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HISTÓRIA MEDIEVAL Mateus Sokolowski E d u ca çã o H IS T Ó R IA M E D IE V A L M at eu s S ok ol ow sk i Nesta obra iremos embarcar em uma viagem por mais de mil anos de histó- ria, que se inicia com a queda do Império Romano do Ocidente (476) e vai até a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453). Mais do que isso, discutiremos a importância desses marcos, para descobrir que as coi- sas não mudam do dia para a noite, mas se constroem por meio de proces- sos, continuidades e rupturas do período anterior (Idade Antiga) ao posterior (Idade Moderna). O espaço geográfico abordado neste livro é o Ocidente latino, mas, para com- preensão desse contexto, foi fundamental abordar os estudos sobre Bizâncio e sobre o Islã. Trataremos aqui sobre o que “não foi a Idade Média” e sobre o que realmente foram as sociedades feudais e suas instituições, como a cavalaria e a Igreja. Estudaremos a importância das cidades, o florescimento da arte e da cultura e sobre como o homem medieval superou os desafios de seu tempo. Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6368-0 CAPA_História Medieval.indd 1 14/11/2017 10:15:23 Mateus Sokolowski IESDE BRASIL S/A Curitiba 2017 Hist ria Medieval CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S667h Sokolowski, Mateus História Medieval / Mateus Sokolowski. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2017 232 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6368-0 1. Idade Média - História. I. Título. 17-45438 CDD: 940.1 CDU: 94(4)” 476/1492” Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. © 2017 – IESDE Brasil S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Produção FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão IESDE Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem Capa Kanuman/Shutterstock.com Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao aluno | 5 1. O que não é Idade Média | 7 2. O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições | 25 3. A cavalaria medieval | 47 4. A fé cristã | 67 5. A cidade medieval | 85 6. A Baixa Idade Média | 105 7. Arte e cultura material no Medievo | 125 8. O Islã | 149 9. Bizâncio | 171 10. Continuidade e rupturas: a chegada dos tempos modernos | 193 Gabarito | 209 Referências | 221 Carta ao aluno Nas próximas páginas iremos embarcar em uma viagem por mais de mil anos de história, que se inicia com a queda do Império Romano do Ocidente (476) e vai até a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453). Mais do que isso, discutiremos a importância desses marcos, para descobrir que as coisas não mudam do dia para a noite, mas se constroem por meio de processos, con- tinuidades e rupturas do período anterior (Idade Antiga) ao poste- rior (Idade Moderna). O espaço geográfico abordado neste livro é o Ocidente latino, mas, para compreensão desse contexto, foi funda- mental abordar os estudos sobre Bizâncio e sobre o Islã. Trataremos aqui sobre o que “não foi a Idade Média” e sobre o que realmente foram as sociedades feudais e suas instituições, como a cavalaria e a Igreja. Estudaremos a importância das cidades, o florescimento da arte e da cultura e sobre como o homem medieval superou os desafios de seu tempo. – 6 – História Medieval No decorrer desta obra iremos superar os preconceitos e a incompreen- são que ronda a Idade Média, para descobrir o que ela nos deixou de mais valioso: a busca pela compreensão e convivência com as diferenças. Afinal, todas as eras são feitas de luz e trevas, e não cabe a nós julgar ou projetar as trevas de nosso tempo no passado, mas sim compreender esse período pela perspectiva de que, se o homem medieval foi capaz de superar-se e ven- cer paradigmas que pareciam intransponíveis, nós, por meio do conheci- mento e do respeito pelas diferenças, também somos capazes de modificar o nosso tempo. Bons estudos! O que não é Idade Média Neste primeiro capítulo iniciaremos nosso estudo a respeito de mais de mil anos de história medieval. Para que isso seja possível, é necessário que façamos um recorte espacial e temporal, além de dividir esse período tão extenso em temáticas. Escolhemos iniciar o assunto esclarecendo os erros mais comuns que cometemos ao abordar esse período, chamado equi- vocadamente de “Idade das Trevas”. Afinal, ao superar nossos pre- conceitos em relação ao tema, tornamo-nos capacitados para nos debruçar sobre os livros e as fontes históricas, a fim de definir nossos próprios recortes e questões sobre esse período tão fascinante e negli- genciado por boa parte das instituições universitárias brasileiras. 1 História Medieval – 8 – 1.1 A importância de se estudar a Idade Média hoje Quando as caravelas portuguesas avistaram as terras brasileiras, elas traziam em sua tripulação homens que tinham a herança de uma cul- tura medieval. Portugal e Espanha haviam vivido a Reconquista cristã na Península Ibérica, um processo histórico iniciado com uma série de batalhas no século VIII, marcado também pela convivência e pela negociação com o Al-Andaluz, domínio muçulmano na região. Esse processo só chegaria ao fim em 1492, com a conquista do Reino de Granada, último reduto muçulmano na Península Ibérica, pelos reis católicos. É fundamental compreendermos esse período, para poder entender a mentalidade guerreira desses homens que desembarcaram nas Américas. A religião católica, o culto aos santos, a música modal somada à poesia carregada de paralelismos1 ecoam ainda hoje na literatura de cordel, no movi- mento armorial e nas típicas canções regionais do Brasil, testemunhando tal herança. Ademais, observando atentamente a religiosidade popular, verifica- mos a presença da crença em São Jorge, também popularizado na música Jorge da Capadócia, de Jorge Ben Jor. “Jorge é da Capadócia, salve Jorge”, canta ele. Você sabia que São Jorge já era muito cultuado no Império Bizantino? Sabia que a Capadócia é uma região próxima a Bizâncio2 atualmente pertencente à Turquia? Essas seriam apenas amostras de como é importante conhecer a cul- tura medieval para conhecer melhor não só o Brasil, mas o mundo em que vivemos. É comum que questões urgentes e cada vez mais atuais recorram à Idade Média em busca de explicações. Na Europa, discute-se o Brexit, a legi- timidade da própria união Europeia e os conflitos com a Turquia. As políticas públicas em relação a refugiados e imigrantes provocam debates acalorados que constantemente necessitam da História para desatar esses nós. Evoca-se a Idade Média para discutir a legitimidade de tais políticas e, no Brasil, temas 1 Repetição simétrica e rítmica de palavras muito utilizada na poesia dos trovadores medievais. 2 O endereço a seguir é do Bizantística, um portal dedicado ao Império Bizantino. Indica- mos especialmente a leitura do artigo sobre os santos guerreiros bizantinos, disponível em: <https://imperiobizantino.com.br/2012/07/16/santos-guerreiros-bizantinos-martires- guerreiros-e-orixas/>. Acesso em: 4 set. 2017. – 9 – O que não é Idade Média como religião e preconceito clamam por uma maior profundidade nos deba- tes. Somado a isso, é imprescindível que todos nós conheçamos outras reali- dades espaciais e temporais. Os historiadores, durante sua formação, devem também conhecer o trabalho de importantes medievalistas franceses, espanhóis e italianos que muito contribuíram para avanços no estudo da História em toda parte do mundo. Georges Duby e Jacques Le Goff, por exemplo, mem- bros da Escola dos Annales contribuíram para trazer à tona conceitos de imaginárioe mentalidade, categorias de estudo que certamente revolu- cionaram a historiografia. Hoje, mais do que nunca, é importante que os professores convidem seus alunos a compreender como as ideias são forjadas e acabam por se trans- formar ao longo do tempo. Em tempos em que o terrorismo provoca medo na sociedade, por meio da história medieval pode-se compreender o contexto de surgimento de muitos conceitos aplicados hoje por grupos extremistas. Por exemplo, o conceito de Jihad foi cunhado no período medieval, significando a luta pela fé, similar ao conceito de Guerra Santa e Cruzadas, empregado pelos reinos cristãos. Recentemente, as propostas de alteração da BNCC – a Base Nacional Comum Curricular no Brasil – provocaram intensos debates sobre a importân- cia de se manter o estudo da Idade Média no currículo. Um dos argumentos no documento publicado pelo Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR (Nemed) é de que o Brasil não está isolado e separado de tradições culturais medievais. A eliminação da Idade Média do currículo causaria prejuízos inco- mensuráveis ao desenvolvimento da noção, de tempo e espaço. Centrar o estudo da História em apenas um só contexto, ou país, pode desembocar num estudo puramente ideológico. Segundo a carta escrita pelo Nemed, A História, nesta proposta, perde a sua dimensão de vivido e inviabi- liza a sua reflexão crítica enquanto parte de algo que existiu e nos toca até hoje. Ao impor recortes contextuais arbitrários e focos específicos perde-se a compreensão do todo em detrimento da visão mecanicista da parte. Os processos históricos desaparecem e destacam-se apenas as construções predominando nesta proposta a concepção de História contada, o que em mentes juvenis com pouca vivência pode dar a impressão de se estar tratando de uma sociedade imaginada numa realidade ficcional. A História perde ainda, nesta proposta, a sua História Medieval – 10 – dimensão universal, pois os homens são universais e não continen- tais ou nacionais. Antes de haver nações já havia processos históricos. (UFPR, 2015) Nesse sentido, nos perguntamos: como podemos estudar os conceitos de império, colônia, república ou democracia sem discutir os processos históri- cos nos quais eles foram pensados? Sabemos que uma História sem passado, cronologia e estudo das diferenças não pode