ditadura do Estado Novo (1937-1945), a segunda guerra mundial, o processo democratização autoritária de Dutra, o segundo governo Vargas, sua deposição, o governo Juscelino no contexto já da guerra fria, a luta pelas reformas de base no governo Goulart. O que afirmamos é que, mesmo considerando equivocada a estratégia democrática nacional, isto não deve nos levar a acreditar que o PCB ao implementá-la não tenha criado condições de amplas mobilização e organização proletária e popular e o tenha feito na perspectiva de uma revolução socialista. 3 O etapismo 3 De certa maneira isso serve, também, ao analisar mos a estratégia democrática e popular. O fato de a considerarmos, como veremos, equivocada, não impede de no âmbito de sua influência possa ter tido capacidade de mobilização e dinamização da luta de classes na direção de uma política emancipatória. presente nesta concepção levou a gravíssimas conseqüências políticas, no entanto, como afirma Del Roio (2012: 217) “uma pretensa visão dualista e etapista da história, presente no conjunto da cultura comunista no Brasil, se falsa não é, deve ser, pelo menos matizada”. O autor nos oferece alguns exemplos significativos. Na I Conferencia Nacional do PCB em 1934, ainda que a estratégia democrática nacional estivesse mantida, ressalta-se que: a linguagem para expressar a natureza da revolução democrática tenha se alterado, observando-se como mais se usou o conteúdo da revolução – agrária e anti-imperialista – ou as forças motrizes – operária e camponesa – do que a natureza – democrática-burguesa. A chamada I Conferencia Nacional do PCB, de julho de 1934, apregoava a luta da aliança operário e camponesa e outras camadas populares pela instauração de uma ditadura democrática com um governo operário e camponês contra o “bloco feudal-burguês” (Del Roio, op. cit.: 220). Dez anos depois, em 1944, Prestes falava da necessidade da classe operária liquidar os “restos feudais, de maneira que se torne possível o desenvolvimento o mais amplo, o mais livre e o mais rápido do capitalismo no pais” e um ano depois afirmaria: Hoje, o problema é outro, a democracia burguesa volta-se para a esquerda, a classe operária tem a possibilidade de aliar-se com apequena burguesia do campoe da cidade e com parte democrata e progressista da burguesia nacional contra a minoria reacionária e aquela parte igualmente reacionária do capital estrangeiro colonizador (Carone, v. 2, 1982: 29, apud Del Roio, op. cit: 223). O problema fundamental desta análise reside na compreensão do Brasil como uma formação pré- capitalista ou mesmo semi-feudal, uma vez que assim procedendo o caminho da revolução brasileira se fundaria num comportamento das classes em luta e na dinâmica de seus interesses de forma que se constituiriam dois blocos: um bloco conservador e reacionário formado pelos latifundiários e a burguesia monopolista ligada diretamente ao imperialismo, e um bloco identificado como progressista que aglutinaria o proletariado, os camponeses, as massas urbanas e setores da chamada burguesia nacional. A principal tarefa desta revolução, como fica claro nas palavras de Prestes citadas por Del Roio, era eliminar os “restos feudais” e criar as condições para o desenvolvimento do capitalismo, considerado como pré-condição para a formação de uma sociedade moderna na qual a contradição transitaria para o eixo capital e trabalho, permitindo a proletarização da sociedade e a possibilidade de uma alternativa socialista. A prova prática desta estratégia se deu em abril de 1964 com o golpe militar que articulou os interesses dos latifundiários, do imperialismo e da burguesia brasileira rompendo o bloco de classes suposto pela estratégia democrática nacional. Este episódio representa em nossa história o momento da tragédia, à estratégia democrática e popular caberia o papel da farsa. O PT e a estratégia democrática e popular. O Partido dos Trabalhadores é produto direto da crise da autocracia burguesa e de seu modelo econômico. Ao contrário do que supunha o pensamento sociológico brasileiro, expresso, por exemplo, pelos trabalhos de Juarez Brandão Lopes (1971) e Leôncio Martins Rodrigues (1970),4 a classe trabalhadora acabou por apresentar um desenvolvimento quase ortodoxo quanto ao seu comportamento político e a possibilidade de uma consciência de classe. As condições de trabalho, a intensificação da produção, os salários corroídos pela inflação mascarada pelas manobras oficiais do então ministro Delfim Netto, levaram à eclosão das greves no final da década de 1970 e produziram as condições do rápido alastramento das lutas para além do setor operário permitindo uma fusão de classe contra a ameaça comum materializada na autocracia burguesa. A rápida passagem de um “apoliticismo” que buscava preservar a pureza dos objetivos meramente sindicais, para a constatação da necessidade de criar uma organização política, demonstra o processo de constituição de uma classe em si e a consciência que lhe é correspondente.5 4 Lopes (1971) e Rodrigues (1970), partindo de um referencial weberiano, afirmaram que a origem camponesa do operariado brasileiro o faz vivenciar as condições fabris como um “aumento de status”, da mesma forma que sua entrada na indústria já se dá na forma fordista, impedindo assim que vivenciem a perda da condição operária, base, segundo os autores, para o desenvolvimento de uma consciência de classe típica. 5 Lula, ao dar um entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura em 1979, afirmou que era um sindicalista e que jamais em toda a sua vida iria entrar na política partidária e se candidatar a nada. Logo após, em abril de 1980, afirmaria: “cheguei a conclusão de que a O novo partido surgido entre 1979 e 1980 teria que firmar sua posição diferenciando-se da tradição comunista, e isso não pela necessidade de compreensão aprofundada desta herança, mas pela intensa luta dentro do sindicalismo que obrigava uma demarcação com a linha do PCB e PCdoB que apoiavam e participavam de máquinas sindicais controladas por pelegos como é o caso de Joaquim dos Santos Andrade no sindicato dos metalúrgicos de São Paulo. Outra razão, não menos importante, é que o PT acabou por ser o desaguadouro de um conjunto de militantes e organização que romperam com o PCB no contexto da derrota de 1964, ou que dele já vinham divergindo, como é o caso da corrente trotskista desde os anos vinte, e que haviam acumulado criticas à formulação estratégica determinante no período passado. Este contexto se manifesta nas primeiras formulações do PT e ganha forma mais acabada a partir do V Encontro Nacional em 1987. Neste encontro se afirma, quase como uma síntese dos esforços realizados no IV Encontro sobre a caracterização da sociedade brasileira e seu desenvolvimento, que: (...) o PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática, que o PCB defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia nessa aliança de classes – burguesia que é uma classe que não tem nada a oferecer ao nosso povo (apud Almeida ett alli, 1998: 322). Esta rejeição deve ser, como veremos, matizada, uma vez que, apesar de se referir aos elementos da estratégia democrático nacional, notadamente a aliança com a chamada burguesia nacional, podemos estar diante de uma superação formal que enfrentando os aspectos mais aparentes corre o risco de reproduzir as determinações mais essenciais. Um dos aspectos formais mais evidentes é a tentativa de diferenciar-se da estratégia democrática nacional pela afirmação da meta socialista. Ressaltando que, enquanto meta, este horizonte nunca foi descartado pelo PCB, a afirmação da meta socialista pelo PT vinha, desde o 1o Encontro Nacional (1981), já buscando uma originalidade que diferenciaria o partido que naquele momento surgia de duas tradições: da social-democracia e do chamado socialismo real. O socialismo afirmado pelo PT, neste momento, era mais resultado de sua postura anticapitalista. Em seu