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CURSO UNASUS SAÚDE INDÍGENA TEMA1 Introdução ao texto - o principal objetivo deste texto é estabelecer um debate a respeito da atenção diferenciada, que gradativamente vem fornecendo as bases para a construção da teoria e da prática da atenção à saúde dos povos indígenas, embora de forma ainda incipiente - Vamos começar retomando o propósito da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas que é: Garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, de acordo com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, contemplando a diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política de modo a favorecer a superação dos fatores que tornam essa mais vulnerável aos agravos à saúde de maior magnitude e transcendência entre os brasileiros, reconhecendo a eficácia de sua medicina e o direito desses povos à sua cultura - Para implementar esta política, propõe-se um modelo de atenção organizado de forma diferenciada, tendo como base Distritos Sanitários constituídos em territórios especiais que obedecem a critérios socioculturais, geográficos, históricos e políticos, mas que não necessariamente correspondem à divisão administrativa dos estados e municípios - A Política também reconhece a vulnerabilidade dos povos indígenas diante das diversas situações de conflito e tensão com a sociedade nacional, particularmente devido ao fato de que a expansão das frentes econômicas, a intolerância e o preconceito vêm ameaçando sua integridade e organização social - Afinal, depois de mais de 15 anos, como essa política tem sido implementada? O que você percebe que avançou? O que retrocedeu? Como os atores sociais envolvidos com a atenção à saúde indígena, inclusive você, têm lidado com a atenção diferenciada? A atenção diferenciada, uma expressão ao mesmo tempo simples e complexa - A compreensão do sentido da diferenciação cultural é fundamental para todos aqueles que pretendem atuar em contextos interculturais, ou seja, em cenários em que diferentes culturas, visões de mundo, determinações do processo saúde-doença e atenção à saúde coexistam - Para os profissionais de saúde que lidam em seu dia a dia com pessoas doentes e estão constantemente em busca de soluções para as causas de seu sofrimento físico, é um desafio compreender que a essência das pessoas vai além do seu corpo biológico. Como fazer com que aqueles especialistas cuja atuação se dirige aos indivíduos, seja para curá-los, seja para educá-los, admitam o fato de que cada pessoa está inserida em redes, estruturas, formas de pensamento coletivas que até certo ponto marcam e orientam seu comportamento? Como operacionalizar uma abordagem diferenciada à saúde dos povos indígenas, referenciada na integralidade do cuidado em saúde? - Passar da teoria para a prática do que seria essa atenção diferenciada tem revelado a possibilidade de enxergá-la de diversos ângulos, com distintos olhares, por exemplo: • O que os executores da política pública entendem sobre atenção à saúde indígena? • Quais as contribuições da antropologia para a atenção diferenciada? • Qual é o olhar dos profissionais de saúde para a atenção diferenciada? • Qual é o olhar dos indígenas para a atenção diferenciada? - De certa forma, o uso da expressão atenção diferenciada tem sido banalizado, o que tem dificultado o aprofundamento e desenvolvimento de seu sentido - Nesse sentido, este texto procura trazer para discussão, a partir de múltiplos olhares, o termo atenção diferenciada - O objetivo aqui não é definir o conceito de atenção diferenciada nem esgotar o tema, mas sim trazer contribuições para os modos de perceber e constituir a diferenciação na atenção em saúde indígena, a partir da experiência dos autores que está voltada, principalmente, para uma reflexão e prática política, antropológica e sanitária sobre a saúde Pode-se afirmar que as populações indígenas sejam distintas de outras populações, possuam diversidade e sejam desiguais? Por quê? - Em nosso entendimento, os indígenas são povos distintos, pois possuem diferentes formas de se relacionar com a sociedade nacional, outros valores e outra visão de mundo, inclusive sobre os modos de adoecer, cuidar e tratar as doenças - Vale destacar que o Brasil tem a maior sociodiversidade do planeta, pois há indígenas em todo o território nacional. São 896 mil indígenas, 305 etnias e 274 línguas indígenas faladas - Além de diferentes também são desiguais do ponto de vista da renda, do acesso à educação, da saúde e do trabalho, assim como em razão da situação de exclusão em que se encontram A política de saúde indígena e a atenção diferenciada - O que vocês imaginam que os executores de políticas públicas entendem de atenção à saúde indígena? - As primeiras referências à atenção diferenciada em saúde indígena foram feitas durante a luta do movimento indígena por atendimento à saúde, o qual posteriormente juntou-se ao movimento da Reforma Sanitária - É importante que se reconheça a força desses movimentos indígenas que, desde os idos de 1970, foram desencadeados por lideranças comunitárias e organizações de representação indígena que buscavam a construção de um modelo assistencial capaz de atender às demandas específicas desses povos por saúde - O reconhecimento do caráter multiétnico do Brasil, assegurado na Constituição de 1988, contempla o direito à diferença cultural e reconhece as formas de organização social, de língua, crenças e tradições dos povos indígenas. - Na mesma Constituição, o Art. 231 diz: - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (BRASIL, 1988) - Num momento de redemocratização e importantes conquistas sociais de toda a sociedade brasileira, as Conferências Nacionais de Saúde Indígena constituíram um espaço importante de discussão e luta pelo direito à atenção à saúde dos povos indígenas, principalmente a 1ª e a 2ª Conferências, ocorridas em 1986 e 1993 - Apesar desses avanços, somente em 1999, com a publicação da Lei n. 9.836, de 23 de setembro (BRASIL, 1999), foram instituídos o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e as diretrizes básicas para a implantação de Distritos Sanitários Especiais. Do ponto de vista legal, fica então estabelecido no seu artigo 19-F, capítulo V, que: - Dever-se-á obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional (BRASIL, 1999) - Embora destacada a importância de uma abordagem diferenciada e integral à saúde do índio, não estava claramente definido como operacionalizar essa forma de atenção em seus diferentes níveis de complexidade- A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), implantada