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PORTUGAL COMO DESTINO SEGUIDO DE MITOLOGIA DA SAUDADE

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1
Seguido de mitologia da saudade
PORTUGAL 
COMO DESTINO
Eduardo Lourenço
2 3
Índice
Dramaturgia cultural portuguesa .................
Tempo português ..............................................
 4
38
4 5
Dramaturgia cultural portuguesa
PORTUGAL 
COMO DESTINO
É tentador assimilar o destino de um povo ao do 
indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescên-
cia, maturidade e declínio. A analogia organicista 
é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civili-
zações extintos o paradigma humano se aplica. O 
tempo do indivíduo, a leitura que ele próprio faz 
do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo 
de surgimento, afirmação e desapa rição. 
Um povo tem igualmente uma história e, por 
comodidade hermenêutica, pode ser tentado 
a ler o seu percurso em termos subjectivos de 
afirmação de si, de presença mais ou menos 
forte entre os outros ou de existência precária 
ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas 
o tempo dessa história não é, como o dos indi-
víduos, percebido ao mesmo tempo como finito 
e irrever sível. 
O tempo de um povo é trans-histórico na própria 
medida em que é «historicidade», jogo imprevi-
sível com os tempos diversos em que o seu des-
tino se espelhou até ao presente e que o futuro 
reorganizará de maneira misteriosa. Cada povo 
só o é por se conceber e viver justamente como 
destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse 
Citação Nº 1
6 7
desde sempre e tivesse consigo uma promessa de 
duração eterna. É essa con vicção que confere a 
cada povo, a cada cultura, pois ambos são indis-
sociáveis, o que chamamos «identidade». 
Como para os indivíduos, a identidade só se 
define na relação com o outro. Como essa relação 
varia com o tempo — é o que chamamos a nossa 
história —, a identidade é percebida e vivida por 
um povo em termos simultaneamente históricos 
e trans-históricos. Mas só o que a cada momento 
da vida de um povo aparece como para-
doxalmente inalterável ou subsistente através da 
sucessão dos tempos confere sentido ao conceito 
de identidade. Podemos assi milar essa estranha 
permanência no seio da mudança àquilo que os 
românticos alemães designaram, para desespero 
da historio grafia iluminista, como «alma dos 
povos». 
Frutuosamente na Índia, tomando-se a primeira 
potência colonizadora europeia, perde num único 
combate o seu jovem rei, D. Sebastião, e põe em 
perigo uma independência política velha de mais 
de quatro séculos. O Império-refúgio tinha-se 
tornado, com o tempo, um refúgio ilusório e fiz-
era perder ao pequeno país que o inventara o sen-
tido das realidades. 
Citação Nº 2
8 9
Monismo castelhano em geral, mas também 
interesse e fascínio pela cultura lusitana, sobr-
etudo pela sua poesia lírica. Nada disto se altera 
com a perda de independência política. Mas 
altera-se aos poucos e, por fim, duravelmente, a 
imagem recíproca dos dois países. 
A Espanha, durante o século XVII, integra, 
incons cientemente ou não, o património cultural 
lusitano no seu e Por tugal, consciente ou incon-
scientemente, reflui para si mesmo, toma-se de 
ilha imperial gloriosa em ilha perdida na qual 
espera a ressurreição do seu passado simboli-
camente intacto e como que sublimado naquela 
obra que durante esses sessenta anos guardará 
intacta a memória do passado. 
O sebastianismo é ape nas a forma popular dessa 
crença de uma vinda do rei vencido. O verda-
deiro Sebastião é o texto dos Lusíadas que desde 
então — embora só o romantismo lhe confira esse 
estatuto — se con verteu na referência icónica da 
cultura portuguesa. 
Citação Nº 3
10 11
As categorias de ordem profana, tais como a his-
toriografia moderna as explicitou, subordinando 
toda a compreensão a um processo de causas e 
consequências e inscrevendo a aventura humana 
numa temporalidade irreversível desvincu-
lada do seu suporte simbólico e transtemporal, 
adaptam-se mal a fenómenos da pura ordem 
do desejo e do sonho como o do sebastianismo. 
Só numa cultura intrinsecamente mística que 
coloca na ressurrei ção e, por conseguinte, no 
futuro o tempo que, resumindo todos os tempos, 
lhe dá sentido é que uma espera messiânica, real 
ou simbólica, como a que o sebastianismo encar-
nou em Portugal, é compreensível. 
E ninguém a ilustrou melhor do que o autor 
da História do Futuro, o padre António Vieira. 
Nenhum desmentido da experiência o arrancou 
ao sonho do regresso de D. Sebastião, que deve-
ria representar para um Portugal restaurado, 
mas sem pre em vias de perder a sua recuperada 
independência, não só a confirmação dessa nova 
vida, mas também o anúncio e já o começo de 
um Quinto Império, o de Cristo, de que Portugal 
seria a histórica manifestação. António Vieira 
Citação Nº 4 não era um louco rema tado, antes um sagaz 
observador do mundo, diplomata insigne com o 
seu quê de maquiavélico, entenda-se, ao serviço 
de causa em si mesmo boa, como é próprio de um 
eminente jesuíta. 