discurso no encontro, Lula afirmou que os trabalhadores sabiam que o “mundo caminha para o socialismo”e já o sabiam mesmo antes de tomar a iniciativa de construir um partido, pelo fato de que “os trabalhadores são os maiores explorados da sociedade atual” e por isso sentiriam “na própria carne” esta situação e os levando a querer uma sociedade sem exploração. E termina dizendo: “que sociedade é essa senão uma sociedade socialista?” (Discurso de Lula na 1a convenção nacional do PT, apud Almeida ett alli, op. cit: 114). Este socialismo deveria diferenciar-se, como dissemos, de duas referências: Sabemos que caminhamos para o socialismo, para o tipo de socialismo que nos convém. Sabemos que não nos convém, nem está em nosso horizonte, adotar a idéia do socialismo para buscar medidas paliativas aos males sociais causados pelo capitalismo ou para gerenciar a crise em que este sistema econômico se encontra. Sabemos, também, que não nos convém adotar como perspectiva um socialismo burocrático, que atende mais às novas castas de tecnocratas e de privilegiados que aos trabalhadores e ao povo (idem, ibidem). Ainda que já se apresentasse aqui o mito segundo o qual o tipo de “socialismo petista” iria ser construído no dia a dia das lutas, a forma como ele é apresentado como meta estratégica chega a ser, neste momento, quase ortodoxo. No mesmo discurso Lula assim o define: O sindicato é ferramenta adequada para melhorar as relações entre capital e trabalho, mas não queremos só isso. Não queremos apenas melhorar as condições do trabalhador explorado pelo capitalista. Queremos mudar a relação entre capital e trabalho. Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos frutos de seu trabalho. E isso só se consegue com a política (idem: 107). Não é portanto a definição do objetivo estratégico que define as diferenças entre certas concepções estratégicas, mas o caminho proposto para alcançá-lo. Neste sentido parece que o PT procurava romper com a formulação democrático nacional pela criticado “etapismo” e pela aliança com a burguesia. Vejamos, no entanto, esta consideração de maneira mais detida. classe trabalhadora não poderia pura e simplesmente chegar à época das eleições e dar seu voto, oferecendo, às vezes, favores; daí, portanto, que eu entendi que os trabalhadores precisavam se organizar politicamente” (apud Meneguello, 1989: 51). Já no IV Encontro Nacional do PT (1986), ao analisa a formação social brasileira, se afirmava que: O Estado brasileiro destes últimos anos do século XX é um Estado moderno, poderoso, aparelhado material e culturalmente; ramifica-se em ministérios, órgãos, repartições e instituições que detêm grande conhecimento concreto da realidade em seu benefício, vale dizer, em benefício da classe burguesa (idem: 249). E logo adiante conclui: Como conclusão desta análise é possível dizer que o capitalismo no Brasil se desenvolve de maneira desigual e subordinada ao imperialismo, com uma burguesia e um Estado burguês modernos, organizados e aparelhados em luta contra uma classe trabalhadora em diferentes graus de organização: a classe média, de contornos ambíguos e híbridos, semi-organizada, e o proletariado urbano e rural em crescente organização, embora ainda frágil (idem, ibidem). Esta caracterização nos levaria a acreditar que dadas estas condições do desenvolvimento do capitalismo e da sociedade burguesa no Brasil o equívoco da formulação do PCB, segundo as formulações petitas, seria a suposição de uma estratégia fundada na hipótese de que haveria uma fase não concluída deste desenvolvimento, daí a lógica das “etapas”. No entanto, é aqui que aparece o elemento constituidor da chamada estratégia democrático e popular. Apesar do desenvolvimento do capitalismo no Brasil e da consolidação de uma sociedade burguês moderna, a forma dependente em relação ao imperialismo e a permanência de uma estrutura agrária tradicional marcavam nossa formação social e a natureza deste desenvolvimento. A singularidade do Brasil estaria no fato de que o desenvolvimento capitalista perpetuou contradições que a revolução burguesa não deu conta, como, por exemplo, as desigualdades sociais e regionais, a concentração de terras e o caráter autoritário do Estado. Tal aproximação fica evidente nesta passagem: Ao contrário de outros países, entre nós o capitalismo tem se desenvolvido respeitando o monopólio da propriedade da terra, recorrendo constantemente à força repressiva do Estado para mediar as relações entre o trabalho e o capital e integrando-se de modo subordinado ao mercado e ao sistema financeiro do imperialismo. (V Encontro [1987], idem: 320) Em outra parte nas resoluções do mesmo encontro vemos que o crescimento do capitalismo teria se dado pela intensificação da dependência em relação ao capitalismo internacional impondo patamares de superexploração e a um alto grau de monopolização de setores importantes da economia brasileira. O resultado de tal dependência se apresenta na acentuação das desigualdades regionais, principalmente devido à distribuição do parque industrial (concentrado nas regiões sul e sudeste), assim como a convivência de grandes propriedades fundiárias identificadas como “latifúndios capitalistas e a agroindústria” ao lado de milhões de pequenos produtores rurais (idem: 319). A persistência das desigualdades incidiria nas formas políticas e no Estado brasileiro, de forma que: A incapacidade do capitalismo incorporar, ainda que minimamente, milhões de pessoas aos frutos do desenvolvimento limita a possibilidade da burguesia exercer sua hegemonia política na sociedade, o que está na raiz das freqüentes intervenções militares na vida do pais (idem: 320). O que vai se delineando na definição de uma estratégia alternativa à concepção dos comunistas brasileiros, se fundamenta em alguns pressupostos que se apresentam mesmo antes da estratégia democrática popular se constituir. O PCB supunha um desenvolvimento capitalista como condição prévia de uma revolução proletária, enquanto o PT, acreditando que o desenvolvimento capitalista já havia se dado, ainda pressupõe uma mediação anterior ao socialismo que denomina de democrático popular. Uma estratégia não pode ser compreendida como resultante da mera intencionalidade dos sujeitos políticos, ela é produto de todo um conjunto de fatores entre os quais o grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais e o grau de amadurecimento da contradição que daí deriva em relação às relações sociais de produção existentes, a dinâmica da luta de classes, o caráter do Estado e, naquilo que nos interessa diretamente, da expressão destas contradições na consciência social de uma época, no quadro cultural e teórico existente. As raízes da estratégia democrática e popular: um inventário. As criticas empreendidas por intelectuais como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Carlos Nelson Coutinho e outros, constituem a matéria prima a partir da qual uma nova formulação estratégica podia ser edificada. Deve-se destacar que não é possível, nem pertinente, atribuir a responsabilidade pelo desenvolvimento de uma estratégia nem de seu desdobramento a um ou outro intelectual, no entanto, os elementos das diversas formulações teóricas que buscavam acertar contas com o período que se encerrava guardam os germes daquilo que se desenvolveria como formulação determinante no período que se abria. Caio Prado Jr. ([1966] 1978), partindo da critica ao conceito de “burguesia nacional” pelos motivos anteriormente citados, avalia que o desenvolvimento em nosso país não se daria pela mera motivação do lucro privado. Aquilo que ele denominava como “vícios estruturais” de nossa formação social permitiam que a acumulação de capitais se desse com taxas de lucro aceitáveis para os monopólios e o imperialismo, ainda que mantendo a maioria da população à margem dos patamares de consumo e de condições de vida. Conclui, portanto, que diferentemente do centro do sistema: No