ser chamada de História. Por isso a importância de se estudar História Antiga e Medieval, visto que esses perío- dos são fundamentais para a compreensão do momento em que vivemos. No século XXI, filmes, jogos e séries despertam a curiosidade dos jovens e da população em geral, e é importante que eles saibam situar e organizar cronologicamente e espacialmente Atenas, Esparta, Florença, Roma, Paris, conhecendo os processos históricos dessas regiões. Aqueles que tentam pro- blematizar a História sem uma cronologia oferecem visões deturpadas, equi- vocadas e que, infelizmente, encontram-se presentes em muitos de nossos manuais do Ensino Médio, constituindo, portanto, anacronismos que enfraquecem a História e que reduzem os esforços de gerações de historiadores brasileiros que defendiam exatamente a pluralidade de opções e pensamentos que apresentam a Antiguidade, o Medievo, a Modernidade e a Contemporaneidade em espaços que vão do Mediterrâneo em direção à Europa, à África, à Ásia e à América. (UFPR, 2015) Não podemos ignorar o estudo do Magreb e da Península Ibérica, cuja convivência entre muçulmanos e cristãos ao longo de sete séculos testemu- nhou muitas trocas culturais, assim como disputas. Os portugueses que chegaram ao Brasil já haviam entrado em contato com a cultura africana e traziam em si elementos étnicos e culturais daquele continente. É possível mostrar aos nossos alunos do Ensino Médio que a paz já foi alcançada entre muçulmanos e cristãos que compartilhavam o mesmo território – tal estudo certamente teria grande impacto no mundo em que vivemos. Ademais, o estudo da mentalidade de Cruzada pode ajudar a com- preender a expansão marítima portuguesa e o descobrimento do Brasil, não só como um projeto econômico, como aparece recorrentemente nos livros didáticos. Como ficaria uma geração de brasileiros sem conhecer o Ocidente latino, Bizâncio e o mundo muçulmano? – 11 – O que não é Idade Média A Idade Média foi muito mais que um período intermediário entre e antiguidade e modernidade. Foi a época da música dos trovadores, um tempo marcado por contradições entre os prazeres do carnaval e as privações da quaresma. São Tomás de Aquino, por exemplo, desaconselhava o uso litúrgico da música instrumental porque provocava um deleite tão intenso que perturbava a concentração dos fiéis. Nesse tempo, em que os padrões de beleza eram radicalmente diferentes e a forma de se viver tão distinta da nossa, temos a oportunidade de repensar nossos próprios padrões com a consciência de que eles irão inevitavelmente, e da mesma forma, ser altera- dos no decorrer do tempo. Um dos objetivos do estudo da História é, justamente, descobrir que as mudanças são possíveis e que os paradigmas se alteram ao longo do tempo. Se deixarmos de estudar Idade Média, inevitavelmente esses objetivos deixa- rão de ser cumpridos. O homem medieval via o mundo como uma floresta repleta de perigos e as regiões remotas separadas por oceanos habitados por monstros marinhos. Essa visão de mundo, tomada pela ideia do maravilhoso, fazia-se presente na iconografia medieval, que ignorava a fronteira entre o mundo natural e o sobrenatural. O homem e a mulher medieval atribuíam um significado místico à natureza e possuíam uma visão de mundo em muitos aspectos radicalmente diferente das nossas, sendo, portanto, muito importante que nós estudemos esse período para descobrir o que herdamos dele e em que medida ele é radicalmente diferente do nosso. 1.2 Uma discussão cronológica e espacial do período Medieval Certo dia um romano foi dormir antigo e acordou medieval. Mil anos depois, num dia comum, um lavrador medieval arou a terra, foi dormir e acordou moderno. Essas colocações certamente não fazem sentido. As datas servem como uma guia, um roteiro, mas não são limites definitivos. Segundo o escritor italiano Umberto Eco (2010), estamos muito acostumados a deli- mitar a Idade Média com a dissolução do Império Romano, que, fundindo a cultura latina e tendo o cristianismo como aglutinante, deu origem ao que hoje chamamos de Europa, com suas nações e instituições. História Medieval – 12 – Tal concepção propõe a data de 476 d.C. para marcar o fim do Império Romano do Ocidente, quando o rei vândalo Odoacro, dos Hérulos, depõe o último imperador romano, Rómulo Augusto, como o marco de início da Idade Média, que iria até a data de 1492, quando Colombo chega nas Américas – mesmo ano em que os reis católicos finalizam o processo de Reconquista cristã na Península Ibérica, com a conquista de Granada ao sul. Mas essas não são as únicas datas que podem ser utilizadas para marcar o início e o fim da Idade Média. É possível marcar o fim desse período com a queda de Constantinopla para os turcos otomanos, em 1453. De qual- quer modo, teremos cerca de 1.016 anos de História, ou seja, trata-se de um longo período. Se observarmos de outra perspectiva, ao longo da pró- pria Idade Média existe a mesma distância temporal que nos separa hoje dela. Ou seja, como esperar que ao longo de todo esse tempo não hou- vesse mudanças no pensamento e na forma de se ver o mundo? Portanto, cabe questionar se a Idade Média foi tão uniforme como imaginamos, durante esses 1.016 anos. Caso estudemos a fundo a obra de grandes pensadores da Idade Média, como Santo Agostinho (354-430) e sua obra Cidade de Deus, e São Tomás de Aquino (1225-1274), com a Suma teológica, podemos ver que o pensamento dos dois tem conexões importantes. No entanto, com mil anos de história separando esses dois pensadores, devemos entender que essas obras foram escritas em contextos completamente diferentes e devem ser lidas deacordo com suas especificidades. Na realidade, nós temos muitas “idades médias”. A começar pela divisão clássica, ela é separada pela Alta Idade Média (queda do Império Romano até o ano 1000) e pela Baixa Idade Média (do ano 1000 até 1492). Tal divisão é uma convenção entre os historiadores devido às profundas mudanças de mentalidade que ocorreram com a passagem do milênio no ano 1000. Outra divisão didática adotada é a espacial, separando os con- teúdos da Idade Média em dois grupos: Oriental e Ocidental. O termo Oriental aqui é digno de debate. Edward Said (2012) nos mostra que o termo orientalismo deve ser discutido, uma vez que tudo que não é parte da Europa Ocidental pode ser encarado como exótico, uniforme, perigoso e de difícil compreensão, uma visão altamente tendenciosa e distorcida da – 13 – O que não é Idade Média realidade. Nesse sentido, a história da China, do Japão, do Tibete e da Índia medieval clama por uma abordagem mais profunda. Neste livro, procura- remos informar sobre o recorte tradicional, que inclui a história dos povos árabes e do império bizantino e suas relações com o Ocidente. Mas dei- xamos aqui o convite aos futuros pesquisadores para se debruçarem sobre esses temas tão carentes de estudos no Brasil. Acreditamos que, ainda assim, em meio a um contexto tão heterogêneo, podemos encontrar uma unidade em três pilares da Idade Média na Europa, a confluência da tradição romana com a tradição germânica, aglutinada pelo cristianismo. Na Alta Idade Média, temos a ascensão do Reino Franco, que ocorreu de 482 a 814. Clóvis conseguiu unir os francos sob seu domínio, mas via a necessidade de obter terras e rendas para premiar e manter a lealdade de seus guerreiros. Com a conversão do Reino Franco ao cristianismo, os francos passam a ser vistos como defensores da cristandade contra os muçul- manos. Tal oposição é fundamental para compreender as relações de poder da época, pois o Império Carolíngio restaurou uma espécie de ordem política no Ocidente latino que não existia mais desde o fim do Império Romano do Ocidente. Por outro lado, essa identidade cristã realmente se manifestava no difícil embate com o outro, o muçulmano, e, na maioria das vezes, tal identi- dade se fragmentou devido às partilhas hereditárias e demandas locais. Nesse contexto de medo constante dos ataques frequentes dos vikings e sarracenos, existia, portanto, a necessidade de proteção que irá caracterizar o feudalismo. Os reis viajavam pessoalmente para fazer valer seus direitos e possuíam ainda um sistema administrativo descentralizado; o império ger- mânico segue em relação estrita e conflituosa com o papado, marcando as relações do poder na Alta Idade Média. Ao fim desse período, a partir do século IX a população de Europa encontrava-se provavelmente mais redu- zida desde a queda do Império Romano, e as estradas estavam deterioradas e em péssimo estado. Chegamos, então, ao período conhecido como a Baixa Idade Média. A própria expressão Baixa Idade Média, segundo Guimarães (2010), não parece muito gloriosa, pois já passa uma ideia de decadência e, de fato, foi um período de crises e transformações, principalmente nos séculos XIV e XV, quando muitos padeceram de peste, fome e sofreram com a Guerra dos História Medieval – 14 – Cem Anos. O homem medieval teve de lidar com esses desafios e conquistou alguns progressos nas condições de higiene e inovações no campo. Nos sécu- los XI e XII, houve um expressivo aumento populacional após a crise do ano mil e nesse mesmo período ocorreram a fundação e o crescimento de diversas cidades que acompanhavam o surgimento da burguesia. A Igreja se fortale- ceu criando novas ordens de frades, como os franciscanos e dominicanos no século XIII. Mas foi em 1453 que, no Oriente, encerraram-se mil anos de autonomia política bizantina com o fim do Império Romano do Oriente. Muitos histo- riadores propõem ainda uma longa Idade Média, que se desdobraria até os séculos XVIII e XIX, argumentando que os modos de se pensar e ver mundo se mantiveram autenticamente medievais. Segundo Guimarães: Não há consenso, apenas há convite à reflexão, discussão de critérios e ideologias. O que pode ser considerado um marco? Quem o consi- dera? Sob qual perspectiva? Se se insiste em 