A sua visão, de forte inspiração bíblica, consti-
tui um todo. Não há outro código para decifrar 
os aparentemente contraditórios e até pertur-
bantes acontecimentos de um mundo criado por 
Deus e governado pela sua Providência além do 
texto bíblico. Que é um texto, não acidental, mas 
intrinsecamente profético. O tempo da profecia 
não se regula pelos imperativos da temporalidade 
hu mana. Tudo nele são sinais e indícios. Portugal 
não é para ele uma nação como outra qualquer. 
É uma nação literalmente eleita. Eleita para 
anunciar e ilustrar o reino universal de Cristo, 
tal como ele e os seus companheiros de missão 
o anunciam em terras da China ou nas florestas 
da Amazónia. O destino singular e universal de 
Portugal não se resume no facto de a sua presença 
e, com ela, a imagem de Cristo terem chegado aos 
quatro cantos da Terra. Esse é apenas um indí-
cio exterior. 
Mesmo antes de se lançar na sua aventura desco-
bridora e missionária, Portugal, para António 
Vieira, era já um povo messiânico. Um povo 
assim não pode perecer. As suas quedas — como 
a de Alcácer Quibir ou a da perda da independ-
ência — explicam-se por qualquer desvio do 
ideal de que é portador. Não há na cultura por-
tuguesa dis curso mais alucinatório e sublime que 
o de António Vieira. É a síntese arrebatada, mas 
12 13
simbolicamente coerente, de cinco sécu los de 
vida colectiva vividos com a convicção arreigada 
mas também culturalmente cultivada de que a 
própria existência de Portugal é da ordem não só 
do milagre, como da profecia. 
Pela sua pública fidelidade crística, Portugal pro-
fetiza. Pelo menos, profetizava nos tempos de 
Vieira, nesse século XVII em que a cultura por-
tuguesa, no sentido profano, mas tam bém religi-
oso, dialoga cautamente com a cultura dom-
inante do tempo. O seu tempo próprio é outro, 
o da fidelidade incondi cional, exageradamente 
passiva, à ortodoxia consagrada pelo Concílio de 
Trento. Exagerou-se sem dúvida, num tempo de 
reatamento com o movimento geral da Europa, 
como foi já o do século XVIII, ainda no tempo de 
D. João V, monarca faustoso e mecenas de vários 
artistas europeus, e sobretudo no de Pombal, 
o nosso isolamento, tido como indeclinável 
decadência. 
Mesmo António Vieira, que na segunda metade 
do século XVII muito viajara na Europa ao 
serviço do Portugal restaurado, patriota ardente, 
sofreu com essa imagem de povo decaído, pouco 
conhe cido e considerado na Europa. Sessenta 
anos de submissão po lítica a Espanha haviam 
subalternizado Portugal e, quando, em 1640, os 
Portugueses recuperam, penosamente, com forte 
auxí lio diplomático ou conivência da Inglaterra 
e da França, a sua autonomia, é como se tives-
sem acordado outros. Conscientes disso, os seus 
reis não são representados com a sua coroa real 
na cabeça, mas com ela ao lado, em rica mesa. 
14 15
Alguma coisa se quebrara com o interregno fil-
ipino — assim será pensado o do mínio espanhol 
após a Restauração — e a memória portuguesa 
integra uma espécie de não-tempo, que desde 
então será sempre não só dolorosamente recor-
dado, mas como que subtraído ao curso glorifi-
cado danossa história. Emergindo desse tempo, 
baptizado como cativeiro, uma vez mais assimi-
lado à época de escravidão do povo judaico em 
Babilónia, a Restauração só podia ser pensada e 
vivida como o terceiro milagre português. E nin-
guém contribuiu mais do que António Vieira 
para lhe conferir esse estatuto. 
Na lógica profé tica de António Vieira importa 
tanto a temporalidade sincrónica dos acon-
tecimentos como a capacidade de os usar para 
fins, na lógica ordinária, inconciliáveis. Sobre a 
experiência dos tempos de cativeiro, resgatados 
pelo seu fim providencial, António Vieira, reun-
indo numa só visão as profecias do sapateiro 
Bandarra, émulo de Nostradamus, as esperanças 
no regresso de D. Sebastião, refundador não só 
do reino perdido, mas de um novo reino, erguerá 
a sua utopia de um Quinto Império, prome tido, 
segundo ele, ao primeiro rei de Portugal e con-
tido nos Descobrimentos iniciadores e iniciáticos 
do infante D. Henrique. Esta utopia e o seu sonho 
chegaram intactos até à Mensagem, de Fernando 
Pessoa.
Mas porventura o mais original, nesta versão 
de um Quinto e último império sob a égide de 
Cristo, foi o facto de António Vieira ter imagi-
nado que a sua prova, e igualmente o seu cen-
tro mítico, não seria tanto o abatido Portugal 
como o Portugal restaurado, para quem o jovem 
Brasil era já a anteci pada certeza de perenidade 
e grandeza. 
Atentou-se pouco, tomando-a como interessado 
desvario, que o Norte do Brasil fora a terra mis-
sionária de eleição de António Vieira, nesta trans-
lação do sonho imperial português do Oriente 
para o Brasil. Nos dois casos, Portugal habituara-
se a viver fora de si mesmo e a vincular a sua ima-
gem única de povo europeu a esses dois espaços. 