Brasil e nas condições atuais, a questão se propõe de forma diferente, porque falta aqui, por efeito precisamente dos vícios orgânicos de nossa estrutura econômica e social que apontamos (...), uma demanda suficiente em consonância com as necessidades fundamentais e gerais, e capaz por isso de permanentemente incentivar uma atividade produtiva que, em ação de retorno, viesse ampliá-la ainda mais (Prado Jr., 1978: 164). Esta contradição poderia ser resolvida, segundo o autor, na medida em que o desenvolvimento fosse dirigido para a atenção às demandas desta maioria da população formada pelos assalariados urbanos e rurais, além das camadas medias empobrecidas. Este redirecionamento levaria ao impulso ao desenvolvimento pelo caminho do crescimento da demanda, substituindo o lucro como mola propulsora clássica. O caminho não seria mais da produção para o consumo, mas do consumo para a produção. Diz Caio Prado Jr: (...) há de essencialmente se atacar a reforma do sistema a fim de impulsionar o seu funcionamento no sentido de um desenvolvimento geral e sustentado. É do aumento da demanda solvável, e sua articulação com as necessidades gerais e fundamentais do país e de sua população, que se há de partir para o incentivo às atividades produtivas que em seguida incentivarão a demanda. Não é possível, repetindo o ocorrido no desenvolvimento capitalista originário, ir no sentido contrário, isto é, da produção para o consumo e a demanda (idem: 164) (grifos meus). Tal transformação prescindiria de profundos câmbios nas formas de propriedade e nas relações sociais de produção, uma vez que, segundo o autor, não se trataria de superar a economia de mercado, mas simplesmente a “livre economia de mercado”6, isto é, a livre definição por partedos empresários sobre o destino de suas aplicações e investimentos, dirigindo-as para ao atendimento das demandas ligadas as condições de vida e trabalho da maioria. Tratar-se-ia, portanto, de desenvolver o capitalismo, reorientando-o nesta direção descrita. Completa: É preciso não esquecer que a situação da economia brasileira, a pobreza e os baixos padrões da população trabalhadora derivam menos, frequentemente, da exploração do trabalhador pela iniciativa privada, que da falta dessa iniciativa com que se restringem as oportunidades de trabalho e ocupação (idem: 165-166). No entanto, de que forma tal formulação se articula com a meta socialista? Para Caio Prado Junior é evidente que o horizonte no qual se desembocaria a revolução brasileira é o socialismo, mas o socialismo, diz o autor, é a “direção na qual marcha o capitalismo”, é a “dinâmica do capitalismo projetado no seu futuro” (idem: 16). Contudo, assegura o autor, isso representa, não mais que uma “previsão histórica” para a qual não podemos antecipar nem quando, nem ritmo de realização, nem mesmo um “programa determinado” (idem, ibidem). A convicção do autor reside na constatação que as condições para o salto de qualidade que levaria, cedo ou tarde, a humanidade ao socialismo não estavam dadas, principalmente no Brasil. Diz o autor: A eliminação da iniciativa privada somente é possível com a implantação do socialismo, o que na situação presente é desde logo irrealizável no Brasil por faltarem , se outros motivos não houvesse, condições mínimas de 6 “Não se pretende com isso eliminar a iniciativa privada, e sim unicamente a livre iniciativa privada que, esta sim, não se harmoniza com os interesses gerais e fundamentais do país e da grande maioria de sua população, por não lhe assegurar suficiente perspectiva de progresso e melhoria de condições de vida” (Prado Jr., idem: 165). consistência e estruturação econômico, social, política e mesmo simplesmente administrativa, suficientes para transformação daquele vulto e alcance (Idem: 165). Desta maneira, ao criticar os pilares da formulação democrática nacional, ainda que não fosse sua intenção, Caio Prado Junior alinhava os elementos germinais da formulação que se seguiria e com a qual não teve nenhuma relação direta. Em linhas gerais estes elementos, pelo que foi até aqui indicado são: a) a crítica contra a existência de uma “burguesia nacional” que tivesse como intencionalidade política o desenvolvimento de um capitalismo autônomo em relação ao imperialismo; b) a permanência de desigualdades e contradições que se explicam pelo caráter do desenvolvimento capitalista brasileiro e sua relação com o imperialismo; c) o protagonismo dos setores populares, massas assalariadas do campo e da cidade em aliança com setores médios na busca de afirmação de suas condições de vida, trabalho e remuneração que não podem ser atendidas pela simples reprodução da lógica do lucro e do mercado privado; d) a necessidade de uma reorientação da produção incentivada pela apresentação organizada de uma demanda pelos bens e serviços que materializam as necessidades destas massas, superando o “livre mercado” pela orientação destas demandas como impulsionador do desenvolvimento da produção. Restava um elemento importante: como estas demandas se apresentariam com força para serem consideradas pela produção ainda regida pela propriedade privada e a economia de mercado? A resposta do autor é que a única maneira destas demandas se apresentarem com força política para serem levadas em conta é fazer com que o Estado as apresente como expressão de uma vontade política majoritária e legitima. Há neste ponto uma ausência marcante em A Revolução Brasileira, ou seja, falta uma reflexão mais profunda sobre o Estado brasileiro, suas determinações e sua evolução histórica. Entretanto, os elementos centrais estavam deste modo lançados. Será em Florestan Fernandes e sua obra A Revolução Burguesa no Brasil, cuja redação se inicia em 1964 e 1966 e que se completa em 1974, que o tema volta à cena e que outros elementos do projeto que se tornaria determinante se apresentam. Existem vários pontos de aproximação entre os esforços de Caio Prado Junior e do sociólogo paulista, no entanto, a primeira reação de Florestan Fernandes é de crítica ao colega. Em um artigo de 1968, apos destacar vários pontos em que compartilhava com Caio Prado, Fernandes afirma que: Somente em um ponto estou em desacordo com as opiniões de Caio Prado Junior. Trata-se do delineamento do programa político, que é apresentado aos leitores. Não descobri nele uma irrefutável substância socialista. Existe uma intenção socialista, sem dúvida, mas o programa proposto seria perfeitamente exequível por uma burguesia nacional bastante autônoma, inteligente e criadora para combinar, em bases puramente capitalistas, alguma sorte de welfare state com crescimento econômico acelerado (Fernandes, 2011: 129).7 Analisemos uma pouco mais detidamente o pensamento de Florestan Fernandes neste momento para buscarmos compreender em que se baseiam suas reticências e quais alternativas propõe. Como sabemos em sua obra sobre a revolução burguesa no Brasil, o autor nos afirma que a ordem burguesa em nosso pais se implantou de uma forma particular na qual um setor social oriundo da própria ordem oligárquica assumiu os valores da civilização burguesa. Neste contexto a ordem burguesa não necessitou derrotar o antigo regime em aliança com os trabalhadores, pelo contrário, os defensores da ordem burguesa aliaram-se aos setores oligárquicos e ao imperialismo e se voltaram contra qualquer possibilidade de uma revolução que viesse ou mobilizasse os “de baixo”, assumindo a forma, como dissemos de uma “contra-revolução preventiva”. Uma revolução “dentro da ordem” (Fernandes, 1975: 212). Esta caracterização explica, aos olhos do autor, que o caráter do Estado no Brasil não é casual ou contingencial, mas expressa características estruturais derivadas da forma do capitalismo dependente que aqui de se desenvolveu. O divorcio entre os conteúdos burgueses e nacionais leva a uma particular forma de Estado Burguês no Brasil, no qual: Isso faz com que a intolerância tenha raiz e sentido políticos; que a democracia burguesa, nessa situação, seja, de fato uma “democracia restrita”, aberta e funcional só para os que têm acesso à dominação burguesa (idem, ibidem). 