pela Portaria n. 254, de 31 de janeiro de 2002 (BRASIL, 2002), trouxe algumas diretrizes para as ações de atenção à saúde indígena que representaram um avanço no reconhecimento da especificidade cultural e na articulação da biomedicina com práticas indígenas tradicionais de cura e cuidado - A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) assumiu a gestão do subsistema desde que ele foi criado, empregando o modelo de convênios com instituições diversas, entre elas várias associações indígenas, para a contratação terceirizada da força de trabalho e assim garantir a oferta de serviços de saúde aos indígenas, até que o Decreto n. 7.336/2010, de 20 de outubro de 2010, instituiu, na estrutura do Ministério da Saúde, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), que se tornou a responsável pela saúde indígena - Vale lembrar que a primeira Conferência Nacional de Saúde Indígena já recomendava que a gestão do subsistema de atenção à saúde dos povos indígenas estivesse vinculada diretamente ao Ministério da Saúde. A perspectiva colocada naquele momento era a de que a gestão direta por meio de uma secretaria de saúde indígena dentro do MS traria maior agilidade e benefícios aos povos indígenas, garantidos pelo aumento de recursos e principalmente pela autonomia gerencial e financeira de cada Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) para enfrentamento das suas dificuldades particulares de saúde, controle social e composição das equipes de trabalho - Talvez o Brasil seja o país no mundo que mais tenha avançado na direção de implantar uma PNASPI mediante a criação de um subsistema de saúde integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2002) - A criação da SESAI em 2010 trouxe a expectativa de maior autonomia técnica, administrativa e financeira em âmbito local, que poderia resultar em maior liberdade aos gestores locais para executar atividades específicas para sua região, com mais agilidade e economia e de acordo com as necessidades de cada DSEI - O subsistema de saúde indígena, como parte integrante do SUS, ainda está em processo de construção. Embora existam as câmaras intergestoras (bi ou tripartite), por exemplo, para negociação e regulação de vagas para média e alta complexidade, exames complementares e outros serviços, elas ainda não contemplam as especificidades do subsistema, demonstrando que ele ainda não está internalizado. Uma das dificuldades para essa articulação com o SUS passa pela questão da territorialidade especial dos Distritos Sanitários que compõem o subsistema. Ao mesmo tempo, o discurso e a prática relacionados a conceitos advindos da saúde coletiva, como a integralidade e a equidade, vêm se expandindo na atenção primária no Brasil e estão expressos nos programas e políticas de saúde. Assinalamos que, de algum modo, eles relacionam-se ao da atenção diferenciada. Este pode ser um ponto interessante para a reflexão sobre a prática da atenção diferenciada (MERHY, 2002) - A aplicação do princípio da equidade tem como objetivo diminuir as desigualdades sociais e prevê que as pessoas têm necessidades distintas e, portanto, deve-lhes ser assegurado um tratamento diferente para que se garanta a igualdade de direitos Territorialização na Saúde Indígena Como faço para reconhecer o que é importante nesse território para então reconhecer a vida e suas relações para produção da atenção diferenciada? - O conceito de território, para a saúde, vai além do espaço físico, pois considera as relações sociais, o processo histórico, as questões culturais, os modos de vida, os condicionantes e determinantes de saúde, as tensões e conflitos socioeconômicos e os diversos atores sociais - Como espaços físicos, os Territórios da Saúde Indígena apresentam uma configuração diferente da divisão político-administrativa do Brasil em Distrito Federal, estados e municípios. - Para exemplificar a especificidade do território indígena de não corresponder à mesma lógica administrativa do país (divisão em Distrito Federal, estados e municípios), no mapa, Figura 6, podemos visualizar os Yanomami ocupando mais de um Estado (AM e RR), diferentes países (Brasil e Venezuela) e vários municípios do entorno (Barcelos, São Gabriel da Cachoeira, Caracaraí, Mucajaí, entre outros) - Os territórios indígenas, especialmente na Amazônia Legal, encontram-se distantes dos grandes centros, o que dificulta, principalmente, o acesso aos equipamentos de saúde e educação. O acesso, como pode ser visualizado nas Figuras 7, 8 e 9, é difícil, ainda, devido ao relevo acidentado de algumas regiões (cachoeiras, montanhas), estradas não asfaltadas, rios de difícil navegabilidade e a necessidade de longas caminhadas pela mata, já que os centros urbanos estão a horas ou dias de distância - A nova onda de expansão econômica do Norte e Centro-Oeste, como pode ser visualizado nas Figuras 10 a 13, ameaça os territórios e direitos indígenas. Esses territórios correspondem a regiões de grande interesse de fazendeiros, latifundiários, madeireiros e empresas da construção civil, sendo cenários de disputas com o poder econômico que vem ameaçando os direitos conquistados sobre a terra, modos de vida e de organização social, o que reflete imediatamente no processo saúde-doença e na relação dos índios com a sociedade envolvente - Pensar e agir nesses territórios como espaços de produção da saúde exige uma organização diferenciada das práticas e serviços de saúde. Para isso, podemos citar a necessidade de: • Criação de um modelo de atenção à saúde que considere essa dispersão geográfica, assim como aspectos étnicos, culturais e epidemiológicos dos povos indígenas • Garantia do acesso e a integralidade da assistência em todos os níveis de complexidade • Financiamento específico da educação permanente dos recursos humanos para atuação em contextos interculturais, não atendendo à mesma lógica municipalista do SUS • Estabelecimento de práticas sanitárias que superem o modelo médico-centrado e medicalizante e sejam flexíveis e adequadas à realidade de cada grupo, de cada território. - Para atender à territorialização dos povos indígenas, foi criado um modelo de atenção à saúde organizado por Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), como pode ser visualizado na Figura 14, considerando a dispersão geográfica, os aspectos étnicos, culturais e epidemiológicos dos povos indígenas - Outro ponto importante no modelo de atenção à saúde dos povos indígenas, como pode ser observado na Figura 15, é a organização do fluxo de atendimento de Saúde Indígena Perfil epidemiológico na saúde indígena Tá, entendi como se organizam