Mas um encolhia a olhos vistos, o do Oriente ou 
o da primeira expansão africana. Ainda nos mea-
dos do século XVI, Portugal abandona os seus 
pontos fortes em Marrocos. 
E no século XVII vai deixando a Holandeses e 
Ingleses o monopólio comercial do Oriente. Com 
a Restauração, para assegurar o apoio inglês, 
cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princ-
esa à aliada e, desde então, sempre protectora 
Citação Nº 5
16 17
Inglaterra. Ficava o Brasil, que, liberto da ameaça 
holandesa que António Vieira vivera de cruz, 
arma e palavra nos lábios, se desenhava como 
refúgio, promessa e garantia de uma sobrevivên-
cia política nacional sem par. Durante mais de 
dois séculos, Portugal — e ainda mais os portu-
gueses do Brasil e os já brasileiros — inventa o 
Brasil e o Brasil assegura a Portugal, por vezes 
em sentido literal, a sua sobrevivência. 
De tão fundas consequências como a fundação 
«historial» de Herculano foi a recriação visionária 
e mítica de Garrett. O que Herculano fundou em 
prosa epicamente nostálgica, Garrett fun dou em 
nostalgia elegíaca, colocando Camões, de uma 
vez para sempre, no centro da nova mitologia 
pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria 
de canto, de cultura, sem as quais a memória 
deles não existe. Mas não o pôs no centro sem 
lhe mudar de algum modo o conteúdo e, até, de 
o inverter. 
É ele o verdadeiro rei Sebastião ou, pelo menos, o 
seu livro o novo Gral, pois foi por via dele, como 
no seu drama Frei Luís de Sousa é manifesto, que 
a esperança da ressurreição pátria se conservou. 
Pátria que nesse momento de liberdade triun-
fante, mas impotente — tão vulnerável a sente 
Garrett como quase todo o seu século —, pre-
cisa de se lembrar do seu passado glorioso para 
não desespe rar do futuro. Portugal existe porque 
existiu e existiu porque Camões o salvaguardou 
na sua memória, como a dos Hebreus se per-
petua na Bíblia. Garrett não espera o futuro e o 
Citação Nº 6
18 19
renascimento da alma e da cultura portuguesas 
de qualquer profecia com ga rantia providencial, 
mas da vontade e da capacidade de rees crever o 
seu passado como se fosse presente e de reler nas 
pedras do presente que atestam tão glorioso pas-
sado, «viajando na nossa terra», a mensagem do 
futuro. 
A saudade é gosto amargo do bem passado, «deli-
cioso pungir de acerbo espinho», mas igualmente 
penhor de ressurreição do que, por excesso de 
vida, não pode morrer. Com ele, a saudade não 
é apenas perfume de alegrias mortas, senti-
mento um pouco desencantado de não encon-
trar no presente a imagem perdida de um país 
fora da história, como lhe parece — ou parece o 
seu a olhos estranhos —, mas o corpo e a som-
bra da alma portuguesa. Unindo historicamente, 
e não acidental ou liricamente, Portugal e a sau-
dade, Garrett instaurou a primeira mitologia cul-
tural portuguesa sem transcendência. A que fez 
do país de Camões o país-saudade, o Portugal-
saudade, que não tem outro destino senão o da 
busca de si mesmo. Com adequação aos tempos e 
aos modos da futura vida portu guesa, o essencial 
desta percepção mítica de Portugal permane cerá 
intacto até aos dias de Pascoais e de Pessoa. 
20 21
O mundo e a visão romanescos de Júlio Dinis 
são mais intranscendentes. Mas o seu retrato de 
Portugal, contemporâneo do de Camilo, retrato 
de pose longa, como então se usava na fotogra-
fia, desenha, por assim dizer, a outra face, se não 
do mesmo Portugal, a sua versão numa óptica 
desdramatizada ou, em todo o caso, não trágica, 
adequada a uma sociedade que aceita a mudança 
e o progresso ainda parco do século e caminha 
por dentro e por fora ao seu ritmo. O Portugal 
de Júlio Dinis, os seus personagens, a cultura 
que eles ilustram ou neles e com eles se exprime 
não vão para parte alguma, utópica ou passional-
mente desejada, estão. neste estar configuram 
um particular momento da cultura portuguesa, 
menos parada do que parece, cultura de um país 
que abandona tranquilamente o «mundo antigo», 
o da cosmologia, da teologia, da ideologia que o 
romantismo mal se atrevera a pôr em causa. 
Aceitando uma espécie de sabedoria moderna, 
amigo do progresso, confiante na bondade inata 
Citação Nº 7 do coração, Júlio Dinis tem um ar de discípulo do 
vigário saboiardo, corrigido pela fleuma inglesa. 
Com ele, além duma origi nal captação do tempo, 
ou, antes, da sua duração, surge no horizonte da 
nossa cultura, destinado a futuro sucesso, o fan-
tasma da Inglaterra como influência paradig-
mática não apenas na ordem da economia, da 
política, do poder, mas também na da ficção. 