7 Presente na coletânea publicada pela editora da UFRJ em 2011, este texto foi originalmente publicado no jornal A Senzala de janeiro/fevereiro de 1968 com o titulo, dado pela redação do periódico: “Caio Prado não disse tudo” (nota do editor da obra citada, 2011). A forma política do Estado Burguês teria que ser a da “autocracia”, isto é: Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo à quaisquer meios para prevalecer, erigindo-se a si mesmo em fonte de sua própria legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva (idem: 297). Cada momento histórico pode evidenciar uma maior ou menor necessidade deste Estado Burguês mascarar este caráter autocrático, como no segundo governo Vargas até 1945, ou no período desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, ou expressá-lo sem rebuços em sua pureza como no período da Ditadura Militar após 1964. O caráter autocrático não se confunde com a forma política da ditadura, mas se fundamentaria estruturalmente na forma capitalista dependente e suas implicações inevitáveis na estrutura de classes e na dinâmica da luta política. Assim é que o autor, nos marcos da Revolução Burguesa no Brasil, irá afirmar que as burguesias próprias das formações sociais de capitalismo dependente e subdesenvolvido não podem ser identificadas como segmentos débeis ou frágeis, pelo contrario, elas costumam apresentar um grandepoder econômico local (nacional), graças aos quais angariam um equivalente poder social e político, reforçado pelo controle da máquina do Estado. Conclui, portanto, que: Torna-se , assim, muito difícil deslocá-las politicamente através de pressões e conflitos mantidos ‘dentro da ordem’; e é quase impraticável usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe (idem: 296). A autocracia burguesa teria a particular característica de ser “inflexível”, fato do qual deriva sua tendência a se utilizar dos meios repressivos institucionais contra as demandas do de baixo, não por ser débil, mas pelo contrário, muito forte. Seu caráter de força política à favor da contra-revolução preventiva, faz do Estado Burguês no Brasil uma expressão política de fins políticos particularistas em defesa de interesses materiais privados (idem, ibidem). Ora, eis aqui um paradoxo: como um Estado assim caracterizado poderia servir como instrumento para que os setores majoritários da população apresentassem suas demandas como vontade geral a ser levada em conta pelo mercado e os produtores privados, como esperava Caio Prado? É possível verificar que neste ponto a análise de Florestan se distancia daquela anteriormente apresentada. Para o autor o ciclo da revolução burguesa se colocaria na confluência histórica de dois processos no qual duas revoluções antagônicas coexistem: “uma que vem do passado e chega a termo sem maiores perspectivas; outra, que lança suas raízes diretamente sobre ‘a construção do futuro no presente’” (idem: 295). Por isso, uma crítica à formulação estratégia predominante até 1964 teria que ter por fundamento a idéia de revolução permanente tal como formulada por Marx em 1852 e retomada posteriormente por Trotski. Naquilo que nos interessa diretamente aqui, tal aproximação política e teórica afirma que a contradição principal no Brasil contemporâneo é aquela que reside no eixo que contrapõe de um lado a manutenção e reprodução da ordem capitalista e de outra a sua negação na forma e uma alternativa socialista. Em sua já citada critica ao livro de Caio Prado, Florestan Fernandes explicitara este raciocínio ao dizer que: Em nossa época já não se pode acreditar piamente no encadeamento histórico inexorável das etapas do desenvolvimento econômico e social. Uma burguesia fortalecida sem lutas dá origem a uma sociedade nacional sem forças de oposição socialista. O que significa que poderá usar o Estado para qualquer fim, inclusive para se eternizar como substrato social das elites no poder (Fernandes, 2011: 130). Na ausência de uma alternativa socialista que se fundamente claramente em valores e meios políticos de caráter socialista, as forças de esquerda assumem o papel do inconformista que “resguarda e fortalece a ordem social existente”, ou, de maneira ainda mais dura, convertendo-se em um “aliado útil mas incômodo das elites, na fase burguesa da revolução” (idem: 131). Neste quadro de referencia as lutas políticas “dentro da ordem” só poderiam interessar aos socialistas se demonstrassem o potencial de mobilizar as massas de trabalhadores urbanos e rurais na direção de uma perspectiva “fora da ordem” e, tomando a America Latina como paradigma, quando as massas populares irrompem no acontecer histórico esta revolução é uma revolução socialista (Florestan, 2011: 107).8 8 Presente na mesma coletânea utilizada, este texto já é de 1979 no qual o autor avalia o significado de seu livro sobre A Revolução Burguesa no Brasil em aula inaugural na FFLCH da USP. Aqui nos deparamos com um elemento importante. A contradição da ordem burguesa no Brasil é tratada ao final da obra analisada como um paradoxo próprio da autocracia burguesa, isto é, por sua natureza a autocracia é uma saída sempre temporária, mas que pelos motivos assinalados assume a forma estrutural do Estado Burguês em nossa formação social (Florestan, 1975: 321). Sem uma oposição socialista e, o que é fundamental, sem um movimento socialista que faça com que esta alternativa se expresse como interesse político organizado das massas populares, a crise da autocracia burguesa encontraria uma saída nos marcos da ordem burguesa. Pensando sobre as formas possíveis através das quais a burguesia poderia resolver seu problema de hegemonia, Fernandes afirma que dois cenários se apresentariam. Dadas as características estruturais que fundamentam a autocracia burguesa e pelos motivos até então assinalados, a burguesia transitaria de uma forma ditatorial para uma outra na qual o caráter autoritária e autocrático seria mantido, ainda que em formas alteradas. Nesta alternativa, como vemos, o paradoxo persistiria. Uma segunda possibilidade seria que a burguesia enfrentaria na raiz seu problema de hegemonia, isto é, buscando a incorporação de setores das classes trabalhadoras e dos extratos explorados na ordem capitalista burguesa, ainda que nos marcos do capitalismo dependente. Neste segundo cenário a ordem poderia oferecer pouco aos trabalhadores em troca de sua aceitação da ordem burguesa, mas mesmo este pouco seria considerado muito pelos setores burgueses no controle do Estado. O autor denomina este segundo cenário de “democracia de cooptação” (idem: 363). Considerando a conjuntura de meados da década de 1970, o autor descarta esta segunda alternativa e acredita que o desenvolvimento imediato do quadro político brasileiro seria o do fortalecimento da autocracia. Até onde pudemos chegar, por via analítica e interpretativa, não padece dúvida de que as contradições entre a aceleração do desenvolvimento econômico e a contra-revolução preventiva só podem ser resolvidas, “dentro da ordem”, não pela atenuação, mas pelo recrudescimento do despotismo burguês (idem: 365). Caso consideremos o desdobrar imediato dos fatos que ficaram conhecidos como processo de democratização (do governo Figueiredo até Sarney e depois com Collor e FHC), parece evidente o acerto da perspectiva do sociólogo paulista. No entanto, um fato relevante fará com que sua perspectiva se alterasse profundamente, ainda que mantendo os princípios de sua análise. Lembrando que o autor entendia como limite que impedia a alteração de qualidade da conjuntura em que se dava a luta de classes no Brasil a ausência de uma ação autônoma das classes trabalhadoras como parte de um movimento socialista, a entrada em cena dos trabalhadores em 1978 se configura em suas palavras como um divisor de