os DSEI mas ainda não entendi como reconhecer a vida e a saúde do meu povo... Para isso, é importante compreender o perfil epidemiológico com um olhar para os povos indígenas! - Com relação ao perfil epidemiológico, como mostra o gráfico 1, é importante destacar que os indicadores de saúde dos povos indígenas são de 2 a 3 vezes piores que a média nacional - O Coeficiente deMortalidade Infantil, por exemplo, pode ser maior do que 100/1000 nascidos vivos em algumas regiões, e as principais causas de morte são evitáveis por medidas de atenção primária. A média nacional dos não indígenas é de 13,8 - Há, ainda, um predomínio de doenças infectocontagiosas, porém com um incremento das doenças crônico-degenerativas, consequências de más condições de saneamento e mudança de hábitos e do modo de vida tradicional - A proporção em que essas doenças ocorrem está relacionada à intensidade das relações de contato com a sociedade envolvente - Em povos indígenas do Sul e Sudeste do Brasil em 2008, por exemplo, as taxas de mortalidade infantil eram 84,4% mais altas que as taxas nacionais. O risco de morte por IRA (infecção respiratória aguda) representou mais da metade do risco de morte por todas as causas em indígenas menores de 5 anos. No mesmo ano, a taxa de mortalidade infantil indígena foi 138% mais alta que a da população em geral - As condições sanitárias encontradas em diversas áreas indígenas fazem com que a diarreia se apresente como doença endêmica, com frequentes surtos epidêmicos e com alto impacto na mortalidade de menores de 5 anos de idade - A diretriz de monitoramento das ações de saúde em áreas indígenas destaca a relevância do uso da epidemiologia para monitorar os indicadores de saúde - Hoje esse monitoramento é realizado com base em bancos de dados oficiais (Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), Sistema de Informação sobre mortalidade (SIM), Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), entre outro), e, também, de sistemas locais de informação de saúde, adequados à realidade de cada DSEI - Porém, a qualidade dos dados referentes às populações indígenas é questionável, tanto pelo sub-registro quanto, em alguns DSEI, pela inexistência desses dados, o que, muitas vezes, contribui diretamente para uma "invisibilidade epidemiológica" das populações indígenas - Nesse contexto, a situação da tuberculose é um bom exemplo, uma vez que é, reconhecidamente, uma doença da pobreza e desintegração social e, ainda hoje, se multiplica em condições de empobrecimento - Em todo o mundo, a incidência da tuberculose cresce onde a qualidade de vida diminui, devido às más condições sanitárias, desnutrição, crises, guerras e exclusão social - Entre as populações indígenas do Brasil, a tuberculose ainda é uma doença importante, apresentando altos índices de incidência e podendo ser até 10 vezes maior do que a encontrada na população não indígena - Outra especificidade que requer atenção dos profissionais de saúde é o grau de contato dos povos indígenas com a sociedade envolvente - É importante conhecer a história de contato de cada povo e o contexto social, político e econômico no qual estão inseridos, pois essas características repercutem diretamente nas condições de vida, na organização social, no acesso à saúde e à educação e no processo de adoecimento dessas comunidades - Na prática dos serviços de saúde, o que tem sido experimentado por parcela significativa da população indígena é a persistência de um modelo assistencialista e homogêneo, expressão utilizada por Pereira (2003) para descrever e discutir a distorção da compreensão do princípio da universalidade do SUS, que leva ao entendimento do princípio como uma homogeneização das culturas - Em outras palavras, os serviços de saúde estão pouco abertos à discussão sobre a diferença cultural como um direito humano inalienável. O olhar antropológico para essa realidade é muito bem-vindo Antropologia e atenção diferenciada - Nesta parte, vamos procurar refletir sobre quais são as contribuições da antropologia para a compreensão da atenção diferenciada no campo da saúde indígena - Cada um - indivíduo, família, grupo local - conserva um espaço de atuação próprio que lhe permite intervir como ator da sua própria existência: reinterpretando as condições externas às quais ele é submetido e elaborando o que nós propomos chamar de “situação de vida”, essa realidade existencial cotidiana à qual ele impõe, com mais ou menos força conforme os casos, o seu cunho O que isso tem a ver com as políticas públicas relacionadas à saúde indígena e à atenção diferenciada? - Se [...] fosse aceita a ideia de que as pessoas às quais estão dirigidas as políticas públicas, até as categorias mais carentes, não são passivas, que elas mesmas atuam no dia a dia para procurar soluções, isto abriria a possibilidade de uma outra linha de desempenho da ação pública no domínio da saúde - uma linha construída não exclusivamente sobre um saber vindo de cima para baixo, mas negociada a partir da própria experiência das pessoas e das comunidades - Entre os povos indígenas brasileiros, por exemplo, a experiência de enfrentar epidemias e vivenciar a morte rápida de parentes, famílias, filhos, mães e pais é extremamente intensa e propiciou a construção de sentido a respeito dessa vivência - Durante a epidemia de H1N1, conhecida como gripe suína, a reação de vários povos foi se esconder na mata e acampar por meses, como faziam nos momentos de epidemia para fugir do contágio. Outros não permitiam a entrada de pessoas nas aldeias antes de uma quarentena fora da área - Essas atitudes estão relacionadas à memória do sofrimento anterior - Vários estudos epidemiológicos e antropológicos revelam a falência ou o insucesso de políticas públicas de programas de saúde justamente por não considerarem essa "construção de sentido", essas representações sociais sobre o processo de adoecimento entre os povos tradicionais - A pesquisadora de saúde coletiva Cecília Minayo afirma que a antropologia pode ensinar aos profissionais de saúde que, metodologicamente, precisamos: •Primeiro ouvir como nosso interlocutor define sua situação •Em segundo lugar, verificar qual é a sua experiência biográfica, lembrando que uma pessoa sempre está situada biograficamente no mundo e é nesse contexto que pensa, sente e age •Em terceiro lugar, investigar qual é o seu nível de conhecimento, ou seja, qual é sua sedimentação de experiências e situações vivenciadas, a partir do que ele interpreta o mundo e pauta sua ação •Em quarto lugar, pesquisar a que o interlocutor dá relevância em sua fala, pois sua estrutura de