1453, é preciso levantar o significado de um acontecimento, a conquista dos turcos otoma- nos, numa chave de ruptura com o mundo e nascimento de outro. (GUIMARÃES, 2010, p. 131) Outro marco importantíssimo foi a expansão ultramarina, que permitiu à Europa chegar ao Novo Mundo. Essa tecnologia, que esteve em gestação durante a Idade Média, daria forma às caravelas na Idade Moderna, período em que, pela primeira vez na História, o Ocidente ultrapassou o Oriente em termos tecnológicos. A Guerra dos Cem Anos, que se iniciou no século XIV, também viria a ser um importante acontecimento. Ela abalaria a posição privi- legiada da cavalaria, tão fortemente enraizada na mentalidade medie- val como um símbolo de escudo da cristandade, pois os cavaleiros não podiam vencer facilmente os arqueiros ou enfrentar abertamente os canhões de guerra. Tais situações alterariam profundamente o papel da nobreza e o poder real. Dessa forma, verifica-se que todos os períodos da História estão inter-re- lacionados e que devemos estar preparados para conhecer suas continuidades e rupturas, sem impor recortes antes de realmente compreendê-los. – 15 – O que não é Idade Média 1.3 História medieval no Brasil: um balanço crítico da historiografia nacional Os estudos medievais no Brasil receberam muita influência dos historia- dores franceses, principalmente os membros da Escola dos Annales, que con- tribuíram muito para novas formas de se entender a Idade Média, por meio de uma perspectiva de estudos da mentalidade e do imaginário da época. No entanto, cada vez mais os historiadores brasileiros têm se interessado pela história da Península Ibérica, que possui suas especificidades geográficas em relação à história da França medieval, geralmente tomada como paradigma para o estudo da cristandade latina. Por isso, é fundamental que os estudiosos tenham em mente que nem sempre os estudos sobre uma região da Europa podem ser aplicados inadvertidamente a outras realidades. Com esse cui- dado, o diálogo entre historiadores brasileiros, portugueses e franceses pode ser muito profícuo. Cada vez mais a digitalização de documentos permite que historiadores da América Latina se debrucem sobre fontes medievais. As obras literárias, nesse sentido, são privilegiadas em relação à cultura material, por motivos óbvios. Desde o começo do crescimento dos estudos medievais acadêmicos no Brasil, a partir de meados de 1980, houve uma marcante influência fran- cesa, pois a Escola dos Annales estava em seu auge. O medievalista Hilário Franco Júnior foi um dos muitos responsáveis pelo avanço desses estudos no Brasil, sendo inclusive orientado por Jacques Le Goff em seu pós-doutorado. Posteriormente, diversos programas de pós-graduação do país se voltaram a um passado medieval português, conforme demonstra a maioria das pesqui- sas realizadas. Isso se deu, provavelmente, porque temos um passado e um idioma comum compartilhados. A herança ibérica, com sua tradição medieval frequentemente ressigni- ficada no Brasil, e o papel desempenhado pela Igreja católica na história do país também são pontos que contribuem para o interesse sobre a trajetória dessa instituição. Em levantamento realizado no banco de teses da Capes3, encontramos os trabalhos mais recentes do Brasil que demonstram o avanço dos estudos medievais. Poderíamos listar todas as obras e autores importantes, mas isso tornaria nosso livro um grande banco de dados, tarefa que não nos 3 Disponível em: <http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/>. Acesso em: 30 set. 2017. História Medieval – 16 – compete aqui. Citamos, portanto, alguns dos expressivos grupos de pesquisa ativos atualmente, como, por exemplo, oNemed, o Leme, o Vivarium, o Neve, além de pequenos grupos espalhados em centros estaduais, como os da UEM/UEL4. Além disso, a criação da Abrem5 em 1996 fortaleceu os estudos medie- vais no Brasil, contribuindo para um crescimento das obras publicadas em língua portuguesa, no entanto, ainda é necessário recorrermos a autores estrangeiros. Esse diálogo entre autores nacionais e internacionais é vital para construção da pesquisa na área6. Além desses grupos de pesquisa, existe nas universidades um crescente interesse pela música e pela cultura medievais, comprovado pelos surgimento de grupos que realizam execuções de cantigas, como o conjunto Música Antiga, da UFF, fundado em 1982 e ativo até os dias de hoje, e também por pesquisadores do Nemed. Esses exemplos evidenciam o interesse dos dis- centes e docentes pela execução performática da música, contrafactum7, bem como na recuperação desses temas, cuja divulgação ao vivo ou em meios de 4 Para saber mais sobre esse trabalho, acesse os endereços eletrônicos desses grupos, disponíveis em: <http://nemed.he.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2017. <http://www.leme-medieval.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2017. <https://vivarium.vpeventos.com/#/>. Acesso em: 5 set. 2017. <http://neve2012.blogspot.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2017. 5 Associação Brasileira de Estudos Medievais. Disponível em: <http://www.abrem.org.br>. Acesso em: 5 set. 2017. 6 No Brasil, não podemos deixar de citar os pesquisadores: Fatima Regina Fernandes e Mar- cella Lopes Guimarães (UFPR), Renata Cristina de Souza Nascimento (UFG), Adriana Mo- celim (PUCPR), Aline Dias da Silveira (UFRGS), Ricardo Costa (UFES), Vânia Leite Fróes (UFF) e José Rivair Macedo (UFRGS), que colocam o país na vanguarda dos estudos me- dievais. Além disso, os estudos interdisciplinares se mostram essenciais, pois não há dúvida de que a música e a literatura podem contribuir imensamente para a História. As cantigas medievais, por exemplo, já foram também examinadas por estudiosos da área de Letras no Brasil, como os pesquisadores Osvaldo Ceschin (USP), Ângela Vaz Leão (UFMG) e Paulo Roberto Sodré (UFES); entre outros que trazem importantes contribuições para a leitura interdisciplinar das fontes. 7 Contrafactum é a substituição de um texto por outro sem mudança significativa na música ou utilização de uma mesma melodia para diferentes textos. – 17 – O que não é Idade Média comunicação tem a capacidade de estimular novas pesquisas e despertar o interesse do grande público8. 1.4 Os preconceitos em relação à Idade Média O método socrático, criado por Sócrates na Antiguidade Clássica, é uma técnica de investigação filosófica feita em forma de diálogo, na qual o profes- sor conduz o aluno a um processo de reflexão e descoberta de novos valores. O método consiste em duas etapas. Na primeira, utiliza-se a ironia – nesse momento busca-se questionar o conhecimento prévio que se tem sobre deter- minada matéria. Por meio de variados questionamentos, o indivíduo percebe que seu conhecimento sobre determinado assunto pode estar equivocado, estando apto para a segunda etapa: a maiêutica, o momento no qual se dá à luz novas ideias. Tal método é muito interessante para o estudo da Idade Média. Num curso de licenciatura em História, por exemplo, os futuros professores devem estar preparados para, antes de abordar os conteúdos de Idade Média, conhe- cer os preconceitos que os alunos podem ter em relação ao tema e, em seguida, explicar os conteúdos com uma base mais sólida. Umberto Eco, ao escrever sua obra Idade Média: bárbaros cristãos e muçulmanos, por exemplo, abordou a importância de se combater os prin- cipais mitos e preconceitos em relação à Idade Média antes de se construir um conhecimento sobre ela, e hoje mais do que nunca isso é importante. Para o autor, devemos combater a ideia de Dark Ages, ou Idade das Trevas. É claro que as pessoas viviam em ambientes escuros, florestas e compar- timentos estreitos e mal iluminados, mas, por outro lado, não podemos esquecer das festas, das roupas coloridas, das iluminuras dos livros e das catedrais góticas plenamente iluminadas pela luz de sol que entrava pelos vitrais (ECO, 2010). Aliás, você sabia que o termo Idade Média surgiu com o advento do humanismo? Tratava-se de um movimento que, inspirado na civilização 8 Para mais informações, recomenda-se a leitura de: SOKOLOWSKI, Mateus. Aspectos da ca- valaria nas cantigas de Santa Maria de Afonso X (1252-1284). 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016. História Medieval – 18 – greco-romana, idealizava a Antiguidade, desprezando o milênio imediatamente posterior. Daí o uso de tal termo: um período que estava no meio da Renascença, para separá-la da Antiguidade Clássica. Tal colocação é fácil de desmistificar a partir do momento em que percebemos que só foi possível ter acesso às obras da Antiguidade porque elas foram preservadas pelos monges copistas medievais. Tradutores árabes desempenharam um papel fundamental ao traduzir e pre- servar a obra de Aristóteles, por exemplo, e hoje, provavelmente, não teríamos acesso a essa obra se não fosse por eles. Um erro comum é pensar que os medie- vais desprezavam a ciência da Antiguidade: na realidade, eles a preservaram e a compreendiam com base em uma perspectiva cristã. Certamente a Idade Média não ignorou a cultura clássica. Havia sede de conhecimento; pesquisadores, curiosos e monges que dedicaram a vida para ter acesso a manuscritos raríssimos. Os textos clássicos eram lidos por meio de sua interpretação cristã típica do contexto, mas o fato é que a Idade Média não rejeitou a ciência da Antiguidade, como defendeu o positivismo do século XIX (ECO, 2010). Se, por um lado, temos muitas pessoas que pensam na Idade Média como mil anos de intolerância, caça às bruxas, ou, ainda, meramente como um conteúdo de livros da escola, onde se decora a lista de impostos pagos pelos camponeses ao senhor feudal, temos, por outro lado, a idealização da Idade Média pelos jogos de videogame e lançamentos do cinema e da TV inspirados nessa cultura, trazendo castelos mágicos e dragões que fre- quentemente