águas (Florestan, 2011: 278).9 O movimento grevista que se inicia no ABC paulista e se alastra por todo o pais colocaria em evidencia uma nova força da revolução democrática, ou seja, o limite da revolução burguesa era o de se fundamentar na repressão dos de baixo e daí assumir a forma de uma democracia sempre restrita; agora temos uma força social que atua no sentido da ampliação desta democracia. Este novo elemento permite à Fernandes pensar a dinâmica da revolução brasileira (lembre-se da imagem de duas revoluções que confluem no mesmo tempo histórico) como um movimento que levasse de uma revolução “dentro da ordem”, o epílogo da revolução que vem do passado, a se transformar em uma revolução “contra a ordem”, aquela que se lança no presente em direção ao futuro, portanto, uma revolução socialista. Para isso para o autor o movimento socialista deveria se articular profundamente com aquilo que ele denomina de “rebelião operária” e caso isso ocorresse alteraria o caráter da luta de classes e inscreveria a proposta alternativa socialista no terreno concreto da história. Diz Florestan: É preciso operar dentro da ordem e com objetivos circunscritos. Fazer o que as classes possuidoras não fizeram, porque nunca tiveram de dividir o espaço político com as classes subalternas. Isso poderá parecer tacanho, porém algo promissor. Ao se incluírem nesse mesmo espaçopolítico, as classes trabalhadoras forçarão a reativação da revolução nacional e imprimirão à revolução democrática um novo padrão histórico. Em suma, começarão por liberar a revolução nacional (contida e esmagada pelo desenvolvimento com segurança para fora) e enterrarão de vez a democracia restrita, construída sob o escravismo e imposta ao trabalho livre por uma burguesia incapaz de alimentar a revolução nacional, ligando entre si desenvolvimento com democracia (Florestan, [1978], 2011: 279). Podemos resumir a posição do autor da seguinte maneira. A forma particular da revolução burguesa no Brasil implicou em uma afastamento da maioria da população, fundamentalmente, da classe trabalhadora 9 Passamos a citar a partir deste ponto o texto Perspectivas políticas e novos partidos de 1978 (Fernandes, 2011). dos espaços políticos que acabaram por se restringir ao bloco dominante. A novidade histórica se apresentaria na medida em que uma força social de baixo, ligada aos trabalhadores, passaria a pressionar pela “ampliação da democracia” abrindo a possibilidade de uma revolução democrática. No entanto, por que esta revolução “dentro da ordem” poderia levar ao objetivo socialista? A resposta de Florestan Fernandes parece estar na sua caracterização do Estado no Brasil e do caráter da burguesia em uma capitalismo dependente. Vimos que para o autor a principal característica da Revolução Burguesa no Brasil é que dada suas particularidades de uma contra-revolução preventiva, a burguesia desenvolve uma intransigência, uma inflexibilidade, isto é, o Estado Burguês se mostra impermeável às demandas vindas de “baixo”. Um poderoso movimento de massas, organicamente vinculado à classe operária e que apresentasse as demandas das classes trabalhadoras, mesmo nos limites da ordem burguesa, se chocaria com este Estado e a intransigência dos setores dominantes, exigindo uma ruptura que levaria à revolução “fora da ordem”. Como vemos, é o caráter da autocracia burguesa que permite a dinâmica que leva à revolução permanente. Este seria o ponto em que a análise de Florestan vai além da apresentada de Caio Prado. Enquanto o intelectual do PCB vê como possibilidade de superação da estratégia democrática nacional um conjunto de forças populares capazes de pautar suas demandas por meio do Estado no sentido de um desenvolvimento sustentável de caráter nacional, o intelectual paulista vê na impermeabilidade do Estado Burguês brasileiro à estas demandas a possibilidade de um programa democrático levar à possibilidade de desenvolvimento do socialismo. Existiria um conteúdo da revolução burguesa não realizado , como vimos, e que o autor denominará de tarefas democráticas em atraso e que, no quadro argumentativo exposto, só poderiam ser realizada por uma aliança de classes no campo popular e no sentido do socialismo. Resumidamente, os elementos centrais que Florestan Fernandes agrega à constituição da futura estratégia democrática popular são: a) A autocracia burguesa se funda em aspectos estruturais derivados da forma dependente do capitalismo brasileiro; b) A evolução particular da Revolução Burguesa no Brasil produziu uma separação entre o caráter burguês (a consolidação da ordem burguesa, que foi realizado) e o caráter democrático e nacional (que pelas determinações apontadas não foi realizado ou está “em atraso”); c) a ausência de um movimento de massas de caráter socialista organicamente vinculado aos trabalhadores em geral e a classe operária em particular, leva ao fortalecimento da autocracia e de uma democracia restrita; d) a entrada em cena dos trabalhadores em 1978 permite a luta por uma democracia ampliada que inserindo os de baixo no campo político permitiria que uma revolução dentro da ordem se transforma-se em uma revolução “fora da ordem”; e) finalmente, esta passagem seria possível pela intransigência da burguesia e a impermeabilidade do Estado Burguês em relação às demandas populares. Cabe ressaltar que esta mediação política fundada na concepção de revolução permanente se apresenta em Florestan, também, pelo fato de que o autor está convencido que apesar de estarmos em um momento histórico da Revolução Socialista, não haveria na conjuntura política da luta de classes (lembremos que o autor escreve nos momentos iniciais da transição democrática) as condições para uma ruptura socialista. No entanto, neste autor os motivos são distintos daqueles apresentados por Caio Prado. Para Fernandes trata-se da diferença entre “partidos políticos” e “movimento socialista”,10 isto é, não bastaria que a meta socialista fosse apresentada por uma organização política ela precisaria se vincular às lutas da classe trabalhadora colocada em movimento pelas contradições próprias da ordem do capital. O autor vê esta possibilidade com o advento das greves operárias em 1978 e a generalização da luta contra a autocracia em crise. A possibilidade real aberta pela crise da autocracia burguesa e pela qualidade nova de um movimento vindo de baixo pressionando por uma democracia ampliada, recoloca no centro do debate a questão do Estado e da Democracia. Este é outro elemento importante neste inventário que busca os germes que constituiriam a estratégia Democrática e Popular. Neste ponto específico, um outro intelectual teria papel central: Carlos Nelson Coutinho. Com seu texto, Democracia como valor universal, de 1980, Coutinho está profundamente envolvido com o debate interno do PCB, o que significa que seu quadro de referencias ainda se aproxima das resoluções do V Congresso do PCB e dos horizontes de uma revolução nacional e democrática.11 No entanto, ali estão em 10 Ver a respeito o texto movimento Socialista e Partidos Políticos, que foi inicialmente uma palestra realizada no Colégio Equipe em São Paulo em outubro de 1978 e posteriormente publicada pela HUCITEC com o mesmo título em 1980 (Fernandes, 2011:241 e segs). 