relevâncias se relaciona à bagagem de conhecimentos e à sua tradição biográfica - Esse conhecimento, essa escuta, está relacionado com a atenção diferenciada. - Considera-se o contexto em que se dá o processo de adoecimento e o itinerário terapêutico pelo qual o doente e sua família vão percorrer - Do ponto de vista conceitual, a atenção diferenciada também pode ser entendida como a articulação entre os serviços de saúde e as práticas de autoatenção realizadas por uma comunidade particular - Este autor considera dois níveis de auto atenção •o primeiro está vinculado aos processos de reprodução biossocial, entre os quais estão os processos culturais •o segundo está relacionado principalmente com os elementos das práticas de cura e cuidados - Trabalhar na perspectiva da atenção diferenciada à saúde, juntoaos povos indígenas, requer que os profissionais de saúde desenvolvam uma atitude reflexiva e antropológica nas suas intervenções em saúde - Essa postura é importante para que eles percebam que estão diante de outro modo de perceber e ser no mundo - A partir daí ouvir e apreender o que o outro está comunicando sobre sua experiência de doença e quais são os caminhos que ele percorre e sujeitos que ele aciona para o seu tratamento - Nesse sentido, os profissionais de saúde devem identificar quem são os atores que produzem saúde naquele território para que possam relativizar seu conhecimento e construir uma atenção diferenciada que respeite os conhecimentos e práticas de saúde do grupo indígena - Portanto, entender a doença como um processo sociocultural envolve, por um lado, considerar a participação social que pressupõe a interação e negociação com o grupo, e, por outro, envolve as subjetividades Qual é o olhar dos profissionais de saúde sobre a atenção diferenciada? - As competências clínica e cultural são essenciais para oferecer o "diferencial" da escuta e compreensão do indígena e do seu universo - O desenvolvimento dessa competência cultural resulta da disposição dos profissionais de saúde para despirem-se de seus valores para entender a cultura indígena, relativizar seu conhecimento biomédico, desconstruir práticas etnocêntricas, demonstrar respeito à cultura indígena e interesse pela história do povo que irá atender - Para Sofia Mendonça, uma das autoras deste texto, os profissionais que trabalham com saúde indígena, invariavelmente, convivem com outras culturas, deparam-se com outras concepções de corpo, de pessoa, de adoecimento e tratamento, práticas que se configuram em diferentes sistemas de cura - Nesse contexto intercultural, muitas reflexões são feitas: • Quais são os campos de conhecimento necessários para a formação de profissionais de saúde? • Quem trabalha na equipe multidisciplinar de saúde indígena (EMSI)? Índios e não índios com concepções de corpo, saúde e doença diferentes… • Como trabalhar com perspectivas diferentes do próprio objeto de trabalho? • Ao buscarmos a saúde e a qualidade de vida, qual perspectiva utilizamos? Dos índios ou da nossa sociedade? Da referência de saúde que faz parte de nossa cultura, de nosso imaginário social e profissional ou do indígena? • Como nos preparar para o trato competente e sensível do imaginário social sobre a saúde? - Partimos do pressuposto que em qualquer processo de formação e produção de saúde, existe uma profunda conexão entre "cultura-trabalho-saúde-educação" - Ainda para a autora, o grande desafio passa pela percepção do etnocentrismo, e pela necessidade de repensar a própria prática: - Conhecer o diferente passa por uma reflexão sobre a nossa prática, confirma a necessidade de se dispor a ouvir, se dispor ao diálogo. Essa é uma das habilidades mais importantes que os profissionais de saúde que atuam em saúde indígena devem exercitar e construir. Quando nos dispomos a ouvir, não só ouvir, mas escutar, e exercer nosso papel de interlocutores, estamos trabalhando com a perspectiva de repensar nossa própria cultura, relativizar nossos próprios paradigmas. Muitas vezes nem percebemos o quanto estamos mergulhados em nossas referências científicas, muitas vezes nos parecem óbvias algumas atitudes diante de determinados problemas mas, na realidade, não são absolutamente óbvios para os atores envolvidos. Será que realmente eu percebo que estou trabalhando com outro povo? Outra cultura? Com o outro? Antropologia e atenção diferenciada - É preciso repensar a atenção à saúde dos povos indígenas constantemente, considerando a dinâmica cultural e as disputas políticas que se travam num cenário de fragilidade institucional e vulnerabilidade social - Atuar em diferentes contextos culturais exige do profissional que esteja "aberto" para conhecer a cultura dos povos indígenas, seus modos de vida, sua organização social, a forma que se relacionam com a sociedade envolvente, as diferentes maneiras de interpretar e tratar o processo saúde-doença e os diferentes atores que participam do cuidado - Para adentrar nessas culturas, é necessário despir-se de seus valores e da visão etnocêntrica, relativizar o saber médico e aprender a articular as práticas da biomedicina e da medicina tradicional - Na atenção à saúde indígena, há diferentes sistemas de cura e neles estão inseridos outros atores, fundamentais na lida com o processo de adoecimento, como a parteira, o pajé, o rezador, o raizeiro, entre outros, definidos como especialistas tradicionais, além de práticas coletivas de autoatenção, sendo necessário o constante diálogo entre esses diferentes conhecimentos - Assim, o diálogo intercultural, a escuta qualificada, a criação de vínculo e a participação dos indígenas como protagonistas do cuidado à saúde são fundamentais para atuação dos profissionais de saúde em contextos interculturais - Cabe ressaltar que existem interpretações equivocadas sobre a atenção diferenciada. Uma delas compreende a atenção diferenciada como uma prática de concessão de privilégios aos indígenas e divulga que eles podem desrespeitar a regulação (e as filas de espera) para serviços de saúde de maior complexidade - Essa compreensão, reducionista do conceito de atenção diferenciada, pode ter surgido devido ao fato de que alguns serviços hospitalares recebem incentivos financeiros para atender os indígenas e devido à herança da gestão feita pela FUNASA, que comprava exames ou serviços especializados da rede privada, em vez de buscar a articulação diferenciada com o SUS - Alguns hospitais que recebem esse benefício optam por fazer adaptações em suas estruturas físicas, como colocar redes no lugar das camas em alguns quartos, ou oferecem uma alimentação especial para o indígena e o