surgem na mente das pessoas quando falamos dessa época. Certo é que o maravilhoso era muito presente nesse período, mas não podemos imaginar que os castelos pareciam palácios cheios de torres. Eles eram rústicos e serviam como fortificações e não ofereciam nenhum con- forto moderno. O Romantismo resgatou a ideia de cavaleiros e princesas morando em castelos que também não condiz com a realidade medieval. Segundo Umberto Eco (2010), o castelo feudal consiste numa estrutura de madeira em um terreno elevado e rodeado por uma trincheira, sim- ples assim. Ainda que tais ideias sejam úteis para despertar o interesse do público sobre o tema, é necessário desmistificá-las. Outra ideia comum quando se pensa a Idade Média é a de que foi um período em que ninguém ousava viajar ou partir da região onde morava. – 19 – O que não é Idade Média Claro que haviam florestas densas e estradas em péssimo estado, mas casos como o de Marco Polo comprovam o alcance do comércio das repúblicas marítimas italianas e o gosto que se tinha pelo desconhecido. Outros exem- plos são os relatos das viagens dos vikings que alcançaram a Groelândia, o sul da Itália e a Rússia. Não podemos nos esquecer da importância da fé no período medieval. As catedrais e suas relíquias constituíam verdadeiros centros de peregrinações, e até os mais pobres trilhavam o Caminho de Santiago e sonhavam com a possibilidade de um dia fazer uma peregrinação a Jerusalém. Apesar de a Inquisição ter sido criada na Idade Média, foi na Idade Moderna que se aprimoraram os instrumentos e métodos de tortura utiliza- dos para se obter as confissões. Ao contrário do que se pensa, foi nesse mesmo recorte temporal do Renascimento e do humanismo que se bateu o recorde de mulheres queimadas na fogueira porsuspeita de bruxaria. Embora em menor número, na Idade Média pessoas também foram queimadas na fogueira, não somente por motivos religiosos, mas também por motivos políticos (ECO, 2010). A condenação de Joana d’Arc, em 1431, durante a Guerra dos Cem Anos, é um exemplo disso. Durante a disputa entre França e Inglaterra, Joana foi capturada e queimada viva sob o argumento de ter praticado heresia; toda- via, dado o contexto de disputa pelos territórios na França, reconheceu-se que sua execução foi política. Anos mais tarde, ela seria santificada e perdoada pelo papa. Convém lembrar que cerca de 100 anos depois haveria um processo da Inquisição contra Galileu, em plena Idade Moderna, e em 1600 seria quei- mado Giordano Bruno, acusado de heresia. Já o Martelo das Feiticeiras, escri- tos pelos dominicanos alemães Kraemer e Sprenger em 1487, constituía um manual verdadeiramente cruel de torturas a serem realizadas para obter a confissão de hereges e bruxas, o qual esteve em pleno uso após o fim da Idade Média. Nesse livro as mulheres eram apontadas como as únicas capazes de bruxaria. Nesse mesmo século XV, tivemos personagens como Savoranola: pregador inflexível que em pleno Renascimento promovia a queima de livros e de obras de arte em suas fogueiras da vaidade, sendo desacreditado e finalmente condenado, mas somente ao fim de sua vida. Tais acontecimen- tos da Idade Moderna nos fazem refletir sobre a tolerância e pluralidade de História Medieval – 20 – pensamento que existira outrora na Idade Média e sobre as continuidades e rupturas desse período, justificando o argumento de que não foi exclusivi- dade do período medieval queimar pessoas na fogueira, assim como não foi um período de atrasos – muito pelo contrário. Nós também tivemos trevas na Idade Média: medo, peste, intolerância, fanatismo e fome. Mas foi dela que herdamos a luz das catedrais, os moinhos movidos a água ou a vento, as abadias românicas, as universidades, a carta de crédito, a letra de câmbio, a chaminé, o papel, os algarismos árabes, as cartas de jogar, o jogo xadrez e os óculos, bem como a preservação de todos os grandes pensadores da Antiguidade, entre outras inúmeras contribuições. Conclusão A ideia difundida pelos humanistas de que a Idade Média foi mera- mente um período intermediário entre o apogeu da Antiguidade e os pro- gressos da Idade Moderna viria a privar esse período de seu próprio valor. Nesse sentido, a Idade Média seria tomada como a Idade das Trevas, ou Dark Ages, uma época marcada pela miséria humana, barbárie, anarquia e violên- cia. Infelizmente tal concepção ainda persiste nos dias de hoje: muitas vezes, para se referir a um comportamento atrasado ou preconceituoso, atribui-se o adjetivo medieval a essas atitudes. Devemos estar alerta para superar essas construções históricas e abor- dar esse contexto de uma maneira mais objetiva e menos preconceituosa. Também precisamos perceber os avanços que ocorreram na Idade Média, o ordenamento de sua sociedade, sua coletividade e solidariedade, cuidando para não idealizar o período e tomá-lo como um sonho de nobres cavaleiros e belas donzelas conforme muitos filmes apresentam. Ao lado disso, há de se rever a sua periodização e não se apegar a con- ceitos estanques, como “fato histórico”, “classe” e “modo de produção” para analisar o homem desse período. A Idade Média emergiu da desagregação do Império Romano do Ocidente, marcada pela deposição de Rómulo Augusto em 476, mas deve-se ter cuidado ao utilizar esse marco: o período medieval não se iniciou da noite para o dia. Além disso, hoje se discute a ideia de uma longa Idade Média, pois as mudanças na mentalidade ocorrem com longos – 21 – O que não é Idade Média processos, e é possível perceber continuidades do pensamento medieval cris- tão no desenrolar dos tempos modernos. Convidamos o leitor a compreen- der a Idade Média com base nesses conceitos de processo, continuidades e rupturas, e superar a visão preconceituosa desse contexto. Afinal, estudamos para compreender o homem e sua conjuntura de vida, e não para julgá-lo indiscriminadamente por meio de um olhar anacrônico. Ampliando seus conhecimentos O trecho do livro de Jacques Le Goff e Nicolas Truong que reproduzimos a seguir ilustra a importância dos estudos dos medievalistas para toda a historiografia. Afinal, foram eles que se debruçaram sobre temas inéditos, como, por exemplo, a história do corpo humano. Essa leitura também nos ajuda a compreender como a mentalidade cristã estava presente no cotidiano dos homens, além de nos preparar para o próximo capítulo, no qual estudaremos as três ordens do feudalismo: a dos “Oratore”, que oravam, os “Belatore”, que guerreavam, e os “Laboratore”, que trabalhavam. A Igreja fazia parte da primeira ordem e viria a exercer sua influência sobre o corpo e espírito das pessoas. Uma história do corpo na Idade Média (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 34-35) [...] Provavelmente não é por acaso que o único fundador e representante da escola histórica chamada dos Annales que se interessou pela questão do corpo tenha sido um historia- dor da Idade Média, bem como um dos intelectuais mais sensíveis às convulsões do mundo contemporâneo: Marc Bloch [...] o desvio pela história do corpo na Idade Média História Medieval – 22 – pode permitir compreender um pouco melhor nosso tempo, tanto por suas convergências surpreendentes como por suas irredutíveis divergências. [...] Na Idade Média o corpo é, reiteremos, o lugar de um paradoxo. Por um lado, o cristianismo não cessa de repri- mi-lo. “O corpo é a abominável roupa da alma”, diz o papa Gregório, o Grande. Por outro, ele é glorificado, sobretudo por meio do corpo padecente de Cristo, sacra- lizado na Igreja, corpo místico de Cristo. “O corpo é o tabernáculo do Espírito Santo”, diz Paulo. A humanidade cristã repousa tanto sobre o pecado original – transfor- mado na Idade Média em pecado sexual- quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é con- tido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucio- nalizado, mas resiste à sua repressão. A vida cotidiana dos homens da Idade Média oscila entre a Quaresma e o Carnaval, um combate imortalizado por Pieter Bruegel no célebre quadro de 1559, O Combate do Carnaval e da Quaresma. De um lado, o magro, do outro, o gordo. De um lado, o jejum e a abstinência, do outro, banquetes e gula. Essa oscilação tem a ver, provavelmente, com o lugar central que o corpo ocupa no imaginário e na realidade da Idade Média. As três ordens que compõem a sociedade tripartite medieval, oratores (aqueles que rezam), bel/ato- res (aqueles que combatem) e laboratores (aqueles que trabalham), são em parte definidas por sua relação com o corpo. Os corpos sadios dos padres, que não devem ser nem mutilados nem estropiados; os corpos dos guerreiros, enobrecidos por suas proezas de guerra; os corpos dos trabalhadores, esgotados pela labuta. As relações entre a alma e o corpo são, por sua vez, dialéticas, dinâmicas, e não antagônicas [...] – 23 – O que não é Idade Média Atividades 1. Por que é importante superar os preconceitos que cerceam a Idade Média nos dias de hoje? 2. De acordo com o trecho do livro de Jacques Le Goff e Truong (2006), explique o pensamento da Idade Média em relação ao corpo humano. 3. O que significa dizer que existem muitas “idades médias”? 4. Segundo o capítulo lido, qual é a necessidade de se manter o estudo da Idade Média no Ensino Médio? O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições Após definirmos os equívocos mais comuns cometidos ao se abordar o período medieval, chegou a hora de aprofundarmos um pouco mais nossa discussão. Para tanto, vamos contextualizar as principais instituições desse período e conhecer as três ordens do feudalismo. Sabe-se que o homem medieval não se autodenominava feudal; tal termo, segundo Hilário Franco Júnior (1983),foi conce- bido somente no século XVIII. Esse sistema surgiu das ruínas do Império Romano para atender às demandas de uma nova realidade que estava em gestação desde o início da Idade Média, atingindo seu amadurecimento nos séculos X ao XIII, para, nos séculos seguintes, sofrer seu processo de desestruturação. Devido às variações e espe- cificidades de cada região, seria mais correto dizermos, então – no plural –, sociedades feudais. 