Vendo bem, esta segunda emergência do para-
digma inglês na nossa cultura é então mais epi-
dérmica do que o fora no roman tismo. Não nos 
trouxe nem o desafio transgressivo de Byron, 
nem o amor de passados arquétipos, fonte de 
novos nacionalismos, como Walter Scott. Júlio 
Dinis, conhecedor do meio inglês do Porto, como 
mais tarde António Nobre, é uma excepção, não 
a regra. Nos meados do último século, Portugal 
começa a sentir-se, sem mórbido sentimento de 
inferioridade, provincial e pro vincianamente, 
um pequeno país, politicamente pacífico, esfor-
çando-se por acompanhar uma Europa já em 
plena segunda revolução industrial, sem imag-
inar sequer o que os seus efeitos irão induzir 
na ordem dos comportamentos, das ideias, das 
22 23
cren ças, pelo menos nos seus centros nevrálgi-
cos, Lisboa e Porto, e na sua única cidade univer-
sitária, Coimbra. 
Portugal não está ainda na Europa, mesmo se a 
nova Europa da máquina de vapor e do telégrafo, 
da maior circulação dos jornais, está já dentro 
das suas fronteiras. Na década de 60, Paris, então 
capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa. 
Em sentido próprio, Portugal acede um pouco 
ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua 
escassa classe financeira, industrial, aristocrática 
e política, mas também, e de uma maneira para-
doxal, a sua classe intelectual. É nesse momento 
exacto que uma nova geração, como se acabasse 
de descobrir um tesouro caído do céu, descobre 
que não é europeia, isto é, que não sente, nem 
conhece, nem pensa, nem cria como podia fazê-
lo se estivesse «realmente» nessa Europa que lhe 
envia as suas criações e os ecos reais ou fantás-
ticos do que toda uma juventude vai nomear a 
«vida superior», a da Civilização, com maiúscula.Citação Nº 8
24 25
Antero assume a pose do profeta da revolução, 
melhor, do seu apóstolo, perfeitamente consci-
ente do quixotismo que a sua crítica radical do 
passado nacional representa, mas não menos 
convicto de que a revolução que anuncia e de que 
espera um novo Portugal é de essência reli giosa. 
A sua célebre conferência termina assimilando o 
socia lismo ao cristianismo do mundo moderno: 
«o cristianismo foi a revolução do mundo antigo: 
a revolução não é mais que o cris tianismo do 
mundo moderno.» 
Pelo seu carácter utopista, pela própria ambi-
guidade de um discurso que, ao mesmo tempo 
que recusava a imagem do pas sado nacional, 
lhe anunciava um futuro digno de um Portugal 
anterior à sua merecida decadência de povo que 
não soubera conquistar a liberdade de consciên-
cia, nem cultivar o espírito científico, nem liber-
tar-se da tentação imperial de tipo guerreiro, um 
texto como o da «conferência» de Antero parecia 
votado não apenas ao destino de uma provocação 
Citação Nº 9 retórica, como ao mais melancólico da inoperân-
cia, não só no plano ideológico, como no mais 
decisivo, de ordem cultural. 
Não foi o caso: pela sua radicalidade, pelo seu 
retrato impiedoso — mesmo se, em parte, injusto 
ou parcial —, não apenas deste ou daquele aspecto 
da sociedade portuguesa, mas de Portugal 
enquanto cultura estrutu ralmente anacrónica, 
desfasada do novo espírito europeu, filho da rev-
olução e do progresso na ordem da crítica e da 
ciência, o texto de Antero alcançou um estat-
uto sem equivalente na história da cultura por-
tuguesa. Independentemente da sua pertinência 
ou extravagância, esse texto instituiu Portugal, 
enquanto destino histórico e cultural, e não ape-
nas como sujeito político, como aconteceu no 
romantismo, em assunto privilegiado da nossa 
cultura. Ou, com mais precisão, instaurou a 
cultura, não só nossa, mas em geral, como o hor-
izonte dentro do qual um povo se define como 
actor efectivo ou mero espectador da aventura da 
humanidade concebida como um todo. 
26 27
Em menos de duas décadas, o panorama cultural 
português sofreu uma metamorfose que só pode 
comparar-se à que o im pacto do Renascimento 
italiano produzira entre nós no século XVI. 
Numa perspectiva quase só literária, o nosso 
romantismo reatara o antigo diálogo com a 
Europa. De 1870 a 1890, esse diálogo tornou-se 
imperativo e foi vivido e ilustrado, como Antero 
o havia anunciado, em termos que poderíamos 
rotular de «sociológicos» de inspiração diversa 
e por vezes inconciliável ao nível dos princípios, 
que iam de Proudhon a Auguste Comte, mas que 
obedeciam a um leitmotiv comum: europeizar 
Portugal, único meio de o arrancar à sua passivi-
dade e ao influxo do passado. A
 europeização fazia-se em termos pragmáticos, 
pelos progressos induzidos pela revolução indus-
trial em curso, a que introduzia em Portugal, 
como no resto da Europa, ou no longín quo Far 
West, o caminho-de-ferro e o telégrafo, a espec-
ulação financeira, uma tímida indústria. 
Citação Nº 10
28 29
Mais difícil, nos termos em que a Geração de 
70 e, com ela, a maioria da classe liberal a dese-
javam, era a revolução cultural que o progresso 
técnico supunha, a transformação do ensino, 
a criação de uma tradição científica, o gosto da 
experimentação, condições da liquidação do 
passado e da construção de um novo Portugal. 