acompanhante - relato de um profissional que atua na saúde indígena sobre a atenção diferenciada: "A atenção diferenciada é a aplicação de muitas ideias e conceitos na prática, com o intuito de promover a saúde da população indígena. O primeiro destes conceitos é justamente o de saúde, que transcende a ausência de doença orgânica e se relaciona desde o bem-estar físico e sua interpretação pelo paciente, até as significações e consequências sociais que este estado tem. Esse conceito serve para qualquer pessoa, mas quando essa pessoa vive em outra realidade cultural, histórica e mesmo epidemiológica, é preciso mais do que técnica e bom senso para atendê-la. Para não filtrar da fala do paciente apenas o que se quer ouvir, mas ouvir o que ele quer, de fato, contar, é preciso abrir mão de suas certezas. Afinal, ao adequar a fala do paciente ao que nos é familiar, "filtrando" dela os dados clínicos necessários para o diagnóstico biomédico, desprezamos de maneira etnocêntrica o significado daquele sofrimento para o doente. É preciso ainda considerar as situações geográficas e históricas em que cada população indígena vive. Entram também fatores não estritamentede ordem cultural, tais como tempo ou distância do tratamento, custos econômicos e os conflitos e alianças nas redes sociais. E mesmo a forma com que a medicina não indígena chegou para cada povo. Eu já ouvi mais de uma vez aqui no Xingu que o Orlando (Villas Bôas) dava um remédio pra eles que sarava na hora, e por que eu quero só ficar dando só orientação… Para promover uma atenção diferenciada à população indígena, é preciso entender a história, a forma de sentir e pensar a doença de cada povo, para depois tentar ajudar "na mesma língua". A biomedicina é uma ferramenta fundamental nessa tentativa, mas para ter sucesso é preciso encará-la justamente como "uma das" ferramentas necessárias. Com relação à competência clínica, não há dúvidas de que isso será exigido do profissional que irá atuar com povos indígenas”. - Com a criação da SESAI, houve um aumento considerável do número de profissionais para atuar nas áreas indígenas. Os recursos humanos aumentaram de 8.975, em 2010 para 12.987, em 2013 (MARTINS, 2017), ou seja, houve um acréscimo de 41,5% no número de trabalhadores. Apesar desse aumento quantitativo, ainda não observamos uma melhoria nos indicadores de saúde indígena e na qualidade da assistência. - O investimento na formação de recursos humanos indígenas e não indígenas para atuação no subsistema está distante do ideal e revela a não priorização dessa importante estratégia de qualificação da atenção. - O pouco investimento em educação permanente e a inexistência de um plano de carreira para os trabalhadores da saúde indígena tem como consequência a alta rotatividade entre os profissionais, a descontinuidade das ações, pouco vínculo construído entre usuários e equipes de saúde e pouca qualificação dos profissionais da atenção à saúde oferecida pelos DSEI. Há que se considerar que um aumento quantitativo, isoladamente, não garante que a qualidade melhore - Alguns estudiosos defendem que uma formação mais humanizada e integral na área da saúde deve promover uma discussão para além de aspectos puramente biológicos, contemplando questões sociais, culturais e históricas como parte da produção da própria vida e da saúde. Esse aspecto é crucial na saúde indígena. - Para Raynaut (2002), a colaboração entre disciplinas sociais e médicas é uma necessidade imprescindível. É necessário juntar os olhares e as competências e reconhecer: • O fato de os seres humanos e as sociedades que eles constituem serem produtores de sentido. A busca de sentido é um dos fatores mais determinantes nos comportamentos, tanto no plano individual como no coletivo. Qualquer política que aborde as "populações" como simples consumidoras de cuidados corre grande risco de fracasso. • O fato de as "populações" serem sempre constituídas de atores, de sujeitos que, por pior que seja a sua situação, estão sempre procurando soluções; sujeitos que temos que considerar como parceiros, tanto na produção do saber como na elaboração de programas de ação" - Ao privilegiar este olhar é importante pensar a atenção diferenciada a partir do protagonismo indígena, do diálogo intercultural e da construção coletiva de saberes e estratégias de enfrentamento dos problemas de saúde - Só assim será possível melhorar a compreensão sobre o olhar dos indígenas para a atenção diferenciada TEMA 3 - No Tema 3 você será convidado a aproximar os conteúdos teóricos do campo da saúde indígena à sua prática no cotidiano da atenção à saúde, através da simulação de um caso em um DSEI fictício - Procure conhecer o território deste DSEI e identificar os problemas e necessidades de saúde. Neste momento esperamos que você já tenha um olhar diferenciado para a atenção à saúde dos povos indígenas. Ao final do tema, não deixe de realizar a avaliação proposta para conclusão do curso Distrito Sanitário Especial Indígena - Serra das Capivaras - O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Serra das Capivaras (nome fictício) localiza-se na região da Amazônia Legal - A população do DSEI é atendida por uma Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) composta por dois médicos, seis enfermeiras, três odontólogos, cinco auxiliares de enfermagem e 30 Agentes Indígenas de Saúde (AIS) - A população é formada por sete etnias, distribuídas em 35 aldeias, atendidas por três polos base (quadro 1) - A população vem mantendo contato cada vez mais intenso com os municípios ao redor, cuja economia é baseada em atividades extrativistas e no agronegócio (soja e pecuária extensiva) - Os povos indígenas atendidos pelo DSEI têm, em média, cerca de 60 anos de contato com a nossa sociedade, mantendo ainda estado de isolamento relativo, algo que tem se modificado rapidamente, à medida que se amplia o desmatamento do entorno - Após os primeiros anos de convívio esta população passou por um decréscimo severo, algo comum ao longo da história do contato entre povos indígenas e não indígenas, porém desde a década de 1980 vem apresentando um crescimento vegetativo acentuado, com altas taxas de natalidade, resultando em uma população com um predomínio absoluto de jovens e crianças e uma proporção de idosos muito pequena, distribuída conforme o quadro 2 e o gráfico 1 - Com a queda progressiva das taxas de mortalidade, com coeficiente de mortalidade geral (CMG) de 6,07/1000hab. em 2013, essa população encontra-se em uma fase inicial de transição demográfica - A Terra Indígena está demarcada, homologada e possui 1.600.000 hectares. O