2 História Medieval – 26 – 2.1 A teoria dos dois gládios: o espiritual e o temporal e a formação da sociedade feudal Muito mais do que uma simples exploração dos camponeses pelo clero e pela nobreza, o feudalismo foi um longo processo. Para Alain Guerreau (2006, p. 440), a própria noção de Europa feudal estava interligada ao con- ceito de dominium, que constituía numa relação social original marcada pela simultânea dominação dos homens e de suas terras pelo senhor, tratando-se, portanto, de uma relação de natureza desigual, diferente do período posterior, quando o mercado se tornou a instituição dominante. Por isso a dificuldade dos historiadores ao abordarem o período medieval, afinal, palavras como moeda, comércio e religião possuíam um sentido radicalmente distinto dos quais lhes atribuímos nos dias de hoje. Para nos ajudar a compreender melhor esse contexto tão distante do nosso, Franco Júnior (1983, p. 9) desenvolveu tópicos que são comuns a todas as sociedades feudais, a saber: 2 ruralização da sociedade; 2 enrijecimento da hierarquia social; 2 fragmentação do poder central; 2 desenvolvimento das relações de dependência social; 2 privatização da defesa; 2 clericalização da sociedade; 2 transformações na mentalidade. A seguir, discutiremos cada um deles. Com a ruralização da sociedade, a terra tornou-se a maior fonte de riqueza e poder e, desde o início da dinastia Merovíngia, era concedida como forma de pagamento pelos serviços prestados ao rei. Essa concessão tornou-se hereditária com o tempo, o que levaria a uma fragmentação do poder real e, consequentemente, ao isolamento de grupos humanos nos feudos, onde se buscava a segurança e o sustento viabilizados por meio dos indivíduos mais poderosos. Para Franco Júnior (1983), seria a instituição das relações de suserania e vassalagem que iria moldar essas sociedades, conforme veremos adiante. A difusão desse sistema deu-se desde Carlos Magno, pois a autoridade – 27 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições do imperador dependia em muito da fidelidade de seus servidores pessoais, nessa dinastia que daria procedência ao Sacro Império Romano-Germânico. Carlos Magno, após sua coroação, dedicou-se à organização de seus domínios, por meio de uma atividade legislativa que procurava não abolir a organização política que existia previamente. Disso resultou uma complexa articulação que compreendia: os condados, dotados de consistência territorial e dirigidos pelos condes, que aliavam às funções militares as judiciárias; e os ducados, regiões maiores que tinham uma forte base étnica, principalmente dos saxões. Ao fim, os homens de confiança do reino acabavam assumindo importantes cargos públicos e tornavam-se vassalos do imperador. Assim, a fidelidade desses indivíduos era garantida com a concessão de feudos e títulos de nobreza. A organização do império era completada, também, pela pre- sença de uma corte, estável na estrutura, mas itinerante para fazer valer suas determinações. No entanto, a dissolução do Império Carolíngio implicaria na divisão desses centros de poder, marcando uma nova concepção de poder régio, muito mais ligada a uma concepção territorial e baseada na divisão do reino em ducados (RAIOLA, 2010, p. 179). Nessa conjuntura de fragmentação política, a Igreja se destacava por sua proposta de integração e pela incrível capacidade de unir todos sob o ideal cristão. A palavra católico vem do latim e significa universal, e foi justamente essa abrangência que a fez superar o poder dos senhores feudais, uma vez que se encarregaria do eterno, enquanto os camponeses e a nobreza se encarrega- riam do mundano e transitório, conforme os dizeres: “Dai a Cesar o que é de Cesar, a Deus o que é de Deus”. Alain Guerreau (2006) afirmou que foi a ecclesia (Igreja) a instituição predominante no sistema feudal, definindo-a de forma muito precisa: Entendemos por instituição uma forma social de organização pensada como estável e perene fundada sobre regras de funcionamento, explí- citas, distribuindo a seus membros ou aos indivíduos relacionados a ela papéis diferenciados, articulados uns aos outros. A ecclesia era uma instituição dominante na medida em que todos os seus habitan- tes da Europa Medieval estavam obrigatoriamente relacionados com ela. (GUERREAU, 2006, p. 447) Devemos lembrar que o cristianismo se estabeleceu como instituição nos séculos finais do Império Romano. Enquanto este sucumbia em crises, História Medieval – 28 – a Igreja católica fortaleceu-se. A perseguição aos cristãos encerrou-se com Constantino I, que, por meio do Édito de Milão, promoveu a liberdade reli- giosa em 313 d.C. A partir de 380 d.C., com o imperador Teodósio, o cris- tianismo transformou-se na religião oficial do império. Segundo Franco Júnior (1983), foi a partir desse contexto que os bis- pos começaram a alargar sua atuação, substituindo aos poucos a magistratura civil; dessa forma, a Igreja fortalecia suas raízes na sociedade. Ao lado disso, as doações contribuíram enormemente para o crescimento do seu poder eco- nômico e, já no século V, o celibato clerical impedia a alienação ou divisão dos bens. Chegando ao século IX, a Igreja tinha em seu poder 1/3 das terras cultiváveis da Europa (FRANCO JÚNIOR, 1983). Disso advém a impor- tância do debate sobre os dois gládios1 na Idade Média. Sabe-se que a espada temporal era considerada do imperador ou dos reis até a Reforma gregoriana (embora se considerasse que ela deveria ser usada em prol da Igreja) e que Carlos Magno chegou a ser chamado de rector ecclesiae (condutor da Igreja). Figura 1 – Modelo de gládio romano. Fonte: Rama/Wikimedia Commons. 1 Gládio era uma espada romana de dois gumes que simbolizava o poder real. – 29 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições No século IX, Carlos Magno, inspirado pelo Império Romano, tentaria construir um novo império. Mas os próprios soberanos carolíngios iriam (por necessidades defensivas e administrativas) promover a dissolução do império que tentaram criar. Devemos entender que a crise do império afetava igual- mente a unidade da Igreja e o poder do papa, pois diminuíra os recursos para sua administração e para as missões de conversão dos pagãos ao norte da Europa. Portanto, no século X, o papado teve seu poder restringido e sua própria eleição era refém dos interesses da aristocracia (RAIOLA, 2010). Georges Duby (1989) lembra-nos de que, por volta do fim do século X, a realeza perdeu boa parte de seu poder sobre as autoridades leigas e locais que exerciam seus comandos em benefício próprio. A autoridade de julgar e punir tornara-se desde então uma oportunidade para arrecadar taxas lucrati- vas da população, atingindo inclusive os homens da Igreja, que antes estavam protegidos pelos privilégios de imunidade concedidos pela autoridade real. De variadas maneiras, os poderes temporais ameaçavam a liberdade da Igreja. Apesar dos longos anos de conflitos pós-carolíngios, a ideia de uma soberania imperial não desaparece e a Igreja também se interessa pela con- servação de uma autoridade universal: reconhece no imperador um protetor poderoso e está disposta a lhe conferir legitimidade. Por outro lado, exige dos imperadores que não interfiram nos assuntos espirituais. Seria com a coroa- ção de Otão I (912-973) que o papado voltaria a fazer crescer sua autono- mia. Apesar de os bispos serem escolhidos entre os nobres, a Igreja consegue acumular terras e propriedades e Otão I torna-se guardião da independênciados Estados papais. No entanto, ele teria de se dirigir a Roma três vezes, para defender seus interesses e para assegurar que a eleição do papa fosse aprovada pelo imperador (RAIOLA, 2010). Vemos que os séculos X e XI foram marcados pela fragmentação do poder central, que seria completamente incompatível com as aspirações uni- versalistas disputadas pela Igreja e pelo império (RAIOLA, 2010, p. 179). Ao lado disso, o poder dos bispos opunha-se ao poder dos duques e condes. No Capítulo 4 deste livro, veremos que os papas persistiram em colocar a Igreja acima do poder temporal, numa disputa que resultaria na Concordata de Worms, em 1122, conciliando o poder papal com o poder do imperador. História Medieval – 30 – Nos séculos seguintes, com base nas teses de Egídio Romano (1247- -1295) presentes na bula Unam Sanctam, por exemplo, descobrimos a afirma- ção teórica de que a Igreja detém ambos os gládios, embora só use diretamente o gládio espiritual, devendo o gládio temporal ser subordinado à Igreja: O gládio espiritual e o material estão ambos em poder da Igreja, mas aquele deve ser manejado pela Igreja e pelo sacerdote, e este pelos reis e soldados, se bem que por indicação e anuência do sacerdote. Por isso, é necessário que uma espada esteja sob a outra e que a autoridade secular esteja subordinada à autoridade espiritual. (DIEHL, 2015, p. 28 apud SOUZA, 1997, p. 184) Trazemos essa discussão teórica sobre os dois gládios, que data de fins da Idade Média, pois ela nos permite refletir sobre as relações de poder entre duas importantes instituições: o Sacro Império e a Igreja. O cristianismo atendia aos anseios espirituais mais profundos da população e a conversão permitia que os mais humildes e analfabetos tivessem acesso a uma concepção de mundo. Por meio da liturgia, vivia-se uma relação de troca com Deus, com a esperança de se obter recompensas celestiais. Ao lado disso, havia um medo constante de que o diabo estivesse sempre à espreita, ameaçando a vida cotidiana. Alain Guerreau (2006) lembra-nos de que as regras ditadas pela Igreja tinham um valor geral e coercitivo e que suas posses fundiárias e materiais não tiveram equivalente. O