11 Ver Marcelo Braz (2012) sobre o contexto e implicações do ensaio de Carlos Nelson Coutinho – A democracia como valor universal. germe alguns aspectos essenciais da futura estratégia democrática popular e que no desdobrar da obra deste autor se explicitam. O ponto de partida de Coutinho é, neste momento, a categoria de via Prussiana12 e podemos resumidamente afirmar que partindo deste ponto o autor caracteriza a contradição da sociedade brasileira como sendo centralmente a separação entre Estado e Sociedade Civil, isto é, a particularidade da via de desenvolvimento capitalista em nosso país teria se dado por um pacto entre as frações da classe dominante e imposto de cima para baixo com a marginalização das massas populares. Ressalta, ainda, que as bases deste processo político é a aliança entre os setores agrários tradicionais e as forças do imperialismo levando à consolidação de um tipo de Estado no qual predomina os meios coercitivos, 13 fazendo com que a principal tarefa das classes trabalhadoras e seus aliados venha a ser a inversão desta tendência elitista identificada como via prussiana (Coutinho [1980], in Lowy, 2006). O centro do debate apresentado é sobre o caráter estratégico da democracia em uma critica às visões que a entendiam como mero expediente tático na luta pelo socialismo. Profundamente influenciado pelo chamado eurocomunismo, o autor explicita a referência à Enrico Berlinguer, Coutinho apresenta sua posição da seguinte maneira: Segundo tal visão política (tática e instrumental), a democracia política – embora útil à luta das massas populares por sua organização e em defesa dos seus interesses econômicos-corporativos – não seria, em última instância e por sua própria natureza, senão uma nova forma de dominação da burguesia, ou, mais concretamente, no caso brasileiro, dos monopólios nacionais e internacionais (Coutinho, op. cit., 449). Recuperando Berlinguer, Coutinhoafirmará que nos tempos atuais a democracia tem que ser compreendida muito além do mero campo no qual as classes trabalhadoras impõe demandas aos dominantes, mas seria uma “valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista” (Berlinguer em seu discurso no 60º aniversário da Revolução Soviética em Moscou, 1977). Desta forma a democracia não poderia ser “encarada como um objetivo tático imediato, mas aparece como o conteúdo estratégico da etapa atual da revolução brasileira” (idem, ibidem). Também em Coutinho aparece a convicção segundo a qual pensar a estratégia para a revolução brasileira exige a diferenciação entre o momento atual e sua conjuntura política e a meta socialista. Segundo Coutinho as forças populares, por vezes, apresentam uma visão equivocada que confunde as tarefas imediatas da luta política que não poderiam “ser identificadas com a luta pelo socialismo”, uma vez que estas últimas exigiriam “um combate árduo e provavelmente longo pela criação dos pressupostos políticos, econômicos e ideológicos que tornarão possível o estabelecimento do socialismo” (idem, ibidem). Coutinho estabelece, desta maneira, uma conexão entre esta visão equivocada (concepção restrita da democracia como tática e a confusão entre as lutas imediatas e os objetivos históricos) e uma determinada concepção de Estado que teria prevalecido na esquerda e na tradição marxista. Diz Coutinho: Esta visão estreita se baseia, antes de mais nada, numa errada concepção da teoria marxista do Estado, numa falsa identificação entre democracia política e dominação burguesa (idem, ibidem). O suposto equívoco teria suas raízes naquilo que o autor denomina de uma concepção “restrita de Estado” presente em Marx e Engels, assim como em Lênin (Coutinho, 2008), contrapondo a uma visão “ampliada” de Estado que pode-se encontrar em Gramsci. No essencial esta concepção contrapõe o Estado visto como “mero comitê executivo da burguesia”, como definido por Marx e Engels no Manifesto Comunista, a uma compreensão do Estado como unidade de coerção e consentimento, portanto, como momento político em unidade dialética com a sociedade civil. Tomada por este angulo, as lutas sociais que se abrem com a crise da ditadura tornaria possível um processo de democratização que poderia produzir um salto de qualidade histórico, qual seja, superar as determinações da chamada via prussiana. Diz o autor: 12 Coutinho irá posteriormente trabalhar com o conceito gramsciano de revolução passiva, mas adverte que quando se trata do período que vai de Collor em diante considera que tais conceitos são poucos adequados, optando com Behring (2003) pelo termo “contra- reforma”. 13 Segundo Coutinho, a via prussiana incide diretamente na própria estrutura do relacionamento entre o Estado e a sociedade civil “já que o caráter extremamente forte e autoritário do primeiro correspondeu à natureza amorfa e atomizada da segunda” (Coutinho, op. cit, 451). Essa renovação democrática do conjunto da vida brasileira (…) aparece, portanto, não apenas como alternativa histórica à via prussiana , como modo de realizar em condições novas as tarefas que a ausência de uma revolução democrático-burguesa deixou abertas em nosso país, mas também – e precisamente – como processo de criação dos pressupostos necessários para o avanço do Brasil no rumo do socialismo (idem: 451). Esse elemento contido no processo de democratização, capaz de enfrentar as tarefas que a revolução burguesa teria deixado “em aberto”, teria o potencial de se articular com o horizonte estratégico dos trabalhadores, o socialismo, pelo fato de produzir as condições para uma inversão que atuaria diretamente nas determinações estruturais apresentadas, isto é, no eixo da relação entre Estado e sociedade civil, como parece ficar claro nesta passagem: O fortalecimento da sociedade civil abre a possibilidade concreta de intensificar a luta pelo aprofundamento da democracia política no sentido de uma democracia organizada de massas, que desloque cada vez mais ‘para baixo’ o eixo das grandes decisões hoje tomadas exclusivamente ‘pelo alto’ (idem: 454). Notem que aqui também se apresentam dois elementos comuns com a análise de Fernandes: as chamadas tarefas em aberto da revolução burguesa e o papel das lutas sociais vindas das massas populares no sentido de ampliação da democracia. Apesar de em 1980 não abandonar a inclusão da questão nacional e mesmo da aliança com setores da “burguesia nacional”, Coutinho aponta para o fato que o centro estratégico deste processo de democratização se encontraria nas camadas populares e na formação daquilo que denominava de um “bloco democrático e nacional-popular” (idem, ibidem). O caminho da democratização seria estratégico, também, pelo fato de tocar em um aspecto constitutivo da singularidade brasileira, isto é, o fato de que o Estado no Brasil “sempre ter sido dominado por interesses privados” (Coutinho [2006], 2008: 126). Ressaltando que esta é uma característica de todo Estado no capitalismo em geral, o autor afirma que no desenvolvimento do Estado no Brasil, marcadamente de 1930 até o golpe empresarial e militar de 1964 e a ditadura que o seguiu, presenciamos um processo claro de “dominação sem hegemonia”, ou seja, uma dominação na qual o caráter coercitivo é o determinante. Tal fato aproximaria o Brasil da caracterização de Gramsci de um Estado “oriental”, no sentido de uma sociedade política forte e uma sociedade civil “gelatinosa” (Gramsci, 2007, v. 3: 261-262). Diz Coutinho: Numa formação social de tipo “oriental” – ou, como no caso brasileiro e latino-americano em geral, de “ocidentalização” ainda não plenamente desenvolvida - , as classes dominantes não precisam recorrer à mecanismos próprios da sociedade civil quando querem frear a ascensão das classes subalternas por meio de uma ditadura, de uma dominação sem hegemonia (Coutinho, 2008: 129). Em 1989, já no PT, Carlos Nelson Coutinho em um seminário organizado em São Paulo, 14 afirmará que o processo de democratização em curso havia produzido uma alteração significativa, qual seja, em uma formação social de tipo “oriental”, ou com uma “ocidentalização em desenvolvimento”, a luta de classes se dá “predominantemente em torno da conquista do Estado-coerção”, e a forma comum desta luta de classes é a guerra de movimentos, ou seja, o “assalto ao poder”; enquanto que nas chamadas sociedades “ocidentais”o Estado teria se ampliado e isso implicaria para a luta de classes uma alteração significativa: (...) as lutas por transformações radicais travam-se no âmbito da “sociedade civil”, visando a conquista do consenso da maioria da população, mas se orientam, desde o início, no sentido de influir e de obter espaços no seio