impacto do modelo de desenvolvimento utilizado ao redor vem sendo sentido pela deterioração da qualidade da água dos rios utilizada para o consumo e pela diminuição da caça e da pesca, fontes importantes de alimentos para todas as etnias do DSEI - A instalação de fazendas e o surgimento de estradas e cidades no entorno do DSEI Serra das Capivaras levou a uma intensificação das relações de contato da população indígena com a sociedade não indígena - Como consequência, mudanças no estilo de vida vêm sendo aceleradas nos últimos anos, com destaque para a introdução cada vez maior de alimentos industrializados e a necessidade crescente de dinheiro para aquisição de bens manufaturados dos mais variados - A intensificação das relações de contato tem colaborado para o surgimento de uma série de novos agravos à saúde, como a dengue, as DSTs e o alcoolismo - Além destes, ainda vêm sendo diagnosticados nos últimos anos casos de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), em especial a Hipertensão Arterial (HA) e o Diabetes Mellitus (DM) - Com o aumento populacional, as terras disponíveis para agricultura ficaram reduzidas, tornando a obtenção de alimentos tradicionais, cada vez mais difícil - Antigamente isto era resolvido com a mudança das aldeias para uma região onde os alimentos eram abundantes e as terras férteis. Atualmente, com a redução dos territórios e fixação da população nas aldeias em decorrência da existência de escolas, poços artesianos, geradores, unidade de saúde e outros bens, isso não é mais possível - Essa situação, associada à deterioração das fontes de obtenção de água e o acúmulo de lixo, tem causado sérios problemas de saneamento - O lixo industrializado cada vez mais se acumula no entorno das aldeias (incluindo lixo perigoso, como baterias e combustíveis) - Quando os problemas de saúde não são resolvidosnas aldeias e polos base, os pacientes são encaminhados para o município de Capim Pequeno, onde são alojados na CASAI (Casa de Saúde Indígena) e atendidos nos serviços ambulatoriais e hospitalares do município e referências regionais, que no geral contam com profissionais pouco capacitados para trabalhar com as especificidades da população indígena - Os atendimentos de maior complexidade, não resolvidos na referência secundária, são encaminhados à capital do estado ou ainda às referências nacionais (Brasília e São Paulo) - Em relação aos indicadores de saúde do DSEI, encontramos altas taxas de mortalidade infantil, em especial no componente neonatal (quadro 3), que pode refletir problemas na atenção pré-natal e no parto - A tuberculose é uma das grandes prioridades da Saúde Pública no Brasil, uma vez que ele está entre os 22 países com maior carga bacilar do Mundo (BRASIL, 2012), sendo por isso importante compreender bem estes indicadores - A doença tem sido relatada como um problema frequente em populações indígenas e no DSEI Serra das Capivaras encontramos um exemplo claro desta situação com o número total de casos chegando a ser cerca de quatro vezes maior que o da da população em geral - Os coeficientes de incidência apresentados acima (quadro 5) idicam um risco elevado de adoecimento por tuberculose na população do DSEI Serra das Capivaras, muito acima da média das Américas (que em 2009 foi de 38 casos/100.000 habitantes), acima da média nacional (37,1/100.000 habitantes, em 2011), e aquém da meta preconizada para considerar a patologia sob controle, confirmando a alta vulnerabilidade dos povos indígenas à tuberculose - Observa-se ainda uma ocorrência maior de casos pulmonares, confirmando-se o observado na população não indígena - Nas notificações registradas no SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) para a população em geral, cerca de 80% dos casos correspondem às formas pulmonares, bacilíferas ou não, da tuberculose - Grande parte da população indígena brasileira (aproximadamente 60%) vive na Amazônia Legal, em condições precárias de habitação e saneamento - Em linhas gerais, os domicílios costumam ser pouco ventilados e com pouca iluminação natural - Usualmente cada um deles é habitado por um grande número de pessoas e há presença constante de fumaça de fogueiras (utilizadas para cozinhar e aquecer a casa) - Em muitas etnias se observa também altos índices de desnutrição e parasitoses intestinais - Estas particularidades acabam se configurando como fatores de risco para o adoecimento por tuberculose, agravadas pela falta de acesso a serviços de saúde - Desde a década de 1950, têm-se informações consolidadas e disponíveis sobre a presença da tuberculose entre os indígenas no Brasil - Vários estudos, conduzidos em diferentes grupos étnicos e regiões do país, revelam um número alto de ocorrências da doença, não deixando dúvidas sobre a relevância sanitária da tuberculose para os indígenas no Brasil - Em relação à morbidade, quatro categorias de patologias agrupam os problemas mais comuns: Doenças Infecciosas e Parasitárias (10,9%); Doenças da Pele e Subcutâneo (4,8%); Doenças Gastrointestinais (4,9%); e Doenças do Aparelho Respiratório (21,8%), sendo que este último grupo, isoladamente, corresponde a um quinto de toda a taxa de morbidade registrada - A maioria dos diagnósticos está na faixa etária de 0 a 4 anos, correspondendo a 23,7% do total de registros - Nesta faixa etária mantém-se o predomínio de doenças do aparelho respiratório (53,4%) e doenças infecciosas e parasitárias (20,7%), estas duas categorias correspondendo a 74,1% dos registros para esta faixa etária, seguidas de doenças de pele e do tecido subcutâneo (8,8%), e doenças do sistema digestório (5,7%) - Em um olhar mais detalhado, mesmo entre as doenças respiratórias há um predomínio absoluto das Infecções Respiratórias Agudas – 98,9% entre as doenças respiratórias registradas em crianças de 0 a 4 anos, evidenciando a vulnerabilidade desta população a estas infecções - Os adultos (20 anos ou mais) aparecem como responsáveis por apenas 13,6% da morbidade registrada, mantendo o mesmo padrão de patologias mais comuns: Doenças Infecciosas e Parasitárias (19,9%); Doenças da Pele e Subcutâneo (5,2%); Doenças do Sistema Digestório (14,7%); e Doenças do Sistema Respiratório (22,8%), aparecendo ainda de maneira significativa os grupos de Doenças do Sistema Nervoso (14,7%); e Causas Externas (5,0%) - A ocorrência de doenças cardiocirculatórias (2,05%) e metabólicas (0,25%) é menor que na população do país em geral, porém é preciso lembrar que se está diante de uma população extremamente jovem e, como há o aumento da expectativa de vida e o aparecimento destas patologias tende a aumentar com a idade, a