papa, durante a Idade Média, não somente tratava de assuntos espirituais, mas também interferia nos assuntos concernentes à vida política, atuando, inclusive, como mediador de conflitos entre diferentes senhores feudais. A própria organização e hierarquia da Igreja medieval ajuda- vam a garantir a consolidação do seu poder. Desde 756, o papa era dirigente de vários territórios que estavam sob a autoridade e o controle direto da Igreja, o que o levou a envolver-se em múltiplos conflitos políticos com as monarquias medievais. Mais tarde, no início da chamada Baixa Idade Média, os conflitos tornam-se acirrados e cada vez mais os monarcas buscam centralizar o poder em si, argumentando que para a Igreja cabia apenas a função espiritual. No entanto, segundo Fernandes (2008), durante o Medievo havia um conjunto de pensadores eclesiásticos diretamente envolvidos na manutenção da teocracia papal, que triunfaria, pelo menos no plano teórico, até o século XIV. A partir desse momento, outra realidade política teve suas bases insti- tucionais e teóricas amadurecidas: trata-se do conceito de reino. A França de – 31 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições Filipe IV, o Belo, daria o primeiro passo no sentido de interferir no embate teórico de superioridade entre império e papado, enfrentando este último ao criar uma sé pontifical alternativa em Avinhão, território francês, no episó- dio conhecido como o Cisma do Ocidente. Passam então a existir dois papas, que, em sua disputa pelo poder, excomungaram-se mutuamente. Esses foram tempos de crise para cristandade, com a culminância de uma disputa que atravessou todo o Medievo. A universalidade do conceito de império desenvolvida no Sacro Império Romano-Germânico seria, no fim da Idade Média, aplicada às realidades políticas específicas dos reinos. Essa concepção é recorrente nos tratados dou- trinais do estilo espelho de príncipes2. Afonso X, o Sábio (1252-1284), rei de Leão e Castela, personifica muito bem tal fenômeno ao afirmar que o rei é imperador dentro do seu reino. As universidades da época também teriam um papel determinante ao propiciarem argumentos aristotélicos às bases teó- ricas de supremacia dos reis (FERNANDES, 2008). Assim, podemos concluir que o tradicional embate entre papado e impé- rio, nos fim do século XIII e princípio do século XIV, tenderia a ser tempora- riamente superado pelo eclodir da força dos reis. É importante destacar que os documentos que defendem a supremacia de um dos gládios não excluem ou propõem a extinção de seus opositores, na medida em que o conjunto dos poderes, espirituais e temporais, configuraria a realidade política ideal e equilibrada, ainda que hierarquizada (FERNANDES, 2008). Dessa forma, podemos ver o desafio de conciliar esquemas generalizantes ao estudo de realidades específicas na Idade Média e percebemos como as institui- ções às quais ela deu vida passaram por transformações nesse período, devido a complexas relações de poder, típicas de cada contexto dessas sociedades feudais. 2.2 Oratore, belatore e laboratore É muito comum os historiadores recorrerem ao clássico poema do bispo católico Adalbéron de Laon (947-1030) para debater a trifunciona- lidade da sociedade medieval ocidental. O poema cita as três ordens que, 2 Espelho de príncipes é um gênero literário tratadista que, por meio de uma narrativa norma- tiva, propõe modelos de governantes ideais. História Medieval – 32 – teoricamente, seriam: em primeiro lugar, a dos oratore, que no latim significa os que oram, responsáveis por rezar pela salvação de todos; em segundo, a dos belatore, que executavam a função bélica de proteger a primeira e a terceira categorias, lutando contra os infiéis; e, por último, a dos laboratore, que deveriam, com o seu labor, vestir e alimentar todos os demais. Tal concepção estava em harmonia com a ideia corrente de que a sociedade medieval era um só corpo, em que cada membro devia trabalhar em harmonia com os demais, obedecendo à hierarquia para o funcionamento ideal e ordenado do grupo como um todo. Devido à natureza de sua função, os que oravam tinham primazia sobre os demais, sobretudo devido ao fato de possuírem autoridade moral como representantes da vontade divina na Terra. Tal destaque social era reforçado por normas que os diferenciavam, como o celibato e a tonsura – corte de cabelo que simbolizava a renúncia da vaidade, pois se raspava o topo da cabeça deixando o cabelo apenas nas laterais (Figura 2). Além disso, somente o clero poderia realizar os rituais da liturgia, que se tornava cada vez mais complexa e com uma grande quantidade de festas religiosas. Figura 2 – Exemplo de tonsura. ANGELICO, Fra. São Domingos de Gusmão (detalhe), séc. XV, afresco, color. Museu Nacional de São Marcos, Florença, Itália. Para Franco Júnior (1983), essa tentativa de monopolizar a comunicação com Deus tornava o clero responsável por todos os demais, pois sem o traba- lho deles não haveria salvação. Esse monopólio da fé acabou por levar a uma – 33 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições verdadeira Cruzada contra as heresias e repressão das manifestações populares da fé, que nunca deixaram de existir. As rejeições individuais levavam à exco- munhão; essa exclusão do coletivo era uma das piores penalidades possíveis na Idade Média, enquanto as rejeições coletivas eram consideradas heresias, que tinham como consequência uma repressão brutal (GUERREAU, 2006). Um exemplo é o caso dos cátaros, que, ao negar os dogmas da Igreja, foram perse- guidos. No século XIII, o papa, ao lado da dinastia Capetíngia, convocou uma verdadeira Cruzada contra a heresia cátara no sul da França, o que iria resultar num verdadeiro massacre de homens, mulheres e crianças pelos cruzados.Era à Igreja que cabia a função unificadora de uma Europa medieval marcada pela divisão. Numa sociedade altamente hierarquizada, dentro da Igreja não podia ser diferente. Percebia-se que a Terra deveria refletir o reino dos céus, que era igualmente hierarquizado. Os mosteiros da ordem de Cluny, por exemplo, seguiam uma rígida hierarquia, não havia relações horizontais entre mosteiros da mesma categoria, mas uma hierarquia vertical em que todos se reportavam a uma ordem superior. Quando falamos de feudalismo, estamos nos referindo a uma sociedade agrária em sua essência e sob um forte controle clerical. Nesse contexto os movimentos monásticos se reforçaram, afinal eram os eclesiásticos que assegu- ravam a coesão da aristocracia. Segundo Alain Guerreau (2006), a tendência global e obrigatória da Igreja constituía a estrutura do sistema de dominação medieval. Era o soar dos sinos da igreja que informava as horas mais impor- tantes do dia, assim como eram as festas do calendário litúrgico que marca- vam a passagem do tempo. Os que oravam, portanto, interferiam em todos os aspectos do cotidiano dos homens. Acreditava-se que somente a intervenção da vontade divina por meio das orações promovidas pelo clero podiam superar as maiores provações e ajudar o homem, fraco por natureza, a superar o campo do mal que dominava a vida material (FRANCO JÚNIOR, 1983). Naturalmente, a Igreja acumulou cada vez mais riquezas e os mosteiros eram alvos fáceis para os mais cobiçosos. Os responsáveis pela proteção de seus bens eram os cavaleiros – geralmente de origem nobre – e a eles cabia atuar como protetores da Igreja e dos que não podiam portar armas para se defender. Aos poucos eles conseguiram cada vez mais conquistar poder polí- tico, pelo domínio que exerciam no território que protegiam. Na prática, os História Medieval – 34 – camponeses, aqueles a quem eles deveriam proteger, eram os mais explorados, e o estilo da vida dos guerreiros buscava imitar a fartura e a pompa da velha nobreza à qual estavam ligados. Até o século XII, mais especificamente na França, nobreza e cavalaria tornaram-se sinônimos. Segundo Baschet (2006), a Igreja denuncia a violência da aristocracia laica na medida em que ela pró- pria é sua vítima e defende seus próprios senhorios de uma constante pressão da aristocracia. Nesse embate com a nobreza, a Igreja apela ao povo, conforme comprovam os movimentos de Paz de Deus, que fazem então a manutenção da ordem senhorial que a Igreja queria dominar. Em vários momentos os reis e a Igreja buscavam controlar o comporta- mento agressivo dos guerreiros, o que de modo geral também teria eco nas Cantigas de Santa Maria, compiladas na corte de Afonso X, o Sábio de Leão e Castela (1252-1284). Na “Cantiga n. 22”, por exemplo, um cavaleiro ataca um lavrador devido ao desamor que tinha pelo seu senhor, evidenciando as rivalidades existentes entre a nobreza nesse período. O lavrador então pede socorro a Santa Maria para suportar os golpes de lança: [...] En Armenteira foi un lavrador, que un cavaleiro, por desamor mui grande que aví’ a séu sennor, foi polo matar, per nome Matéus. E u o viu séu millo debullar na eira, mandou-lle lançadas dar; mas el começou a Madr’ a chamar do que na cruz mataron os judéus. [...]3 3 “Em Armenteira havia um lavrador, que um cavaleiro, por desamor muito grande que tinha por seu senhor, foi matá-lo, seu nome era Mateus. Ele viu seu milho debulhar e mandou lançadas dar mas ele começou a Maria chamar Mãe daquele que na cruz foi morto por judeus.” (Cantiga de Santa Maria n. 22, tradução nossa) – 35 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições Esse poema expressa os sentimentos de aflição e as expectativas do monarca em relação ao comportamento violento de seus cavaleiros que não poupavam os vilões4. A cantiga em questão (a CSM 22), por exemplo, nos traz um episódio baseado em uma situação real ou imaginária que tem como cenário o Mosteiro de Santa Maria de Armenteira, que foi construído no século XII, no noroeste da Península Ibérica. O texto da cantiga que selecio- namos evidencia o contexto de realização de saques