dos próprios aparelhos do Estado, já que esses são agora permeáveis à ação das forças em conflito (Coutinho, [1989] 2008: 40). Notem que há aqui uma diferença em relação à formulação de Florestan Fernandes no que diz respeito ao caráter impermeável do Estado Burguês às demandas dos de baixo, mesmo considerando este uma característica histórica do Estado no Brasil, Coutinho acredita que o processo de democratização e mesmo antes dele na ditadura militar, teria havido um acelerado desenvolvimento da sociedade civil o que de certa forma obrigaria às classes dominantes a levar em conta as demandas vindas dos diferentes segmentos sociais ara garantir seu domínio, transitando, desta forma, de uma dominação sem hegemonia para uma dominação 14 Trata-se do texto Democracia e Socialismo: questão de princípio apresentado no seminário organizado pelo PT em abril de 1989 PT: um projeto para o Brasil, publicado no mesmo ano pela editora Brasiliense. com hegemonia. Tal fato levaria à possibilidadedaquilo que o autor denominou de “reformismo revolucionário” (idem:39). Sinteticamente afirma Coutinho: Não há reformas radicais na ordem econômica e social sem uma concomitante reforma radical da maquina do Estado. Em outras palavras: só numa democracia de massas, onde o protagonismo político passa cada vez mais para um Estado controlado pela sociedade civil e seus atores, é possível fazer com que uma política consequente de reformas de estrutura conduza gradualmente à superação do capitalismo. É nesta exata medida que a luta pela democracia e a luta pelo socialismo são duas faces solidárias da mesma moeda (Coutinho, idem: 48). Enquanto em Fernandes a possibilidade de equacionar a revolução dentro da ordem com a revolução fora da ordem é a intransigência da burguesia e a impermeabilidade do estado Burguês, para Coutinho é a superação desta contradição, isto é, o desenvolvimento da sociedade civil que permitiria que um conjunto de reformas radicais, ainda que dentro da ordem capitalista, pudessem levar à “gradualmente” se superar o capitalismo. Ressaltando que a influência de Carlos Nelson e suas contribuições teóricas sobre o partido que se formava não é direta nem pessoal apesar de sua adesão ao PT, mas muito mais no sentido daquele contexto cultural e político que falávamos, estamos convencidos que estas formulações constituem um elemento importante na constituição daquilo que se denominou de estratégia Democrática e Popular. Podemos, sinteticamente apontar os seguintes aspectos: a) a centralidade da questão democrática; b) a convicção segundo a qual o processo de democratização aberto pela crise da ditadura alterou a correlação de forças e permitiu a consolidação de uma sociedade civil forte; c) uma concepção “ampliada” de Estado na qual esta correlação de forças poderia imprimir uma direção política ao Estado que não poderia mais ser visto como o “comitê executivo dos interesses burgueses”, mas como síntese da luta entre as classes; d) a possibilidade de reformas radicais produzirem “gradualmente” mudanças estruturais que levariam a superação do capitalismo. O PT: a estratégia democrática popular e o governo. No V Encontro Nacional do PT (1989) a estratégia democrática e popular toma forma. Buscando se diferenciar da experiência do PCB e da revolução democrática nacional, o PT propunha uma aliança dos setores explorados no capitalismo, os trabalhadores da cidade e do campo com os setores médios empobrecidos, para realizar uma série de reformas estruturais de caráter antimonopolista, antilatifundiária e anti-imperialista. A lógica presente nestas formulações ainda se reveste de um radicalismo evidente, isto é, ainda que estas reformas ocorram na ordem burguesa existente, prevalece aqui uma visão que se aproxima da concepção de Florestan Fernandes, ou seja, que a afirmação das demandas dos trabalhadores ao se chocar com a ordem autocrática burguesa só poderia se completar com uma ruptura. Desta maneira, um governo que resultaria de uma acumulação de forças e na constituição de uma movimento de massas de caráter socialista, deveria assumir a seguinte forma: Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista – tarefas não efetivadas pela burguesia –, tem duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitantemente de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfraquecimento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática popular (V Encontro Nacional [1987], in Almeida e Cancelli etti all, 1998: 322). Tal formulação contrasta profundamente com os termos do 12º Encontro Nacional que antecede a chegada do PT pela primeira vez ao Governo Federal quando afirma que: Um novo contrato social, em defesa das mudanças estruturais para o país, exige o apoio de amplas forças sociais que dêem suporte ao Estado-nação. As mudanças estruturais estão todas dirigidas a promover uma ampla inclusão social – portanto distribuir renda, riqueza, poder e cultura. Os grandes rentistas e especuladores serão atingidos diretamente pelas políticas distributivistas e, nestas condições, não se beneficiarão do novo contrato social. Já os empresários produtivos de qualquer porte estarão contemplados com a ampliação do mercado de consumo de massas e com a desarticulação da lógica financeira e especulativa que caracteriza o atual modelo econômico. Crescer a partir do mercado interno significa dar previsibilidade para o capital produtivo (12.º Encontro Nacional (2001): 38). Uma análise superficial nos levaria a crer que a segunda formulação comprova o abandono da perspectiva democrática e popular e revela a adesão a uma clara opção pragmática que marcaria a experiência do PT no governo. Infelizmente, ao que parece, as coisas não são tão simples. Vejamos quais seriam os aspectos formais e os mais fundamentais da formulação Democrática e Popular e até que ponto temos mudanças e permanências. Pelo que foi exposto os elementos que embasam a proposta democrática popular seriam: a) uma caracterização do Brasil como tendo um desenvolvimento capitalista no qual se reproduzem desigualdades regionais e sociais e que é marcado pela marginalização dos setores populares do espaço político; b) Um Estado Burguês que historicamente assumiu uma feição predominantemente coercitiva e que com a abertura democrática abre a possibilidade de uma real ampliação da política para os “de baixo”; c) a impossibilidade de uma passagem imediata ao socialismo o que implica em uma política de acúmulo de forças; d) este acúmulo de forças se fundamenta na organização das demandas populares a serem apresentadas tendo por eixo um programa antimonopolista, anti-imperialista e antilatifundiário que ao se chocar com o caráter autocrático do Estado Burguês levaria a uma ruptura (em uma aproximação), ou que devido ao fortalecimento da sociedade civil poderia levar gradualmente a um conjunto de reformas que superariam o capitalismo (em outra); e) o terreno desta luta seria o da democracia e os principais instrumentos seria as lutas sociais e a participação nas eleições que combinadas levariam, numa determinada alteração na correlação de forças, a chegar a pontos institucionais que poderiam desencadear as reformas radicais. Quando avaliamos o desenvolvimento das formulações do PT desde sua fundação até o momento que chega ao governo (Iasi, 2006) percebemos uma lenta mais evidente metamorfose que transita, em termos gerais, de uma postura de negação da ordem burguesa ao acomodamento nos limites desta ordem. No momento em que realizamos esta análise,15 chamávamos a atenção o fato de que a aparente diferenciação em relação à estratégia democrática nacional poderia não estar simplesmente na recusa de uma aliança com a “burguesia nacional” e a afirmação da meta socialista como recusa de um certo “etapismo”. Naquele momento afirmávamos que haviam indicações de uma superação incompleta, isto é, podiam ser notadas alguns elementos comuns ao universo das formulações do PCB que