possibilidade de um crescimento rápido da ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) em um período de poucos anos é algo que deve ser levado em consideração O polo base Rio dos Peixes - O polo base Rio dos Peixes possui 4 aldeias (Quadro 6) na sua área de abrangência, com uma população de 584 pessoas - A questão do assoreamento e contaminação dos rios, cujas nascentes, infelizmente, estão localizadas fora da área indígena, tem preocupado as lideranças indígenas do DSEI Serra das Capivaras - Relato de Matrinchã Grande, liderança da aldeia dos Peixes: "(...) lá nas cabeceiras dos rios nós estamos tendo problemas. Se você está embaixo de uma árvore, tudo o que vem de sujeira, folha, vai cair em cima de você, em cima da sua cabeça. Esse problema é de todos nós. Que problema é esse? Todas as cabeceiras estão sendo desmatadas, tem muito boi cagando no rio e o pior: estão jogando veneno (agroquímicos) na água, que vem parar aqui. Talvez agora nós não estejamos sofrendo tanto, mas os peixes, os macacos e todos os animais estão sofrendo. É deles que a gente se alimenta. Às vezes a gente vai caçar lá longe e vê aquele macaco magrinho, não tem mais fruta para ele comer. Até o peixe está com gosto diferente... Hoje temos que remar muito para pegar peixe bom, a vida tá muito difícil por aqui, não sei o que vai acontecer com meus filhos e netos.... Outra coisa que está deixando todo mundo preocupado é a terra preta, terra boa para plantar. Antigamente as roças eram todas perto da aldeia, hoje a gente tem que caminhar muito para chegar na roça, mesmo assim a terra não é muito boa. As roças estão ficando mais pequenas e com menos coisa plantada, não tem mais mangarito, amendoim, e as frutas também estão longe da aldeia..." - Outra questão importante é o saneamento - A maioria das aldeias possui sistemas de abastecimento de água, porém todos funcionam precariamente e não existem locais adequados para o destino das fezes, situação que acarreta uma contaminação ambiental importante e leva a uma alta infestação por verminoses e ocorrências altas de doenças por veiculação hídrica - No ano de 2010, os casos de anemia entre as crianças menores de cinco anos, no Polo Base Rio dos Peixes, somaram 40%, chegando a 62% na faixa etária entre 6 meses a 2 anos, associada ao prevalecimento da desnutrição, avaliada pelo critério peso por idade, em 12,6% das crianças menores de 05 anos - Como referido em relação ao DSEI, observa-se ainda uma persistência crescente de DCNT – não existem registros de DM e HAS (hipertensão arterial sistêmica) na população do DSEI até a década de 1980 - Atualmente, na área do polo base do Rio dos Peixes, já são encontrados vários casos destas doenças, conforme os quadros 7 e 8: - Em relação aos indicadores de saúde bucal encontramos um aumento no índice de cárie (ceo-d), que tem sido observado com maior rapidez nas crianças de até 5 anos de idade. - É importante lembrar que até os 3 anos de idade (em torno dos 30 meses, no máximo) todos os dentes decíduos já devem ter terminado sua erupção, o que querdizer que a criança a partir dessa idade deverá possuir 20 dentes (10 na arcada superior e 10 na inferior) na cavidade oral - A Organização Mundial de Saúde (OMS) utiliza a idade de 12 anos como parâmetro para analise do índice. Estabelece para isso uma escala de severidade baseada nas médias de CPO-D: prevalência muito baixa (0,1-1,1); prevalência baixa (1,2-2,6); prevalência moderada (2,7-4,4); e prevalência alta (4,5-6,5) - A OMS considera o CPO-D um bom indicador das condições de saúde bucal da população: quanto menor o índice, melhores as condições de saúde bucal - Segue abaixo a tabela 1 com os índices epidemiológicos referentes à cárie de duas aldeias do polo Base Rio dos Peixes, Aldeias Tucunaré e Peixes: 1) Índice ceo-d: conforme a OMS, corresponde ao número de dentes cariados (c), perdidos (e) e restaurados (obturados), na dentição decídua. 2) Índice CPO-D: conforme a OMS , corresponde ao número de dentes cariados (C), perdidos (P) e restaurados (Obturados), na dentição permanente - Tanto a ocorrência destas patologias quanto da desnutrição estão relacionadas às mudanças no estilo de vida e no padrão de alimentação desta população, graças ao impacto da intensificação das relações de contato dos povos indígenas com a sociedade envolvente, sociedade esta que passa a ocupar um papel extremamente importante à medida que o número de indígenas remunerados por trabalhos formais/informais e por programas sociais como aposentadorias e bolsas (família, educação etc.) cresce - O aumento do poder aquisitivo acarreta o acesso às cidades existentes ao redor das aldeias, o que facilita o aumento do consumo de álcool e alimentos industrializados, em particular alimentos ricos em carboidratos (arroz, feijão, macarrão, bolachas, balas, doces, refrigerantes, etc.), de baixo valor nutritivo, acompanhados de uma redução no padrão de atividade física tradicional, ligado a atividades de produção de alimentos (caça, pesca, plantio das roças, etc.) - A alta persistência de desnutrição é, ainda, acompanhada de doenças de veiculação hídrica (parasitoses intestinais e doença diarreica aguda) - A introdução de alimentos com baixo valor nutricional, em especial os ricos em carboidratos simples (sacarose), e a consequente substituição de alimentos da dieta tradicional de frutas sazonais, alimentos ricos em carboidratos complexos e proteínas, produtos da caça e da pesca, aliados a uma introdução em faixas etárias cada vez mais precoces em substituição ao tradicional aleitamento materno faz crescer o número de desnutridos - Isto associado a um ambiente com baixas condições de saneamento – destino inadequado dos dejetos, ausência de fontes hídricas potáveis de boa qualidade – cria um ciclo vicioso, em que os desnutridos apresentam mais parasitoses e diarreia, agravando o quadro de desnutrição - Este problema é ainda agravado pelas condições de saúde bucal, que também se deteriora com o aumento do consumo de sacarose - É importante salientar que estes alimentos citados muitas vezes são consumidos fora de seu contexto cultural – em nossa sociedade todos temos ao menos a informação de que o consumo excessivo de açúcar é prejudicial – sendo utilizados de maneira inadequada, muitas vezes por desconhecimento de seu uso correto. - Vê-se ainda a substituição da alimentação tradicional por alimentos "correspondentes", porém com propriedades nutricionais diferentes. - O uso cada vez maior de barcos a motor e motosserras, em substituição aos meios tradicionais de transporte e produção, que acarretam redução do nível de atividade