Ora, como era fatal, os estigmas denunciados 
por Antero eram tudo menos estímulos, eram os 
próprios obstáculos a essa europeização mítica. 
Nós não podíamos, por artes mágicas, transfor-
mar-nos nos Claude Bernard, nos Charcot, nos 
Liebieg, nos Darwin ou mesmo nos Michelet, 
nos Niebhur, nos Renan ou nos Comte, que essa 
gera ção lia com paixão, mas também como fru-
tos excepcionais de uma cultura que lhes caía em 
casa literalmente do céu. 
O para doxo da Geração de 70, que se dera 
como missão «europeizar» Portugal, libertá-
lo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi 
o de retratar um país, como ninguém o fiz-
era antes, em função de um modelo de civili-
zação que tinha em Paris, Londres ou Berlim a 
sua vitrina. O resultado, como seria de esperar, e 
Citação Nº 11 con trariamente aos seus propósitos de aggiorna-
mento, foi um retra to deprimente da sociedade 
portuguesa, o de um Portugal não apenas pouco 
ou nada «europeu», como essa geração o sonhava 
ou pretendia, ao menos nas suas classes dom-
inantes ou institui ções representativas (Igreja, 
Parlamento, Banca, Universidade), mas mór-
bida e mimeticamente fascinado por essa mesma 
Euro pa que ele não era, mas oniricamente imagi-
nava ser. Nunca se tirou a Portugal e à sua cultura 
um retrato mais cruel do que aquele que Eça de 
Queirós deixou, com o rasto indelével do génio 
satírico e realista que foi o seu, nos mais famosos 
roman ces da nossa literatura. O facto de os ret-
ratistas estarem também inscritos no retrato em 
nada atenua a verdade nem o alcance desse olhar 
sem piedade sobre nós mesmos. 
Até porque a ironia e a auto-ironia, cada vez mais 
presentes nessa descida ao coração do tempo 
português, redimiam pouco a pouco essa espele-
ologia, para não dizer esse exercício de anatomia, 
sobre o corpo morto de Portugal. Que no fim da 
lição, que era para os seus autores uma mistura 
indiscernível de júbilo e maceração, acabou por 
ressuscitar e mesmo por subir ao céu. 
30 31
Para cada geração, a menos que haja catástrofe 
natural ou herança amaldiçoada, o momento de 
entrada na vida é um es plendor. A geração da 
República conheceu o seu esplendor, so bretudo 
quando ainda o não era. O Portugal de então era 
paupér rimo, mas estava cheio de boa vontade. Lá 
fora, o mundo e o século abriam em fanfarra. Os 
homens lançam-se nos ares. 
Os transatlânticos de luxo anunciam catástrofes 
em que ninguém acreditava. Mesmo a guerra não 
suspendeu o furor patético e universal do pro-
gresso. A guerra fazia o seu mal com a veloci dade 
e a tragédia, como sempre. Os pobres sentiam-
se menos pobres com tanta exposição universal. 
Depois da belle époque, os anos loucos. Portugal 
acompanhava de longe a festa dos outros. Sem 
que ninguém lhe pedisse, ia bater-se na Flandres. 
Era a nossa maneira de «estar na Europa» com 
lama pelos joelhos. 
Foi modesta, mas entusiasta e de boa vontade, 
a nossa República. Queria saber, interessava-
se pela instrução, pela pedagogia, era sincera-
mente povo e popular. À parte as colónias, não 
tinha ideal nenhum, queria ser uma pequena 
Citação Nº 12 França entre Douro e Guadiana. Mas os tempos 
não iam para Franças. Qualquer coisa nova, mais 
tarde baptizada de «rebelião das massas», exigia 
ser actor da história, não apenas de feiras, feste-
jos públicos e trabalho sem garantias. 
O bolchevismo na atrasadíssima Rússia, o fas-
cismo na paupérrima Itália, ofereciam os seus 
modelos. Escolhemos o mais latino e o mais próx-
imo. E demos-lhe uma de mão caseira, famil-
iaríssima, revanche do tradicional catolicismo 
contra o ci tadino anticlericalismo, cautério da 
economia doméstica sobre a dependência exces-
siva do crédito e do investimento estrangeiro. 
[...]
O Portugal real, rústico, pobre, politicamente 
imerso em convulsões anedóticas, sofrendo as 
repercussões da Europa, só retém das rêver-
ies quiméricas de Pascoais, como reterá das não 
menos quiméricas de Pessoa, o que pode ensartar 
no seu ramalhete de nacionalismo ancestral. 
O profético e o dinâmico delas escapam-lhe. 
Sofre e orgulha-se por morrer na Flandres, 
exalta-se por atravessar o Atlântico, sabe Deus 
com que custo, para religar as duas metades de 
um mundo luso-brasileiro então ainda sentimen-
talmente próximas. Mas não há um sujeito destes 
feitos com sabor a epopeia forçada. A República 
democrática, como se fosse uma pequena 
Weimar, sonha com uma nova ordem. Em 1918, 
o primeiro de uma longa série de «caudilhos» 
dispostos a porem ordem na «desordem» euro-
peia estabelece uma breve ditadura em Portugal. 
Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido 
32 33
assassinado um ano depois, transformou-se num 
dos raros personagenslendários da medíocre 
história portuguesa deste século. 
Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro 
regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a cor-
agem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em 
plena aurora do cinema, foi a primeira star da 
nossa moderna mitologia. Suscitou paixões, 
de nítido fundo anti-republicano e pré-ditato-
rial. Para que nunca mais fosse esquecido, entu-
siasmou Fernando Pessoa, que nunca mor-
reu de amores pela «democracia à portuguesa». 
Tínhamos, na tradição de Oliveira Martins, um 
possível Bismark. Morto, tivemos uma referência 
para uma nova ordem.
[...]
Até aos sobressaltos dos anos 60, conspícuos jor-
nais do Ocidente referiram-se ao Estado Novo 
como ao exemplo mesmo de «ditadura sábia». 
Começa a ser possível, após vinte anos de democ-
racia, num povo tão pragmático como o portu-
guês, situarmo-nos melhor em relação a esse 
meio século da história nacional, que teve a pre-
tensão e a vontade, como nenhum outro desde o 
século XVIII e da reforma liberal de Mousinho 
da Silveira, de remodelar, em profundidade, não 
só o destino político empírico de Portugal, mas a 
sua mentalidade. 
O que, a bem dizer, não era um trabalho de 
Hércules, pois o essencial — à parte o esforço 
de modernização material induzido pela época e 
pelo seu dinamismo— dessa «remodelação» des-
tinava-se, ao menos simbolicamente, a rasurar 
sistematicamente os mais incómodos vestígios 
da ideologia e da prática do século de liberalismo 
que o precedeu. 
Provavelmente, embora noutros termos, esta é 
a situação da maioria das nações europeias — 
todas velhas, mesmo as que parecem novas — 
implicadas na edificação de um inédito organ-
ismo histórico-político chamado Europa. Talvez 
só a Inglaterra lhe escape, que nunca foi nação 
«só europeia», ou a Itália, que nunca foi nação. 
Todas as outras, a começar pela mais orgânica 
de todas, em termos políticos, a França ou a 
Alemanha, poderosa massa etnocultural, con-
hecem no seu interior as dores inéditas de uma 
mudança de ser, estar, actuar no mundo que nin-
guém sabe como assumir. O caso de Portugal é 
único. Nunca esteve aco
mpanhado na definição do seu destino. Está 
agora acompanhado de mais, de certo modo 
sobreprotegido, contente com a companhia e as 
ajudas que recebe, que o compensam do Império 
perdido e, aparentemente, não o privam de nada. 
Como no célebre monólogo de Gil Vicente, pode 
ocupar com desembaraço os lugares de «tudo» e 
de «ninguém». 
Mas, obscuramente, no meio de orgias pagas 
com o dinheiro dos outros, pela primeira vez, 
Portugal não sabe bem o que é. Não sabe bem o 
que é como destinocendo pouco esse nome por 
serem eco do mero estado político ou ideológico 
da Nação, Portugal está sofrendo uma metamor-
fose cultural de rara intensidade. Determinada 
por uma séria revisitação do seu lastro histórico e 
34 35
cultural próprio — em arqueologia, em história, 
em organização administrativa e jurídica 
autónomas, em vida simbólica —, tanto como 
pela pressão de novos saberes e técnicas que já 
não nos chegam com anos-luz de atraso, mas em 
tempo real. Embora tudo se passe, em geral, em 
compartimentos estanques, sem enquadramento 
num plano que vise simbolicamente esse «outro 
Portugal», mais interessante que o sonhado, para 
folclóricas exibições para o mundo ver, como 
Quinto Império. O Quinto Império está em 
nossa casa se o não leiloarmos tão obscenamente 
na feira dos mitos extintos. 
E é aqui que o sintagma «Portugal como destino» 
adquire a sua pertinência. De uma certa maneira, 
como a última exposição do século o mostrou 
— ao menos em parte e através do seu conceito 
«oceânico» —, o mundo está todo em Portugal 
e Portugal em parte alguma. Parece o sonho de 
Pessoa, mas não é. É mesmo o contrário. A sim-
bólica dispersão oceânica não nos trouxe de volta 
o «mar português», este sentimento de ser uma 
«realidade específica» em diálogo com o mundo, 
um sítio nosso, e não um espaço de reciclagem 
virtual das invenções, dos sentimentos, dos 
escândalos dos outros, à la page pelos meridianos 
de resto inacessíveis e, no fundo, desinteressantes 
— de Amsterdão, ou de São Francisco, ou da 
nova Moscovo. A história e o destino de Portugal 
nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que 
a vida é. Também não o são agora. Pela primeira 
vez, o nosso país vive-se a si mesmo e começa até 
a ser visto pelos outros, que sabem onde ficamos 
36 37
e quem somos, como um povo insolentemente 
feliz. Exibicionistamente feliz, até, como nos está 
nas veras da alma. Antes isso que o masoquismo, 
um tudo nada hipócrita, com que éramos «os 
lusíadas coitados». Mas de que está cheio este 
novíssimo contentamento de arraial minhoto? 
Da total ausência de interesse pela «ideia de 
Portugal» que tenha qualquer conteúdo além 
do da sua representação, da sua imagem, do seu 
look no espelho alheio, seja ele desportivo, turís-
tico, artístico, cultural, já que não é fácil imag-
inar que aí figure como uma referência obrig-
atória na ordem económica ou científica. No 
meio século de cultura salazarista, Portugal só 
tinha «exterior». 