corriam o risco de passar desapercebidos. Podemos, apenas indicativamente, apontar a coincidência na constatação de que a natureza do desenvolvimentoeconômico, social e político brasileiro resultar e desigualdades e estas serem derivadas da permanência de uma estrutura agrária tradicional e da vinculação ao imperialismo, levando na essência a um programa antilatifundiário e anti-imperialista (agregando-se o antimonopolista quase como adequação diante do desenvolvimento produzido no ciclo autocrático ditatorial). Segue-se a necessária mediação de uma transição política que se apresente antes das transformações socialistas objetivadas (seja no PCB como etapa democrática burguesa, seja no caso do PT do acúmulo de forças para um governo democrático e popular). Essencialmente trata-se de duas formulações muito distintas, mas que partilham de uma mesma convicção: não é possível uma estratégia e um programa de caráter socialista o que implica em uma mediação democrática (nacional no caso do PCB, popular no caso do PT). Dadas estas aproximações, parecia-me que se o PCB podia amparar a necessidade desta mediação pela leitura que fazia da formação social brasileira como pré-capitalista (que seria compreensível, ainda que não aceitável, à luz do desenvolvimento brasileiro até a década de 1950 e 1960), no entanto no caso do PT que compreendia o desenvolvimento capitalista, esta mediação parecia como paradoxal. No caso das formulações petistas este aparente paradoxo se esvanece na medida em que fundado no pleno desenvolvimento do capitalismo e da ordem burguesa, a meta socialista estaria garantida, no entanto, o caráter deste desenvolvimento (a permanência das desigualdades e o caráter coercitivo do Estado) e a correlação de forças impunham a mediação democrática, ainda que não a aliança com a burguesia, o caráter nacional e a lógica de uma etapa de desenvolvimento de uma “capitalismo democrático”. Tal constatação me fez afirmar que: Significativamente as formulações do PT acabaram presas na fronteira entre o rompimento e a reprodução desta armadilha. Rompe com a formulação de etapas do PCB para reapresentá-la novamente de forma tragicamente caricatural. Na versão original a aliança de classes era com a burguesia nacional e a tarefa era desenvolver o 15 Trata-se da tese de doutorado produzida entre 2001 e 2004 no programa de pós graduação da FFLCH da USP e publicada pela Expressão Popular em 2006. capitalismo. Na reencenação do drama a aliança é com a pequena burguesia para construir o “socialismo”. Para que fosse idêntica a formulação deveria assumir um caráter nacional e supor alianças com a burguesia propriamente dita. Como veremos, nem um nem outro destes fatores, lamentavelmente, faltarão na seqüência dos acontecimentos (Iasi, 2006: 441). Infelizmente de fato não faltaram. Uma das características da metamorfose operada é que pouco a pouco, amplia-se o leque de alianças até incluir os empresários “de qualquer porte”, a prioridade do crescimento econômico de caráter capitalista e a lógica “nacional”, não com qualquer resquício de anti- imperialismo, mas como interesse geral acima do particularismos de classe. O caráter pequeno burguês que espera criar as condições para o “socialismo” acaba, como outras experiências políticas desta natureza, sendo um criativo e eficiente modo de evitá-lo. Tanto o aspecto da recusa da aliança com a burguesia, como em relação à meta socialista se esvanecem, mas em relação a que aspecto que permanece e se fortalece? Parece-me que o aspecto central se encontra na lógica de um determinada concepção de acúmulo de forças e, particularmente, numa certa compreensão do Estado neste processo. O que de fato determina a possibilidade de execução do programa democrático popular original (contra os monopólios, o latifúndio e o imperialismo que só se completaria com uma ruptura) seria uma correlação de forças que permitisse chegar ao governo e dispor de apoio popular para executar as reformas radicais. Ora, na equação real a maneira de consolidar o apoio popular pelas reformas e a possibilidade de chegar ao governo para executá-las se mostram, pelo menos ao juízo da maioria que se formou no PT e o controla, como antagônicas, isto é, a radicalidade que consolida um apoio à transformações democráticas que só se completariam em uma ruptura socialista, estreitaria a base eleitoral que permitiria a chegada ao governo. Sabemos como esta contradição se resolveu. Dada a centralidade da vitória eleitoral presidencial na estratégia assumida, abre-se mão da radicalidade inicial, modera-se o programa, e busca-se uma ampliação das alianças rumo ao “centro”. Este cenário abria uma questão importante: seria possível seguir no acúmulo de forças participando de um espaço estratégico do Estado (o Governo Federal)? José Genoino em uma atividade política formula da seguinte forma o debate que ocorria na direção nacional do PT: a) devemos disputar a presidência? b) é possível uma vitória e eleitoral? c) caso seja possível, é desejável governar ainda que a correlação de forças não permita a plena execução de um programa democrático popular tal como originalmente se apresentava? O PT responde positivamente a estas indagações, ou seja, é possível e desejável chegar a presidência e continuar o acumulo de forças a partir de um ponto mais elevado e estratégico. Esta resposta só é efetiva se considerarmos que se embasa na visão de Estado anteriormente descrita, ou seja, que a sociedade política reflete a correlação de forças presente na sociedade civil. A situação real de governo apenas aprofunda a contradição. As alianças necessárias para ganhar não são suficientes para governar e se ampliam pra além do centro, para a direita do espectro político. Segue-se nova moderação programática e finalmente a rendição ao pragmatismo. As alianças e o programa se mostram, desta forma, secundários em relação ao acumulo de forças, a mediação democrática é mais essencial que seu caráter popular, não por acaso, nas formulações o termo forte passa a ser “uma revolução democrática”, caindo para segundo plano o qualitativo popular. Resta saber se este desfecho implica na ruptura da estratégia ou é uma consequência de sua efetivação. Nos parece que a única maneira de assumir que o produto não corresponde a intenção política inicial é supor que as formas de implementação política poderiam levar a um resultado qualitativamente e essencialmente diverso. Evidente que a ação política imprime direções diversas e os resultados históricos não podem ser compreendidos num quadro de desdobramentos inflexíveis e unidirecionais, no entanto, se estamos correto em nossa análise, os fatores essenciais apontados determinariam um pano de fundo no qual as mudanças de forma, ainda que importantes e com resultados políticos muito diversos, não teriam o poder de alterar os limites da formulação estratégica. Creio que os processos venezuelano e boliviano, por motivos que não cabe analisar aqui, são expressões de uma estratégia democrática e popular que assume uma forma radical que potencializa a luta de classes naqueles países, principalmente se compararmos com o governo e pacto social e de apassivamento tal como se expressou no Brasil. No entanto, até o momento, tais processos ainda não culminaram em rupturas de caráter socialista e suas contradições, ainda que num patamar muito mais avançado, ainda são as mesmas de um momento de mediação democrática radicalmente popular de um ordem burguesa capitalista preservada. No caso brasileiro a situação ainda é pior, pois o preço da governabilidade e do aparente sucesso de governo é o desarme das condições políticas, organizativas e de consciência de classe que poderiam apontar para uma ruptura com a ordem do capital. O que presenciamos aqui é, paradoxalmente, o fato que a experiência do PT se não levou à meta socialista suposta inicialmente, cumpriu factualmente uma
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