física por si só, vem associado a uma sedentarização progressiva, devido à restrição territorial de uma população originalmente seminômade, juntamente com a criação de uma infraestrutura "permanente", – construção de escolas, polos base, etc. – favorecendo a permanência prolongada em um mesmo local - Percebe-se ainda a "quebra de regras" tradicionais, com a perda progressiva de conhecimentos ligados ao autocuidado associados à perda de representação dos curadores e cuidadores tradicionais, tornando, assim, esta população ainda mais vulnerável aos efeitos prejudiciais das influências externas - Esta influência da relação de contato com a sociedade envolvente como determinante maior destes problemas fica nítida quando comparamos os dados, mostrando uma concentração de problemas muito maior na aldeia onde o contato é mais intenso A família de Bagre Muído - Bagre Miúdo é Agente Indígena de Saúde há 3 anos. Seus filhos, Cavalinha Pequeno e Pescada Branca estão desnutridos e com baixa estatura. Pescada Branca nasceu com baixo peso e recebeu aleitamento artificial, pois a mãe disse que estava sem leite. Recentemente, Cavalinha Pequeno foi encaminhado ao hospital de referência com um quadro de infecção respiratória arrastada que não apresentava melhora com o tratamento instituído na área pela EMSI (Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena) - A criança voltou para a aldeia sem queixas respiratórias, ainda desnutrida e usando sulfato ferroso para tratamento de uma anemia importante, Hb 9.0 g/dl, diagnosticada na referência - Chama a atenção o resultado de EPF (exame parasitológico de fezes), que mostrou uma alta infestação com poliparasitismo - Mensalmente a sua família, bem como as outras famílias de sua aldeia, recebe uma cesta básica. Frequentemente Bagre Miúdo vai para a cidade fazer compras e costuma trazer para a aldeia: arroz, feijão, óleo, açúcar, sal, refrigerante, sucos artificiais, biscoitos e doces. Seu irmão, Matrinchã Grande, é obeso e teve recente diagnóstico de DM (Diabetes Mellitus) e HAS (Hipertensão Arterial Sistêmica) e, apesar da medicação prescrita na referência, mantém glicemia e pressão arterial descompensadas - Em conversa com a enfermeira, Piramutaba, mulher de Bagre miúdo, disse que seus filhos estão comendo poucos alimentos da roça e não estão comendo frutas - Como o seu marido trabalha na área de saúde, ele não tem tempo para fazer roça, pescar e caçar, e por isso a alimentação da família tem como base alimentos comprados por ele na cidade, além das cestas básicas que recebem do município de Capim Pequeno. Bagre miúdo compra alimentos mensalmente na cidade e, quando há alimentos excedentes nas aldeias, compra farinha, cará, polvilho, milho, amendoim e frutas. Ultimamente a produção das aldeias tem diminuído e eles não estão conseguindo adquirir alimentos tradicionais. - Conforme o último censo vacinal, a casa de Bagre Miúdo tem os seguintes moradores: - Durante a realização do levantamento epidemiológico de saúde bucal nesta família apresentaram-se altos índices de cárie, porém com acesso ao tratamento, uma vez que o índice de dentes cariados era semelhante ao de obturados - Entretanto, entre as crianças de cinco anos ou menos, o ceo-d é composto basicamente por cariados, estando os obturados e perdidos quase nulos, demonstrando a dificuldade de acesso desta importante parcela da população aos serviços odontológicos Abordagem dos problemas - Dentro deste contexto complexo, a abordagem dos problemas encontrados passa, necessariamente, pelo conhecimento dos costumes da população, incluindo aí suas noções de cuidado, alimentação e higiene. Isto envolve um diagnóstico amplo da situação, levando em conta as percepções dos sujeitos envolvidos - Neste sentido podem ser utilizadas diversas ferramentas, incluindo genogramas e eco-mapas, reuniões com a comunidade, rodas de conversa com cuidadores, dados epidemiológicos, etc - Em possíveis abordagens comunitárias é imprescindível chamar atenção para a responsabilidade da população envolvida, através do envolvimento do controle social, realizando reuniões, palestras para discutir os problemas da população e o seu enfrentamento - Educação permanente da EMSI; - Orientação de Conselheiros Distritais de Saúde frente ao perfil epidemiológico local - Aproximaçãodo trabalho dos professores indígenas, enquanto potenciais multiplicadores e parceiros de trabalho - Reuniões comunitárias, levantando os problemas da mudança de hábitos alimentares e da dieta, com valorização das práticas tradicionais, além do ensino do manejo adequado de alimentos "estrangeiros" - Oficinas de culinária, com incentivo à retomada/redescoberta de alimentos tradicionais, que vêm sendo paulatinamente abandonados - Orientação do uso correto de alimentos não tradicionais, no sentido de diminuir o abuso destes (balas, doces, etc.) - Ações interinstitucionais para garantir o manejo sustentável dos recursos naturais, no intuito de garantir a manutenção de práticas tradicionais de cultivo e produção de alimentos, oferecendo ainda alternativas saudáveis, de maneira sustentável, para a substituição de alimentos sazonais ou que estão se tornando escassos em função do aumento populacional - Estímulo à produção e consumo de alimentos tradicionais em detrimento dos "importados" - Para isto, a equipe de saúde deve atribuir poder para a população através de informações sobre problemas que estão ocorrendo e seus determinantes e junto com a comunidade, as lideranças, mulheres, pajés, AIS (Agentes Indígenas de Saúde), buscando soluções conjuntas para o enfrentamento dos problemas - O cuidado integral para qualquer comunidade é um desafio para as equipes de saúde, uma vez que o adoecimento está ligado ao estilo de vida e, para o seu adequado controle, são necessárias mudanças no modo de viver, o que, no caso de populações indígenas, envolve a retomada de hábitos alimentares tradicionais que estão diretamente ligados ao cotidiano da comunidade - Além disso, enquanto estratégia de prevenção e controle dos agravos, é necessária a articulação dos diferentes setores envolvidos neste contato, incluindo as próprias comunidades indígenas, suas representações legítimas (lideranças tradicionais, Associações Indígenas, Conselheiros de Saúde, etc.), os órgãos indigenistas (FUNAI e ONGs), os órgãos de Saúde (SESAI e parceiras/prestadoras de serviços, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde), órgãos da educação (escolas indígenas, secretarias de educação) e ainda outros órgãos públicos dos diferentes setores envolvidos
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