Ele mesmo era uma ilha, um «oásis de paz», 
como lhe chamou Marcelo Caetano, e só podia 
distrair-se com a balbúrdia do mundo e as suas 
extravagâncias. Desde há um quarto de século, 
sem cuidados de império, rendeiros módicos da 
nova Europa, podemos cultivar, enfim, o nosso 
jardim, como o Cândido de Voltaire. 
Não sem sucesso em tudo o que diz respeito a 
alindamento público e doméstico, ao acesso a um 
conforto que a segunda vaga migratória trouxe 
até às aldeias camilianas da província portu-
guesa, prelúdio a uma «mundialização» de com-
portamentos, costumes, divertimento nocturno 
e diurno que, pela primeira vez ou segunda, se 
pensarmos nos Descobrimentos ou na revolução 
do caminho-de-ferro, pôs termo, real e metafi-
sicamente, ao fosso característico da cultura por-
tuguesa e da maneira como durante séculos se 
viveu e se amou nesse viver. Refiro-me, natural-
mente, à tão nacional dicotomia — ao mesmo 
tempo geográfica, metafísica e simbólica — do cá 
dentro e lá fora. 
Depois de Camões, contornando o lugar 
extinto de Antero, Pascoais e Pessoa conce-
beram a empresa de «imaginar» um destino para 
Portugal. Com uma radicalidade sem exemplo. 
Reimaginando-o, não «pensando-o» em moldes 
ou exemplos que nunca haviam sido os seus e 
adaptados como se o fossem, se foi ele dissolv-
endo num país sempre atrasado na imitação de 
modelos alheios que, como amigos de Job, vin-
ham até à sua enxerga para o consolar. 
Portugal não foi o único país da Europa que se 
contorcionou na impotência de se viver e sentir 
menos do que era ou tinha sido por não estar à 
altura de uma modernidade incontornável por 
fora e, mais ainda, por dentro. A questão ainda 
não terminou, inverteu apenas os termos em que 
era vivida nos fins do século XIX e princípios do 
século XX. A Rússia de Dostoievski e de Tolstoi 
e a Espanha de Unamuno transformaram o seu 
mal-estar civilizacional e histórico em drama 
espiritual e exportaram-no para o mundo, 
primeiro simbólica ou miticamente, depois nas 
convulsões de uma revolução destinada a mudar 
não apenas «o destino de uma nação», mas tam-
bém o da humanidade inteira. 
38 39
Tempo português
PORTUGAL 
COMO DESTINO
A cultura portuguesa nunca produziu — pelo 
menos até Eça de Queirós — nem Montaigne, 
nem Montesquieu, nem Swift, nem Lessing, isto 
é, um olhar exterior a si mesma que a acord-
asse, não de qualquer cegueira dogmática ou cul-
posa, mas da contemplação feliz e maravilhada 
de si mesma. Todos os povos vivem, mais ou 
menos, confinados no amor de si próprios. Mas 
a maneira como os Portugueses se comprazem 
nessa adoração é verdadeiramente singular. Seria 
absurdo pretender que um povo entre outros, e 
ainda por cima um pequeno povo, possa estar 
fora ou escapar a esse maelström a que chama-
mos História. 
Contudo, evitar o destino comum, instalar-
se, não se sabe por que aberração ou milagre, 
à margem do mundo, é um pouco aquilo que o 
povo português sempre, tem feito.Portugal vive-
se «por dentro», numa espécie de isolamento sub-
limado, e «por fora», como o exemplo dos povos 
de vocação universal, indo ao ponto de disper-
sar o seu corpo e a sua alma pelo mundo inteiro. 
A imagem é de Camões e todos os portugueses 
a conhecem de cor. Essa mitologia está inscrita 
Citação Nº 1
40 41
na bandeira portuguesa. Portugal foi o único 
país que colocou no centro da sua bandeira a 
esfera armilar, em suma, a representação do uni-
verso. Isto não espanta ninguém e ainda menos 
os Portugueses. 
Essa imagem não é apenas de ordem cosmológica 
— consagração do papel de Portugal como desco-
bridor de «novas terras e novos céus» —, mas de 
ordem crística: a do convidado modesto sentado 
no lugar de honra dos eleitos. esse, desenrolar-
se-á sem entraves no seu espaço interior, de Luís 
de Camões ao padre António Vieira e a Pessoa, 
ao mais banal dos seus governantes. O mais curi-
oso é que, num momento de fanatismo, Portugal 
amputou-se ou recalcou a sua parte de Israel para 
se tomar, paradoxalmente, uma espécie de Israel 
católico. Talvez estivesse na ordem das coisas 
ou, pelo menos, da história. Em nome de Cristo, 
Portugal assumiu o papel impossível de povo 
«eleito». 