violentos por parte da própria cavalaria castelhana, contra mosteiros e camponeses do reino, que irá inclusive ter repercussão não só nas crônicas, mas também será cantada pelos jograis da corte de Afonso X. Segundo Franco Júnior (1983), o custo do equipamento do cava- leiro era o equivalente ao valor de 22 bois, isso numa época em que uma família de camponeses mal tinha condições de cuidar de um boi. Por meio dessa informação trazida pelo autor, percebemos a diferença de recursos disponíveis para cada categoria social. Nessa sociedade agrária e altamente hierarquizada, os camponeses trabalhavam e dependiam da proteção dos cavaleiros, que estavam no topo da hierarquia social. Com a leitura da cantiga apresentada, descobrimos então uma ambiguidade do Estado da época, que direciona sua violência justamente àqueles que deveria proteger (GUIMARÃES, 2010, p. 119). Na Idade Média a proteção possuía, portanto, um caráter muito mais pessoal. Para poder de alguma forma controlar a liberdade de exercício da violência por parte desses guerreiros, a Igreja criou conceitos como os de Guerra Santa5 e Paz de Deus6, que visavam colocá-los a serviço da cristandade. Segundo Baschet (2006), essa dominação aristocrática ancorava-se localmente, mas nem todos os dependentes do senhor feudal eram servos; havia também uma série de tributos, e os trabalhos devidos ao senhor eram apenas uma das formas de exploração. Todas as relações sociais eram relações entre as pessoas, e cerimônias e gestos reforçavam a submissão dos laboratore aos belatore. 4 Agricultor residente nas vilas. 5 Guerra declarada em nome de Deus e em defesa da cristandade – e, por isso, autorizada pelo papa. 6 Período em que a Igreja restringia o uso da violência. História Medieval – 36 – Nessa sociedade agrícola, boa parte da riqueza vinha da terra, mas, além disso, quase todo senhorio tinha sua produção artesanal, obtendo produ- tos de extrema necessidade, como o sal, no comércio, no caso de não terem condições de produzi-los. Já os produtos mais luxuosos eram importados do Oriente, geralmente por intermédio do Império Bizantino, para atender aos clérigos e cavaleiros mais abastados. Conforme aponta Franco Júnior (1983), cabia aos servos, portanto, fornecer os alimentos e as vestimentas, pois o tra- balho na terra não era função dos que oravam ou lutavam. Os braços do corpo da sociedade medieval eram, assim, os servos ligados à terra em que viviam e trabalhavam. Os trabalhadores apresentavam uma grande diversidade de condi- ções, desde camponeses livres até escravos. As pequenas propriedades rurais não ligadas a um grande domínio [...] foi uma das origens do vilão, camponês livre que recebera um lote de terra de um senhor, mas em troca de obrigações e limitações relativamente leves. (FRANCO JÚNIOR, 1983, p. 53) As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre metáforas corporais (que utilizam partes do corpo) remontam à Antiguidade e tive- ram muita força na Idade Média. A Igreja, sendo uma comunidade de fiéis, era considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça, ou seja, o sistema cristão de metáforas corporais repousava sobretudo no binômio cabeça-co- ração. Muitas vezes, na Idade Média esse argumento foi utilizado de forma política, para justificar a liderança do rei ou da própria Igreja católica (LE GOFF, 2006, p. 162). Com a falta de um poder ordenador centralizado, equivalente ao Estado moderno, podemos dizer que a sociedade feudal teve em seu desen- volvimento uma série de particularismos regionais e que cada região possuía sua trajetória específica. No entanto, a alimentação, o trabalho e o jejum acabavam sempre sendo determinados pela Igreja. Um exemplo disso eram as dietas quaresmais, que definiam um cardápio rico em peixes, legumes, pães brancos e pouco consumo de álcool, estimulandoo jejum e a penitência dos fiéis. Veremos, nos próximos capítulos, que cada fase da vida, de qual- quer indivíduo, era marcada pelos ritos cristãos: o nascimento pelo batismo, depois o casamento sempre público e monogâmico e, na hora da morte, a extrema-unção. – 37 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições O ensino formal também era de responsabilidade do clero, que, nos mosteiros e depois nas universidades, abordava por um viés cristão a herança cultural greco-romana. Isso se dava por meio das chamadas artes liberais, metodologia de ensino organizada na Idade Média, composta pelo Trivium (lógica, gramática, retórica) e o Quadrivium (aritmética, música, geometria, astronomia). Eram entendidas como opostas às artes mecânicas, executadas pelos camponeses. Fora desses meios, cabia aos sermões dominicais e às artes plásticas presentes nos templos ensinar a mensagem de Deus à esmagadora maioria analfabeta. Mais do que isso, a confissão individual, adotada a partir do século VIII, permitia ao clero penetrar na consciência de cada indivíduo (FRANCO JÚNIOR, 1983). Concluímos aqui que essa divisão tripartida da coletividade medieval era um modelo ideológico, que propunha uma imobilização de suas categorias em prol da ordenação e estabilidade do corpo social que deveria refletir uma ordem celeste perfeita e imutável, conforme Santo Agostinho (354-430) iria propor em sua obra A cidade de Deus. Na prática, a realidade medieval foi muito mais complexa do que a proposta por Agostinho; no entanto, por meio dessa obra, podemos descobrir os modelos e as expectativas que os detento- res do poder na Idade Média perseguiam, na busca pela organização de sua própria sociedade. 2.3 A importância das relações feudo- -vassálicas: senhor (proteção e benefício) e vassalo (fidelidade e serviço) Em parte, este subtítulo é autoexplicativo: se por um lado o senhor deve- ria oferecer proteção e benefício, o vassalo deveria cumprir seu papel com serviço e fidelidade. A realidade, no entanto, é mais complexa: só é possível compreender verdadeiramente as relações sociais na Idade Média se conhe- cermos a mentalidade desse contexto, em que as relações se davam de forma muito pessoal e a palavra tinha um peso muito distinto do que tem hoje. Os contratos firmados entre os homens tinham grande valor numa sociedade em que o mundo era visto como palco de luta entre o bem e o mal, que opunha a espiritualidade à matéria, onde epidemias e desastres naturais eram História Medieval – 38 – compreendidos como consequência da ira divina e os milagres eram testemu- nhados como verdadeira manifestação da vontade de Deus. Já na Alta Idade Média, observa-se a prática do juramento de fideli- dade ao rei ou imperador, que, para garantir tal lealdade, concede as honras como a posse de um castelo ou o direito de comandar e de punir. Na época de Carlos Magno, isso se generalizava como forma de subordinação, enquanto na Catalunha do século XI fazia-se um contrato escrito, ou seja, cada região tinha a sua maneira. A partir do século X, a relação vassálica passa a ser instituída por um ritual, a homenagem, que consiste num engajamento verbal do vassalo, em que o homem ajoelhado se declara como homem do senhor. A investidura do cavaleiro seria também um ritual vinculado à homenagem. Para Georges Duby (1989), esse ritual sofreria cada vez mais a influência eclesiástica, que passa a consagrar e benzer suas armas, tornando-o soldado de cristo. Essa cerimônia feudo-vassálica possuía forte carga simbólica de uma hierarquia entre iguais. Conforme aponta Franco Júnior (1983), na Alta Idade Média, com o enfraquecimento de um poder real centralizado, estreitaram-se os laços de sangue e as relações pessoais diretas dentro das famílias e linhagens. Nesses grupos, a solidariedade interior protegia seus membros e a morte de um deles era sentida por todos, em alguns casos sendo motivo de vingança. Nesse con- texto o ritual de vassalagem possuía grande importância e jurava-se lealdade perante relíquias cristãs ou a Bíblia. No entanto, com o passar do tempo, vemos um processo de enfraquecimento dos laços de parentesco carnais e fortalecimento do parentesco espiritual, como o parentesco batismal e o apa- drinhamento, como parte do desígnio da Igreja para melhor controlar a aris- tocracia guerreira (GUERREAU, 2006). Devemos lembrar que a história de cada região varia. Os ataques dos vikings, sarracenos, húngaros e muçulmanos levaram a um processo em que a defesa só poderia ser realizada por condes ou por quem detivesse o poder na região, para responder com eficácia aos ataques surpresa, cujos saques e rapi- nas relâmpago, seguidos da rápida retirada das tropas, deixavam um rastro de destruição, simplesmente imune à lentidão dos exércitos reais. Esse contexto belicoso e de constante temor mudou a paisagem da Europa, que, em busca de sobrevivência, tornou-se repleta de castelos e fortalezas, que eram símbolos de poder e de proteção. – 39 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições Figura 3 – Vista do Castelo dos Mouros, construído no século IX em Sintra, Portugal. Fonte: Lusitana/Wikimedia Commons. História Medieval – 40 – Jérôme Baschet (2006) destaca que a vassalidade é habitualmente consi- derada um dos traços mais característicos da sociedade medieval. No entanto, ao contrário da historiografia tradicional, que toma as instituições feudais como um sistema homogêneo e bem estruturado, tende-se hoje a atribuir a importância do feudo e do laço vassálico a uma proporção pequena da popu- lação. A forma de feudo e vassalidade são apenas um dos diversos tipos de laço e concessões de bens, visto que existiam também os pactos de amizade e outras formas de juramentos de fidelidade que asseguravam a distribuição de poder dentro da aristocracia. Nesse sentido, concluímos que a vassalidade não pode ser vista como a principal relação social do contexto feudal, porque ela era restrita apenas ao grupo dominante. É claro que não se pode também menosprezar a importância das rela- ções