À volta do brasão de Portugal, evocando as cinco 
chagas de Cristo, os reis desse país, então sen-
hor dos mares, do Brasil ao Japão, ousaram colo-
car-se no centro do mundo. Os Portugueses não 
são o único povo que se sente desconhecido, 
mal conhecido ou decaído do antigo esplendor, 
real ou imaginário. De algum modo, é o caso de 
toda a gente e, hoje, até daqueles povos e culturas 
que, durante séculos, os outros olharam como 
faróis do mundo. Mas o que surpreende, nos 
Portugueses, é o facto de parecer terem decid-
ido viver como os cristãos nas catacumbas. Não 
porque pese sobre eles qualquer ameaça efectiva, 
mas porque não suportam ser olhados por quem 
ignore ou tenha esquecido a sua vida imaginária. 
Preferem então, a exemplo de Fernando Pessoa, 
ausentar-se de si mesmos e outorgar-se, como ele 
o fez com insólita fulgurância, o próprio estatuto 
da ausência. 
Uma ausência onde tudo e nada são indefinid-
amente reversíveis: Não sou nada. Nunca serei 
nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, 
tenho em mim todos os sonhos do mundo. Os 
leitores estrangeiros imaginam muitas vezes que 
Fernando Pessoa, convertido em português uni-
versal, é uma excepção. A título de génio lit-
erário, sem dúvida. Não a título de português, 
a despeito do seu desejo de querer «ser tudo 
de todas as maneiras» e sair assim, por conta 
de todos, da «pequena casa lusitana», esse sítio 
simultaneamente banal e onírico que é o único 
onde os Portugueses se sentem em casa. Nele são 
tão estrangeiros como fora dele. 
O seu lugar não se situa apenas no mapa. E muito 
menos se circunscreve ao pequeno rectângulo, 
deitado à beira do Atlântico, carregado de pas-
sado e vida singulares, que chamamos Portugal. 
Desde os tempos mais recuados que essa terra, 
Atlântida sem lembrança dela, parece desertar 
a Europa. Por necessidade ou cupidez, raro por 
aventura, os Portugueses partiram dela ao longo 
dos séculos, por vezes sem esperança de regresso. 
A longa história de Portugal, incluindo nela a 
anterior ao seu nascimento como reino, é a de 
uma deriva e de uma fuga sem fim. Isso explica 
a dispersão dos Portugueses e a sua presença no 
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mundo, outrora no Brasil, na África, no Oriente 
e hoje no Canadá, nos Estados Unidos, na 
Venezuela, no Havai ou mais perto, nesta Europa, 
em França, na Alemanha na Suíça, mesmo na 
vizinha Espanha. Mas nem essa deriva, nem essa 
fuga, explicam a singularidade dos Portugueses. 
Povo emigrante antes de o ser, por vontade ou 
à força, adaptável, discreto no meio dos out-
ros, sempre pronto, na aparência, a trocar a sua 
identidade pela dos outros, na realidade nunca 
abandonou o seu ponto de partida. 
Quer dizer, a sua verdadeira pátria, a do sonho 
adormecido mas nunca extinto no fundo do seu 
ser. A saudade, a nostalgia ou a melancolia são 
modalidades, modulações da nossa relação de 
seres de memória e sensibilidade com o tempo. 
Ou, antes, com a temporalidade, aquilo que, a 
exemplo de Georges Poulet, designarei como 
«tempo humano». Isso significa que essa tempo-
ralidade é diversa daquela outra, abstractamente 
universal, que atribuímos ao tempo como suc-
essão irreversível. 
Só esse «tempo humano», jogo da memória e 
constitutivo dela, permite a inversão, a sus-
pensão ficcional do tempo irreversível, fonte 
de uma emoção a nenhuma outra comparável. 
Nela e através dela sentimos ao mesmo tempo 
a nossa fugacidade e a nossa eternidade. A esse 
título, a nostalgia, a melancolia, a própria sau-
dade, revindicada pelos Portugueses como um 
estado intraduzível e singular, são sentimentos 
ou vivências universais. Da universalidade do 
«tempo humano», precisamente. É o conteúdo, 
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a cor desse tempo, a diversidade do jogo que a 
memória desenha na sua leitura do passado o que 
distingue a nostalgia da melancolia e estas duas 
da saudade. Em si mesma, a saudade não tem 
história. Mas têm-na as manifestações dela. Só 
em termos historicistas, e sem nenhuma coerên-
cia interna, essa história — escrita com fins dog-
máticos — mereceu alguma atenção. 
Antes de ser pensada, a saudade foi cantada e 
é filha e prisioneira do lirismo que primeiro 
lhe deu voz. Antes de se tomar o mito que já a 
não deixa pensar e a configura num papel hag-
iográfico-patriótico, a saudade não foi mais que 
a expressão do excesso de amor em relação a 
tudo o que merece ser amado: o amigo ausente, 
a amada distante, a natureza imemorial e íntima, 
escrínio de todos os amores, flor de verde pinho, 
ondas do mar. 
Nenhuma ressonância trágica perpassa naque-
las canções em que a saudade comparece em toda 
a sua ingenuidade. No seu berço céltico, o da 
Galícia e Portugal, a saudade parece modulada 
pelo ritmo universal do mar. Descobre-se, sem 
bem o saber ainda, que a eternidade é feita de 
tempo e o tempo de eternidade. Tudo é aí, simul-
taneamente, passado e presente. Esta música de 
fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da 
alma. Sabemos que o jovem Sartre pensou no 
título Melancholia para o livro que havia de se 
tomar célebre com o nome de A Náusea.

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