vassálicas. Dito isso, vamos esclarecer como ela se constituía. Foi a par- tir do século VI que o benefício acabou se tornando o feudo recebido pelo vassalo em troca de sua fidelidade e serviço, tratando-se de uma relação em que o senhor ocupava uma posição de superioridade em relação ao vassalo (FRANCO JÚNIOR, 1983). Já a palavra serviço teve seu sentido alterado no decorrer da Idade Média; a partir do século VII, o termo acabou se tornando sinônimo de distinção: servir a Deus ou ao seu senhor era algo que tinha apreço, por exemplo. Segundo Baschet (2006), o serviço do vassalo possuía três aspectos principais: 1) obrigação de incorporar as operações militares empregadas pelo senhor; 2) ajuda financeira para casamento dos filhos, pagamento de resgate ou partida para as Cruzadas etc.; 3) dever de conselho. Em troca, o senhor concedia sua proteção e podia também assumir a educação dos filhos do vassalo, o que naturalmente o colocava em posição de dominação. O feudo era geralmente uma extensão de terra que podia englobar um ou mais senhorios. Era, portanto, terra com camponeses, pois a nobreza guerreira não se dedicava a tarefas produtivas. Além disso, feudo poderia ser também um direito, como cobrar pedágio numa ponte ou reco- lher taxas de impostos (FRANCO JÚNIOR, 1983). Baschet (2006) vai ao encontro dessas colocações ao nos lembrar de que o feudo era muito mais do – 41 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições que um pedaço de terra cultivável, pois podia significar um direito ou honra particular, como, por exemplo, o de exercer justiça. Tais concessões tinham como função capacitar o vassalo para o cumprimento de suas obrigações. Contudo, ainda segundo Baschet (2006), os laços feudo-vassálicos foram vítimas do seu próprio sucesso. Sua eficácia tende a diminuir à medida que seu uso passa a ser mais frequente, ao passo que a rede de dependên-cia vassálica torna-se sobrecarregada quando um nobre homenageia vários senhores diferentes. Essa pluralidade de homenagens atestada no século XI é vantajosa para os vassalos, mas atrapalha a realização do serviço, colocando em xeque determinados juramentos a partir do momento que o vassalo tem de servir senhores rivais entre si. Para resolver tal dilema institui-se a home- nagem-lígia7, que deveria ter prioridade sobre as demais. Apesar de ter bons resultados, a homenagem-lígia não foi suficiente e o poder do senhor sobre os feudos concedidos decresceu cada vez mais. Para nos ajudar a exemplificar algumas das transformações da relação suserania-vassalagem no decorrer da Idade Média, fazemos aqui uma citação da obra A sociedade cavaleiresca, de Georges Duby: No fim do século XIII, no próprio momento em que as novas condi- ções econômicas e a aceleração da circulação monetária começavam a questionar as relações de fidelidade, demasiado dependentes de relações meramente territoriais [...] puseram-se a utilizar o dinheiro para recompensar os devotamentos pessoais, sem contudo abando- nar as formas feudais: distribuíram rendas exigindo a homenagem. Os usos vassálicos foram assim revigorados. (DUBY, 1983, p. 55) Em alguns casos, tal ritual podia ser realizado por procuração, inclu- sive sem a presença dos envolvidos. Compreender tais transformações é fundamental para não percebermos as relações sociais da Idade Média como estanques. Segundo Duby, o feudo-renda8 possibilitou assim a transição entre o conjunto de costumes e de hábitos mentais a que chamamos feuda- lismo e o novo mundo onde as relações políticas fundamentavam-se, sobre- tudo, na moeda. 7 Uma homenagem superior às demais homenagens. Todos os soberanos tentavam obtê-la de todos os vassalos de seu reino, pois ela tinha prioridade sobre as demais. 8 Conforme vimos, o feudo podia ser a terra ou uma fonte de renda concedida por um susera- no ao vassalo, como a cobrança de um pedágio, por exemplo. História Medieval – 42 – O feudo, segundo Baschet (2006), que na Alta Idade Média tratava- -se de uma concessão pessoal ao vassalo que poderia ser recuperada após a sua morte, com o passar do tempo tornou-se hereditário, o que levava os filhos dos vassalos a reiterarem o juramento ao senhor. Na prática, a relação hereditária afrouxava o laço pessoal entre senhor e vassalos, con- tribuindo para o crescimento da autonomia destes últimos, tendo como consequência um constante embate entre um projeto centralizador dos reis e a autonomia de sua nobreza. Em alguns casos podia acontecer tam- bém de o vassalo, inclusive, realizar a venda de seu feudo. Em contrapar- tida, reservava-se ao senhor o direito de punir as faltas dos vassalos e até a possibilidade de confiscar o feudo em caso extremo de traição ou agressão direta, caráter rentável da justiça. Um aspecto fundamental do direito do senhor era a possibilidade de ele próprio exercer justiça. Tal função abrangia os delitos mais variados cometi- dos nas aldeias. Ele possuía também servidores e agentes que supervisionavam as colheitas e inspecionavam a floresta, ajudando na aplicação de decisões sobre a justiça. Para tentar evitar o repúdio dos aldeões, procuravam respeitar os princípios locais. Fato é que todos os castelos possuíam uma forca próxima, para lembrar os delinquentes de que eles poderiam ser condenados à morte. Ao mesmo tempo, a forca perto do castelo se destacava como símbolo do poder senhorial que, junto à cruz, cumpria a ordem feudal. Para a historiografia do século XIX, tal fragmentação do poder senho- rial era típica de uma Idade Média obscura, caracterizada por uma anar- quia feudal desolada pelas destruições provocadas por guerras privadas entre senhores. Essa perspectiva ideológica do período medieval visava destacar o contraste com a aparente ordem trazida pelo Estado nacional moderno e centralizado. No entanto, ao analisarmos com mais cuidado nosso período em estudo, percebemos um tênue equilíbrio social e político que, graças aos poderes locais, fez a ordem reinar no mundo feudal, atestado pelo impressio- nante desenvolvimento rural nesse período e pela longevidade desse sistema. Devemos, portanto, ter cuidado em tomar a fragmentação do poder como algo essencialmente negativo. – 43 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições Conclusão Na sua obra A civilização feudal, Jerome Baschet (2006) atenta para um ponto fundamental: captar as formas de organização social e suas dinâmicas de transformação é mais importante que somente detalhar as regras do direito feudal. Tal opção de abordagem nos permite perceber dois momentos da Idade Média. Primeiramente, temos o contexto do século X, tempo dos principados, em que os condes assumem a função militar e de justiça; nesse caso, o rei estava numa posição mais delicada de poder. Já no século XIII, existiu uma tendência crescente de centra- lização e fortalecimento da autoridade real, cuja lógica irá perpassar os vínculos feudo-vassálicos. Sabe-se que os campos na Idade Média eram dispersos e instáveis, ocupados por construções leves de madeira, que coexistiram com o nascimento da aldeia de casas de pedra, fixas e orga- nizadas em torno de uma consciência comunitária, geralmente próximas aos castelos – que, como símbolos de proteção e poder, mantinham todos inseridos nas malhas, do tecido senhorial. À Igreja cabia, portanto, cos- turar essas malhas contribuindo para a ordenação e a coesão da sociedade com base em argumentos cristãos. Ampliando seus conhecimentos Convidamos você à leitura de um trecho da obra A socie- dade cavaleiresca, no qual é possível perceber que o autor busca apresentar uma realidade específica para debater a pluralidade de relações de feudo-vassalagem no decorrer do tempo. Percebemos, por exemplo, que a permanência da mentalidade feudal durante a Idade Média foi o prin- cipal motor das relações feudo-vassálicas, mesmo com as transformações econômicas do período. História Medieval – 44 – A sociedade cavaleiresca (DUBY, 1989, p. 45) [...] No entanto, a razão profunda do abandono do feudo- -renda é menos a evolução econômica ou política do que a da mentalidade. Do meado do século XIV ao meado do século XV, o contrato de indenture e o feudo-renda foram conjuntamente utilizados. Se o feudo-renda saiu de uso em seguida, foi porque a homenagem (logo, o vínculo vassálico) já não apresentava interesse, foi porque a concepção feudal do serviço, até então vigorosa, se perdeu. Possibilitado desde o fim do século XI pela abertura progressiva da economia, rapidamente difundido a seguir em razão de suas vantagens, da flexibilidade que conferia às relações de homem para homem (pode-se pensar que a maioria dos beneficiários dessas tendências jamais viram o senhor, que lhes recebia a homenagem por procuração), o uso do feudo-renda era na realidade dependente de uma certa atitude mental. O belo livro de B. D. Lyon, mostrando tanto os vínculos quanto as discordâncias entre a evolução das condições materiais e a da psicologia coletiva, incita a prolongar a história econômica pela das mentalidades. E ilustra à perfeição esta evidência: que é o feudalismo? É antes de tudo uma disposição de espírito. [...] Atividades 1. De acordo com o texto A sociedade cavaleiresca e o capítulo lido, de- fina o que é feudalismo. 2. Quais os principais fatores que levaram a Igreja a ser a instiuição pre- dominante na Idade Média? – 45 – O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições 3. Qual o argumento utilizado pelo clero (poder espiritual) e pelos reis (poder temporal) para justificar a proeminência de um poder sobre outro? 4. Quais eram os serviços prestados pelos vassalos ao seu senhor? A cavalaria medieval Neste capítulo iremos tratar de um eixo importante dos estudos medievais: a cavalaria. Esses guerreiros, apesar de serem ins- pirados pelas cantigas que narravam feitos de heroísmo, nem sem- pre corresponderam a esse ideal
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